A condição pós-moderna e as ciências sociais

June 14, 2017 | Autor: C. Teófilo da Silva | Categoria: Postmodernism, Ethnography of Science, Technology and Practices
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comunicação Brief Communication

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A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA E AS CIÊNCIAS SOCIAIS Cristhian Teófilo da Silva

Resumo Este breve artigo re-introduz o debate sobre a

dada por meio da hipótese seminal de Lyotard

condição pós-moderna como contexto cultural

que a concebe como contexto pós-industrial

com o intuito de sugeri-lo como condição de

característico das sociedades contemporâneas

possibilidade para uma meta-ciência de caráter

e da respectiva crítica feita por Giddens à noção

etnográfico. A questão colocada consiste em saber

de “pós”-modernidade. O artigo será concluído

qual a contribuição específica da condição pós-

apontando a vocação meta-disciplinar da ciência

moderna para as Ciências Sociais no que tange

pós-moderna a partir da etnografia do pensamen-

à construção de novos problemas e objetos de

to moderno e da ciência tal como propostos por

pesquisa. A condição pós-moderna será abor-

Geertz e Latour.

Palavras-chave discurso pós-moderno ciências sociais meta-disciplinaridade

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p. 320-333

A condição pós-moderna como discurso sobre a contemporaneidade Moderno, modernidade, pós-modernidade, pós-modernismo, condição pósmoderna, são temas difíceis de serem abordados porque são difíceis de serem diferenciados entre si. Mas, como distinções são necessárias para a compreensão, é possível reunir tais noções em um mesmo ideograma que chamarei neste breve artigo de “discurso pós-moderno”. A justificativa para conjugar diferentes termos ao invés de destrinchar uma lista de definições particulares e contrastantes é válida somente nestes contextos onde o que já foi dito supera, em muito, o que ainda cabe dizer. Após refletir sobre a dimensão discursiva da pós-modernidade como um campo discursivo, espera-se poder abstrair dele um único tema que não será nem a junção do moderno ao pós-moderno, tampouco a disjunção do “pós” e do “moderno”. Ao tratar o debate sobre a pós-modernidade e sua condição como uma “discursividade”, minha intenção é fazer emergir, melhor seria dizer, fazer decantar o que há de sólido na pós-modernidade que não foi desmanchado no ar dos jogos de linguagem acadêmicos. Tentarei argumentar de que maneira um movimento intelectual tido como “destrutivo” e “perturbador” da ordem disciplinar vem contribuindo positivamente para a criação de novos projetos intelectuais nas Ciências Sociais, em particular para uma meta-ciência social. Para apresentar esta contribuição deve-se primeiro entender os principais argumentos expostos pela reflexão pós-moderna, bem como de alguns de seus críticos que, nem por isso devem ser entendidos como “anti-pós-modernos”. O discurso pós-moderno pode ser representado hoje por uma legião de intelectuais comandados quase sempre por três grandes nomes “modernos”: Freud,

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Comunicação inédita elaborada como parte do processo seletivo para Professor Adjunto em Ciências Sociais na Universidade de Brasília.

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Nietzsche e Marx. Este autores têm em comum a criação de obras monumentais erguidas sobre uma metáfora arquitetônica que descreve a realidade em dois níveis, um visível e outro, oculto (por “dois níveis arquitetônicos” devemos compreender, respectivamente, a noção de inconsciente como causa do manifesto pela consciência desenvolvida por Freud, a genealogia da moral como crítica da superficialidade da civilização cristã de Nietzsche, e a relação entre a vida cultural como uma superestrutura de uma base menos visível de Marx).



Sob estas influências intelectuais, filósofos, sociólogos, antropólogos, críticos literários, geógrafos, historiadores, lingüistas etc., se re-alinharam em torno das discussões de nomes como: Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard, Jean Baudrillard, Michel Foucault, Jacques Derrida (no agrupamento francófono), David Harvey, Fredric Jameson, Edward Said, Gayatri Spivak, Homi Bhabha (no agrupamento anglófono) e assim por diante. Os regimentos pós-modernos se tornam incontáveis ao incluírem todos aqueles que se identificam ou (re)produzem um discurso pós-moderno nas mais diversas áreas podendo ser designados como pós-estruturalistas, pós-colonialistas, pós-imperialistas etc. Quando nos debruçamos sobre este exército em ação nos vemos diante de um movimento crítico e destrutivo das próprias bases epistemológicas fundadoras das disciplinas humanísticas instituídas. As manobras de ataque dos pós-modernos estão imbuídas de uma postura cética, crítica e irônica a qual mobilizam para desconstruir e para jogar lingüisticamente com as “verdades estabelecidas”, com os “efeitos de verdade” dos discursos científicos, jurídicos, religiosos, em suma com o poder e sua forma legitimada, o saber. Tamanha operação “desconstrutiva” não é realizada sem a criação de novas metáforas conceituais ou analogias para substituir os gastos conceitos de indivíduo, cultura e sociedade e suas dicotomizações respectivas (indivíduo/sociedade; natureza/cultura; ciência/política). Eis que surgem os termos: disjunção, descentramento, fragmentação, fluxos, fluidez, híbridos, globalização, não-lugar, entre-lugar, redes, fronteira, simulacro, diáspora, reflexividade, historicidade, multi-localidade etc., e esta não é uma lista exaustiva. Torna-se inevitável a desorientação, uma vez que os pontos cardeais assentados sobre séculos de produção intelectual eurocêntrica são, um por um, destituídos de significado e tornados significantes do poder-saber. A tentativa, neste artigo, de caracterizar o discurso pós-moderno pela analogia da batalha e da luta representa um esforço para ser fiel ao próprio sotaque

 Reproduzo aqui a leitura da modernidade proposta por Anthony Stanton (2006) em sua interpretação do Labirinto da Solidão, de Octavio Paz.

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pós-moderno falado pelas vertentes intelectuais acima mencionadas. O léxico pósmoderno traz termos como: “tática”, “estratégia”, “jogo” e “poder” como vocábulos recorrentes. O estranhamento causado pela metáfora da guerra aplicada ao pensamento moderno e ocidental é responsável pela sensação de desorientação diante da (des)ordem discursiva pós-moderna. Vemo-nos diante de um debate de palavras e conceitos ainda indomados. Nossos autores nunca deixam de nos lembrar que seus escritos são “escritos de circunstância”, “ensaios alongados”, “hipóteses”. Tentam nos alertar, desse modo, que mesmo experimentando com metáforas e conceitos provisórios e abstratos eles estão conscientes da hora de parar e começar a falar sério sobre problemas concretos e perenes, como são as condições de produção e reprodução material e simbólica das sociedades contemporâneas. O discurso pós-moderno é caracterizado, portanto, por uma postura combativa. Os pós-modernos parecem falar sempre contra alguma coisa ou contra alguém. Eles nos fazem repensar aquilo que acreditamos, aquilo que julgamos “real” e assim fazem desmanchar no ar tudo que julgamos sólido. Motivado por esta (im)postura intelectual, gostaria de sugerir, a partir do “escrito de circunstância” de Lyotard e alguns de seus críticos, que a questão pósmoderna refere-se exclusivamente à questão de quem somos, o que fazemos, e como vivemos atualmente, neste início de século. Se o discurso pós-moderno ocupou-se, primeiramente, com a destruição da metanarrativa hegemônica do Ocidente, nomeadamente o Estado-nação capitalista como ápice da história, então o que nos legou a crítica pós-moderna? Se os pressupostos morais e racionalistas de Descartes e Kant, Galileu e Newton, Hobbes e Rousseau, que nos asseguravam um ponto de vista privilegiado sobre a natureza, os outros e nós mesmos, foram desmontados um a um e reduzidos a meras representações do que projetamos como realidade, então o que resta para ser pensado pelas Ciências Sociais se é que ainda podemos falar, sem culpa, em ciências da sociedade? Teria a condição pós-moderna nos legado apenas um profundo estranhamento, uma incerteza frente à realidade concebida pelas ciências empíricas, uma angústia? Se for apenas isso, então, a pós-modernidade não oferece nada de novo ao que a filosofia já vem nos oferecendo há muito mais tempo. Afinal, é pela transformação da angústia em perplexidade que a interrogação filosófica nos obriga a algum tempo a pensar sobre o que pensamos ser a realidade. Nesses termos, o discurso pós-moderno não passaria de mais uma “parada reflexiva” da Filosofia sobre algo que nos aflige desde sempre, a constituição da realidade. E como a realidade de hoje não é totalmente a mesma de ontem, precisamos aprender a pensar com os termos e as coisas de hoje. Minha hipótese,

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entretanto, quer ir além de uma apreensão do discurso pós-moderno como um modismo filosófico. Sou da opinião (até pensar o contrário) que o discurso pós-moderno é mais do que a crítica moderna à modernidade. Quero crer (por enquanto) que o discurso pós-moderno inaugura uma nova ordem discursiva não mais disciplinar, mas interdisciplinar e porque interdisciplinar, metadisciplinar. Nesse sentido, trata-se de um esforço da modernidade dialogar consigo mesma para escapar do esgotamento oriundo de seu próprio desenvolvimento.



Qual a base epistemológica que se pode obter daí para a fundamentação das Ciências Sociais na era do capitalismo avançado é o tema que motiva este artigo sobre o qual passarei a falar seguindo a recomendação de Nietzsche para quem os grandes problemas são como os banhos frios: é preciso entrar rápido e sair da mesma forma! Pós-modernidade em debate: definições e críticas retrocedentes Agora que abrimos a caixa de Pandora do discurso pós-moderno e preservamos o tema em torno do qual parecem gravitar os demais: “como definir o mundo em que vivemos”, gostaria de resumir os termos por meio dos quais os pós-modernos vêm tentando equacionar esta questão. Se pudermos distinguir hoje os contornos de um “discurso pós-moderno” isto se deve a um autor que balizou a condição pós-moderna e pré-determinou os rumos da discussão. Jean-Francois Lyotard foi o principal demarcador do debate “pós-moderno” quando interrogou o critério de “desempenho” do modelo nipoamericano de produção como critério válido para legitimar outras produções, notadamente intelectuais e científicas. A intenção de Lyotard era confrontar os jogos de linguagem do filósofo (interrogação) e do expert (conclusão) para, enfim, expor as limitações do conhecimento objetivo do segundo. O ensaio intitulado “A condição pós-moderna” (1979) formulou (no sentido de “formalizar”, conferir “formalidade”) à questão de como o saber é produzido, distribuído e legitimado segundo a lógica cultural do capitalismo tardio (para falar como Jameson). A condição pós-moderna seria precisamente isso, uma condição, um pressuposto, um contexto para a produção, distribuição e legitimação dos saberes que são, por sua vez, aquilo mesmo que contará como riqueza no mundo pós-moderno. Para Lyotard, o cenário pós-moderno é essencialmente cibernético

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Sobre o esgotamento progressivo na história das ciências, ver Serres (1990).

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informático ou informacional, portanto a riqueza pós-industrial seria alcançada não mais pela produção de mercadorias mas, antes, pela circulação de dados e informações no interior de relatos e metarrelatos. Neste cenário, os relatos (que seriam a forma material dos saberes) circulam, viajam e assim tensionam a ordem moderna do mundo, quer dizer, relativizam o estatuto de verdade conferido às explicações sobre a realidade e se fazem eles mesmos moedas de troca, coisas exteriores que podem ser apropriadas pelas pessoas para maximizar seu poder sobre os outros. A busca do saber (pesquisa) e a transmissão do saber (pedagogia) se fundem, em um momento, para fundar, em seguida, a circulação do “capital” na sociedade pós-moderna que é o próprio saber exteriorizado, a informação. Na era pósmoderna não podemos mais esperar que os indivíduos se formem a partir da interiorização dos saberes, pois as novas tecnologias e o acúmulo de informações converteram o conhecimento em um valor de troca. Para Lyotard, a condição pós-moderna é aquela que estabelece os saberes como um valor intercambiável entre múltiplos agentes para o exercício do poder sobre o ambiente e os outros. Daí sua profecia de que as guerras do século XXI não seriam mais por territórios, mas por saberes, pois o poder se funda no saber e vice-versa. A condição pós-moderna designaria, portanto: “o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX. Aqui, essas transformações serão situadas em relação à crise dos relatos” (Lyotard 2002 [1979], p. xv). Para Lyotard o saber científico seria uma espécie de discurso, um relato que as ciências fazem sobre as coisas. Em suas palavras: “existe um entrosamento entre o gênero de linguagem que se chama ciência e o que se denomina ética e política: um e outro procedem de uma mesma perspectiva ou, se preferir, de uma mesma ‘opção’, e esta chama-se ‘Ocidente” (ibidem, p. 13). Lyotard recusa essa redução de quem somos à perspectiva Ocidental, uma vez que sob esta perspectiva não passamos de sociedades organicamente fechadas sobre si mesmas e cuja imagem não corresponde à “atomização do social em flexíveis redes de jogos de linguagem” (ibidem, p. 31) que Lyotard percebe existir na prática entre sujeitos localizados em diferentes pontos da malha informacional e tecnológica global. Como conclusão à apresentação das idéias de Lyotard sobre a condição pósmoderna, podemos indagar: o que devemos entender por “pós-modernidade”? Concordo com as reflexões de Silviano Santiago para quem os múltiplos sentidos da pós-modernidade seriam relativos:

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Aos olhos revolucionários, a pós-modernidade é reformista. Aos olhos iluministas ela é uma freguesa contumaz, ou seja, mais uma rebelião anárquica da irracionalidade. Aos olhos verdadeiramente modernos, ela é apenas modernizadora. Porém, aos seus próprios olhos, a pós-modernidade é anti-totalitária, isto é, democraticamente fragmentada, e serve para afiar a nossa inteligência para o que é heterogêneo, marginal, marginalizado, cotidiano, a fim de que a razão histórica ali enxergue novos objetos de estudo. (Santiago 1990, s/p).

Ao encontro desta leitura de Santiago vem se somar a interpretação de Homi Bhabha, entre outros, que se opõem à leitura da condição pós-moderna enunciada e anunciada por Lyotard como uma mera celebração da fragmentação das “grandes narrativas” do racionalismo. Segundo Bhabha: “A significação mais ampla da condição pós-moderna reside na consciência de que os ‘limites’ epistemológicos daquelas idéias etnocêntricas são também as fronteiras enunciativas de uma gama de outras vozes e histórias dissonantes, até dissidentes – mulheres, colonizados, grupos minoritários, os portadores de sexualidades policiadas” (Bhabha 1998: 23-24). A pós-modernidade se fundaria, portanto, nas fissuras abertas entre as “grandes narrativas”, entre os “metarelatos”, entre os limites epistemológicos que dividem as ciências e repartem seus objetos. Pois bem, se Lyotard deseja nos fazer crer que vivemos em um contexto pósmoderno que se ergue entre as ruínas dos relatos que faziam da modernidade um projeto Ocidental de expansão e dominação unidirecional, há quem pense que tudo isso não passa de uma ilusão de ótica resultante das vertigens do mundo contemporâneo que segue mais moderno do que nunca. Refiro-me, particularmente, a Anthony Giddens que escreveu seu “ensaio alongado”, “As conseqüências da modernidade”, como uma resposta à hipótese de Lyotard de que vivemos em um mundo pós-moderno. Dito de outro modo, para Giddens vivemos uma fase de “radicalização da modernidade”, que seria, em suas palavras, o “... estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência” (Giddens 1991: 11). Se Lyotard se apresentou como filósofo para combater o discurso dos experts, Giddens se apresentará como sociólogo para corrigir as indagações do filósofo e, nesse sentido, defenderá a sociologia como importante geradora de conhecimento sobre a vida social moderna que apresenta hoje nítidos sintomas de “modernidade aguda” decorrente da expansão de um único modelo de organização social. Os sintomas seriam: perda de credibilidade nos fundamentos da epistemologia

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iluminista de fundo kantiano e destituição do poder teleológico à história que não pode desse modo nos oferecer nenhuma versão de “progresso”. É sob esses termos que Giddens entende a “pós-modernidade” de Lyotard, como um momento crítico do processo de progressiva diferenciação interna das sociedades de capitalismo avançado, onde “falar de pós-modernidade como suplantando a modernidade parece invocar aquilo mesmo que é [...] declarado impossível: dar alguma coerência à história e situar nosso lugar nela” (ibidem: 53). Para Giddens, portanto, jamais fomos pós-modernos, isto é: “Não vivemos ainda num universo social pós-moderno, mas podemos ver mais do que uns poucos relances da emergência de modos de vida e formas de organização social que divergem daquelas criadas pelas instituições modernas” (idem: 58). Toda essa discussão nos remete necessariamente a um terceiro autor a quem não podemos chamar de “pós-moderno”, porque provocativamente alega nem ser moderno. Bruno Latour escreve sua hipótese na forma de um ensaio intitulado “Jamais fomos modernos” (2000 [1991]), onde alega que, na verdade, “nossa sociedade ‘moderna’ nunca funcionou de acordo com a grande divisão que funda seus sistemas de representação do mundo: a separação radical entre a natureza, de um lado, e a cultura, de outro”. As críticas retrocedentes – leia-se, as críticas que nos fazem deixar de ser aquilo que supostamente seríamos para afirmar que somos uma coisa anterior – de Giddens e Latour à caracterização do mundo contemporâneo como “pós-moderno” nos remetem a um movimento típico nas ciências resultante do comportamento dos cientistas de negarem os objetos uns dos outros. Freud talvez tenha sido o primeiro a elucidar o fenômeno quando diagnosticou psicanaliticamente como “negação” a recusa dos seus colegas à sua teoria da sexualidade (ver Freud 1978: 27). Em defesa de Lyotard, é possível argumentar que, se concordarmos ao mesmo tempo com Giddens, que nega o prefixo “pós”, e Latour, que nega o adjetivo “moderno”, terminaremos sem nada nas mãos, pois a “pós-modernidade” seria tão ilusória hoje quanto o “totemismo” foi para a Antropologia em outros tempos (ver Lévi-Strauss 1986). Desse modo, prefiro sustentar que a “pós-modernidade” nunca foi o objeto de Lyotard que se referiu, ainda que provisoriamente como são todas as hipóteses, à “condição” pós-moderna do mundo atual. Será realmente necessário para descrever o mundo contemporâneo que tenhamos que situá-lo na ponta de uma série de estágios sucessivos? Será que o trinômio “Antigüidade-Modernidade-Pósmodernidade” deve funcionar apenas como uma linearidade temporal se quisermos aplicá-lo para interpretar aspectos do mundo em que vivemos? Se os argumentos de Giddens tendem a responder afirmativamente a essas questões, pois o mesmo define a modernidade precisamente como uma série de

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rupturas na concepção do tempo, penso que Latour responderia negativamente às mesmas, pois ele nunca deixou de reconhecer que há algo de podre no mundo moderno e aventou a possibilidade de que: “Talvez o quadro moderno houvesse conseguido se manter por mais algum tempo caso seu próprio desenvolvimento não houvesse estabelecido um curto-circuito entre a natureza, de um lado, e as massas humanas, de outro” (Latour 2000: 54). Sendo assim, ao negar o advento da sociedade moderna, Latour não nega os efeitos do projeto moderno ocidental de separação e purificação das sociedades face à natureza. Independente dos rótulos que damos aos processos, esses existem e continuarão existindo. Para ele: “a passagem moderna do tempo nada mais é do que uma forma particular de historicidade” (ibidem: 67). A ilusão que deve ser combatida, portanto, é a de que o passado realmente foi abolido quando da sua passagem. A ilusão é pensar que rompemos irreversivelmente com o passado quando nos vemos em diferentes momentos da nossa história. Segundo a percepção de Latour não é preciso ter sido moderno ou ser antimoderno para ser pós-moderno, tampouco abandonamos totalmente a antigüidade quando tentamos nos fazer modernos. Isto porque a condição pós-moderna nos lembrou da simultaneidade de tempos múltiplos, o que não é a mesma coisa que “anacronismo” ou “transhistoricidade”. Dito de outro modo, pré-moderno, moderno e pós-moderno não são estágios, mas culturas particulares que co-existem e operam a partir de redes localizáveis em uma ou mais sociedades no tempo e no espaço. Sendo assim, se Latour não se define como pós-moderno é porque não confunde a visão de mundo de uma cultura particular (o capitalismo tardio de estados nacionais) com a perspectiva teórica e metodológica que a ciência deve ter do mundo. Para Latour, a tese de Lyotard é que a ciência se desconectou do coletivo humano e se conduz agora em níveis virtuais, meta-naturais, quer dizer, fora do mundo social. A proposta de Latour é corrigir esta tese e nos fazer reconhecer que as ciências sempre estiveram ligadas aos coletivos por meio dos híbridos ou quase-objetos que criou. Aparentemente, se alguns autores tornam difícil aceitar a leitura pós-moderna do mundo, os mesmos não tem tido dificuldades para reconhecer objetos, efeitos e fenômenos “pós-modernos” na realidade “lá fora”.

A contribuição pós-moderna para as Ciências Sociais Como vimos, “o discurso pós-moderno” informa uma tentativa recente de repre-

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sentar o que somos e o mundo em que vivemos a partir de uma suposta “condição” pós-moderna. As ciências como um todo e as ciências sociais, em particular, são compreendidas por este pressuposto como narrativas menores do projeto Ocidental sobre a natureza e outras culturas que seriam deste modo “outrificados” pelo relato (e libertados pela condição pós-moderna). O efeito do discurso pós-moderno sobre as Ciências Sociais acarretou a partir de então uma (auto)crítica ao “objetivismo” das narrativas existentes no interior das disciplinas compactuadas com o chamado “consenso ortodoxo” (ver Giddens 1984). Esta (auto)crítica foi tratada por sua vez como um fator de desordem, conflito e contaminação dos paradigmas constitutivos das disciplinas (ver Cardoso de Oliveira 1988) devendo, portanto, ser rechaçada enfaticamente. A reação às críticas apoiadas na pós-modernidade como condição de possibilidade do mundo atual, por sua vez, apenas reforçou a imagem de ortodoxia dos paradigmas dominantes nas ciências sociais, bem como das comunidades científicas situadas nos países centrais das disciplinas, dando origem aos movimentos intelectuais “pós-tudistas”. Quer dizer, tudo isso conspirou para a crise da categoria de “ordem” nos paradigmas do pensamento científico sobre o social e para o levante dos apocalípticos de plantão que passaram a pregar o fim da Sociologia, da Antropologia e da História. A receptividade da condição pós-moderna pela consciência hermenêutica não passou desapercebida neste momento de crise paradigmática nas Ciências Sociais e é neste momento que se pode depreender a principal contribuição do discurso pós-moderno na forma de um novo paradigma científico norteador de novos estilos de se fazer ciências sociais. Se esta argumentação tem algum propósito, este é o de constatar que após a destruição dos objetos das Ciências Sociais pelo movimento pós-moderno (o indivíduo, a cultura e a sociedade, além de suas múltiplas combinações dicotômicas) o que é colocado em seus lugares são as próprias ciências enquanto objetos da reflexão pós-moderna. A Antropologia, a Sociologia, a Ciência Política, a Economia Política, entre outras, passam a ser tratadas “como se fossem coisas”. A ciência deixa de ser um tipo de conhecimento para se tornar algo a ser conhecido pelo pesquisador. Esta é para mim a principal contribuição da condição pós-moderna às Ciências Sociais: a criação das condições epistemológicas (críticas, por assim dizer) para a realização de uma meta-ciência, onde as próprias ciências, entre elas as sociais, são convertidas em objeto do pensamento sociológico, antropológico, histórico, político e assim por diante.

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A vocação meta-disciplinar da etnografia pós-moderna Como conclusão e ao encontro desta leitura construtiva dos deconstrutivismos pósmodernos, aponto propostas desenvolvidas por dois antropólogos entretidos em um diálogo estreito com o discurso pós-moderno: Clifford Geertz e Bruno Latour. Não é acidente que ambos defendam a antropologia como uma disciplina capaz de articular múltiplos paradigmas para a compreensão empírica dos objetos híbridos da pós-modernidade, entre eles o pensamento moderno e sua manifestação mais específica, a própria ciência. Afinal, a etnografia compreende em si uma metodologia vocacionada para a meta-ciência (ver Cardoso de Oliveira 1988). Adianto, porém, que a principal diferença entre as propostas de Geertz e Latour reside no fato do primeiro apostar em uma etnografia do pensamento moderno a partir de seus “produtos” enquanto o segundo aposta em uma etnografia da ciência a partir de suas “práticas” ou seu “fazer”. O importante, porém é perceber a abertura propiciada pela “condição” pós-moderna – que caracteriza os mundos onde vivem os antropólogos – de modo a permitir o deslocamento da interpretação antropológica dos “outros” distantes aos “outros” próximos, entre nós mesmos. Para a Antropologia a condição ou o complexo cultural pós-moderno suscitou o exame do que precisamente pensamos sobre o pensamento (dos outros, por exemplo). Assim como em outras disciplinas, o discurso pós-moderno adentrou a Antropologia de modo a fazê-la voltar contra si mesma. Quer dizer, obrigou a teoria antropológica a considerar seu próprio discurso como um discurso particular de uma comunidade disciplinar específica e localizável no tempo e no espaço. Desse modo, se a grande questão que guiava a Antropologia era saber explicar a diversidade cultural de uma espécie única, a condição pós-moderna re-definiu a questão em termos de como podemos entender e representar adequadamente a diversidade dos outros e para quem. Desse modo (e desculpo-me pela longa citação já conhecida do público antropológico, mas um tanto quanto desconhecida de outros colegas das ciências sociais): o fato de que o pensamento é espetacularmente múltiplo como um produto, e maravilhosamente singular como um processo, tornou-se um paradoxo vivo e cada vez mais poderoso nas ciências sociais, conduzindo a teoria nas direções mais inesperadas [...]. Mas isso não é tudo. A natureza desse paradoxo foi sendo cada vez mais associada aos enigmas da tradução, ou seja, à forma pela qual um determinado significado em um sistema de expressão é expresso em outro sistema [...]. Nesse novo invólucro, o problema não é necessariamente mais maleável do que era

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antes; mas pelo menos torna-se mais fácil defendê-lo, pois o enigma de como um seguidor de Copérnico entende um seguidor de Ptolomeu, ou um francês da Quinta República, outro francês do ancien régime, ou um poeta, um pintor, passa a ser idêntico ao enigma de como um cristão entende um muçulmano, um europeu, um asiático, um antropólogo, um aborígene, ou vice-versa. Agora somos todos nativos, e os que não estejam por perto são exóticos. Aquilo que antes parecia ser uma questão de descobrir se selvagens eram capazes de distinguir fatos de fantasias, hoje parece ser uma questão de descobrir como é que os outros, além-mar ou do outro lado do corredor, organizam seu universo de significados (Geertz 1999: 226).

Em suma, para Geertz, propor uma etnografia do pensamento moderno é propor um projeto altamente necessário, posto que a modernidade não se caracterizaria mais como um estágio avançado de onde se pode pensar o atraso dos outros. O pensamento moderno seria antes um modo de ser no mundo, uma cultura particular, passível de ser descrita a partir de dentro tomando os próprios produtos do pensamento como “artefatos culturais”. A novidade com relação ao que se propõe o próprio discurso pós-moderno está precisamente em chegar a descrições melhores da nossa condição pós-moderna por meio da etnografia ao invés da interrogação e especulação filosóficas. Por esta mesma via empírica segue Bruno Latour ao propor uma Antropologia Simétrica. Dito de outro modo, se o discurso pós-moderno levou Geertz a conceber a todos como nativos, para Latour a questão passa a ser como eliminar definitivamente a grande divisão que separou nosso pensamento (moderno) do pensamento dos outros (pré-modernos). Afinal, argumenta Latour por que: “Era possível analisar a crença em discos voadores, mas não o conhecimento dos buracos negros; era possível analisar as ilusões da parapsicologia, mas não o saber dos psicólogos; os erros de Spencer, mas não as certezas de Darwin”. (Latour 2000: 92) Sugere Latour, portanto, que o ponto de partida para uma Antropologia comparada e simétrica está em uma etnografia da ciência, entendida esta como uma espécie de “mito fundador” e “fato social total” da cultura Ocidental moderna. É por tratar a ciência como mito e fato que Latour consegue enxergar que a própria noção de cultura é um artefato criado por nosso afastamento da natureza. Sendo assim, diferente de Geertz, Latour não percebe uma pluralidade de culturas nativas. Para ele “... não existem nem culturas – diferentes ou universais – nem uma natureza universal. Existem apenas naturezas-culturas, as quais constituem a única base possível para comparações” (ibidem: 102). Afinal, “a própria noção de cultura é um artefato criado por nosso afastamento da natureza” (ibidem, grifos do autor).

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Sob esta perspectiva, o mundo contemporâneo não encolheu, como quer Harvey (1992) ao comentar a compressão do espaço-tempo promovida por novas tecnologias de comunicação e transporte. O espaço e sequer o tempo “encolheram”. Na verdade, ambos expandiram e se adensaram de signos e significados compartilhados, entre outros que permaneceram obscuros na qualidade de províncias cada vez mais finitas e evanescentes de significado. O desafio imposto pela condição pós-moderna às Ciências Sociais consiste, precisamente em: “construir os próprios coletivos em escalas cada vez maiores” (Latour 2000: 107). A etnografia constitui um caminho seguro para lograr este empreendimento, porém devemos à constituição pós-moderna do mundo contemporâneo a perspectiva de que há muito mais a ser começado e repensado do que a ser terminado nas Ciências Sociais.

Referências bibliográficas

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Abstract This brief article re-introduces the debate over

modern condition departs from Lyotard’s seminal

the post-modern condition as a cultural context in

hypothesis (and Gidden’s reply) that conceives it

order to suggest it as the condition of possibility for

as the post-industrial context of contemporary

a meta-science notably ethnographic. The leading

societies. The conclusion of the article points at

question aims at the specific contribution of the

the meta-disciplinary orientation of post-modern

post-modern condition to the Social Sciences

science as proposed by the ethnography of modern

regarding the construction of new problems and

thought by Clifford Geertz and the etnography of

objects of research. The approach to the post-

science proposed by Bruno Latour.

Key words post-modern discourse social sciences meta-disciplinarity

Recebido em abril de 2008

Aprovado em janeiro de 2009

Cristhian Teófilo da Silva Mestre e Doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília e Professor Adjunto da mesma instituição.

a condição pós-moderna e as ciências sociais – Cristhian Teófilo da Silva

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Comentários a “A Condição Pós-moderna e as Ciências Sociais” *

Ronaldo Lobão

*

Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília, é professor adjunto da Universidade Federal Fluminense.

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p. 334-339

este breve comentário ao texto de Cristhian Teófilo da Silva tem como

ponto de partida outra idéia poderosa apresentada por Jean-François Lyotard: o diferendo. Na sua forma dicionarizada, o diferendo é um “desacordo explícito, contestação resultante de um conflito de opiniões ou de interesse”. Para Lyotard, “diferente de um litígio, um diferendo será um tipo de conflito entre pelo menos duas partes que não pode ser resolvido adequadamente por falta de regras ade

quadas de julgamento para os dois argumentos” (Lyotard 1983: 9) . Agradeço aos editores de Teoria e Sociedade a oportunidade de apresentar publicamente meus argumentos. Ao leitor, peço que não aplique uma mesma regra para avaliar os argumentos dos dois textos. Lyotard chamou a atenção para que, em um diferendo, se aplicarmos uma mesma regra de julgamento para discursos construídos em lógicas distintas, cometeremos uma injustiça com um ou outro discurso, ou até mesmo com os dois. Nesse livro, Lyotard oferece interessantes pistas para estabelecer um outro diferendo, agora em relação ao seu próprio discurso em a Condição Pós-Moderna. Quero me opor às condições de possibilidade da generalização de um “discurso pós-moderno” (Silva 2009) a partir de um novo estatuto (único?) para o “saber”, que fosse coetâneo de uma etapa pós-industrial das sociedades e das “culturas na idade pós-moderna” (Lyotard 1986: 3). A construção de um “discurso pós-moderno” que tome por base, quase que tautologicamente, uma Política de Tempo (Fabian 1983) que situa o capitalismo, enquanto cultura no plural, como em uma etapa pós-moderna. Para um francês, nada mais natural que o universal seja igual ao local, nada contra a existência 

culturas no plural, desde que republicanas e iguais à cultura francesa .



O texto original é “A la différence d’un litige, un différend serait un cas de conflit entre deux parties (au moins) que ne pourrait pas étre tranchet équitablement faute d’une régle de jugement applicable aux deus argumentations”.



Uso esta noção, com muitas adaptações, a partir do texto de Marisa Peirano sobre um artigo de Dumont acerca de uma “comunidade de antropólogos” e a “verdadeira natureza da Antropologia” (Peirano 1992).

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Por isso, não há o que fazer emergir, nem deixar decantar. Talvez, como um bricoleur, possamos usar, sim, toda a arte e imaginação, sem um plano prévio, sem uma técnica (Lévi-Strauss 1997), e deixar fluir novamente a emoção, suprimida lentamente ao longo do triunfo do capitalismo (Hirschman 2002). Se a centralidade da noção de interesse teve papel fundamental na construção do capitalismo e da ciência, então a noção subjacente aos dois é a de previsibilidade. Seria necessário prever o comportamento das pessoas para dar segurança ao produtor e investidor. Eliminar comportamentos baseados na emoção, imprevisíveis. A sociedade do Homem Econômico Racional precisou fazer valer o lado racional e inventou, ou construiu, a Ciência (Shapin & Schaffer 1985; Latour 2000). Para romper com essa longa trajetória e, quem sabe, adotar uma nova perspectiva para se reconstruir, redefinir, reinventar a Antropologia e a Etnografia, talvez devêssemos devemos primeiro indisciplinar a Ciência. Não vejo nada de “perturbador” no discurso pós-moderno; talvez, como já foi escrito, “muito barulho por nada” (Trajano Filho 1988). Mas há sugestões interessantes para a discussão sobre certezas, previsibilidade, Ciência. Uma imagem nos deixada por Kafka sobre o homem frente ao processo histórico vale a pena ser lembrada Ele tem dois antagonistas. O primeiro o empurra por trás, a partir do seu nascimento. O segundo bloqueia a estrada à sua frente. Ele luta contra os dois. De fato o primeiro o apóia em sua luta contra o segundo, pois o primeiro deseja empurrá-lo em frente; da mesma forma o segundo o ajuda em sua luta contra o primeiro, pois é claro que o segundo o está empurrando de volta. Mas é assim apenas em teoria. Pois não existem apenas os dois oponentes, mas ele também. E quem sabe de fato suas intenções? Independente do que sejam, ele tem um sonho que em algum instante inesperado – e que requereria, deve-se admitir, uma noite mais escura do que qualquer noite que tenha ocorrido – ele possa se afastar na linha de disputa e ser alçado, a partir de sua experiência sobre esta guerra, como um juiz dos dois antagonistas (Kafka 1948).



Apesar de não estarmos nessa noite (ainda?!), vale a pena olhar sobre o que alguns autores citados no pequeno artigo escreveram ao longo de suas próprias trajetórias. Bhabha escreveu mais do que sobre “fissuras abertas” em narrativas ou meta relatos. Falou de relatos que não são produzidos segundo matizes epistemológicos. Ao usar Frantz Fanon como um “Ele” kafkaniano preferencial, o discurso 

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Esta imagem também está no livro de Hannah Arendt, Entre o Passado e o Presente.

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de Bhabha só pode dizer respeito a fraturas e impossibilidades de um “Ele” não colonizador e não colonizado ao mesmo tempo, de um “Ele” que tenha tido sua noite mais escura de todas e observado a falácia de um “Ele” universal. Sahlins discute a “Condição Humana” em um pequeno texto significativamente intitulado “A Ilusão Ocidental da Natureza Humana com reflexões sobre a longa história da hierarquia, igualdade e a sublimação da anarquia no Ocidente, e notas 

comparativas acerca de outras concepções sobre a condição humana” . Sua leitura nos leva a uma compreensão de que qualquer “essência”, ou “meta realidade”, não pode deixar de ser um produto da cultura de uma determinada sociedade. Bruno Latour, por seu lado, não precisou de noite alguma. O Bruno Latour de Ciência em Ação, que passou por Jamais Fomos Modernos, chegou em Políticas da Natureza desconstruindo a Ciência e apostando na Política, na relação entre humanos e não humanos. Filiou-se a uma perspectiva sobre a Ciência que decretou o “fim da certeza” (Prigogine & Stengers 1990; Prigogine 1997). Assim, a “invenção da ciência moderna” teria sido de autoria de um híbrido de poeta e juiz: o cientista. A face do poeta construíra seu objeto, uma realidade, onde antes houvera ficção (Stengers 2002). A face do juiz atestara que sua produção seria um “testemunho fidedigno” (Latour 1994; Shapin & Schaffer 1985) e o artefato foi “identificado como não podendo ser reduzido a um artefato” (Stengers 2002: 202). O que nos sugere que o desejo que uma meta ciência não seja confundida com a própria ciência, representa apenas o interesse (ou o desejo?) do cientista “moderno” de sempre. 

Geertz nos deixou “luzes disponíveis” para a antropologia . Essas luzes iluminam um caminho que cada vez mais conduz ao concreto, em associação com o psicológico, e por que não dizer, com as emoções. A equação “cultura, mente, cérebro/cérebro, mente, cultura” (Geertz 2001) não tem raízes, nem deixarão frutos, em domínios que não os do vivido. Mas é possível pensar em outros personagens, cuja “paixão não faz deles nem poetas, no sentido de fabricantes, nem juízes, nem profetas” (Stengers 2002: 202). Ao conjugar medida e política, medida e devir, sua paixão pela verdade o faz desvincular verdade e poder e entrelaçar verdades, no plural, e devires, também. Não uma “verdade” para além da “verdade”, ou uma meta verdade, mas verdades tão plurais quanto forem as emoções que as sustentam.



O título original é “The Western Illusion of Human Nature: with reflections on the long history of hierarchy, equality, and the sublimations of anarchy in the west, and comparative notes on other conceptions of the human condition”.



Não posso deixar de destacar a “traição” na “tradução” do livro de Geertz: “available light” não é “nova luz”, nem penso que essa fosse a idéia do autor.

comentários a “condição pós-moderna e as ciências sociais” – Ronaldo Lobão

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Porque no lugar da verdade, da verossimilhança, deve entra em cena a idéia de factibilidade, de Franz Hinkelammnert, onde o conhecimento empírico não deve buscar sua correspondência exata no mundo exterior. Aqui o conhecimento pode ser pensado como tecnologia no sentido de seu “critério de verdade [ser,] em última instância, sua transformabilidade em tecnologia” (Hinkelammnert apud Dussel 2002: 262), ou então, sua possibilidade simbólica. Podemos pensar que as emoções estão associadas a domínios de ações determinados (Maturana 2001). Podemos lembrar que o discurso, a linguagem, só “acontece quando duas ou mais pessoas em interações recorrentes operam através de suas interações numa rede de coordenadas cruzadas, recursivas, consensuais de coordenações consensuais de ações” (idem: 130). Se assim for, que a produção de conhecimento é uma ação e que as ações estão vinculadas à emoção, é vigoroso pensar que só poderia haver um discurso pós-moderno, uma linguagem científica pós-moderna, ou até mesmo uma meta-etnografia associada a uma emoção da mesma ordem, ou uma meta emoção. Mas uma meta emoção sem um correspondente na ação! A esta equação podemos relembrar um contraponto escrito na década de setenta (Scholte 1972). O processo que a etnografia pode produzir, a compreensão comparativa sobre o outro, de fato contribui para a autoconsciência, para o fundamento da ação e da emoção. Por sua vez, essa auto-compreensão permite uma auto-reflexão e uma auto-emancipação, ainda que parcial. No somatório dessas ações e transformações, acredito ser a emoção o que torna a compreensão sobre o outro possível. Mas para sentirmos as emoções é necessário recuperar o fluxo do tempo. Recontextualizar o espaço, vivê-lo em sua dimensão afetiva, em sua topofilia (Tuan 1990). Afinal, para o medo da água fria, nem sempre o banho rápido é a melhor solução. Por exemplo, quando se recusa um Estado de Emergência (Virilio 2006) e a Política do Tempo, misturar um pouco de água quente pode tornar o banho mais lento e prazeroso.

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