A confissão verbal à luz da filosofia da linguagem de Santo Agostinho

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AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625.

A CONFISSÃO VERBAL À LUZ DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM DE

SANTO AGOSTINHO Maria Leonor L.O. Xavier No início de De Magistro, Agostinho confronta Adeodato, seu filho e interlocutor, com a seguinte interrogação: Quid tibi uidemur efficere uelle, cum loquimur? 1 É esta interrogação que pretendemos estender e aplicar ao caso específico da confissão verbal: o que é que nos parece que nós queremos levar a efeito, quando confessamos? Ainda que Agostinho distinga diversos actos discursivos no âmbito da fala, como declarar, interrogar e orar, ele não discrimina explicitamente, em De Magistro, o acto de confessar: porquê? Por a confissão ser basicamente uma declaração? Não poderá a confissão conter interrogações e preces, ou ainda outros actos discursivos? O testemunho que Agostinho dá do acto de confissão, nos seus treze livros de Confessionum, é por demais complexo, para nos permitir circunscrever a confissão a um tipo simples de discurso. A confissão augustiniana merece, por isso, não ser descurada, no âmbito da filosofia da linguagem. A nossa proposta, neste estudo, é considerar o alcance, para o caso complexo da confissão, de algumas análises esboçadas no diálogo De Magistro, e também da teoria do verbo mental, posteriormente elaborada em De Trinitate. Consideremos, então, o diálogo De Magistro, começando por notar que o autor não introduz aí o tema da linguagem, como um sistema de sinais auto-suficiente e abstraído do contexto de vida e de relações em que toma parte na realidade; pelo contrário, a linguagem surge incarnada no acto de falar (loqui) e este, situa-o, Agostinho, entre os actos humanos voluntários. Esta acepção da fala, que emerge na interrogação inicial, é reforçada, pouco depois, numa intervenção do próprio Agostinho, ao definir a fala como a emissão de um sinal exterior da vontade do falante, por meio de um som articulado2. Não é, pois, de estranhar que a compreensão de um acto humano voluntário, como a fala, passe pela questão da finalidade. Ora, o que está em questão, na interrogação inicial de De Magistro, é, justamente, a finalidade da fala. Agostinho selecciona dois fins para a fala: ensinar e rememorar3. Esta dualidade é a pluralidade mínima de fins que Agostinho consegue fazer corresponder à diversidade de actos discursivos aflorada no segmento inicial do diálogo. É, com efeito, de suspeitar, como o faz Adeodato, que diferentes actos discursivos se orientem para fins distintos: a declaração, para o ensino; a interrogação, para a aprendizagem; o canto, para o prazer4. Agostinho procura, no entanto, reduzir 1

DM 1, 1 (De Magistro, texto do Corpus Christianorum 29, rev. e cor. em Bibliothèque Augustinienne 6, 3ª ed., Paris, Desclée de Brouwer, 1976, p.42). 2 «Qui enim loquitur, suae uoluntatis signum foras dat per articulatum sonum» DM 1, 2. 3 «[…]; et duas iam loquendi causas constituo, aut ut doceamus, aut ut commemoremus vel alios vel nos ipsos; quod etiam dum cantamus efficimus» DM 1, 1. 4 Cf. DM 1, 1. 1

AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625. esta pluralidade de fins. Como? Por um lado, aproximando a interrogação da declaração, ao ordenar ambas para o fim de ensinar5. Por outro lado, eliminando o prazer do domínio dos fins do discurso verbal, confinando-o à componente musical do canto6, e associando à sua componente verbal o fim da rememoração7. Por que razão, ou razões, se empenha, Agostinho, nestas reduções? Toda a redução corresponde a um esforço de simplificação, e será, sem dúvida, mais simples compreender a linguagem verbal em função de poucos fins do que de muitos. Há, todavia, outras razões implícitas para tais reduções. A redução dos discursos declarativo e interrogativo ao mesmo fim de ensinar obriga a entender este fim numa acepção muito ampla, a mais ampla possível, de dar a conhecer. Como o que é cognoscível se distribui pelos domínios do sensível, do inteligível e do mental, esta noção ampla do fim do discurso declarativo e interrogativo permite, por sua vez, testar a eficácia deste discurso, como meio de conhecimento (sensível e inteligível), como expressão de pensamento e como meio de comunicação. A primeira redução dos fins da fala, por Agostinho, serve pois a análise crítica destas concepções habituais da linguagem verbal, que se desenvolve ao longo do próprio diálogo De Magistro. Quanto à eliminação do prazer, como fim do discurso verbal, essa era porventura uma exigência da fase de profundo questionamento do abuso retórico da linguagem, fase só mais tarde ultrapassada em obras, como De Doctrina Christiana, onde Agostinho reassume os três objectivos da retórica ciceroniana: ensinar, deleitar e persuadir8. Entretanto, ao excluir dos fins da fala o objectivo de deleitar, o autor de De Magistro tinha de atribuir à componente verbal do canto um outro fim, que não o de dar a conhecer, pois este propósito não se ajusta, pelo menos, ao canto solitário9. A este caso, juntam-se ainda outras formas de discurso solitário, como a oração e, em geral, a fala interior, que dificilmente se deixam orientar para o mesmo fim dos actos discursivos adequados a uma situação de diálogo. São, de facto, os actos de discurso solitário que reclamam a segunda das duas finalidades discriminadas: a rememoração. Porém, nem todos os actos mencionados convergem para este fim de modo igualmente óbvio. O caso da oração merece uma especial atenção. A oração contempla uma relação, a adesão do ser humano a Deus, mas não constitui, em De Magistro, um diálogo do ser humano com Deus. Com efeito, a oração não visa o fim comum dos actos discursivos que integram o diálogo; não é plausível querer, através da oração, dar a conhecer algo a Deus; mas também não é plausível querer, através da

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«Aug.: Etiam tunc nihil aliud quam docere nos uelle intellego; nam quaero abs te, utrum ob aliam causam interroges, nisi ut eum quem interrogas doceas quid uelis.» DM 1, 1. 6 «Aug.: […]. Sed nonne adtendis id, quod te delectat in cantu, modulationem quamdam esse soni? Quae quoniam uerbis et addi et detrahi potest, aliud est loqui, aliud cantare» DM 1, 1 7 Vd. nota 3. 8 «Dixit ergo quidam eloquens, et verum dixit, ita dicere debere eloquentem, ut doceat, ut delectet, ut flectat. Deinde addidit: docere necessitatis est, delectare suavitatis, flectere victoriae (Cicero, De oratore). Horum trium quod primo loco positum est, hoc est docendi necessitas, in rebus est constituta quas dicimus; reliqua duo, in modo quo dicimus.» DDC IV, 12, 27 (De doctrina christiana, texto da ed. beneditina reprod. em Bibliothèque Augustinienne 11, Paris, Desclée de Brouwer, 1949, p.466). 9 «Aug.: Vides ergo nihil nos locutione nisi ut doceamus adpetere. – Ad.: Non plane uideo; nam, si nihil est aliud loqui quam verba promere, uideo nos id facere cum cantamus. Quod cum saepe soli facimus, nullo praesente qui discat, non puto nos docere aliquid uelle.» DM 1, 1. 2

AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625. oração, fazer recordar algo a Deus10. A dar-se alguma recordação por efeito da oração, é na mente humana, não em Deus, que tal pode dar-se. Todavia, Jesus Cristo ensinou os discípulos a orar. Com que propósito? O de fazê-los recordar de quem deve ser o destinatário e qual deve ser o conteúdo da oração11. Assim modelado o fim do ensino da oração, fica também determinado o fim próximo da oração exterior e pública: despertar a memória de Deus na mente dos orantes. A oração exterior não é, portanto, um acto de discurso solitário, mas comunitário. Enquanto tal, a oração pode ser ensinada e dar origem a rememoração na mente de outrem. Deste modo, a rememoração não é um fim exclusivo dos actos de discurso solitário12. No entanto, a oração exterior não é senão uma forma derivada e instrumental de oração. Na sua mais própria acepção, a oração é interior13. A este nível, a oração não tem destinatário externo, no qual possa produzir algum efeito mental. A oração interior é, por isso, um acto de discurso solitário, pois, embora não necessite de palavras sonoras14, ela constitui uma espécie de fala interior. Ora, em que consiste a fala interior e qual a sua finalidade? Em De Magistro, Agostinho não tem senão ainda uma concepção incoativa de fala interior, que está longe de coincidir com a noção de verbo mental, mais tarde elaborada em De Trinitate. Na concepção de fala interior, segundo De Magistro, as palavras sonoras são substituídas por palavras pensadas, e a função destas é desencadear a rememoração das coisas a que estão associadas na memória15. O fim da fala interior é, pois, o de despertar a memória das coisas na própria mente. Posto que a oração solitária e silenciosa é um caso específico de fala interior, o fim geral desta deverá permitir compreender o especial fim daquela, que será então o de despertar a memória de Deus na própria mente. Assim sendo, os fins das orações exterior e interior não se distinguem substancialmente entre si, mas só quanto ao lugar da rememoração: enquanto a oração exterior visa despertar a memória de Deus na mente de outros orantes, a oração interior destina-se a despertar a memória de Deus na mente do próprio orante. Deste modo, faz-se já sentir, em De Magistro, o apelo a uma memória de Deus a fim de compreender o sentido do acto humano de orar. Contudo, fora das páginas iniciais, este diálogo augustiniano não regressa ao assunto. Só em obras posteriores, como Confessionum e De Trinitate, a memoria Dei surge com incontornável relevo. É, em particular, no livro X de 10

«Aug.: Videtur ergo tibi nisi aut docendi aut commemorandi causa non esse institutam locutionem? – Ad.: Videretur, nisi me moueret quod dum oramus utique loquimur, nec tamen Deum aut doceri aliquid a nobis aut commemorari fas est credere.» DM 1, 2. 11 «Aug.: Non te ergo mouet, quod summus magister, cum orare doceret discipulos, uerba quaedam docuit, in quo nihil aliud uidetur fecisse quam docuisse, quomodo in orando loqui oporteret? – Ad.: Nihil me omnino istud mouet; non enim uerba, sed res ipsas eos uerbis docuit, quibus etiam se ipsi commonefacerent, a quo et quid esset orandum, cum in penetralibus, ut dictum est, mentis orarent.» DM 1, 2; «Aug.: […], sicut sacerdotes faciunt, significandae mentis suae causa, non ut Deus, sed ut homines audiant et consensione quadam per commemorationem suspendantur in Deum.» DM 1, 2. 12 Vd. nota 3. 13 «Aug.: […]; Deus autem in ipsis rationalis animae secretis, qui homo interior uocatur, et quaerendus et deprecandus est; haec enim sua templa esse uoluit.» DM 1,2. 14 «Aug.: […]. Quare non opus est locutione, cum oramus, id est sonantibus uerbis» DM 1,2. 15 «Aug.: […]; simul enim te credo animaduertere, etiamsi quisquam contendat, quamuis nullum edamus sonum, tamen, quia ipsa uerba cogitamus, nos intus apud animum loqui, sic quoque locutione nihil aliud agere quam commemorare, cum memoria, cui uerba inhaerent, ea reuoluendo facit uenire in mentem res ipsas, quarum signa sunt uerba.» DM 1, 2. 3

AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625. Confessionum, que a memória se oferece como lugar privilegiado do humano encontro com Deus16. Não será, pois, de estranhar que o acto humano de confessar tenha uma estreita ligação com a memória. Como? Será a relação entre confissão e memória análoga à relação entre oração e memória? Como acabámos de ver, em De Magistro, o laço que une a oração à memória é uma relação de meio a fim: a oração é um meio de activar a memória e o acto de memória, que constitui a rememoração de Deus na mente, é o fim daquele acto discursivo. Ora, será também um acto de memória o fim do acto discursivo de confessar? Não é de supor, à partida, que um acto de memória seja separável da confissão, como um fim é separável de um meio; pois, como pode sequer ter início uma confissão, sem a actividade constituinte da memória? A confissão não é, por isso, instrumentalizável ao serviço da memória, antes a supõe como condição da sua própria possibilidade. É esta necessidade condicionante da memória que mal se adivinha ainda na análise augustiniana dos actos de linguagem, em De Magistro. Neste diálogo, a rememoração surgia como um fim plausível para actos de fala interior, como a oração, em alternativa ao fim de dar a conhecer, adequado a actos de fala exterior, como a declaração e a interrogação. Mas, se a memória parece ter mais cabimento no princípio do que no fim da confissão, será de excluir esta dos actos de fala interior, associando-a apenas aos actos de fala exterior? O testemunho de Agostinho, em Confessionum, opõe-se expressamente a essa exclusão. A confissão, na sua mais genuína acepção, é interior, tal como a oração. A confissão interior é proferida pela voz do pensamento e do afecto17 e, tal como a oração, tem em Deus o seu destinatário. Todavia, e de novo, tal como na oração, Deus não é propriamente o receptor, ou o interlocutor, da fala interior da confissão, pois também por esta nada se pode dar a conhecer a Deus, que não seja já dele conhecido18. Tanto na oração quanto na confissão, não há paridade entre o emissor do discurso e o seu destinatário, de modo que o discurso do primeiro não pode produzir algum efeito mental no segundo, ou realizar nele o seu fim. Suposto que uma causa inferior não pode agir sobre uma causa superior, nenhum efeito em Deus pode ser produzido pelo discurso da mente orante ou confessionante. Por esta razão, nem a oração nem a confissão constituem formas de diálogo da mente com Deus. No entanto, tal como a oração visa um fim relativo ao seu destinatário, a memoria Dei, também a confissão visa um fim relativo ao seu destinatário, o amor Dei. De acordo com o seu próprio testemunho, no estilo directo da escrita de Confessionum, Agostinho confessa amore amoris tui19, por amor do amor de Deus. Assim se declara 16

Cf. Conf. X, 17, 26 – 26, 37 (Confessionum, texto estab. por P. de Labriolle, 2ª ed. rev. e cor. em Collection des Universités de France, Paris, Les Belles Lettres, 1989, pp.259-268). 17 «Neque enim id ago uerbis carnis et uocibus, sed uerbis animae et clamore cogitationis, quem nouit auris tua. […]. Confessio itaque mea, deus meus, in conspectu tuo tibi tacite fit et non tacite. Tacet enim strepitu, clamat affectu.» Conf. X, 2, 2. 18 «Neque enim docet te, quid in se agatur, quid tibi confitetur, quia oculum tuum non excludit cor clausum nec manum tuam repellit duritiam hominum, […].» Conf. V, 1, 1; «Et tibi quidem, domine, cuius oculis nuda est abyssus humanae conscientiae, quid occultum esset in me, etiamsi nollem confiteri tibi? Te enim mihi absconderem, non me tibi. […]. Tibi ergo, domine, manifestus sum, quicumque sim. Et quo fructu tibi confitear, dixi.» Conf. X, 2, 2. 19 «Amore amoris tui facio istud, […].» Conf. II, 1, 1; «Iam dixi et dicam: amore amoris tui facio istuc.» Conf. XI, 1, 1. 4

AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625. o fim espiritual do acto discursivo, interior e solitário, da confissão augustiniana. À luz da espiritualidade de De Trinitate, os fins espirituais da oração e da confissão, a memoria Dei e o amor Dei, são dois fins inteiramente correlativos entre si e constituintes da experiência de Deus no homem interior20. Destinado a cultivar o amor de Deus no homem interior, o acto de confissão recebe ainda, do próprio autor de Confessionum, várias interpretações, a saber, como um exercício de louvor21, como uma acção de graças22, e também como a oblação de um sacrifício23. Destas três leituras espirituais que Agostinho faz das suas próprias confissões, a terceira interpela-nos especialmente e leva-nos a pensar na memória do passado. Com efeito, Agostinho diz querer recordar o passado, não por amor ao passado, mas para amar a Deus24. A memória do passado é assim objecto de confissão, e, com esta, é oferecida em sacrifício. Mas o que é que significa sacrificar a memória do passado? Por um lado, renúncia ética, pois a rememoração do passado não é, para Agostinho, mera representação, é também um acto de vontade, por vezes contrário à vontade de outrora25. Por outro lado, desapego, desprendimento, senão mesmo esquecimento do passado. Há um desejo vital de unidade, que se exprime no texto de Confessionum, do qual é inimigo, o passado presente na memória, porque este coincidia, para Agostinho, com o próprio domínio da dispersão26. Ora a memória também serve para esquecer. Se a confissão, como oblação sacrificial, visa certo esquecimento, então deveremos reconhecer que há também um acto de memória no fim da confissão interior, tal como há no fim na oração interior. Entretanto, e aquém das interpretações espirituais do acto de confissão interior, esta não esgotou ainda o seu sentido à luz da evolução da filosofia da linguagem de Santo Agostinho. Com efeito, a noção de fala interior, esboçada em De Magistro, é significativamente alterada e reelaborada em De Trinitate, pela teoria do verbo mental. Coloca-se-nos, então, naturalmente, a questão de saber até que ponto essa reelaboração da noção de fala interior, em termos de verbo mental, afecta o sentido da confissão interior. 20

Correlação necessária à perfeição da sabedoria e da imagem de Deus na mente: «Haec igitur trinitas mentis non propterea Dei est imago, quia sui meminit mens, et intelligit ac diligit se; sed quia potest etiam meminisse, et intelligere, et amare a quo facta est. Quod cum facit, sapiens ipsa fit.» DT XIV, 12, 15 (De Trinitate, texto da ed. beneditina reprod. em Bibliothèque Augustinienne 16, Paris, Desclée de Brouwer, 1955, p.386). 21 «Sed te laudet anima mea, ut amet te, et confiteatur tibi miserationes tuas, ut laudet te.» Conf. V, 1, 1. 22 «Deus meus, recorder in gratiarum actione tibi et confitear misericordias tuas super me.» Conf. VIII, 1, 1. 23 «Accipe sacrificium confessionum mearum de manu linguae meae, quam formasti et excitasti, ut confiteatur nomini tuo, […].» Conf. V, 1, 1. 24 «Recordari uolo transactas foeditates meas et carnales corruptiones animae meae, non quod eas amem, sed ut amem te, deus meus.» Conf. II, 1, 1. 25 «Et hoc erat totum, nolle quod uolebam, et uelle quod uolebas.» Conf. IX, 1, 1; «Cum enim malus sum, nihil est aliud confiteri tibi quam displicere mihi; […]» Conf. X, 2, 2. 26 «Amore amoris tui facio istud, recolens uias meas nequissimas in amaritudine recogitationis meae, ut tu dulcescas mihi, dulcedo non fallax, dulcedo felix et secura, et colligens me a dispersione, in qua frustatim discissus sum, dum ab uno te adversus in multa euani.» Conf. II, 1, 1; «Sed quoniam melior est misericordia tua super uitas (Ps. 62, 4), ecce distentio est uita mea, et me suscepit dextera tua (Ps. 17, 36; 62, 9) in domino meo, mediatore filio hominis inter te unum et nos multos, in multis per multa, ut per eum adprehendam, in quo et adprehensus sum, et a ueteribus diebus colligar sequens unum, praeterita oblitus, […].» Conf. XI, 29, 39. 5

AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625. Para tal, urge considerar como é que a própria noção de verbo mental relança o sentido da existência de uma fala interior. Como vimos, em De Magistro, falar interiormente era o mesmo que pensar nas palavras significantes, a fim de rememorar as próprias coisas por elas significadas27; falar interiormente era, assim, apenas pensar nas mesmas palavras que se dizem exteriormente, mas sem voz, nem som. A fala interior não era senão a fala exterior, privada da sua componente sensível. Esta privação advém à fala exterior, para que se produza a fala interior; esta só é possível, mediante a prévia constituição daquela. Deste modo, a fala interior é uma espécie de linguagem segunda, relativamente à fala exterior. Ora, o sentido desta relação entre fala exterior e interior inverte-se completamente na reelaboração de De Trinitate. Como? Nesta obra, a noção de fala interior coincide com a de verbo mental, concebido à imagem do modelo divino do Verbo, no âmbito da vida trinitária do homem interior28. Ora, o Verbo divino não é uma linguagem segunda, mas a linguagem primordial e inseparável da sabedoria de Deus, que está na origem de toda a realidade. Concebido à imagem do Verbo divino, o verbo mental não pode ser uma linguagem segunda relativamente à fala exterior. O verbo mental é que está na origem da fala exterior, pelo que é uma linguagem mais primitiva do que esta29. A palavra sonante deixa de significar directamente uma referência objectiva para passar a ser sinal sensível do verbo mental. Assim sendo, o verbo mental não pode já coincidir com a palavra pensada. O verbo mental é pensamento (cogitatio)30, sim, mas de algo anterior e condicionante da linguagem exterior, a saber, de conhecimento: tal como o Verbo primordial é expressão inseparável da sabedoria divina, o verbo mental é expressão indissociável de todo o humano conhecimento31. Como essa expressão é feita de pensamento, ou seja, de cogitação, o verbo cognitivo da mente é de natureza pensante, ou cogitativa, e, enquanto tal, o verbo mental, antes de pensar nas palavras significantes, pensa nas coisas conhecidas. Pode não haver palavras, mas é necessário que haja conhecimento prévio, para haver verbo mental. Este é, portanto, cognitivo e cogitativo: cognitivo, porque tem origem no conhecimento; cogitativo, porque é expressão cogitativa de conhecimento. 27

Vd. nota 15. Cf. DT IX, 6, 9 –12, 18; XV, 10, 17 – 16, 26. 29 «Quisquis igitur potest intelligere verbum, non solum antequam sonet, verum etiam antequam sonorum eius imagines cogitatione volvantur: hoc enim est quod ad nullam pertinet linguam, earum scilicet quae linguae appellantur gentium, quarum nostra latina est: quisquis, inquam, hoc intelligere potest, iam potest videre per hoc speculum atque in hoc aenigmate aliquam Verbi illius similitudinem, […].» DT XV, 10, 19; «Perveniendum est ergo ad illud verbum hominis, ad verbum retionalis animantis, ad verbum non de Deo natae, sed a Deo factae imaginis Dei, quod neque prolativum est in sono, neque cogitativum in similitudine soni, quod alicuius linguae esse necesse sit, sed quod omnia quibus significatur signa praecedit, et gignitur de scientia quae manet in animo, quando eadem scientia intus dicitur, sicuti est. Simillima est enim visio cogitationis, visioni scientiae. Nam quando per sonum dicitur, vel per aliquod corporale signum, non dicitur sicuti est, sed sicut potest videri audirive per corpus.» DT XV, 11, 20. 30 «[…], et verbum verum nostrum intimum nisi nostra cogitatione non dicitur, […].» DT XV, 15, 25. 31 «Aliter enim dicuntur verba quae spatia temporum syllabis tenent, sive pronuntientur, sive cogitentur; aliter omne quod notum est, verbum dicitur animo impressum, […].» DT IX, 10, 15; «Quando ergo quod in notitia est, hoc est in verbo, tunc est verum verbum, […].» DT XV, 11, 20; «Verbum autem nostrum illud quod non habet sonum neque cogitationem soni, sed eius rei quam videndo intus dicimus, et ideo nullius linguae est; atque inde utcumque simile est in hoc aenigmate illi Verbo Dei, quod etiam Deus est, quoniam sic et hoc de nostra nascitur, quemadmodum et illud de scientia Patris natum est.» DT XV, 14, 24. 28

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AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625. A confissão interior será, então, verbo mental, se for uma expressão cogitativa de conhecimento, isto é, se for pensar de conhecimento. Ora, a confissão, para ser uma espécie de fala interior, não pode ser senão da natureza do pensamento. A natureza pensante, ou cogitativa, da fala interior, que Agostinho já considerava em De Magistro, não se altera na noção de verbo mental, elaborada em De Trinitate. O que se altera é o conteúdo dessa fala cogitativa ou pensamento verbal, pois o verbo mental já não pensa em palavras, antes pensa natural e directamente naquilo que a mente conhece. A confissão, para ser verbo mental, será então a fala cogitativa ou o pensamento verbal de algum conhecimento. Resta saber se a confissão exprime algum domínio privilegiado de conhecimento. Vimos que a confissão não visa dar a conhecer algo a Deus, dado que o seu destinatário não é de uma natureza equiparável à mente. Podemos, no entanto, admitir que a confissão exprime um conhecimento propício ao amor de Deus na mente, que é o fim espiritual da confissão, e que esse conhecimento propício ao fim espiritual da confissão é o conhecimento de si. Esta hipótese deixa-se confirmar quer pelo exercício augustiniano da confissão, em Confessionum, quer pela elaboração do conhecimento de si, em De Trinitate. Nas suas confissões, Agostinho exprime o conhecimento que tem de si32, do qual a recordação do passado não é senão uma parte, a parte da dispersão de si. Como vimos, Agostinho não exprime esse conhecimento por apego ao passado, mas por amor de Deus. Ora, como também reconhece o autor de De Trinitate, não se pode amar aquilo que é completamente desconhecido33. Por conseguinte, a confissão não pode perseguir o seu fim espiritual, que é amar a Deus, se não incluir algum conhecimento de Deus. Mas como é possível tal conhecimento? Sem excluir outros caminhos possíveis, o conhecimento de si, tal como é tematizado em De Trinitate, emerge como uma mediação privilegiada para esse efeito. Segundo essa obra, há uma experiência fundamental e irrecusável da mente, que é a do conhecimento de si34. Este conhecimento dá conta de uma irredutível correlação entre memória de si, inteligência de si e amor de si35. Nesta experiência trinitária da mente, que constitui o conhecimento de si, configura-se a imagem da Trindade divina, na interpretação do bispo de Hipona36. O conhecimento de si é, por isso, mediação privilegiada do humano conhecimento de Deus. Essa experiência trinitária do conhecimento de si é uma experiência constituinte e primitiva da mente, pelo que é, como se disse, irrecusável, mas não se reflecte automaticamente no pensamento, ou na cogitação. O conhecimento de si é irrecusável, mas o seu reconhecimento pelo pensar, ou pela 32

«Confitear ergo quid de me sciam, confitear et quid de me nesciam, quoniam et quod de me scio, te mihi lucente scio, et quod de me nescio, tamdiu nescio, donec fiant tenebrae meae sicut meridies in uultu tuo.» Conf. X, 5, 7. 33 «Illud enim fieri potest, ut amet quisque scire incognita: ut autem amet incognita, non potest.» DT X, 1, 3. 34 «Vivere se tamen et meminisse, et intelligere, et velle, et cogitare, et scire, et iudicare quis dubitet? Quandoquidem etiam si dubitat, vivit: si dubitat unde dubitet, meminit; si dubitat, dubitare se intelligit; si dubitat, certus esse vult; si dubitat, cogitat; si dubitat, scit se nescire; si dubitat, iudicat non se temere consentire oportere. Quisquis igitur aliunde dubitat, de his omnibus dubitare non debet: quae si non essent, de ulla re dubitare non posset.» DT X, 10, 14. 35 «Memini enim me habere memoriam, et intelligentiam, et voluntatem; et intelligo me intelligere, et velle, atque meminisse; et volo me velle, et meminisse, et intelligere, totamque meam memoriam, et intelligentiam, et voluntatem simul memini.» DT X, 11, 18. 36 «Et est quaedam imago Trinitatis, ipsa mens, et notitia eius, quod est proles eius ac de se ipsa verbum eius, et amor tertius, et haec tria unum atque una substantia.» DT IX, 12, 18. 7

AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625. cogitação, não é forçoso nem imediato. De facto, fazer reconhecer pela reflexão o irrecusável conhecimento de si foi um propósito esforçada, gradual e reiteramente conseguido em múltiplos momentos do conjunto das obras de Santo Agostinho37. Quando se consegue esse reconhecimento pelo pensar, então, à luz da filosofia trinitária do homem interior, é gerado o verbo mental do conhecimento de si, o verbo da mente (verbum mentis) propriamente dito. Entendida como verbo mental, a confissão interior será, sobretudo, um verbo da mente, neste sentido de expressão cogitativa do conhecimento da própria mente. O verbo do conhecimento da mente não é, contudo, para Agostinho, um verbo solipsista, pois o verbo mental, em geral, não é uma linguagem privada da mente. O verbo mental é princípio de acção38. Um dos actos humanos exteriores que nele têm origem é a própria fala, visto que a palavra sensível é sinal do verbo mental. Este está na origem da fala, mas a fala não é expressão única e necessária do verbo mental. Pode haver verbo mental sem acção exterior39. A existência do verbo mental não depende de qualquer dos seus possíveis prolongamentos em actos externos. Conforme com esta autonomia do verbo mental, é a confissão interior: pode haver confissão interior sem dar lugar a confissão exterior. No entanto, não só Agostinho tem uma filosofia da linguagem que permite integrar o sentido da confissão interior como também ele dá testemunho do acto da confissão exterior, através da escrita das suas confissões. Cabe agora perguntar, retomando a interrogação inicial de De Magistro: o que é que Agostinho pretende efectuar, através da confissão escrita? Ou seja: que finalidade para a confissão escrita? Esta é uma forma de confissão exterior, mas a confissão exterior é oral, antes de ser escrita, atendendo à tradicional prioridade da fala em relação à escrita, ordem que Agostinho não questiona. Na verdade, a escrita não é, para o autor de De Magistro, senão uma representação da fala por sinais gráficos40. Assim sendo, a escrita é apenas uma linguagem segunda relativamente à fala, que não difere significativamente desta, nem quanto a possibilidades ou limitações expressivas nem quanto a finalidades. Por consequência, a confissão escrita não estará destinada a finalidades distintas das da confissão oral. Esta só pode realizar-se no âmbito da relação entre um falante e um ouvinte, que é a relação comum à situação de diálogo. Todavia, Agostinho concede que a escrita acrescenta à fala uma pequena vantagem, que é a de tornar a linguagem verbal acessível ao sentido da vista41. Associado a este alargamento da acessibilidade da linguagem verbal, vem 37

Momentos expressivos da formulação da experiência do cogito, reiterada e progressivamente apurada por Santo Agostinho, como sejam, para além do passo citado de DT, na nota 34, os seguintes: Contra Academicos III, 9, 19; De beata uita 2, 7; Soliloquia I, 1, 1; De libero arbitrio I, 7, 16; II, 3, 7; De uera religione 39, 72-73; 49, 97; De Ciuitate Dei XI, 26. 38 «Nihil itaque agimus per membra corporis in factis dictisque nostris, quibus vel approbantur vel improbantur mores hominum, quod non verbo apud nos intus edito praevenimus. Nemo enim volens alquid facit, quod non in corde suo prius dixerit.» DT IX, 7, 12. 39 «Est et haec in ista similitudine verbi nostri similitudo Verbi Dei, quia potest esse verbum nostrum quod non sequatur opus; opus autem esse non potest, nisi praecedat verbum: sicut Verbum Dei potuit esse nulla existente creatura; creatura vero nulla esse posset, nisi per ipsum per quod facta sunt omnia.» DT XV, 11, 20. 40 «Aug.: Quid? Cum uerba scripta inuenimus, num uerba non sunt? An signa uerborum uerius intelleguntur, ut uerbum sit quod cum aliquo significatu articulata uoce profertur?» DM 4, 8. 41 «Vox autem nullo alio sensu quam auditu percipi potest; ita fit ut, cum scribitur uerbum, signum fiat oculis, quo illud quod ad aures pertinet ueniat in mentem.» Ibid.. 8

AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625. outro de maior relevância: a escrita torna o discurso verbal acessível a inúmeros potenciais destinatários, para além dos circunstanciais ouvintes da fala. O autor de Confessionum mostra não ignorar esta vantagem da escrita, uma vez que ele destina expressamente a escrita das suas confissões a muitos possíveis leitores42. Não obstante o estilo coloquial da escrita de Confessionum, parecendo registar a fala de Agostinho em diálogo com Deus, a confissão escrita não é realmente um tal registo, porque, como vimos, a própria confissão interior, que está na origem da confissão escrita, não pode efectuar esse diálogo. Deus não poderá ser o destinatário da confissão escrita senão de forma análoga àquela em que é destinatário da confissão interior, isto é, de forma indirecta e relativa à finalidade que a confissão escrita visa realizar junto dos seus humanos destinatários. E que finalidade é, então, essa? É essencialmente a mesma finalidade que a confissão interior visa cumprir, que é cultivar o amor de Deus na mente. A finalidade é a mesma, mas é para cumprir-se em distintos destinatários: enquanto a confissão interior visa cultivar o amor de Deus na própria mente do confessionante, a confissão escrita visa cultivar esse mesmo amor na mente dos destinatários leitores. Tal é a finalidade que Agostinho atribui expressamente às suas confissões escritas43. Ao abrigo dessa finalidade superior, o autor de Confessionum nega o propósito de satisfazer qualquer vã curiosidade dos leitores pelos episódios da vida alheia44. Com vista ao descentramento de tal curiosidade, Agostinho adverte de que as suas confissões, destinadas ao público leitor, centram-se muito mais no presente do que no passado45, provendo, inclusivamente, à expressão actualizada da sua mundividência46, com inerentes dúvidas e perplexidades, buscas e interrogações. A fim de dar conta de tudo isso, a confissão augustiniana não podia confinar-se a um único género de discurso, como seja o declarativo, mas devia convocar todos os recursos expressivos de que se pode sortir a fala, como os actos de declarar e de interrogar, de exclamar e de invocar, de orar e de exortar. A preocupação de esclarecer, na própria obra, o propósito da escrita das confissões dá testemunho de que o autor de Confessionum não abandonara a interrogação inicial de De Magistro, sobre as finalidades da linguagem verbal, dado 42

Cf. Conf. X, 3, 3 – 4, 6. «Cur ergo tibi tot rerum narrationes digero? Non utique ut per me noueris ea, sed affectum meum excito in te et eorum, qui haec legunt, ut dicamus omnes: magnus dominus et laudabilis ualde (Ps. 95, 4). Iam dixi et dicam: amore amoris tui facio istuc.» Conf. XI, 1, 1. 44 «Quid mihi est cum hominibus, ut audiant confessiones meas, quasi ipsi sanaturi sint omnes languores meos? Curiosum genus ad cognoscendam uitam alienam, desidiosum ad corrigendam suam.» Conf. X, 3, 3. 45 «Quo itaque fructu, domine meus, cui cotidie confitetur conscientia mea spe misericordiae tuae securior quam innocentia sua, quo fructu, quaeso, etiam hominibus coram te confiteor per has litteras adhuc, quis ego sim, non quis fuerim? Nam illum fructum uidi et conmemoraui. Sed quis adhuc sim ecce in ipso tempore confessionum mearum, et multi hoc nosse cupiunt, qui me nouerunt, et non me nouerunt, qui ex me uel de me aliquid audierunt, sed auris eorum non est ad cor meum, ubi ego sum quicumque sum.» Conf. X, 3, 4; «Hic est fructus confessionum mearum, non qualis fuerim, sed qualis sim, ut hoc confitear non tantum coram te secreta exultatione cum tremore et secreto maerore cum spe, sed etiam in auribus credentium filiorum hominum, sociorum gaudii mei et consortium mortalitatis meae, ciuium meorum et mecum peregrinorum, praecedentium et consequentium et comitum uiae meae.» Conf. X, 4, 6. 46 Inspirada nas Escrituras: «Confitear tibi quidquid inuenero in libris tuis et audiam uocem laudis (Ps. 25, 7) et te bibam et considerem mirabilia de lege tua (Ps. 118, 18) ab usque principio, in quo fecisti caelum et terram, usque ad regnum tecum perpetuum sanctae ciuitatis tuae.» Conf. XI, 2, 3. 43

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AAVV, Actas do Congresso Internacional – As Confissões de Santo Agostinho 1600 anos depois: presença e actualidade, Organização do Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e Brasileira – Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, pp.613-625. que esta questão continuava a acompanhar a sua iniciativa criticamente assumida de escrita. De modo similar, o autor mostra não ter esquecido, em Confessionum, a crítica outrora feita, no diálogo De Magistro, à eficácia da linguagem verbal na expressão da interioridade da mente. Nesse diálogo, Agostinho tinha discriminado e analisado diversos casos de inadequação entre o discurso e a mente: casos de inadequação acidental entre as palavras proferidas e a mente do falante, como o da troca involuntária de palavras, ou o da recitação de um texto decorado por alguém a pensar noutras coisas ao mesmo tempo; casos de inadequação acidental entre as palavras ditas e a mente do ouvinte, quer por deficiente audição das palavras quer por equivocidade das mesmas quanto ao sentido; e ainda casos de inadequação intencional entre o discurso e a mente do falante, como o da exposição de doutrinas não assumidas, ou o da própria mentira47. Todos estes casos são apurados ao nível da fala, mas alguns deles, especialmente os dois últimos, são comuns à escrita, e todos eles denunciam, em De Magistro, que o discurso verbal é muito capaz de ser infiel à mente48. Nenhum destes casos, porém, ofereceu a Agostinho razão suficiente para retirar à linguagem verbal o papel de mediar a relação inter-subjectiva. Na filosofia crítica de De Magistro, a linguagem revela a sua falibilidade, como meio de comunicação e expressão de pensamento; depois de De Magistro, a linguagem passa a ser criticamente assumida como meio falível de comunicação e expressão falível de pensamento. A filosofia de De Trinitate, acusa esta consciência crítica da falibilidade da linguagem verbal, ao distinguir o verbo mental, como linguagem natural da mente, dos sinais exteriores do verbo mental, a linguagem convencional das palavras. O verbo mental não pode mentir, mas o discurso verbal exterior pode fazê-lo49. O autor de Confessionum não omite esta possibilidade, porquanto reconhece não poder demonstrar aos leitores a veracidade das suas confissões. Esta impossibilidade não constitui, porém, razão suficiente para deixar de escrevê-las, mas torna decisiva a atitude do leitor na compreensão das mesmas. Santo Agostinho sabe disso e por isso declara escrever para aqueles que se dispõem a crer nas suas palavras50. Cabe-nos a nós decidir encontrarmo-nos ou não entre os destinatários das confissões augustinianas.

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Cf. DM 13, 41-44. «Quare iam ne hoc quidem relinquitur uerbis, ut his saltem loquentis animus indicetur, […].» DM 13, 42; «Illa magis angunt, quae superius enumeraui, ubi uerbis liquidissime aure perceptis et Latinis non ualemos, cum eiusdem linguae simus, loquentium cogitata cognoscere.» DM 13, 44. 49 «Quid, quod etiam mentiri possumus? Quod cum facimus, utique volentes et scientes falsum verbum habemus: ubi verum verbum est mentiri nos; hoc enim scimus. Et cum mentitos nos esse confitemur, verum dicimus: quod scimus enim dicimus; scimus namque nos esse mentitos.» DT XV, 15, 24. 50 «Sed quia caritas omnia credit, inter eos utique, quos conexos sibimet unum facit, ego quoque, domine, etiam sic tibi confiteor, ut audiant homines, quibus demonstrare non possum an vera confitear; sed credunt mihi, quorum mihi aures caritas aperit.» Conf. X, 3, 3. 48

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