A CONFIGURAÇÃO SOCIOSSEMIÓTICA DA RECLAMAÇÃO EM TEXTOS DE MOBILIZAÇÃO DA VOZ DO LEITOR NA IMPRENSA DE BAIRRO PAULISTANA

July 5, 2017 | Autor: P. Gonçalves-Segundo | Categoria: Systemic Functional Linguistics, Appraisal (Systemic Functional Linguistics), Text Linguistics
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A CONFIGURAÇÃO SOCIOSSEMIÓTICA DA RECLAMAÇÃO EM TEXTOS DE MOBILIZAÇÃO DA VOZ DO LEITOR NA IMPRENSA DE BAIRRO PAULISTANA Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP); [email protected] 1. Introdução Embora se possa afirmar que a imprensa de bairro — ou local — esteja em seu momento de maior florescimento no Brasil, em especial nas grandes capitais, das quais se destaca São Paulo, os estudos linguísticos e jornalísticos voltados a tal modalidade midiática ainda se revelam incipientes1. Somente na capital paulista, tem-se cerca de 60 publicações, de caráter semanal, quinzenal ou mensal, filiadas à AJORB (Associação dos Jornais e Revistas de bairro de São Paulo). Tais periódicos são responsáveis pela impressionante cifra de cinco milhões de exemplares distribuídos mensalmente, em geral, de forma gratuita, por toda a cidade, conforme se pode observar no site da Associação2 — http://www.ajorb.com.br. Esses números evidenciam, portanto, a nova capacidade de penetração dessa imprensa, criando uma realidade jornalística que não pode mais ser negligenciada pelos estudos linguísticos, discursivos e comunicativos. Tais jornais parecem enfocar três grandes eixos de abordagem. O primeiro deles consiste na denúncia dos problemas regionais dos bairros ao qual estão associados, de modo a agirem como intermediários entre as reivindicações da população e as esferas de poder público e privado responsáveis por garantir serviços de qualidade para a comunidade. O segundo eixo consiste na amplificação da informação referente a eventos que transcorrem no bairro, o que abarca festas, inaugurações de estabelecimentos, novos projetos governamentais, feiras, etc. Por fim, o terceiro eixo recobre a manifestação da opinião de especialistas locais acerca da vida cotidiana dos moradores, por meio de seções que abordam a saúde e a educação das crianças, culinária, negócios, bem como o posicionamento do periódico a respeito dos aspectos sociopolíticos que cercam o cidadão, envolvendo, primariamente, o eixo local — prefeituras e subprefeituras — e, secundariamente, o nível global — o estado, o país e as relações internacionais. O grau de relevância atribuído a cada uma dessas abordagens varia consideravelmente em relação a cada periódico, muito embora seja em relação aos gêneros opinativos — responsáveis pela instanciação da terceira abordagem citada — que as diferenças se mostram mais sensíveis. Gonçalves Segundo (2011) aponta três grandes tendências no que tange à abordagem temática dos editoriais dessa modalidade de imprensa, a partir de um exame quantitativo e qualitativo desse gênero, desde a instalação da ditadura militar na década de 60 até o primeiro decênio do século XXI. Tem-se, assim, os periódicos que primam pela abordagem global, pela abordagem específica e pela abordagem plural. Os primeiros priorizam a análise sociopolítica mais ampla a partir de um olhar avaliativo regional, minimizando tratar, em seus editoriais, de temas cotidianos. Os segundos privilegiam a análise e o comentário acerca de eventos sociopolíticos e cotidianos relevantes na região em um dado período de tempo, relegando o posicionamento sobre a conjuntura mais ampla a segundo plano. Por fim, os últimos apresentam uma abordagem heterogênea da realidade, abarcando temas cotidianos, regionais e globais, exacerbando a construção de identificação e de aproximação entre o periódico e o leitor, que caracteriza tal modalidade de imprensa e a diferencia da grande mídia. 1 2

Dessas pesquisas, destacam-se Dornelles (2000), Peruzzo (2005) e Gonçalves Segundo (2011; 2012). Consulta realizada em 07 de março de 2014.

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Essa distinção relativa aos editoriais é também pertinente às cartas do leitor, na medida em que influencia a seleção das missivas que são publicadas, a forma pela qual são incorporadas no periódico e o padrão de resposta que lhes é oferecido pelo jornal. Ademais, deve-se ressaltar que há distinções importantes, especialmente no que tange à interação entre o jornal e o leitor, ao se considerarem os períodos totalitário e democrático. Uma das causas — a despeito da própria dinâmica política diferenciada no país — consiste na intensificação do fenômeno da desmassificação dos meios. Meyer (2007) denomina desmassificação dos meios a tendência geral, iniciada na década de 70 e exponencializada com o advento da internet e de sua penetração social, referente à mudança no padrão de consumo de informação, que se desloca do âmbito maciço e global para o regional e específico, favorecendo o florescimento de jornais e revistas voltados a públicos mais homogêneos, determinados identitariamente. Dentre essas mídias, destacam-se aquelas que se organizam em termos de orientação sexual, de gênero, de agremiação esportiva, de etnia, de faixa etária e também de geografia — como é o caso da imprensa local (ou de bairro). Em consequência disso, a forma de interação entre o leitor e o periódico faz-se de modo distinto, uma vez que as expectativas da comunidade leitora não são as mesmas para um grande jornal, como a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo ou O Globo¸ e para os periódicos locais. Nesse sentido, as publicações de bairro acabam constituindo-se em alternatividade no que tange à atividade da grande imprensa, construindo um nicho de mercado específico, capaz de atrair e fidelizar o segmento de leitores para o qual estão voltadas, objetivo este que, para ser alcançado, demanda um maior conhecimento acerca do público-consumidor. Entretanto, por ser mais homogêneo, torna-se relativamente mais simples, de um ponto de vista jornalístico, produzir textos que sejam do interesse de tal grupo, assim como atrair publicidade pertinente3. Considerando a especificidade geográfica de sua distribuição e a sua baixa capacidade de alocação de recursos tanto financeiros quanto profissionais para a produção do periódico, a imprensa local faz da perspectiva regional e pessoal seu nicho de mercado, assumindo, assim, uma relação de maior interatividade com seu público-leitor, de modo a criar uma identificação entre a instância de produção e de consumo textual, garantindo que a voz do cidadão comum seja ouvida, discutida e amplificada, o que tende a ocorrer apenas minimamente na grande mídia. Para Peruzzo (2005), é justamente com essa informação de proximidade que a mídia local deve trabalhar. Para a autora, informação de proximidade consiste naquela que expressa as especificidades de uma dada localidade, que retrate, portanto, os acontecimentos orgânicos a uma determinada região e seja capaz de ouvir e externar os diferentes pontos de vista, principalmente a partir dos cidadãos, das organizações e dos diferentes segmentos sociais. Enfim, a mídia de proximidade caracteriza-se por vínculos de pertença, enraizados na vivência e refletidos num compromisso com o lugar e com a informação de qualidade e não apenas com as forças políticas e econômicas no exercício do poder (Peruzzo 2005: 81). Embora não se possa afirmar que o conjunto da imprensa local seja, de fato, plenamente independente das forças políticas e econômicas que cercam sua atividade — não obstante a defesa obstinada dos jornais em termos de vincular sua imagem institucional a uma postura 3

Para maiores detalhes acerca dos aspectos jornalísticos que diferenciam as distintas modalidades de imprensa, ver Sant’Anna (2008).

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apartidária, não proselitista e emancipada (Gonçalves Segundo 2011) —, a criação de vínculos de pertença e de identificação consiste em característica fundamental da atividade da imprensa local. Pautados pela construção de uma experiência comum entre produção e consumo textual, assentada em representações e avaliações complacentes em relação ao que se pressupõe acerca da comunidade leitora, em uma atitude contínua de demonstração da capacidade do periódico em atender as reivindicações e as demandas do público, os jornais de bairro solidificam seu papel de árbitro entre o poder público e o cidadão comum. Por essa razão, é de suma importância que haja espaço, nessas publicações, para que o leitor seja subtraído do anonimato e possa amplificar sua voz, tanto em termos de seus posicionamentos críticos ou laudatórios perante o comportamento humano, quanto em termos de suas demandas e necessidades, muitas vezes, ignoradas pelos órgãos públicos e pelas organizações privadas. Isso posto, o objetivo deste artigo, inserido no âmbito das pesquisas concernentes ao Projeto História do Português Paulista, é analisar a estrutura retórico-teleológica de reclamação, predominante nos textos de mobilização da voz do leitor na imprensa de bairro paulistana, coletados em dois momentos históricos: no período totalitário e na primeira década do século XXI. Adotou-se a denominação textos de mobilização da voz do leitor, em detrimento do termo carta do leitor, na medida em que há uma vasta heterogeneidade no modo pelo qual os periódicos incorporam a voz do leitor ao texto. Oscila-se entre a publicação do texto original do leitor, editado ou não, e a incorporação do conteúdo e da reivindicação da missiva por meio do discurso relatado, a partir da perspectiva do editor/redator. Além disso, há casos — mais comuns no material do século XX — em que o leitor se desloca até a instituição jornalística para realizar pessoalmente a denúncia, que é narrada na edição jornalística. Para a realização da pesquisa, utilizam-se, primariamente, os pressupostos teóricos da Linguística Sistêmico-Funcional (Halliday 2004; Hasan 2009; Matthiessen 2009) e da Teoria da Avaliatividade (Martin e White 2005). O corpus, ainda em construção, conta com 77 exemplares textuais: 35 deles foram coletados de três periódicos do século XXI, enquanto os 42 restantes foram coletados de publicações do XX, em meio ao período totalitário. A tabela abaixo apresenta a composição atual do material coletado: Tabela 1. Apresentação do corpus coletado Cronologia

Ano(s)

Jornal Nosso Bairro (jnb) SP Norte (spn) Folha da Vila Prudente (fvp) Correio da Zona Sul (czs) Gazeta da Vila Prudente (gvp) O Independente da Zona Norte (izn) Jornal de Pinheiros (jp)

Século XXI Século XXI Século XXI Século XX Século XX

2006 2007 2006 1973 1982

Total de Percentual aproximado textos em relação ao corpus coletados total 13 17% 6 8% 16 21% 11 14% 6 8%

Século XX

1978

4

5%

Século XX

11

14%

Tribuna da Lapa (tl)

Século XX

1984 1981; 1984

10

13%

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O artigo está organizado da seguinte forma: a próxima seção apresenta, sinteticamente, as categorias analíticas da Linguística Sistêmico-Funcional e da Teoria da Avaliatividade, com as quais o corpus será analisado; posteriormente, realiza-se a análise dos textos, atentando para os seguintes aspectos: a. a depreensão estrutura retórico-teleológica subjacente à construção da reclamação e seus principais padrões avaliativos; b. a construção da sequência retórico-afetiva de indignação; 2. Noções fundamentais para uma abordagem sistêmico-funcional do texto A Linguística Sistêmico-Funcional consiste em uma teoria de base sociossemiótica, ou seja, em uma abordagem do fenômeno da linguagem que concebe uma correlação entre os estratos contextuais — cultural e situacional — e linguísticos — semântica-discursiva e léxicogramática, ligados ao conteúdo; fonologia e fonética, ligados à expressão — na configuração dialética entre uso e sistema, conforme se pode visualizar na figura abaixo: Figura 1: Níveis de estratificação da linguagem4

Para Martin e White (2005), o contexto cultural é composto pelos diversos gêneros discursivos que circulam em dada sociedade, graças à ação social humana. Nesse sentido, eles devem ser concebidos como estruturas teleológicas, orientadas para a realização de objetivos comunicativos, atingidos por meio da negociação contínua de significado entre atores sociais que se engajam em ações contextualizadas que, por sua vez, envolvem estágios mais ou menos padronizados de recursos linguísticos. Em uma leitura discursiva, tal qual a realizada por Fairclough (2007), os gêneros — entendidos como modos sociossemióticos de agir — não seriam os únicos elementos a compor 4

Adaptado de Halliday & Matthiessen (2004).

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esse contexto cultural. Na visão faircloughiana, ligada aos estudos crítico-discursivos, gêneros seriam componentes do interdiscurso, o nível que intermedeia as relações socioculturais e a construção linguística, filtrando aquilo que deve e pode ser enunciado em dada interação, sem jamais ser totalmente determinista. Assim, paralelamente aos gêneros, também integram o nível interdiscursivo os discursos e os estilos — vistos como modos sociossemióticos de representar a realidade e de configurar a identidade, respectivamente. Quando determinados estilos, gêneros e discursos tendem a se complementar em um dado campo institucional, tem-se as chamadas ordens do discurso. Seriam, pois, essas formações semióticas os componentes reais do contexto cultural. O contexto situacional, por sua vez, é composto pelas categoriais do campo, das relações e do modo. Segundo Hasan (2009), o primeiro diz respeito à natureza da ação social, ao conjunto de atividades orientadas, em geral, a objetivos institucionais globais. O segundo concerne à natureza da relação social entre os participantes da interação, o que envolve questões de poder, solidariedade, hierarquia, familiaridade e intimidade. O terceiro, por fim, refere-se à canalização da comunicação e ao suporte comunicativo, ou seja, aos recursos que os atores sociais possuem para construir o texto, influenciando, portanto, em sua organização. Quando determinados parâmetros do campo, das relações e do modo tendem a coocorrer, tem-se uma Configuração Contextual (CC), que, por sua vez, ativa um determinado registro — um potencial probabilístico de recursos linguísticos metafuncionalmente orientados como resposta às demandas situacionais. Como corolário, os registros consistem em um filtro situacional das ordens do discurso, que se configuram em modelos interdiscursivos ou sociossemióticos de representar, ser e agir. A noção de metafunção é fundamental para a compreensão sistêmico-funcional da linguagem e deve ser explicitada pormenorizadamente. Halliday (2004) defendem que a evolução da língua, entendida como um sistema aberto e dinâmico, orientado para a reflexão e para a ação, está relacionada a seu papel intrínseco como recurso para a construção da experiência humana externa e interna e para a negociação de relações sociais e de papéis discursivos. Esses dois modos complementares da significação são denominados metafunção ideacional e interpessoal da linguagem. Além disso, um terceiro componente, a metafunção textual, é visto como responsável pelo mapeamento desses significados entre si, relacionando-os ao contexto nos quais são negociados, garantindo, assim, a formação da tessitura. As metafunções atravessam todos os estratos — tanto os contextuais quanto os linguísticos — e são responsáveis pela multifuncionalidade dos enunciados. Em uma perspectiva sistêmico-funcional, toda oração apresenta-se, simultaneamente, como uma representação da realidade, um intercâmbio de significados negociados intersubjetivamente e uma mensagem. Culturalmente, os aspectos representacionais, por um lado, e temático-genéricos, por outro, são viabilizados pelos recursos ideacionais, que também realizam, situacionalmente, as coerções do campo. Já os padrões negociativos, ligados à avaliação, ao comprometimento, à evidencialidade e à perspectiva, são instaurados por meio dos recursos interpessoais, que codificam as coerções das relações, na esfera situacional, e dos aspectos teleológico-genéricos e estilísticos, no nível cultural. Por fim, os padrões relativos à construção da oração como uma mensagem dizem respeito à metafunção textual, que realiza coerções do modo, ligadas, intrinsecamente, às potencialidades do suporte comunicativo do gênero. O quadro abaixo sintetiza o exposto e apresenta alguns exemplos de sistemas léxicogramaticais e semântico-discursivos relacionados a cada metafunção:

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Quadro 1. Organização metafuncional da linguagem Metafunção Ideacional Interpessoal Campo Relações Parâmetro contextual Oração/enunciado Oração/enunciado como Atividade como representação negociação ou intercâmbio Principais sistemas (Hasan, 2009)

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Textual Modo Oração/enunciado como mensagem

TRANSITIVIDADE, MODO, MODALIDADE, TEMA, INFORMAÇÃO, REFERÊNCIA, TEMPO PRIMÁRIO, FORICIDADE, VOZ, EXPANSÃO, PROJEÇÃO, AVALIATIVIDADE, CONJUNÇÃO. TEMPO SECUNDÁRIO. ENVOLVIMENTO.

Para este trabalho, destacar-se-ão dois sistemas: a TRANSITIVIDADE, um sistema léxicogramatical ligado ao ideacional, e a AVALIATIVIDADE, um sistema semântico-discursivo, relativo ao interpessoal. A TRANSITIVIDADE consiste no principal sistema léxico-gramatical ligado à construção de versões da realidade e da representação da experiência interna e externa humanas. Sua análise está ligada aos tipos de processos acionados pelas formas verbais em relação aos participantes — prototípica, mas não exclusivamente, realizados por grupo nominais — envolvidos na criação de dada experiência. O quadro abaixo — de caráter não exaustivo — expõe as principais opções de tal sistema: Quadro 2. Síntese das principais opções paradigmáticas inerentes à termos de processos e participantes Processos Materiais

Definição e Subtipos Envolvem a simbolização de algum input externo de energia de modo a impactar a realidade. Criativos: produzem uma nova Meta. Transformativos: impingem mudanças na Meta.

Comportamentais

Mentais

Verbais

Abarcam a simbolização de externalizações de processos psicológicos ou fisiológicos, apresentando traços de processos mentais e materiais. Abrangem a codificação da experiência interna e psicológica do participante. Superior: cognitivo; desiderativo. Inferior: emotivo; perceptivo. Envolvem a codificação de ações verbais e atos de fala, numa zona de intersecção entre traços de processos mentais e relacionais.

TRANSITIVIDADE

em

Principais Participantes Ator: ativa a ação; Meta: alvo da ação; modificado, criado, transferido ou movimentado pelo input de energia; Cliente: participante que se beneficia de um serviço; Recebedor: aquele que se beneficia por receber um bem (a Meta); Iniciador: aquele que incita, permite ou leva o Ator a realizar o processo material. Comportante: participante que ativa o comportamento.

Experienciador: participante consciente cuja experiência é ativada por um Fenômeno; Fenômeno: participante que ativa a experiência interna do Experienciador. Se oracional, é denominado Hiperfenômeno. Dizente: responsável pela elocução; Alvo: participante que é objeto de um ato de fala; Receptor: aquele a quem a elocução se dirige; Verbiagem: conteúdo do dizer.

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Relacionais5

Abarcam a codificação de relações abstratas entre participantes. Intensivo atributivo: o portador é assumido como membro da classe ligada a um atributo. Intensivo identificador: um participante é identificado por sua relação com outro.

Existenciais

Abrangem a simbolização de modos de introdução de objetos-de-discurso ou referentes no texto, situando-se numa zona de intersecção entre processos materiais e relacionais.

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Portador: participante ao qual se predica um Atributo; Atributo: participante que vincula o portador a uma categoria de seres; Ocorrência/Instância/Característica (Token6): participante que instancia um valor, em uma relação de identificação; Valor (Value): participante mais abstrato, que permite reconhecer a Ocorrência/Instância por sua aplicação identificadora em relação a ela. Existente: objeto-de-discurso introduzido no texto, posto a existir ou não existir.

A AVALIATIVIDADE, por sua vez, consiste em um sistema semântico-discursivo do interpessoal concernente à construção da perspectiva, da avaliação e do comprometimento nos textos. Segundo Martin e White (2005), esse sistema subdivide-se em três grandes subsistemas: a atitude, o engajamento e a gradação. O primeiro deles — a atitude — diz respeito às formas pelas quais os falantes/escritores constroem, implícita ou explicitamente, positiva ou negativamente, avaliações que revelam seu posicionamento subjetivo diante da realidade. A atitude abarca três grandes domínios: o afeto, o julgamento e a apreciação. O engajamento abarca os diversos modos pelos quais a voz autoral se posiciona diante do conjunto de alternativas dialógicas. Em um primeiro plano, os enunciados podem ser monoglóssicos, quando o falante/escritor se vale de recursos linguísticos que não remetem diretamente ao interdiscurso — o que Fairclough (2007) denomina modalidade categórica —, ou heteroglóssicos, quando a voz autoral instaura uma alternativa dialógica, optando por reconhecer sua validade e a diversidade de posicionamentos ou por rejeitar outras possíveis construções de realidade. No primeiro caso, tem-se expansão dialógica; no segundo, contração dialógica. Por fim, a gradação abrange os recursos que sinalizam o grau de validação ou comprometimento assumido pela voz autoral em relação a uma dada representação ou avaliação, permitindo-lhe, por um lado, intensificar ou quantificar sua adesão — força — e, por outro, acentuar ou ofuscar o grau de prototipicidade de uma categoria — foco. O quadro a seguir sintetiza as principais opções paradigmáticas do sistema de Avaliatividade, segundo Martin e White (2005): Quadro 3. Síntese das principais categorias pertinentes ao sistema de AVALIATIVIDADE Subsistemas

Atitude

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Categorias pertinentes Afeto: reações emotivas. Abarca opções graduais, positivas ou negativas, de felicidade, satisfação, segurança e desejabilidade. Ex.: feliz, realizado, preocupado, chorar. Julgamento: avaliações de caráter comportamental. Envolve opções graduais, positivas ou negativas, de estima social (normalidade, capacidade, tenacidade) e sanção social (honestidade e propriedade). Ex.: esquisito, competente, valente, trapaceiro, corrupto. Apreciação: avaliações graduais, positivas ou negativas, de caráter estético, que abarcam

Por questões referentes ao recorte analítico aqui pretendido, optou-se por expor apenas as opções relacionais intensivas. Deve-se ressalvar que há ainda processos relacionais possessivos e circunstanciais. 6 O termo token costuma ser traduzido como Característica; entretanto, acredita-se que tal tradução não permita uma compreensão adequada do fenômeno. Por tal motivo, opta-se pelo uso do termo Instância ou Ocorrência.

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Engajamento

Gradação

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impacto e composição, e de valor social. Ex.: bonito, equilibrado, importante. Expansão Dialógica: Consideração: reconhece a possibilidade de alternativas dialógicas. aceitação da validade Ex: formas modais. ou reconhecimento da Atribuição: discurso relatado direto ou indireto. plausibilidade de a. Reconhecimento: a voz autoral relata, de forma neutra, a alternativas dialógicas. alternativa dialógica. Ex.: verbos dizer, falar, comentar. b. Distanciamento: voz autoral não valida o discurso relatado. Ex.: verbos alegar, ouvir dizer. Contração Dialógica: Refutação: anula alternativas dialógicas rejeição parcial ou total a. Negação de alternativas b. Contra-expectativa. Ex.: operadores concessivos e adversativos. dialógicas. Declaração: rejeição parcial de alternativas dialógicas. a. Concordância: constrói leitor/ouvinte que partilha da posição autoral. Ex.: expressões como É óbvio que, evidentemente. b. Afirmação: constrói leitor/ouvinte como portador de um posicionamento em polemicidade com o autoral. Ex.: Expressões como A verdade é que, O fato é que. c. Endosso: forma de discurso relatado em que a voz autoral valida e ratifica o discurso de outrem. Ex.: verbos mostrar, provar. Força: recursos de quantificação e intensificação voltadas a categorias graduáveis. Ex.: muitos amigos, poucos objetos; tanta alegria. Foco: recursos de acentuação ou de amenização de categorias não graduáveis em termos de aproximação ou de distanciamento em relação a um protótipo. Ex.: verdadeiro amigo.

Isso posto, passa-se ao exame dos textos de mobilização da voz do leitor que instanciam estruturas retórico-teleológicas de reclamação. 3. A estrutura retórico-teleológica de reclamação na imprensa de bairro paulistana Denomina-se estrutura retórico-teleológica a configuração prototípica de estágios retóricos ligados a um determinado conjunto de textos. Tal configuração está diretamente relacionada ao cumprimento de determinados objetivos comunicativos em face das demandas e coerções institucionais e é fortemente marcada por padrões interpessoais, envolvendo negociação intersubjetiva, atos de fala e esquemas argumentativos. A análise permitiu verificar três grandes modelos de reclamação. O primeiro deles, exposto na sequência, foi denominado modelo sintético de reclamação. Seguem dois exemplos7: 1. Carro não é dublê Meu noivo tinha um Kadett desde Junho/96, comprado em SP. Em Fevereiro/04 ele vendeu o carro mas o novo dono não conseguiu transferir a documentação porque surgiu um processo judiciário em Cristalina (GO) com o mesmo número de chassi, mas Renavam, placas, dono e cidade de emplacamento diferentes. Desde Março/04 tentamos resolver o caso, com despachantes de SP e Cristalina, por termos de provar que o carro não é dublê. Atenciosamente, S. C. Resposta do Detran/SP: O proprietário do Kadett placas BGC-0342 deve comparecer com o carro ao Detran, Coord do Renavan, segundo a., e procurar por Drª Rosângela. O carro será vistoriado, para comprovar a originalidade. (JNB, 08 a 14 de julho de 2006) 2. MONTE KEMEL: ÔNIBUS NÃO OBEDECEM AOS HORÁRIOS A leitora M.T.A., moradora no Jardim Monte Kemel, reclama da linha de ônibus que serve o bairro. Segundo ela, os veículos não obedecem aos horários, em prejuízo da população que as vezes permanece uma hora à espera de condução. Reclama 7

Optou-se por apresentar o nome do missivista no formato de sigla a fim de preservar seu anonimato. Os textos foram transcritos em fidelidade total ao que fora publicado no periódico. Não se marcará sic nas instâncias em que houver desvio em relação à normal culta.

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ainda a leitora do fato de crianças ocuparem os bancos em detrimento de pessoas idosas ou doentes que têm de viajar em pé. (JP, 04 de agosto de 1984).

Ambos os textos anteriormente reproduzidos consistem em textos de mobilização da voz do leitor que apresentam uma reclamação do missivista ao jornal. No primeiro exemplar, contudo, a voz autoral é a do próprio leitor, ao passo que, em (2), a voz autoral é a do próprio periódico, que reporta a reclamação do leitor. Esses dois modos de incorporação da voz do leitor são recorrentes na imprensa de bairro paulistana, tanto no período de ditadura militar, quanto no período pós-ditadura, e, em outros modelos de reclamação, são responsáveis pela instauração de diferenças relevantes na densidade avaliativa dos textos. Entretanto, voltar-se-á a este ponto posteriormente. Por ora, cabe mostrar a configuração geral do modelo sintético de reclamação. Neste modelo, o missivista apresenta uma situação-problema, para a qual não tenha vislumbrado ou alcançado alguma solução satisfatória, atribuindo ao jornal — como intermediário das relações entre o público e o privado, entre o institucional e o cotidiano — a responsabilidade de buscar uma solução para o problema levantado. Na carta (1), a situação-problema constitui-se na impossibilidade de transferir a documentação de um carro vendido a um novo proprietário, já, em (2), consiste tanto na falta de pontualidade dos ônibus quanto na ocupação dos bancos por crianças em detrimento de idosos e doentes. Note-se que, em (1), a voz autoral contextualiza o problema, apresentando uma breve narrativa do que ocorrera, justificando a dificuldade da transferência. A voz autoral não inscreve nenhuma atitude — afeto, julgamento ou apreciação —, optando por uma construção que simula objetividade diante da questão. Esse aspecto é marcante no modelo sintético de reclamação. As cartas são pontuais; o índice de inscrições avaliativas tende a zero, muito embora se possa afirmar que existam avaliações invocadas — no caso, há uma implicitação de uma avaliação de impropriedade, no campo da injustiça; e não são propostas soluções para o problema. Nesse modelo, o jornal atua apenas como um amplificador do posicionamento do leitor. Nos textos do XX, o índice de resposta do jornal ou das instituições e organizações interpeladas na missiva é bem inferior ao que ocorre no XXI — 17% contra 65% do total de textos de cada período —, fato motivado tanto pela maior penetração dos jornais de bairro quanto pelos novos imperativos de transparência em um momento político de maior democracia. Logo, em (1), é possível verificar o posicionamento do Detran/SP diante da situação enunciada, que, por meio de um comando, marcado pelo modal deôntico — deve comparecer —, incita o leitor a agir no sentido de alcançar a solução real do problema. Em (2), por sua vez, não há resposta e, portanto, não são atualizados nem comandos nem soluções para a situação enunciada pela missivista. Ademais, deve-se notar que, dada a apropriação da voz do leitor, toda a explicitação do conteúdo da reclamação é exposta sob a responsabilidade da missivista, o que é marcado pela circunstância de ângulo Segundo ela e pelo processo verbal Reclama ainda a leitora. É interessante verificar, entretanto, que a inscrição do adjunto modal ainda marca um recurso de contração dialógica por contra-expectativa, implicitando que os ônibus de tal linha não deveriam apresentar mais problemas que o já exposto. Novamente, tem-se um julgamento negativo implícito — nesse caso, de incapacidade8. 8

Embora não consista em objeto central desta pesquisa, os títulos revelam diferentes posicionamentos institucionais diante da reclamação. Em (2), o JP apenas sintetiza a situação-problema primária e localiza a sua ocorrência no espaço. Em (1), entretanto, o JNB não aponta para a situação-problema, mas se posiciona de modo favorável ao missivista, assumindo, com ele, que não se trata de um caso de carro dublê, a despeito da verificação do Detran não

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Isso posto, pode-se afirmar que o modelo sintético possui como características centrais: Quadro 4: Características centrais do modelo sintético de reclamação a. a apresentação de uma situação-problema que envolve o leitor e/ou a comunidade em que ele vive; b. tal situação-problema não pode ou não pôde ser resolvida pelo próprio missivista. Em ambos os casos, tem-se um problema de capacidade — o ator social ou a comunidade não são dotados dos recursos capazes de levá-los a solucionar o problema. No segundo caso, entretanto, tem-se a implicitação da tenacidade — o ator social esforçou-se no sentido de solucionar a questão, mas não foi bem sucedido; c. as soluções e os comandos que viabilizam a resolução não são propostos pela voz autoral, mas pelos órgãos e pelas instituições interpelados nas respostas eventualmente fornecidas ao periódico. Os exemplares textuais abaixo, diferente do que ocorre nos textos (1) e (2), apresentam o modelo analítico de reclamação. Neste, há uma forte incidência de avaliações e, muitas vezes, são instanciadas, autoralmente, possíveis soluções para os problemas. Nesse modelo, a incorporação da voz do leitor pelo periódico consiste em fator relevante no que concerne ao grau de incidência atitudinal. Seguem duas missivas que instanciam esse padrão: 3. Cemitério A leitora H. P. M., através de e-mail, reclama do estado em que se encontra o cemitério São Pedro, na Vila Alpina. Segunda ela, local está abandonado, sujo e as campas estão largadas. Além disso, denuncia que no enterro de seu avô, que aconteceu no último dia 11, um coveiro mal educado informou ao seu pai, que estava sofrendo com a perda do familiar, que o valor da lápide era de R$ 180,00 e que não havia outra forma de negociação. Segundo M. deveria existir um setor no cemitério que tratasse apenas de lápides e outras coisas que dizem respeito ao túmulo. Segundo a assessoria de imprensa do Serviço Funerário do município de São Paulo, funcionários da autarquia recolhem diariamente lixos dos cemitérios, além de uma empresa terceirizada encarregada da carpinagem. No que se refere à irregularidade apontada pela leitora, o Serviço Funerário orienta que todas as denúncias sejam formalizadas através do telefone 0800109850, preferencialmente com a identificação do servidor denunciado, para que sejam investigadas pela Corregedoria e em caso de comprovação, sejam adotadas medidas cabíveis ao caso. O denunciante terá seu nome mantido em sigilo. (FVP, 22 de dezembro de 2006) 4. CLIENTE RECLAMA DA LOJA Senhor Redator: Venho por meio desta comunicar um ocorrido na loja “CONFECÇÕES LETEX LTDA”., sita à Rua Capitão Pacheco Chaves n.o 985 – Vila Prudente, que na mesma efetuei uma compra dia 18.05.82 – de algumas camisas, sendo que uma das camisas de seda estava rasgada. Voltei no dia seguinte (19.05.82) e pedi para os proprietários da loja que trocassem a camisa e os mesmos recusaram-se, alegando que o defeito tinha sido causado pela minha pessoa, quando da prova da camisa na loja, sendo que ao meu parecer é praticamente impossível a hipótese citada acima. Por uma questão de educação voltei à loja para tentar um novo acordo, inclusive o cancelamento da compra; sendo que nada foi conseguido procurei auxílio do meu noivo, o qual sofreu inclusive agressões morais, sem levar em consideração que são coreanos e põem-se a falar em seu idioma na frente de qualquer cliente. Na realidade este fato foi citado porque não sabia se eles falavam de mim ou não, considerei uma tremenda falta de educação, por parte do comerciante.

ter sido realizada. Esses títulos que revelam posicionamentos institucionais são bem menos frequentes; entretanto, tendem a ocorrer nos jornais do XXI, tendo em vista que, nesses casos, a tendência de desmassificação dos meios já citada se exponencializa, e a complacência do periódico em relação ao leitor se torna um aspecto fundamental do nicho de mercado de tais veículos.

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Sabendo que o jornal GAZETA DE VILA PRUDENTE é idôneo e pelo muito que tem feito pelo bairro, tomei a iniciativa de escrever ao Sr. Redator para que os Senhores moradores de Vila Prudente conscientizem-se ao atendimento que o cliente recebe da “CONFECÇÕES LETEX LTDA.”. Sendo só para o momento, agradeço antecipadamente a atenção por parte da GAZETA DA VILA PRUDENTE, e ao mesmo tempo solicito a publicação desta carta. São Paulo, 20 de maio de 1982. S. G. (GVP, 04 de junho de 1982)

De modo análogo ao que se realizou no modelo sintético, optou-se por analisar uma carta efetivamente publicada pelo jornal — texto (4) — e outra cuja voz fora incorporada pelo jornal — texto (3) —, mas em períodos históricos opostos. Nesse caso, a incorporação ocorreu em uma publicação do XXI. Em primeiro lugar, deve-se destacar uma diferença crucial na introdução desses textos, que também encontra eco no modelo anterior. Nos exemplares textuais em que a voz do leitor é incorporada, o jornal tende a apresentar, no complexo oracional original, o alvo e o objeto da reclamação do ator social, ao passo que, nos textos escritos pelos próprios leitores, costuma haver uma contextualização das circunstâncias em que o evento, alvo da reclamação, transcorre. Nesse sentido, pode-se concluir que o fator incorporação de voz incide, diretamente, na organização textual, subtraindo, prototipicamente, a etapa de contextualização. Ademais, deve-se ressaltar que a incidência de avaliações — inscritas e invocadas — tende a ser maior nos textos em que não há incorporação de voz. Nesses, por sua vez, as atitudes, quando ocorrem, tendem a ser atribuídas ao missivista, descomprometendo o veículo de tal associação9. Note-se que o texto (3) subdivide-se em duas partes: na primeira, tem-se a carta de reclamação incorporada e, na segunda, a resposta do Serviço Funerário de São Paulo à leitora — ambas incorporadas pelo jornal. O alvo da reclamação, o cemitério da Vila Alpina, é construído, por atribuição, a partir de apreciações negativas — abandonado, sujo — e pela implicitação de um julgamento de descaso, ligado à tenacidade negativa, derivada da construção as campas estão largadas. Soma-se a esse quadro genérico de composição negativa a suposta interação entre o pai da missivista e o coveiro, referente a uma cobrança pela lápide — Além disso, denuncia que no enterro de seu avô, que aconteceu no último dia 11, um coveiro mal educado informou ao seu pai, que estava sofrendo com a perda do familiar, que o valor da lápide era de R$ 180,00 e que não havia outra forma de negociação. A construção destaca-se, primeiramente, pela seleção do processo verbal denunciar, que implicita que o conteúdo da oração projetada será negativo e fere os valores, leis ou normas estabelecidos socialmente. Tal opção revela um posicionamento autoral diante da versão de realidade proposta pela missivista e, portanto, invoca um julgamento de propriedade negativo, ligado à estrutura modal fazer o que não deve. A instanciação do julgamento mal educado, ligado à capacidade negativa, potencializa o quadro negativo do cemitério, extrapolando o campo físico-espacial e chegando ao humano. Isso é ainda exponencializado pela atualização de um valor afetivo invocado de infelicidade — que

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São 5,3 inscrições médias de atitude por texto de reclamação cuja voz é a do leitor, contra 3,3 por texto cuja voz é a do jornal incorporador. Além disso, destaca-se que, naqueles, são 53% de julgamentos e 22% de apreciações contra 35% e 42%, respectivamente, nos textos com incorporação. Em outros termos, atitudes mais comprometedoras, que envolvem o escrutínio do comportamento humano, tendem a ser relegadas a segundo plano em textos cuja voz autoral é a do editor ou redator. Quando tais inscrições ocorrem, elas tendem a ser projetadas sob a perspectiva do missivista, por algum recurso de atribuição.

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estava sofrendo com a perda familiar —, criando um contexto de inaceitabilidade para o ato de cobrança pela lápide. Por fim, a voz autoral expõe a solução para o problema, na forma de um comando atribuído à missivista, por meio da circunstância de ângulo Segundo M. Veja-se: Segundo M. deveria existir um setor no cemitério que tratasse apenas de lápides e outras coisas que dizem respeito ao túmulo. Tal comando, metaforizado gramaticalmente (Halliday & Matthiessen, 2004) na forma de um modal deôntico no Futuro do Pretérito (ou condicional), consiste no meio encontrado pela leitora para resolver os conflitos relatados pelo periódico. Tal estrutura retórico-teleológica consiste, na verdade, em uma variação do modelo exortativo, estudado por Longacre (1992) e Gonçalves Segundo (2011). Nesse modelo textual, tem-se a construção de uma situação-problema, em geral, avaliada negativamente, para a qual a voz autoral fornece soluções e incita a sua realização por meio de comandos. Entretanto, o modelo exortativo prototípico, realizado em editoriais, artigos de opinião, manifestos, dentre outras possibilidades, apresenta estágios argumentativos, em que a voz autoral busca não só provar a validade do seu ponto de vista, o que inclui a solução proposta, mas também construir sua autoridade diante do leitor, a fim de viabilizar a vinculação necessária para a realização factual do comando. Esse estágio retórico, entretanto, não é ativado nas cartas de reclamação, que enfocam a construção da situação-problema, destacando seu impacto negativo no indivíduo e/ou na comunidade. Além disso, os comandos nem sempre consistem em meios para solucionar o problema, embora o sejam na carta (3), mesmo que parcialmente — a solução não atinge a questão físico-espacial do cemitério, por exemplo. A resposta da assessoria de imprensa do Serviço Funerário, entretanto, aborda ambas as situações-problema enunciadas, destacando, em primeiro lugar, a regularidade do serviço de limpeza e carpinagem — confrontando-se, portanto, com a posição autoral — e, em segundo lugar, incentivando a denúncia do problema da esfera humana. Ainda que não seja objetivo deste artigo analisar as respostas propriamente ditas, deve-se destacar que o número de respostas às missivas é superior no século XXI. O que varia, consideravelmente, é o agente respondente. Periódicos como o JNB tendem a responder diretamente aos seus leitores, agindo de forma complacente a sua visão de mundo, expondo apenas esporadicamente as posições das instituições e organizações cuja atuação é alvo de reclamação; já periódicos como a FVP priorizam justamente a publicação das respostas das entidades citadas. A opção está diretamente relacionada a seu modelo jornalístico — o JNB consiste em um jornal de abordagem plural, ao passo que a FVP se configura em um periódico de abordagem global (Gonçalves Segundo, 2011). O texto (4), por sua vez, constitui-se em uma carta de reclamação não incorporada, dirigida ao redator do jornal — Senhor Redator. Tal estrutura de destinação não é prototípica em nenhuma das sincronias analisadas; entretanto, sua incidência é maior no XX e está fortemente condicionada à identidade jornalística. Na GVP, constitui-se em procedimento prototípico. Note-se que, de modo semelhante ao texto (1), a carta apresenta uma contextualização da situação-problema, realizada por meio de uma narrativa em primeira pessoa que detalha os eventos que instauraram o conflito. O gatilho consiste em uma camisa de seda que estava rasgada. O segundo parágrafo deixa claro o posicionamento autoral e implicita julgamentos. Em primeiro lugar, a seleção do processo verbal alegar, recurso de expansão dialógica por atribuição: distanciamento, marca que a voz autoral não compartilha da representação de que ela tenha sido a causadora do defeito na camisa, fato evidenciado pela construção posterior — é

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praticamente impossível a hipótese citada acima —, em que a missivista constrói, em alto comprometimento, a improbabilidade da situação, embora não a assuma categoricamente, evitando, assim, uma postura autoritária. Nesse sentido, implicitam-se valores de sanção social. Por um lado, a desonestidade, como uma avaliação da parte dos donos da loja em relação à leitora, e, por outro, a impropriedade, relativa à conduta acusatória dos proprietários que, sem provas, ameaçam a imagem da leitora-consumidora. O parágrafo seguinte inicia-se por meio de uma circunstância de causa — por uma questão de educação —, construindo a voz autoral como agente de tenacidade e propriedade positiva, que atua no sentido de resolver o impasse — voltei à loja para tentar um novo acordo, inclusive o cancelamento da compra. Segundo a construção da missivista, nem mesmo a ação do noivo teria resolvido o conflito, e a consequência de sua atitude teriam sido agressões morais, implicitando um julgamento negativo de propriedade, exponencializado pelo fato de os lojistas terem passado a falar em outra idioma na frente dos cliente. Esse último aspecto é relevante na construção autoral, na medida em que o comportamento é tratado como uma tremenda falta de educação¸ instanciando propriedade negativa intensificada em termos altos pelo recurso de gradação tremenda. Nesse sentido, o que se observa é a construção de um quadro reiterado de impropriedade ligado ao comportamento dos donos do estabelecimento, de modo que é essa conduta não condizente com a ética projetada pela voz autoral que consiste na situação-problema, manifestada pela ausência de um acordo entre as partes no que concerne ao defeito na indumentária citada. O penúltimo parágrafo constrói uma instância de um importante padrão nas cartas da imprensa paulistana de bairro: a legitimação do trabalho jornalístico. Note-se que a voz autoral julga, positivamente, em termos de propriedade, a atuação do periódico — idôneo —, valor esse que atua como uma estratégia de vinculação para garantir a publicação da carta e a potencial intervenção do jornal. O procedimento ocorre em diversas missivas e está fortemente relacionado ao papel de arbítrio entre o consumidor-cidadão e as organizações e instituições públicas e privadas a que essa modalidade de imprensa se propõe a assumir. A carta não atualiza uma estrutura explícita de solução ou comando, mas expõe a motivação de sua escritura, o que, de certo modo, está ligado ao potencial objetivo autoral de sensibilizar a comunidade no que tange ao atendimento da loja em questão — [tomei a iniciativa de escrever ao Sr. Redator] para que os Senhores moradores de Vila Prudente conscientizem-se ao atendimento que o cliente recebe da “CONFECÇÕES LETEX LTDA. Em outros termos, a conscientização pretendida consiste em uma forma não diretiva de mobilizar a ação dos consumidores textuais, no plano mental, a fim de levar a consequências práticas não explicitadas — provavelmente ligadas a alguma forma de boicote de tal confecção —, viabilizando, assim, à voz autoral manter uma postura de propriedade e tenacidade positivas diante do ocorrido. Isso posto, pode-se afirmar que o modelo analítico de reclamação apresenta a seguinte estrutura retórico-teleológica: Quadro 5: Características centrais do modelo analítico de reclamação a. a apresentação de uma situação-problema que envolve o leitor e/ou a comunidade em que ele vive; b. tal situação-problema não pode ou não pôde ser resolvida pelo próprio missivista. Em geral, envolve impropriedade dos agentes causadores do conflito. O missivista costuma ser construído implicitamente como incapaz de resolver o problema, mas tenaz para buscar a resolução. Entretanto, a incapacidade não é concebida negativamente, tendo em vista que ela é consequência da conduta anti-ética de outros;

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c. a voz autoral tende a propor soluções para a situação-problema, prototipicamente realizadas por comandos que podem ser atualizados tanto por formas imperativas quanto por metáforas gramaticais, que incluem a modalidade deôntica como alternativa preferencial. Muitas vezes, contudo, essas etapas se encontram sincretizadas; d. não consiste em padrão prototípico a construção da autoridade do escritor por meio de estágios argumentativos que desenvolvam as razões pelas quais uma determinada solução é a mais adequada ou não; e. as respostas do periódico tendem a ser complacentes com a posição do missivista e as respostas institucionais oscilam entre defender-se da conduta de reclamação e propor uma solução/comando para a situação-problema, Por fim, as cartas abaixo consistem em instâncias de textos de reclamação que atualizam a sequência retórico-afetiva de indignação sincretizada ao modelo analítico de reclamação. Tal sequência apresenta as seguintes etapas prototípicas, depreendidas por meio da análise qualitativa: Quadro 6: Sequência retórico-afetiva de indignação 1. Existe uma classe de eventos x; 2. x traz consequências negativas y; 3. Há condições e existe possibilidade de se evitar a ocorrência de x; 4. Espera-se que x não aconteça; 5. O evento P, instância de x, ocorre e acarreta, novamente, consequências y, quebrando a expectativa de não ocorrência prevista em 4; 6. Julgamentos de sanção e estima social, especialmente ligados à injustiça, à omissão ou à incompetência, são ativados em relação à inércia no que tange ao alcance da resolução, prevista em 3; 7. y atua como gatilho de reações afetivas negativas, dentre elas, a indignação, vista como uma reação de insatisfação/infelicidade a efeitos potencialmente injustos, que sincretiza o desejo de subversão das condições de ocorrência de x; 8. A indignação pode servir de gatilho para ações ligadas ao reforço de 3, visando a criar condições para o bloqueio de x e, portanto, para o desaparecimento de y. Seguem abaixo os textos. O primeiro consiste em um exemplar do corpus atual, enquanto o segundo se configura em um texto do fim do período militar: 5. EMEF sem professores Li no Jornal Nosso Bairro uma carta de pais sobre a falta dos problemas que nós pais e alunos estamos passando com a escola EMEF Professor Amadeu Mendes. Pois bem, tudo continua uma vergonha, nossos filhos estão sem aulas há semanas. Existe um rodízio que na semana pelo menos 2 dias ficaram à toa sem ter o que fazer, correndo os riscos de ficar para trás. Estamos em abril e ele só teve uma aula de inglês, de ciências seu caderno está em branco, sem contar que nas outras matérias é mais uma revisão do ano anterior. Ontem ouvi meu filho dizer que ele e os amiguinhos ficaram muito tristes de não ter aula sexta-feira (07/04/06) não haveria aula. Na sala de meu filho, saíram cinco crianças para escolas particulares. É isto que eles querem, esvaziar a escola? Já que alegam que as classes estão com um nível superior ao ideal. Tirei meu filho de uma escola particular, e já estou arrependida, mesmo sem poder pagar, é melhor fazer sacrifício do que ver seu filho sem ter futuro. Nós pedimos respeito e responsabilidade, não é justo. Pagamos impostos altíssimos e nada é de graça, a escola é pública porém não quer dizer que seja sinônimo de má qualidade. Pedimos providências urgentes. S.M.

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Nota da redação: Infelizmente, a situação do ensino público está precária. Não é sem motivo que várias escolas da região estão sem alunos e fecham servindo às outras atividades públicas. Por outro lado, o calor das escolas particulares nem sempre são compatíveis com o orçamento da família. A sua reclamação foi encaminhada à Coordenação do Ensino, aguardamos uma resposta.(JNB, 29 de abril a 05 de maio 2006)

6. COMERCIANTE RECLAMA DA REGIONAL MOOCA Senhor Redator: Sexta-feira, dia 21 de maio, na última folha, você está dando um recadinho, para nós, lojistas, a fim de deixarmos o passeio, bem limpinho. Pois bem, nós varremos o nosso passeio todos os dias. Mas acontece que há três semanas, alguém por aqui podou uma árvore, e jogou os galhos no passeio em frente a Lidiana, que é a nossa loja. Alguns dias depois, outro alguém, ou talvez o mesmo que podou a árvore, jogou latas de tinta, vazias, taboas, e outros “bagulhos”. Pedimos ao “lixeiro” que levasse, e ele “nem deu bola”. Acontece que durante a noite, algum “safado”, está colocando galhos e latas, em frente a nossa porta, e quando chegamos de manhã, precisamos primeiro, retirar a barricada, para podermos entrar. Já reclamei na Associação Regional da Mooca há mais de 10 dias e nada. Ontem liguei de novo, reclamação no 5523! O lixo continua aí. Atenciosamente, Lidiana Com. De Roupas Feitas Ltda., A. L. S. H. R. (GVP, 04 de junho de 1982)

A missiva (5) consiste em um exemplar relevante da confluência entre a sequência de indignação e a estrutura de reclamação. Logo no primeiro complexo oracional do texto, a voz autoral inicia a construção da etapa 1 da sequência retórico-afetiva, apontando explicitamente para um outro texto do jornal que já apontava para classe de eventos x — a falta dos problemas que nós pais e alunos estamos passando com a escola EMEF Professor Amadeu Mendes. A relação de intertextualidade entre a carta do leitor e as notícias ou reportagens do jornal, diferente do que ocorre na grande imprensa, não se constitui em padrão preferencial, na medida em que, na mídia de bairro, esse espaço de interação é ocupado, principalmente, pelas reivindicações e reclamações dos moradores que visam à intermediação do periódico para solucionar questões práticas que os cercam. Trata-se justamente do objetivo deste texto: exigir, por arbítrio do jornal, que o governo tome alguma medida contra o estado precário da escola citada. Voltar-se-á, posteriormente, a este ponto. Note-se que a situação do colégio já é construída como evento que se reitera e, nesse sentido, as consequências negativas y, previstas em 2, são concebidas como durativas — tudo continua uma vergonha, nossos filhos estão sem aulas há semanas. O Atributo uma vergonha atualiza tanto uma reação afetiva de insatisfação quanto um julgamento de impropriedade, ligado ao campo da omissão e da injustiça, cumprindo, de forma sincrética, elementos das etapas 6 e 7 da sequência. Entretanto, o primeiro parágrafo ainda atualiza outros aspectos da sequência. Em primeiro lugar, deve-se destacar a relevância do enunciado a seguir na instauração da etapa 5 — Ontem ouvi meu filho dizer que ele e os amiguinhos ficaram muito tristes de não ter aula sexta-feira (07/04/06) [...]. Tal evento consiste no gatilho para a indignação, uma vez que repercute, no presente ou no passado próximo, o evento que traz as consequências negativas à tona — no caso, tais consequências incluem a reação afetiva de infelicidade experenciada pelo filho e por seus amigos. O início do parágrafo seguinte, por sua vez, expõe outras consequências negativas do problema. Veja-se o excerto: Na sala de meu filho, saíram cinco crianças para escolas particulares. É isso que eles querem, esvaziar a escola? Já que alegam que as classes estão com um nível superior ao ideal. É relevante ressaltar que a evasão escolar, ao mesmo tempo em que se constitui em um problema, na medida em que não se espera que tal fato ocorra, também consiste em uma forma de evitar y, por meio da dissociação do ator social em relação a x — em outros termos, ao mudar os

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filhos de escola, os pais optam por subtraí-los do meio em que a falta de aulas (x) ocorre e, assim, evitam os problemas educacionais e a tristeza (y) que poderiam atingir seus filhos. É justamente tal aspecto que é questionado pela missivista — a evasão não deveria ser vista como solução, mas como anomalia. A pergunta É isso que eles querem, esvaziar a escola? aponta para uma versão da realidade na qual a escola não estaria agindo para impedir a evasão; ela estaria, assim, fomentando-a pela inação, a fim de atingir um nível ideal de alunos para a realização de seu trabalho. Tal postura implicita julgamentos negativos de sanção social fortes, que incluem desonestidade, injustiça, anti-ética, especialmente considerando tratar-se de educação e de crianças, duas questões de forte apelo emocional e político-social. Logo, a construção autoral deixa entrever a possibilidade de se evitar a ocorrência de x — etapa 3 — e, portanto, a expectativa de que essa classe de eventos não seja instanciada — etapa 4. A escola é, portanto, implicitamente acusada de não agir conforme a expectativa social, muito embora poderia fazê-lo, fato este que se constitui na base do sentimento de indignação. A reação afetiva de arrependimento, instanciada nesse parágrafo, sincretiza infelicidade, insatisfação e indesejabilidade, o que se relaciona a um sentimento de culpa, originado do ato de ter matriculado o filho na escola pública, em detrimento da particular e, portanto, de inserir o filho no contexto dos eventos problemáticos. Veja-se a construção: Tirei meu filho de uma escola particular, e já estou arrependida, mesmo sem poder pagar, é melhor fazer sacrifício do que ver seu filho sem futuro. A construção de contração dialógica por contra-expectativa, sublinhada, faz emergir a alternativa dialógica de que não se deveria sacrificar-se na condição de não haver dinheiro. Entretanto, as consequências negativas y atuam como uma força (Talmy 2000) que impele, epistemicamente, a voz autoral a agir contra um valor subjacente — em outros termos, não poder pagar consiste em um Antagonista fraco, incapaz de reverter a tendência de movimento do Agonista, a voz autoral, no sentido de sacrificar-se para o futuro do filho. Tal conceptualização permite depreender uma hierarquização que favorece a vida do filho em detrimento da mãe. Os últimos complexos oracionais voltam-se, primariamente, à etapa 8, na qual a missivista solicita que ações sejam realizadas no sentido de reforçar as condições para o bloqueio de x. Veja-se: Nós pedimos respeito e responsabilidade, não é justo. Pagamos impostos altíssimos e nada é de graça, a escola é pública porém não quer dizer que seja sinônimo de má qualidade. Pedimos providências urgentes. Note-se que as exigências da produtora textual são instanciadas por processos verbais que metaforizam, gramaticalmente, comandos cujo conteúdo proposicional se volta à exigência de respeito, de responsabilidade e de providências urgentes. A primeira exigência abarca a relação entre a esfera pública diante dos cidadãos; já a segunda e a terceira voltam-se exclusivamente à esfera pública, tanto em termos atitudinais quanto práticos. É relevante observar que não há uma exortação explícita do que deva ser feito para solucionar o problema, diferente do que ocorre, prototipicamente, no modelo analítico puro. Por fim, cabe ressaltar um último gatilho de indignação — o baixo custo-benefício. A voz autoral atrela os altos valores de impostos à exigência de um serviço de qualidade, não garantido pelo Estado, o que permite a inscrição do valor injusto, relacionado à propriedade negativa. Nesse sentido, os agentes sociais incapazes de garantir a realização eficiente do serviço, encarnados na figura implícita do Estado, são construídos como culpados não sé pela emergência da situação, quanto pela sua perpetuação; a propósito, trata-se de um padrão das cartas de reclamação a condenação do Estado pela manutenção do status quo negativo. A carta (6) atualiza estrutura semelhante e, por tal razão, apenas serão apontados seus elementos estruturais centrais. A classe de eventos que traz consequências negativas consiste no

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depósito constante de lixo na frente da loja dos missivistas. Os efeitos não são explicitados, mas são inferíveis pelo conhecimento de mundo dos leitores, o que inclui mau cheiro, desorganização e a necessidade reiterada de retirar os resíduos. A terceira e a quarta etapa, por sua vez, viabilizam-se pela presença dos lixeiros, que deveriam cumprir sua função, e pela Associação Regional da Mooca, que deveria tomar providências para impedir essa prática. Veja-se: Pedimos ao “lixeiro” que levasse, e ele “nem deu bola” [...] Já reclamei na Associação Regional da Mooca há mais de 10 dias e nada. Ontem liguei de novo, reclamação no 5523! O lixo continua aí. Pelo trecho, pode-se depreender que a voz autoral assume que tais atores sociais deveriam viabilizar as condições para a não emergência da situação-problema; contudo, não o fazem. É relevante notar que as aspas associadas ao lexema “lixeiro” destituem tal ator social de sua função, mostrando o descaso diante da situação. Tal descaso, somado à necessidade constante de os lojistas removerem diariamente o lixo deixado por outros à sua porta, ativa a etapa 6, ligada a julgamentos de tenacidade e propriedade negativos que marcam a inércia dos agentes responsáveis no que tange à resolução do conflito. A etapa 7, de exposição das reações afetivas, assim como a 5, relativa a um evento P específico, não estão explicitadas. Entretanto, a insatisfação autoral é invocada pelo quadro de reclamação. Por fim, a etapa 8, ligada a possíveis ações para reverter a situação, é acionada no contato telefônico com a Regional Mooca, a quem caberia solucionar o conflito. A não atuação governamental, no entanto, motiva a escrita da missiva para que o jornal, como intermediário, possa pressionar a esfera pública à ação, reforçando as condições para a não ocorrência do evento problemático. Considerações finais Este artigo visou apresentar uma visão geral acerca dos principais padrões de estruturação retórica de textos de mobilização da voz do leitor na imprensa paulistana de bairro, orientados para a teleologia de reclamação. Mostrou-se, assim, a prevalência de três padrões: o modelo sintético de reclamação, o modelo analítico de reclamação e a sequência retórico-afetiva de indignação, que não é exclusiva de textos de reclamação, mas pode ser facilmente integrada ao modelo analítico. Além disso, destacou-se o papel da incorporação da voz do leitor pelo periódico e seus possíveis efeitos tanto na densidade avaliativa e no tipo de avaliação instanciada, quanto na própria estruturação dos modelos de reclamação. Ressaltaram-se, ainda, embora de modo apenas pontual, a atividade de legitimidade da autoridade jornalística como um padrão de negociação entre produtor e jornal, bem como a tendência à condenação da inércia do Estado como padrão representacional. Assim, objetivou-se colaborar para uma compreensão mais ampla dos processos de estruturação textual que envolvem esse conjunto heteróclito de prática jornalística, que se situa num ponto de convergência entre a voz do consumidor e a voz do produtor, visando a uma descrição de caráter comparativo entre duas sincronias, que contribua para os avanços nos estudos relativos à História do Português Paulista. Referências bibliográficas DORNELLES, Beatriz. 2000. Imprensa comunitária: jornais de bairro de Porto Alegre. In: HAUSSEN, Doris Fagundes (org.) Mídia, imagem e cultura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 103-126.

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