A configuração de prática abusiva na utilização do terceiro dígito no preço dos combustíveis

May 29, 2017 | Autor: F. Alves | Categoria: Direito Do Consumidor, CONSUMIDOR, Combustível, Consumidores, Prática abusiva
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IBP1363_14 A CONFIGURAÇÃO DE PRÁTICA ABUSIVA NA UTILIZAÇÃO DO TERCEIRO DÍGITO NO PREÇO DOS COMBUSTÍVEIS Fabrício G. Alves1, Klauss B. B. Nardy2

IBP1363_14 A CONFIGURAÇÃO DE PRÁTICA ABUSIVA NA UTILIZAÇÃO DO TERCEIRO DÍGITO NO PREÇO DOS COMBUSTÍVEIS Copyright 2014, Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis - IBP Este Trabalho Técnico foi preparado para apresentação na Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014, realizado no período de 15 a 18 de setembro de 2014, no Rio de Janeiro. Este Trabalho Técnico foi selecionado para apresentação pelo Comitê Técnico do evento, seguindo as informações contidas no trabalho completo submetido pelo(s) autor(es). Os organizadores não irão traduzir ou corrigir os textos recebidos. O material conforme, apresentado, não necessariamente reflete as opiniões do Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis, Sócios e Representantes. É de conhecimento e aprovação do(s) autor(es) que este Trabalho Técnico seja publicado nos Anais da Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014.

Resumo Este trabalho pretende analisar o uso do terceiro dígito na exibição dos preços de combustíveis nos postos revendedores. Para tanto, analisar-se-á a resolução nº 41/2013 da ANP, a qual impõe, em seu art. 20, o uso de três casas decimais. Após, será estudado se tal prática ofende o Código de Defesa do Consumidor, e ainda, se pode ser caracterizada como prática abusiva, ou se gera outros prejuízos aos consumidores. Por fim, examinar-se-á o art. 20 da referida Resolução a fim de verificar sua constitucionalidade.

Abstract This paper discusses the use of the third digit in the fuel prices display in gas stations. Will be analyzed the Resolution No. 41/2013 of ANP, which requires, in the article 20, the use of three decimal places. After, it will be studied whether this practice offends the Consumer Protection’s Code, and also if can be characterized as an abusive practice, or if can cause other damages to consumers. Finally, it will be analyzed the article 20 of the same Resolution in order to determine its constitutionality.

1. Introdução Segundo dados do Departamento Nacional de Transito – DETRAN (2013), no começo deste século, no ano de 2001, o Brasil contava com uma frota de 31 (trinta e um) milhões de veículos. Até abril de 2013, esse número mais que dobrou, alcançando a marca de 77,9 (setenta e sete vírgula nove) milhões de veículos. Diante desse dado estatístico, tem-se, consequentemente, que a parcela de motoristas da população aumentou, e com isso houve um crescimento da quantidade de consumidores de combustíveis automotivos. Nesse ínterim, um fato que até então não era percebido passou a ganhar relevo no mercado dos combustíveis: a forma de exposição dos preços nos postos revendedores de combustíveis. Recentemente em vigor, a Resolução nº 41 da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP estabelece que os preços por litro de combustíveis (gasolina automotiva, óleo diesel, GNV e álcool hidratado) deverão ser expressos com o uso de três casas decimais (v.g., R$ 2,889). A questão passa a ser discuta quando se levanta a hipótese de que o uso de três dígitos ajuda maquiar os verdadeiros preços, e a acobertar um suposto cartel organizado pelos donos de postos revendedores. No mesmo sentido, os órgãos de proteção ao consumidor, como PROCON e Ministério Público, afirmam se tratar de prática que impõe uma desvantagem excessiva sobre o consumidor, causando-lhes um prejuízo; por outro lado, os comerciantes defendem que

______________________________ 1 Mestre, Pesquisador Visitante – UFRN / PRH-ANP/MCTI nº 36. 2 Graduando em Direito – UFRN

Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014 o uso do terceiro dígito não causa confusão no consumidor, podendo, todavia, gerar prejuízos ao comércio caso seja retirado1. A fim de elucidar o debate, o presente estudo se propõe a aprofundar a questão, analisando-a sob a ótica do Direito das Relações de Consumo, pretendendo verificar se de fato existe – ou não – a alegada abusividade da prática comercial em comento.

2. Os Postos de Combustíveis e a Relação de Consumo Para se abordar o assunto sob a ótica do Direito das Relações de Consumo, é necessário primeiramente demonstrar que a aquisição de combustíveis em um posto revendedor configura uma relação de natureza consumerista. Sendo assim, para que as disposições do referido diploma sejam aplicáveis, devem estar presentes seus elementos: o subjetivo, o objetivo e o causal. No tocante ao primeiro elemento, conforme preceitua o Código Consumerista, a relação de consumo ocorre quando estão presentes dois protagonistas distintos: o consumidor e o fornecedor. O próprio CDC tratou de defini-los. Primeiramente, consumidor é toda pessoa (física ou jurídica) que utiliza ou adquire para si um produto ou serviço2. Esses últimos, por sua vez, representam o elemento objetivo, necessário à configuração da relação de consumo. Ainda com respeito à pessoa (física ou jurídica), esta deve ser destinatária final3 dessa aquisição (produto ou serviço) para que possa figurar como consumidora, na relação jurídica de consumo. Impende destacar que o conceito de consumidor não é tão somente definido sob a ótica individual, sendo, também trazido pelo próprio CDC, em seus artigos 2º, parágrafo único, 17 e 29, a possibilidade de que uma coletividade seja equiparada aos consumidores, podendo-se facilmente falar em dano transindividual (Guimarães apud Oliveira, 2011). Sobre a destinação final, embora ausente a definição pelo CDC, com contribuição da jurisprudência (em especial, a do Superior Tribunal de Justiça4), o Brasil adota predominantemente a teoria finalista atenuada, a fim de explicar o referido elemento finalístico, também chamado teleológico (Nery Júnior, 2004), ou ainda, causal. Tal teoria é aplicada sobremaneira nas relações de consumo envolvendo pessoas jurídicas no polo do consumidor, desde que comprovem sua vulnerabilidade e estejam lidando com produtos alheio à sua especialidade (Benjamin et al. 2010). Essa teoria apresenta uma definição de consumidor diferente das outras, como as teorias maximalista e a finalista. Para a teoria maximalista, o destinatário final da relação de consumo é tão somente aquele que detém a posse de fato sobre o bem , ou seja, possui destinação final fática. Esta pode ser entendida como a remoção de um bem da cadeia de consumo para que fique consigo. Ou seja, o bem não deverá ser adquirido com o propósito de repasse, pois, neste caso, o destino (de fato) do bem não será com quem o adquiriu, mas sim com aquele a quem o comprador entregar a mercadoria (Marques, 2000). O problema dessa teoria aparece na medida em que amplia o conceito de consumidor a muitas situações, transformando o Direito das Relações de Consumo em uma espécie de Direito Privado geral (Benjamin et al. 2010). Já para a teoria finalista, destinatário final é quem, unicamente, ao mesmo tempo em que detém a posse de fato, também adquire o produto ou serviço com a finalidade de que estes sirvam somente a si mesmo e não para revendê-los, de modo que o ciclo econômico se encerre sobre ele próprio (diz-se então haver destinação econômica). Dessa forma, estariam excluídas do conceito, por exemplo, as pequenas empresas, ou os profissionais liberais 5. Por esta teoria, o conceito de destinatário final é, portanto, restrito à intersecção desses dois requisitos (destinação fática e econômica). 1

Umas letrinhas pequenas estão dando muita discussão nos postos de gasolina. Instituto do Trabalho, 14 de set. 2011. Disponível em: . Acesso em: 11 de ago. 2013. Cliente pode não perceber diferença, mas 3º dígito no preço do combustível pesa. Campo Grande News, Campo Grande, 14 set. 2011. Acesso em: . Terceiro dígito no preço dos combustíveis aumenta valor final. Ifronteira, São Paulo, 28 jun. 2012. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2013. 2 Art. 3º, §1°. Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. §2°. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. 3 Art. 2º. Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. 4 . STJ – AgRg no AREsp: 402817 RJ 2013/0330208-2, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 17/12/2013, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 04/02/2014. 5 Seria o caso de um escritório de advocacia que adquire um computador. Embora o escritório não tenha intenção de revendê-lo, ele o utiliza como instrumento para se auferir renda, e, por essa teoria, não seria o destinatário econômico do bem. Portanto, o escritório de advocacia não poderia figurar como consumidor em relação ao fabricante ou vendedor do produto. 2

Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014 Por sua vez, diferentemente das duas anteriores, a teoria finalista atenuada exige (ao conceito de consumidor) que esteja configurada a destinação fática e, também, ao menos uma forma de vulnerabilidade. A vulnerabilidade é o traço distintivo entre ser ou não consumidor. É, pois, o ponto de partida na aplicação do Direito das Relações de Consumo (Benjamin et al. 2010). Aliás, seu reconhecimento é tratado como um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, conforme o artigo 4º, inciso I do CDC. Em suma, a vulnerabilidade representa a carência de meios (que podem ser técnicos, jurídicos, financeiros, informacionais, entre outros) do consumidor frente ao fornecedor, e é justamente por essa diferença de condições entre as partes que o Estado deve promover o equilíbrio da relação (Sodré, 2007). A vulnerabilidade do consumidor é o pressuposto e a própria razão de existência de um Código voltado à sua proteção; é o princípio-motor da Política Nacional das Relações de Consumo 6. Portanto, pode-se concluir que para ser destinatário final, o bem deve ser adquirido para uso pessoal ou familiar, ou até profissional, nos casos de empresas que adquiram produtos alheios à sua especialidade (Cavalieri Filho, 2011), desde que se verifique ao menos uma espécie de vulnerabilidade perante o outro polo da relação de consumo. A seu turno, o fornecedor tem seu conceito quase que totalmente explicado pela definição contida no artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor7. Delineadas essas notas introdutórias, pode-se demonstrar que quando um condutor comum abastece seu carro em um posto revendedor de combustível, está configurada uma relação de consumo. O motorista, ao adquirir o combustível (produto), tem a intenção de utilizá-lo em seu veículo – não tendo propósito de venda; está presente a destinação fática –, além de ser desinformado acerca de seu custo de produção, da composição de seu preço (vulnerabilidade, técnica, e, em última análise, informacional), bem como normalmente ocorre, não estar devidamente informado sobre seus direitos enquanto consumidor, configurando a vulnerabilidade jurídica ou científica (Benjamin et al. 2010). É, portanto, consumidor. Por sua vez, o posto de combustível, mesmo não tendo sido quem fabricou o produto, mas por se encontrar na condição de revendedor do mesmo, é tido como fornecedor, segundo expressa previsão legal (“distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”, artigo 3º do CDC). Sendo assim, é considerado o fornecedor dessa relação de consumo. Constatada a presença dos elementos subjetivos (consumidor e fornecedor), objetivo (produto, no caso combustível) e causal (questão de ser destinatário final), diz-se que há uma relação de consumo, e esta deve ser tutelada pelo Código de Defesa do Consumidor. A partir de então, a Lei de regência será o CDC, não excluindo, todavia, a incidência de outros diplomas que igualmente se prestam a tratar de situações e conflitos de massa, como a Lei Federal nº 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), e também, subsidiariamente, em se tratando da defesa do consumidor em juízo, o Código de Processo Civil8 (Lei Federal nº 5.869/1973). O Código de Defesa do Consumidor lida com situações diferentes das que são tratadas pelo Código Civil e o Código de Processo Civil. As situações são essencialmente diferentes na medida em que o diploma consumerista trata de questões coletivas, onde vários consumidores compartilham de problemas em comum, litigam com fornecedores em comum, ou até, são alvos de uma mesma publicidade exibida em cadeia nacional. Exemplo clássico dessas questões coletivas em comum são os contratos de adesão, utilizados em demasia por diversos setores da economia, como o financeiro, de telefonia, entre outros serviços de massa. Em razão dessa essência peculiar, o CDC deve ser interpretado como parte integrante de um sistema à parte, onde não se incluem o Código Civil e o de Processo Civil (pelo menos, primariamente). Assim, compõem este microssistema (Natalino apud Benjamin et al. 2010), além da já citada Lei da Ação Civil Pública, a legislação interna ordinária, outros tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes e outras espécies que tragam outros direitos ou garantias, que não excluem os do CDC9. Juntos, os diplomas são encarregados de fornecer os instrumentos adequados à tutela coletiva desses direitos (também) coletivos. Prova dessa especial interação normativa são os art. 90, do CDC, já 6

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 1.195.642/RJ 2010/0094391-6. T3. Ministra Nancy Andrighi. J. 13/11/2012. DJe. 21/11/2012. 7 Art. 3º. Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. 8 Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições. 9 Art. 7º. Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade.

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Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014 exposto, e art. 21, da Lei da Ação Civil Pública 10, ambos construindo um autêntico diálogo das fontes (Jayme apud Benjamin et al. 2010). Dessa forma, a reconhecida hierarquia da Constituição Federal sobre as demais espécies normativas infraconstitucionais (Kelsen, 2009), que também compõe o ordenamento jurídico, impõe o respeito a seus preceitos e princípios (Barroso, 2002), sobretudo os tidos por fundamentais (Títulos I e II). Sendo assim, o CDC (como qualquer outro código), malgrado exerça injunção sobre matéria consumerista de maneira predominante em relação a outras Leis, não pode deixar de respeitar os diversos princípios trazidos pela Constituição Federal. Refere-se, conforme já dito, não só aos constantes do Título I (como a sempre presente dignidade da pessoa humana), mas sim, aos do artigo 5º, bem como de todos os demais que pertencem ao Título II (Direitos e Garantias Fundamentais).

3. A Regulamentação do Preço dos Combustíveis pela Resolução Nº 41/2013 da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP A Resolução nº 41, de 5 de novembro de 2013, da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, estabelece que os preços de combustíveis deverão ser expressos com o uso de três casas decimais (artigo 20). Fruto dessa regulamentação, comumente se verifica postos de combustíveis expressarem em seus letreiros e bombas de combustíveis, os preços acrescidos de mais uma casa à direita dos centavos, de forma que são expostos, por exemplo, como “R$ 2,899” pelo litro do combustível. Essa Resolução, além de outras disposições, veio substituir a Portaria nº 30 do extinto Departamento Nacional de Combustíveis – DNC11. Em suas considerações iniciais, a antiga Portaria nº 30 fazia referência ao parágrafo 5º do artigo 1º da Medida Provisória nº 542, de 30 de junho de 1994 (hoje, convertida na Lei Federal nº 9.069, de 29 de junho de 1995), o qual autoriza, em tese, o uso de três casas decimais12. Em suas ponderações iniciais, a referida Portaria também considerava “a necessidade de facilitar o entendimento do consumidor sobre o preço a pagar pelos combustíveis líquidos”. Ratificando tais considerações e repetindo o teor do artigo 3º da antiga Portaria, a Resolução nº 41/2013 da ANP estabelece em seu artigo 20, parágrafo único, que na compra feita pelo consumidor, o valor total a ser pago resultará da multiplicação do preço por litro de combustível pelo volume total de litros adquiridos, considerando-se apenas 2 (duas) casas decimais, desprezando-se as demais. Para ilustrar, eis um esquema simplificado, trazido no Anexo I à antiga Portaria nº 30, que visa ilustrar a operação matemática necessária à compra de combustível: Tabela 1. Exemplo de operação necessária ao cálculo do valor total a pagar na compra de combustível Produto: Cidade: Valor do litro da gasolina no mostrador da bomba medidora dos Postos de Revenda: Compra de 25,2 litros de gasolina: Total que aparece na bomba medidora: Valor que o consumidor pagará:

Gasolina Brasília R$ 0,521 x 25,2 R$ 13,1292 R$ 13,12

Ou seja, em conformidade com a parte final do citado parágrafo 5º do artigo 1º da Medida Provisória nº 542, o parágrafo único do artigo 20 da Resolução nº 41/2013 da ANP impõe que o consumidor, no tocante ao preço final, apenas arque com o valor habitual, devendo prescindir dos numerais restantes além das duas primeiras casas decimais. 10

Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. 11 A antiga Portaria nº 30, de 06 de julho de 1994, do Departamento Nacional de Combustíveis, tratava em seus cinco artigos da quantidade de casas decimais dos preços de combustíveis indicados nas bombas medidoras dos postos revendedores. 12 MP nº 542 – Art. 1º: A partir de 1º de julho de 1994, a unidade do Sistema Monetário Nacional passa a ser o REAL, que terá curso legal em todo o território nacional. [...] §5º Admitir-se-á fracionamento especial da unidade monetária nos mercados de valores mobiliários e de títulos da dívida pública, na cotação de moedas estrangeiras, na Unidade Fiscal de Referência – UFIR e na determinação da expressão monetária de outros valores que necessitem da avaliação de grandezas inferiores ao centavo, sendo as frações resultantes desprezadas ao final dos cálculos. 4

Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014 Todavia, a desconsideração quanto ao terceiro dígito (e os demais à direita da vírgula) no preço final, sugerida pela Resolução, realmente representa um meio de facilitar a compreensão do consumidor quanto ao valor a ser pago? Estaria, essa prática, encobrindo uma forma de enganar o consumidor, fazendo-o crer que paga um valor quando, na verdade, é cobrado por outro? Como o Código de Defesa do Consumidor trata essa permissão para expressar o preço do combustível com o uso de três casas decimais?

4. Implicações Práticas da Utilização do Terceiro Dígito no Preço dos Combustíveis Quando a Resolução informa que, no ato da compra, o consumidor deverá considerar apenas duas casas decimais, o que ocorre é que efetivamente se está pagando por um valor diverso – e maior. A título exemplificativo, caso se pretenda abastecer o carro com 60 litros de gasolina, cujo litro é vendido por R$ 2,88, o valor total a ser pago deve corresponder ao produto da multiplicação entre 60 (litros) e 2,88 (preço por litro) – subtendendo-se, este último, custar o equivalente a 2,880. Todavia, ao adquirir a mesma quantidade de combustível em um posto cuja gasolina custe R$ 2,889 – com o valor contendo a terceira casa decimal –, o consumidor pagará um valor diverso do obtido no primeiro caso, mesmo que “considere” apenas duas casas decimais, como se estivesse pagando R$ 2,88 por litro de gasolina. O fato de a Resolução nº 41 da ANP eximir o consumidor de considerar o terceiro dígito do preço por litro no ato do pagamento não o exime, contudo, de arcar com o mesmo no momento da multiplicação de seu valor pela quantidade de litros adquiridos13. Em outras palavras, pouco importa o terceiro dígito ser desprezado no ato do pagamento (como prescreve a Resolução) – até mesmo porque não existem moedas nem operações financeiras que possibilitem o pagamento de tal fração. É, pois, (obviamente) impossível que se pague R$ 13,1292 conforme obtido na tabela exemplificativa do Anexo I, não sendo outra coisa, senão uma conclusão racional, desconsiderar tal quantia no momento do pagamento (pagandose, então, R$ 13,12). Porém, em se tratando do terceiro dígito no preço por litro de combustível (imposto pela Resolução), este realmente fará muita diferença no valor a ser pago, como se demonstrará a seguir. Resolvendo-se as equações do exemplo citado, no primeiro caso, pelo abastecimento de 60 litros de combustível cujo custo por litro é de R$ 2,88, o consumidor desembolsará R$ 172,80. No segundo exemplo, a R$ 2,889 o litro, desembolsará R$ 173,34. A diferença (R$ 0,54) pode parecer pequena, contudo, muitos motoristas abastecem seus veículos três ou quatro vezes por mês, ou até mais. Multiplique-se, ainda, o valor mensal da diferença obtida pelos 12 meses do ano e se obterá o valor anual que a Resolução nº 41 da ANP sugere que seja “desprezado”. Além do mais, excetuando-se o motorista comum, que apenas usa o carro como meio de transporte ou passeio, percorrendo um trajeto predominantemente urbano, diversos outros setores podem estar sendo muito mais lesados, como taxistas, trabalhadores que morem distantes de seus locais de trabalho, motoristas de caminhão, carros a serviço de órgãos públicos, serviços de frete, frotas de empresas, pequenos comerciantes, profissionais liberais, entre outros. Nesses casos, o consumo mensal é ainda maior, ocasionando uma diferença anual impossível de ser desconsiderada, como sugere a Resolução nº 41/2013 da ANP. Nos casos citados, fala-se no prejuízo que cada consumidor suportará. Todavia, um posto de combustível abastece centenas de carros todos os dias – quando não, milhares –, o que gera um enorme lucro para seus donos, graças ao prejuízo imposto ao consumidor. O consumidor, ludibriado pelo preço exposto, é levado a crer que terá aquele terceiro dígito suprimido, quando, em verdade, conforme demonstrado há pouco, este é sim considerado para efeito de cálculo, a fim de majorar o preço efetivamente pago. E tudo pela diferença de “apenas” um dígito.

5. Configuração da Prática Abusiva e suas Consequências Atendendo ao imperativo constitucional (artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, além dos artigos 5º, inciso XXXII, e 170, inciso V), o Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/1990) vem inovar no ordenamento jurídico pátrio ao promover a defesa do consumidor, conceituando-o, estabelecendo seus direitos e protegendo-o das mais diversas ameaças, como a publicidade enganosa, as práticas abusivas, abuso de direito, dentre outras condutas nocivas. Dentre elas, destaca-se a proteção contra a prática abusiva (artigo 39). Como o próprio nome invoca, a conduta que vise abusar (de um direito), tirar proveito em detrimento do consumidor, ou impor-lhe prejuízo é considerada prática abusiva, sendo expressamente vedada. 13

É importante destacar por que motivo a desconsideração sugerida pela Resolução é impraticável. Usando o exemplo acima, não há dúvidas de que R$ 2,889 e R$ 2,88 são dois valores diferentes, impossíveis de serem “considerados” idênticos. O primeiro valor é quase um centavo mais alto que o segundo. 5

Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014 Sequer é necessário que o consumidor seja, ou até mesmo, se sinta lesado, para que a prática seja caracterizada como abusiva. Fala-se em uma conduta cuja abusividade é objetivamente considerada (Rizzato Nunes, 2011); ou seja, contando que concretamente ocorram, tais condutas já serão consideradas ilícitas. Seria o caso, a título de exemplo, de um consumidor que, apesar de muito satisfeito com o recebimento em seu domicílio de um cartão de crédito não solicitado, foi vítima de uma prática abusiva, tendo em vista que a mesma consta expressamente no rol exemplificativo do artigo 39 do CDC, em seu inciso III. Frise-se que sequer é necessária a comprovação de ter havido dano real 14, a fim de que possa ser caracterizada a prática abusiva (Rizzato Nunes, 2011). Em seu artigo 39, o CDC traz exemplos de práticas consideradas abusivas. Contudo (não é demais reiterar), trata-se de um rol exemplificativo15, que, como o próprio caput afirma, não pretende esgotar todas as hipóteses de configuração das mesmas (Ferraz, 2011): “É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas”. Trata-se, assim, de orientação interpretativa deixada pelo legislador (Benjamin et al. 2010). Praticam abusivas, em suma, são as que ferem o espírito do CDC, que colocam o consumidor em desvantagem, prejudicando-o, e ofendendo, por conseguinte, todo o convívio resultante das relações de consumo, as quais são legal e, sobretudo, constitucionalmente protegidas. Podem também ser entendidas como práticas que violem a boa conduta ou bons costumes das relações de consumo, ferindo em última análise, portanto, a boa fé, o que caracteriza o abuso de direito (Cavalieri Filho, 2011). Como se sabe, o abuso de direito é tido como ato ilícito, já sendo previsto no artigo 187 do Código Civil16, e representa, por conseguinte, o alicerce para a proibição das práticas abusivas. Pelo caráter abrangente, seria impossível haver previsão legal de todas as condutas que viessem a ofender os bons costumes ou a ordem econômica, no tocante às relações de consumo. Dada essa impossibilidade, é de se esperar que as práticas abusivas não possam ser encontradas apenas no artigo 39 do CDC, mas também, em vários outros lugares do Código, como no artigo 42, que trata da cobrança constrangedora, artigo 43, a respeito dos cadastros negativos de consumidores, e o artigo 37, que dispõe acerca da publicidade abusiva e enganosa (Rizzato Nunes, 2011), e ainda, a própria Constituição Federal, que não permite condutas que visem afrontar a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), a intimidade, a vida privada, a imagem das pessoas (artigo 5º, inciso X), entre outros direitos fundamentais. E é justamente esse caráter exemplificativo (não exaustivo) que permite enquadrar o uso do terceiro dígito como prática abusiva. Na medida em que o uso do terceiro dígito impõe um custo (preço) ao consumidor maior que aquele em que se acredita estar pagando, ludibriando-o propositalmente, a prática daninha viola direitos básicos do consumidor como o direito à informação clara e precisa quanto ao preço do produto (artigo 6º, inciso III e artigo 31, do CDC), o direito à proteção contra a publicidade enganosa ou abusiva (artigo 37) e contra métodos comerciais desleais (artigo 6º, inciso IV). Por esses motivos, o uso do terceiro dígito pode ser considerado contrário ao Código de Defesa do Consumidor; ilegal, portanto, deve ser vedado. Essa prática escusa também gera outros prejuízos aos consumidores, mas que os lesam de forma menos perceptível. De maneira mais pontual, passa-se a abordar tais problemas. 5.1. Fomento à Prática de Cartéis Outro produto – e talvez o mais nefasto – dessa prática é o fomento à formação de cartéis. Aparentemente praticando preços diversos, dois ou mais postos podem estar, na verdade, ajustando o mesmo preço entre si, suprimindo a concorrência entre a categoria e, assim, violando a Ordem Econômica constitucionalmente assegurada (Título VII da Constituição Federal), impedindo o livre mercado, em claro prejuízo aos consumidores e à sociedade como um todo. Nada obstante, essa prática é tida, inclusive, como crime, principalmente se considerada sob o aspecto de acordo visando fixação artificial de preços (incisos I e II, ‘a’, do artigo 4º da Lei Federal nº 8.137/9017). Postos que comercializem cada um, por exemplo, gasolina a R$ 2,897, R$ 2,899, R$ 2,898 etc., estão praticando, na verdade, preços idênticos18, mesmo alegando que os valores são diversos (levando-se em conta a 14

O dano é, pois, requisito indispensável à obrigação de reparar, advinda da responsabilidade civil, onde realmente é necessário haver a comprovação de um dano atual e concreto. 15 Justifica-se tal avigoro em razão de antiga dúvida acerca da exaustividade, ou não, do art. 39 do CDC. Porém, com o advento da Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, encerrou-se completamente qualquer discussão, acrescentando o termo “dentre outras práticas abusivas:” ao antigo caput, que se manteve inalterado. 16 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 17 Art. 4º. Constitui crime contra a ordem econômica: I – abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas; II – formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas; [...]. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa. 18 Eventual dúvida poderia sugerir que se o presente trabalho se presta a demonstrar o quão significante é o valor que o terceiro dígito representa ao consumidor, a afirmação de que os valores diferentes entre postos são praticamente iguais poderia parecer contraditória e afrontar o objeto deste artigo. Todavia, atente-se para o fato de que: 1) Ao optar, ou não, 6

Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014 diferença entre o algarismo atribuído ao terceiro dígito). Mais uma razão pela qual o terceiro dígito é prejudicial ao consumidor. Como dito anteriormente, o lucro gerado aos donos de postos é incontestável. Para ilustrar, em reportagem fornecida ao portal de notícias G1 (2011) o economista Nicolau Pompeu calculou qual seria a diferença causada pelo uso do terceiro dígito caso o combustível passe a custar R$ 1,899 (ao invés de R$ 1,89). Segundo ele, tomando como exemplo um posto que vende aproximadamente 400 mil litros por mês, ao se retirar o terceiro dígito do preço do combustível, “ele deixa de arrecadar R$ 3,6 mil, correspondente ao salário de três frentistas. Na realidade, esse último ‘9’ significa o consumidor pagando o salário de três frentistas”. Aparentemente, o terceiro dígito (cuja desconsideração por parte dos consumidores é sugerida pela Resolução nº 41 da ANP) exerce substancial influência no orçamento de um posto de revenda de combustíveis. Indaga-se, porém, se é legítimo que essa influência seja patrocinada inconscientemente pelos consumidores. A resposta é trazida a seguir. 5.2. Configuração de Publicidade Enganosa Em reforço ao princípio da veracidade (Densa, 2012), trazido no artigo 31 do CDC19, o Código veda qualquer publicidade que seja enganosa. A publicidade enganosa tem sua definição trazida no artigo 37, §1º do CDC. É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário (não só jornais, ou comerciais de televisão, por exemplo), inteira ou parcialmente falsa, ou que também, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, seja capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. Como visto, uma das formas de publicidade enganosa é quando esta tiver a capacidade de induzir o consumidor em erro quanto a alguma característica do bem que deseja adquirir. Conforme já demonstrado, quando o consumidor é levado a abastecer seu veículo em um posto que exponha seus preços fazendo uso do terceiro dígito, na verdade o consumidor pagará um valor diferente daquele anunciado. A publicidade é, pois, enganosa porquanto o preço anunciado é diferente do preço efetivamente pago, com o qual o consumidor realmente deverá arcar. A maior evidência de que se trata de publicidade enganosa reside no fato público e notório de que não se verifica qualquer algarismo diferente de 9 ou 8 ocupando o lugar do terceiro dígito. Não se vê preços como R$ 2,983 ou R$ 2,995. O uso recorrente dos algarismos 9 e 8 (este último, ainda que com bem menos frequência) mostra claramente o forte apelo à tentativa de fazer com que o segundo dígito (relativo à unidade de centavo) seja reduzido 20 (R$2,889, ante R$ 2,89), tornando-o, dessa forma, muito mais atrativo. Frise-se que, em alguns casos, a prática de adotar o terceiro dígito surte um efeito ainda maior; como nas vezes em que seu uso afeta diretamente dois dígitos (o da dezena e o da unidade de centavos, e não apenas a unidade, no exemplo acima). A exibição do preço, por exemplo, como R$ 2,899, evita a exposição de R$ 2,90, o que, em termos publicitários, é bem menos atrativo que a primeira opção, sobretudo considerando o tamanho com que este terceiro dígito “9” é exibido nos painéis de preços nos postos, de forma quase imperceptível (obviamente de propósito21), restando visível apenas R$ 2,89. Ou seja, é cobrado um centavo a mais de cada litro de combustível que o consumidor adquirir, todas as vezes que o fizer. por usar o terceiro dígito ao preço imposto ao consumidor, o fornecedor acrescenta quase 1 centavo de diferença (pois quase sempre o terceiro dígito é representado por um 9); e 2) em se tratando de diversos postos variarem o valor de seu terceiro dígito entre 7, 8 ou 9 (R$ 2,897, R$ 2,898, R$ 2,899), a diferença corresponde a um milionésimo de real entre os postos (0,1 centavo). Portanto, em se tratando da relação entre postos de combustíveis e consumidores, a diferença é sim expressiva (como se demonstrou nesse trabalho), dado que, na comparação entre os preços de diferentes postos, a diferença é de ordem de grandeza dez vezes menor, sendo, portanto, muito propícia ao disfarce da prática de cartel. 19 Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores. 20 Não se desconhece que esta técnica publicitária é recorrente nos comércios populares, supermercados, entre outros. Contudo, nestes casos sua prática é totalmente legal, haja vista que o anúncio manipula apenas os centavos (o que é plenamente susceptível de valoração e expressão em dinheiro – seja em espécie ou em qualquer outra forma). Porém, o objeto de crítica do presente estudo é a adoção de uma unidade de valor inexistente, impraticável e inexpressível (milésimo de real, ou, R$ 0,001) a pretexto de se empregar nesse caso totalmente oposto e à margem da lei, a mesma técnica publicitária. No caso dos postos de combustíveis se trata conduta altamente ilegal, que, longe de qualquer dúvida, impinge prejuízo ao consumidor, aproveitando-se de sua vulnerabilidade (quer informacional, quer técnica, ou mesmo jurídica). 21 Deve-se ressaltar, entretanto, que mesmo que tal conduta não seja proposital, isso pouco importará para a caracterização de publicidade enganosa. Para sua caracterização não se demanda o dolo do anunciante em enganar, nem importa se houve ou não má-fé. Se houver potencial para induzir o consumidor em erro, será considerada como publicidade enganosa. 7

Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014 Esse fato, por si só, já viola o direito do consumidor à informação adequada e clara (artigo 6º, inciso III do CDC) e à oferta precisa e ostensiva (artigo 31), o que por via de consequência, ofende o dever de boa-fé nas relações de consumo (artigo 4º, inciso III). Aliás, a própria omissão do terceiro dígito nesses casos, em que há uma enorme redução de seu tamanho – tornando sua visualização impossível –, já caracteriza uma das formas de publicidade enganosa (artigo 37, §1º do CDC), haja vista que a publicidade deixou de veicular um fato relevante (preço) que é (bastante) capaz de influenciar na escolha do consumidor entre um ou outro posto (Benjamin apud Cavalieri Filho, 2011); modalidade de publicidade enganosa a que se dá o nome de informação distorcida (Rizzato Nunes, 2011). Mais uma vítima dessa prática é a livre concorrência (artigo 170, inciso IV da Constituição Federal) na medida em que os postos que corretamente expressam seus preços (como R$ 2,90) são trocados pelos postos que adotam a prática escusa, cujo preço visível é mais atrativo, como em R$ 2,89 (embora esteja presente o imperceptível terceiro dígito “9”, que em termos práticos implica preços idênticos entre ambos os postos 22. Porém, embora idênticos, são preferíveis aos postos que respeitam os direitos do consumidor).

6. Inconstitucionalidade do Artigo 20 da Resolução Nº 41 da ANP e um Paliativo O Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/90) se destina a dar concretude aos direitos e princípios assegurados pela Constituição Federal, tratando primordialmente da proteção do consumidor. É, pois, o instrumento pelo qual se efetivam, sobretudo, a isonomia material 23 e a proteção ao consumidor, que são considerados princípios motrizes de toda a lógica consumerista (Cavalieri Filho, 2011). Sendo assim, as práticas adotadas no mercado de consumo, as condutas de seus protagonistas, bem como toda a legislação afeta à matéria devem manter coerência com os preceitos do CDC. Porém, devem respeitar, antes de tudo, a própria Constituição Federal, já que essa é a fonte de todo o arcabouçou normativo e principiológico, de onde todas as outras leis buscam seu fundamento de validade. A consequência disso é que qualquer espécie normativa que não respeite nem guarde a devida coerência com a Constituição Federal deve ter sua inconstitucionalidade reconhecida, não devendo, por conseguinte, subsistir no ordenamento jurídico porquanto não possui fundamento válido. Até o presente ponto, este trabalho já demonstrou que o uso do terceiro dígito ofende o Código de Defesa do Consumidor, seja porque configura prática abusiva, seja porque representa uma forma de publicidade enganosa, além de outros reflexos prejudiciais, e por esses motivos já deveria ser banida do cotidiano das relações de consumo. Mas também cabe pontuar que, igualmente, ofende a própria Constituição Federal, na medida em que viola seus preceitos, atingindo principalmente um direito fundamental. O uso da terceira casa decimal na exibição dos preços lesiona a Ordem Econômica e Financeira dado que atinge outro princípio da atividade econômica (além da já mencionada livre concorrência, no artigo 170, inciso IV): o princípio da defesa do consumidor, trazido expressamente no artigo 170, inciso V 24 da Constituição Federal. Mas esse princípio não se encontra isolado, apenas no referido dispositivo. Como já dito, o CDC tratou de dar efetividade a um preceito contido na Constituição Federal: o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor e a necessidade de protegê-lo (artigo 5º, inciso XXXII). A obrigação de sua defesa resulta no princípio protecionista, e seu fundamento de existência é o princípio da isonomia. A respeito do princípio da isonomia, o dever de proteção se apresenta em vários momentos ao longo da Constituição sob outras formas. Apresenta-se, por exemplo, na proteção à mulher, ao trabalhador, e ao consumidor, como é o caso. Isso se justifica porquanto a isonomia pretende assegurar o equilíbrio (Braga Netto, 2008) nas relações onde naturalmente seus protagonistas apresentam condições distintas. É o caso do trabalhador frente ao seu patrão, da mulher frente à discriminação história, e do consumidor perante as grandes empresas, produtoras dos bens de consumo. A violação ao princípio da isonomia se apresenta na medida em que o uso do terceiro dígito impõe um encargo excessivo ao consumidor, fazendo-o arcar com uma fração monetária que teria justificativa apenas na fase de produção dos combustíveis. Os consumidores passam a suportar um ônus que deveria ficar apenas com os postos de revenda, pois são estes quem devem arcar com os riscos e os ônus do empreendimento (Rizzato Nunes, 2011). Dessa forma, igualamse os consumidores aos fornecedores; polos da relação que, na verdade, são totalmente opostos em termos de condições. 22

Idênticos pois, apesar da diferença visível entre ambos ser de 1 centavo, a diferença real será de R$ 0,001, o que realmente é desprezível. Reitere-se que, da forma como é usado – a qual aqui é criticada –, o terceiro dígito embute 1 centavo ao preço pago pelo consumidor, e não R$ 0,001 (valor dez vezes menor). 23 Também tida por isonomia (ou igualdade) real, que difere da igualdade formal (a qual apenas trata igualmente os iguais). 24 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IV – livre concorrência; V – defesa do consumido. 8

Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014 Assim, são tratados igualmente os desiguais, o que fere a premissa básica da isonomia material: tratar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam25. Por fim, como reflexo da quebra da isonomia, tem-se violado o princípio protecionista (encontrado nos artigos 170, inciso V, e 5º, inciso XXXII), o qual está intrinsecamente relacionado ao princípio da vulnerabilidade do consumidor (Lopes, 2006), que como dito, é a peça fundamental de toda a lógica da proteção ao consumidor (Benjamin et al. 2010). Ressalte-se que, neste último caso (art. 5º, inciso XXXII), por se tratar de direito (garantia) fundamental (Cavalieri Filho, 2011), a proteção ao consumidor é tida como cláusula pétrea, razão pela qual não poderia ser suprimida do texto constitucional nem mesmo por via de Emenda Constitucional (Ferreira, 2008). É, portanto, inconstitucional o artigo 20 da resolução nº 41 da ANP, o qual impõe a exibição do preço dos combustíveis para os consumidores com o uso de três casas decimais. Porém, enquanto tal inconstitucionalidade não for reconhecida, ainda resta uma solução que respeita os direitos do consumidor. Se o artigo 20 da mencionada Resolução impõe a expressão do preço dos combustíveis com o uso de três casas decimais, nada obsta, todavia, que os postos revendedores expressem seus preços com o uso do numeral zero no lugar desse terceiro dígito (v.g., R$ 2,900). Dessa simples forma, tanto a Resolução é obedecida quanto os direitos dos consumidores são respeitados.

7. Conclusões A prática da exibição de preços de combustíveis com o uso de três casas decimais vem causando grandes impasses entre donos de postos de combustíveis, consumidores e os órgãos e associações atuantes em sua defesa. Essa relação entre compradores de combustíveis e donos dos postos revendedores caracteriza uma relação de consumo, havendo, portanto, incidência do Código de Defesa do Consumidor nessas relações. A Resolução nº 41, de 5 de novembro de 2013, da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, determina, em seu art. 20, que os preços por litro de todos os combustíveis automotivos comercializados deverão ser expressos com três casas decimais. Embora a referida Resolução sugira as outras casas decimais (que apareçam além dos centavos) devam ser desprezadas, esse terceiro dígito é levado em conta no momento do cálculo da quantidade a ser paga pelo consumidor no ato do abastecimento, o que implica em uma onerosidade mascarada pelo aparentemente irrelevante terceiro dígito. A prática abusiva é conceituada pelo CDC, o qual traz diversas hipóteses de ocorrência, embora sejam meramente exemplificativas. Justo em sua não exaustividade é que se permite enquadrar o uso do terceiro dígito como uma prática abusiva, contrária ao CDC, a qual deve, portanto, ser vedada. Além disso, seu uso pode ensejar a formação de cartéis entre os donos de postos, além de que também configura uma modalidade de publicidade enganosa. Por fim, por tais razões o referido art. 20 da portaria nº 41/2013 é inconstitucional; seja também por ferir o princípio protecionista, seja por ferir a própria isonomia material.

8. Agradecimentos À ANP, Petrobras, PRH-ANP/MCTI nº 36 e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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A célebre construção acerca da igualdade real foi elaborada por Rui Barbosa em seu discurso Oração aos Moços, que, embora lido por outrem, devido a motivos de saúde, foi proferido enquanto paraninfo da turma de formandos de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. (BARBOSA, R. 1999). 9

Rio Oil & Gas Expo and Conference 2014 DENSA, R. Direito do consumidor. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2012. FERREIRA, S. de. O princípio da proteção do consumidor como cláusula pétrea. 2008. Disponível em: . Acesso em: 5 nov. 2013. KELSEN, H. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. 6. ed. Trad. de José Cretella Júnior e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. LOPES, J. R. de L. Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. MARQUES, C. L. Direitos básicos do consumidor na sociedade pós-moderna de serviços: o aparecimento de um sujeito novo e a realização de seus direitos. Revista de Direito do Consumidor nº 35, 2000. NERY JÚNIOR, N. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. RIZZATO NUNES, L. A. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. OLIVEIRA, J. E. Código de Defesa do Consumidor: anotado e comentado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2011 Peso do terceiro dígito no tanque de gasolina faz diferença na conta. G1, São Paulo, 13 set. 2011. Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2013. SODRÉ, M. G. Formação do sistema nacional de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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