A Constituição Cidadã e o \'impeachment\' de 2016. Reflexões para um Estado Democrático de Direito.

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A Constituição Cidadã e o impeachment de 2016 Reflexões para um Estado Democrático de Direito Gabriela Carneiro de Albuquerque Basto Lima *

A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.

Carlos Drummond de Andrade, 1985

A narrativa que envolve o processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff tornou-se objeto de disputa em diversos âmbitos, e por diversos atores. Nas últimas semanas, conceitos tipicamente jurídicos ingressaram no vocabulário das ruas: devido processo legal, ampla defesa, crime de responsabilidade

– palavras-chave

tradicionalmente utilizadas em trabalhos acadêmicos, ou nas ementas dos acórdãos –, passaram a circular nos debates políticos e nas manchetes dos jornais. O fato de o momento de impeachment despertar paixões e debates acalorados não apenas não é novidade como é dado previsível àqueles que pensam o desenho constitucional. Há pouco mais de dois séculos, em 1788, no Federalist Paper de nº 65, Alexander Hamilton2 ao comentar os poderes do Senado, para fins de eventual impedimento, sublinha como tal processo, quando instalado, mobiliza os setores da sociedade, e alerta para o perigo de a aglutinação partidária terminar por prejudicar a correta apuração dos fatos, e conseguinte responsabilização: The subjects of its jurisdiction are those offenses which proceed from the misconduct of public men, or, in other words, from the abuse or violation of some public trust. They are of a nature which may with peculiar propriety be denominated political, as they relate chiefly to *

Advogada. Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito (FD/USP), [email protected]. Niterói – RJ, 5 de maio de 2016. Publicado no portal .

HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. American State Papers – The Federalist. Chicago: William Benton, 1952, pp. 198-200. 2

2 injuries done immediately to the society itself. The prosecution of them, for this reason, will seldom fail to agitate the passions of the whole community, and to divide it into parties more or less friendly or inimical to the accused. In many cases it will connect itself with the pre-existing factions, and will enlist all their animosities, partialities, influence, and interest on one side or on the other; and in such cases there will always be the greatest danger that the decision will be regulated more by the comparative strength of parties, than by the real demonstrations of innocence or guilt (grifo do autor).3

No Brasil de 2016, o entendimento que tem sido articulado para compreender a natureza do impeachment previsto na Constituição de 1988, e no que foi recebido da Lei nº 1.079/1950, é o de que possui natureza mista: jurídico-política.4 Isto é, que deve coexistir a observância de regras normativas pré-estabelecidas junto à liberdade de os congressistas, agentes políticos, apreciarem a matéria a eles submetida. Nas linhas que se seguem, busco contribuir para as reflexões constitucionais em construção. Primeiramente, defendo que há um problemático desnível entre o desenho constitucional do processo de impeachment e a sua prática verificada, isto é, que a decisão à qual se viu na Câmara não é nem jurídica nem política. Após, sugiro compreender o papel do Supremo Tribunal Federal a partir de noções elaboradas por pesquisadores que teorizaram a questão das cortes constitucionais em momentos de grave instabilidade política. Meu argumento central é o de que, diante de um cenário de crise, a autocontenção não contribui para a estabilidade da ordem constitucional.

“Os temas de sua competência são as ofensas que procedem da má conduta dos homens públicos, ou, em outras palavras, do abuso ou da violação de alguma confiança pública. Possuem natureza que se pode denominar, com propriedade peculiar, política, tendo em vista que se referem sobretudo aos danos causados diretamente à própria sociedade. Tais acusações, portanto, raramente deixam de agitar as paixões de toda a comunidade, e de dividi-la em partidos mais ou menos amigáveis ou hostis ao acusado. Em muitos casos, irá conectar-se com as facções pré-existentes, e irá mobilizar todas as suas animosidades, parcialidades, influência e interesse, em um lado ou no outro. E, nesses casos, sempre haverá o grande perigo de a decisão ser mais determinada pela força relativa das partes, do que pelas demonstrações concretas de inocência ou de culpa” (grifo do autor, tradução nossa). 3

Sobre a influência que o federalismo norte-americano viria a exercer no constitucionalismo dos séculos seguintes, especialmente o latino-americano: GARGARELLA, Roberto. Em nome da constituição. O legado federalista dois séculos depois. In: Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas, USP, Universidade de Sao Paulo. 2006. JARDIM, Afrânio S. O significado técnico da expressão “julgamento jurídico e político do impeachment” do Presidente da República. Disponível em: . Acesso em: 4 maio 2016. 4

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I. Nem jurídico nem político. A natureza teratológica do impeachment processado na Câmara dos Deputados. A democracia, na formulação clássica, não corresponde ao tipo ideal do governo dos melhores. Desde que a sua ideia foi elaborada pela primeira vez, na Grécia antiga, até a sua reinvenção após as revoluções americana e francesa, na modernidade, tradicionalmente suas desvantagens são colocadas diante do modelo aristocrático, onde os mais virtuosos dirigem a coisa pública.5 No entanto, diante das incontáveis divergências que atravessam uma sociedade, pode-se afirmar, com tranquilidade, que não seria possível construir um consenso sobre o que é ser “mais sábio”, ou ser “mais virtuoso”. E por existirem tais controvérsias, dentre outras, os homens votam. Parte-se do pressuposto igualitário de que cada cabeça equivale a um voto, e o modo encontrado para encerrar – temporariamente – o dissenso, notadamente sobre o melhor governo, é a disputa eleitoral.6 No Brasil, em especial, o direito de voto possui um significado mais sensível. Além do mencionado sentido de igualdade, clássico, a retomada do direito à eleição direta dos governantes, que culmina com as diretas para a Presidência da República, simbolizou o fim da ditadura militar de 1964, cuja repressão às liberdades marca um período de grave exceção para a democracia brasileira. A Constituição de 1988 proclama o Estado Democrático de Direito. Por uma via, busca-se a participação da cidadania, a quem é permitido organizar-se politicamente e, por outra, a garantia de seus direitos, frente a todo e qualquer arbítrio. O poder constituinte, titularizado pelo próprio povo, legitima o conteúdo constitucional; os representantes eleitos promulgam as leis, ou governam sob o seu império; o Judiciário garante a aplicação, a interpretação, daquelas, de maneira independente.7 É um sistema

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Sobre a trajetória da mencionada tensão, desde um ponto de vista teórico-político: FALCÃO, Luís A. Democracia e Justiça: sobre pedaladas e pedalinhos. Breviário de Filosofia Pública. Ano 5, n. 141, p. 105114, dez. 2015. 6

WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. New York: Oxford University, 1999. ______ The Dignity of Legislation. New York: Cambridge University, 1999.

A Constituição da República Federativa do Brasil dispõe, no parágrafo único de seu artigo 1º: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”; e, em seu artigo 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. 7

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complexo, que almeja conciliar estabilidade e transformações em uma sociedade plural, no caso brasileiro especialmente, atravessada por históricas desigualdades sociais. No entanto, a despeito do espírito constitucional, a crise se impôs.8 Mais do que isso, atores que possuem papel constitucionalmente definido, como juízes – que deveriam produzir equilíbrios, e lideranças políticas – que deveriam conduzir-se conforme as “regras do jogo”, passaram a inflamar o cenário nacional, conscientes e orgulhosos deste papel incendiário. O Presidente da Câmara Legislativa atua de maneira deliberadamente facciosa e vingativa. O Vice-Presidente do Executivo trabalha abertamente para a queda do governo com o qual se elegeu. O cerco desestabilizador que se impõe à Presidência da República cria sérias dificuldades ao seu funcionamento. Assistimos, em 2016, à tentativa de renascimento das eleições indiretas. 9 Por outro lado, sob a ótica da teoria constitucional, em um Estado Democrático de Direito, entendo que o grave problema revelado na votação de domingo, 17 de abril, onde decidiu-se pela admissão da acusação inicial, não reside na eventual falta de instrução de parlamentares. Não reside, tampouco, na falta de eleitores de muitos deputados, cujos mandatos derivam da votação massiva dos chamados puxadores de legenda. A primeira é elemento intrínseco à democracia, e a segunda é algo a ser refletido em sede de reforma política. O problema que se apreende da votação do dia 17 reside na maquiagem conferida ao processo: não houve qualquer lampejo de razoabilidade nos votos que aprovaram o processo de impeachment. Em nenhum momento a temática da denúncia, ou do relatório da comissão especial – para ser mais preciso – orientou a fala daqueles que a aprovaram. Perplexa, a cidadania deparou-se com um circo. Enredo este que poderia ser cômico, caso não envolvesse uma questão tão delicada.

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Sobre a questão da crise e do papel das instituições nessa quadra histórica: SILVA, Carlos Frederico P. Sob Judice: A Nova República em trânsito. Disponível em: . Acesso em: 18 abril 2016. 9

Após a conclusão do presente trabalho, há notícia de concessão, em sede monocrática, de liminar judicial de afastamento das funções parlamentares do Presidente da Câmara dos Deputados – Eduardo Cunha –, em razão de pedido apresentado em dezembro último pelo Procurador-Geral da República – Rodrigo Janot –, ao Ministro relator da Operação Lava Jato no STF, Teori Zavascki. A dinâmica do cenário é peculiar, e possui desdobramentos diários. A despeito de tais desdobramentos, porém, entendo que o argumento deste texto persiste, considerando-se a notória liderança exercida pela Presidência da Câmara dos Deputados, no período analisado, para a abertura e para o processamento do pedido de impeachment.

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O momento da admissibilidade da acusação, por mais que ainda não haja julgamento quanto ao seu mérito, é jurídica e politicamente relevante. Não pode ser menosprezado. A pseudo-deliberação, esta figura teratológica gestada pelo alto clero, terminou por remodelar um instituto constitucionalmente previsto, e de alta relevância para o Estado Democrático de Direito, em torpe instrumento de vingança pessoal e traição. Tal abismo, entre os pressupostos do impeachment e a prática evidenciada na Câmara, gera um grave impasse institucional: a Câmara não agiu nem sob um ethos jurídico – que exigiria uma fundamentação mais pormenorizada, ou técnica, da decisão coletiva apresentada –, nem sob o ethos político – que pressupõe deliberação entre os pares, isto é, uma dialética mínima entre argumentos relacionados ao tema. Diante da ausência de um discurso a ser extraído da sessão, portanto, em que pese a multiplicidade de falas, verifica-se um brutal silêncio político.

II. O assédio à ordem constitucional como dado histórico para refletir sua defesa. A ascensão da jurisdição constitucional no cenário brasileiro pós-1988 é um ponto bastante evidente aos observadores que acompanham a dinâmica institucional do país nos últimos anos.10 Diversamente do exemplo norte-americano, a Constituição brasileira prevê expressamente o papel de guardião constitucional ao STF, inclusive em sede de controle abstrato.11 Com o objetivo de compreender o contexto no qual se encontra a jurisdição constitucional brasileira, neste momento histórico peculiar, mobilizo as formulações

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Não é objetivo desse texto debater a questão da judicialização da política. Trata-se de tema complexo, e com ampla literatura dedicada ao assunto. Agradeço as indicações bibliográficas encaminhadas por Christian Schallenmueller, sobre a questão no Brasil: ARANTES, Rogério B. & COUTO, Cláudio G. Uma Constituição incomum. In: CARVALHO, M. A. R.; ARAÚJO, C.; SIMÕES, J. A. (orgs.). A Constituição de 1988: passado e futuro. São Paulo: Hucitec/Anpocs, 2009; TAYLOR, Matthew. Judging policy: Courts and Policy Reform in Democratic Brazil. Stanford: Stanford University Press, 2008 e O Judiciário e as políticas públicas no Brasil. Dados, vol. 50, nº 2. Rio de Janeiro, 2007; ARANTES, Rogério B. Constitutionalism, the expansion of Justice and the Judicialization of Politics in Brazil. In: SIEDER, Rachel; SCHJOLDEN, Line; ANGELL, Alan. The Judicialization of Politics in Latin America. New York: Palgrave Macmillan, 2005. 11

Vide artigo 102.

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articuladas pelos professores Mark Tushnet e Barry Friedman em suas obras,12 quando analisam a atuação da Suprema Corte norte-americana em momentos de crise, nomeadamente O Problema Joe McCarthy e a questão histórico-política do cumprimento das decisões em momentos de instabilidade. Após, retomo a especificidade do momento brasileiro, e passo às conclusões finais.

Macarthismo, ameaça a direitos e inércia judicial Segundo o verbete de autoria de Tiziano Bonazzi, em Dicionário de Política, a expressão Macarthismo, no contexto norte-americano, “indica a atitude de um anticomunismo absoluto, concretizada numa visão política maniquéia e numa verdadeira e autêntica perseguição aos homens e instituições declarados antiamericanos, porque ‘comunistas’”. Ainda, segundo a definição, “historicamente, o Macarthismo representa o auge da Guerra Fria na política interna dos Estados Unidos, coincidindo com os anos 1950-1954, em que finda a trajetória do senador republicano do Wisconsin, Joseph McCarthy (1907-1957)”.13 Quando é colocada em dúvida a capacidade de os corpos legislativos defenderem a Constituição, no debate norte-americano, o período macarthista representa um frequente exemplo crítico. Nele, impôs-se grave ameaça e ofensa a direitos e liberdades individuais, produzindo danos irreparáveis às vidas dos acusados; e cuja liderança expressiva, midiática, do Senador Joe McCarthy personificava o caráter paranoico das acusações de traição.

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TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from the Courts. New Jersey: Princeton University, 1999. FRIEDMAN, Barry. The History of the Countermajoritarian Difficulty, Part Two: Reconstruction’s Political Court. The Georgetown Law Journal, v. 91, pp. 1-65; 2002a. “O líder político e moral deste movimento foi o senador McCarthy, que lhe deu uma plataforma teórica e formulou a tese de que os insucessos americanos em política externa só se podiam explicar pela infiltração, no aparelho estatal, de espiões e agitadores comunistas ou de seus simpatizantes, que lhe solapavam sistematicamente a ação, a fim de permitir a vitória da União Soviética. Uma dura cruzada contra a conspiração interna era, por consequência, o pré-requisito de toda iniciativa de política externa. A vitória republicana nas eleições presidenciais e congressionais de 1952 levou McCarthy à presidência do poderoso Senate Committee on Government Operations, bem como do Permanent Subcommittee on Investigations, o que lhe permitiu realizar, durante todo o ano de 1953, uma série de inquéritos sensacionais sobre o comportamento de diversos funcionários de órgãos públicos”. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Coordenação da tradução: João Ferreira. 11ª edição, v. 1. Brasília: UNB, 1998; p. 725. 13

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No que se refere à relação entre o período e o posicionamento da Suprema Corte diante da ameaça constitucional, o professor Mark Tushnet (1999, p. 56), conhecido crítico da revisão judicial das leis, no trabalho Taking the Constitution Away from the Courts, situa como problema o fato de aquela não ter sido capaz de oferecer resistência frente ao avanço da onda de perseguição e de repressão: The Supreme Court at its best is clearly a lot better than Congress at its worst. But Congress at its best is better than the Court at its worst. The McCarthy era makes the point. The Supreme Court’s response to McCarthyism was weak, to put it generously. It upheld convictions of Communist party members for violating federal laws barring advocacy of revolution, and it upheld the broad outlines of the federal government’s efforts to screen out “security risks” from government employment. 14

Isto é, em um contexto histórico onde o Legislativo avançou abertamente contra direitos civis, orientado por uma interpretação particular do sistema constitucional onde o ideal de segurança interna fulminava garantias tradicionais do constitucionalismo norteamericano, Tushnet destaca – e questiona – a falta de capacidade de reação, de neutralização da ameaça, pela Suprema Corte.

A não-intervenção judicial em tempos de crise No entanto, o mais delicado exemplo histórico de equívoco em matéria de interpretação sobre direitos constitucionais, na trajetória norte-americana, refere-se à Dred Scott decision (1857), que viria a lançar uma marca sombria na legitimidade da Corte. Seu conteúdo é largamente conhecido por aqueles que estudam a questão da interpretação constitucional. Instada a pronunciar-se sobre direitos de liberdade em um caso específico, onde o ex-escravo Dred Scott, como parte, reivindicava tê-los conquistado após viver em estados da federação que não admitiam a escravidão, a Corte pronunciou-se formalmente, considerando prevalecer o direito de propriedade e o devido processo legal, de modo contrário ao alargamento do preceito da igualdade. Além disso,

“A Suprema Corte, em seu melhor, é manifestamente superior ao Congresso, em seu pior. Porém o Congresso, em seu melhor, é superior à Corte, em seu pior. A ‘era’ McCarthy ilustra o argumento. A resposta da Suprema Corte ao macarthismo foi fraca, para colocar de maneira generosa. Ela manteve condenações de membros do Partido Comunista por violarem leis federais que proibiam a defesa da revolução, e confirmou as linhas gerais adotadas pelo Governo Federal, no sentido de excluir os ‘riscos à segurança’ do serviço público” (tradução nossa). 14

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segundo a decisão, os negros sequer possuiriam o direito de postular em juízo, em razão da ausência de direitos subjetivos daqueles que não integravam a cidadania. Em oposição ao esperado, a determinação da Suprema Corte em não adentrar o debate político – que polarizava o cenário da federação – acabou por catalisar os ânimos, não pacificá-los. Seu conteúdo tornou-se objeto de largo criticismo, e um dos principais alvos da campanha presidencial de Abraham Lincoln. Em 1861, em seu discurso de posse, e cerca de um ano após o início da Confederação, Lincoln questionou os resultados políticos da decisão da Corte, já que o autogoverno do povo não estaria submetido a ela: I do not forget the position assumed by some, that constitutional questions are to be decided by the Supreme Court; nor do I deny that such decisions must be binding in any case, upon the parties to a suit; as to the object of that suit, while they are also entitled to very high respect and consideration in all parallel cases by all other departments of the government. And while it is obviously possible that such decision may be erroneous in any given case, still the evil effect following it, being limited to that particular case, with the chance that it may be overruled, and never become a precedent for other cases, can better be borne than could the evils of a different practice. At the same time, the candid citizen must confess that if the policy of the government upon vital questions, affecting the whole people, is to be irrevocably fixed by decisions of the Supreme Court, the instant they are made, in ordinary litigation between parties, in personal actions, the people will have ceased to be their own rulers, having to that extent practically resigned their government into the hands of that eminent tribunal. Nor is there in this view any assault upon the court or the judges. It is a duty from which they may not shrink, to decide cases properly brought before them; and it is no fault of theirs if others seek to turn their decisions to political purposes.15

Não é necessário estender-nos sobre a série de conflitos que se desdobraram a partir do citado período histórico, e que culminaram na guerra civil. Tampouco sobre a

“Eu não esqueço a posição adotada por alguns, no sentido de que as questões constitucionais devem ser decididas pela Suprema Corte; tampouco nego que tais decisões devem vincular os sujeitos envolvidos; assim como o objeto em discussão, enquanto eles se revestem de todo respeito e consideração em todos os casos paralelos nos departamentos do governo. E enquanto é evidentemente possível que tal decisão seja equivocada, de modo abstrato, ainda o efeito danoso de cumpri-la, sendo limitada a um caso particular que pode ser superado, e que pode nunca se tornar precedente para outros casos, é capaz de ser melhor suportado do que poderiam ser os males de uma prática distinta. Ao mesmo tempo, o cidadão sincero deve admitir que se a política do governo sobre questões vitais, que afetam todo o povo, está por ser irrevogavelmente determinada por decisões da Suprema Corte, no instante em que forem decididas, na litigância ordinária entre as partes, em ações entre pessoas, o povo terá cessado de ser seu próprio governante, tendo então praticamente renunciado sua autodeterminação às mãos do eminente tribunal. Tampouco há nesse argumento qualquer agressão à Corte ou aos juízes. É um dever do qual eles não podem se eximir, o de decidir sobre os casos a eles apresentados, e tampouco incorrem em alguma falta se terceiros buscam transformar tais decisões em fins políticos” (tradução nossa). First Inaugural Address of Abraham Lincoln. Disponível em: . Acesso em 4 maio 2016. 15

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decorrente edição das emendas constitucionais nº 13, 14 e 15, que formalizaram a igualdade e a cidadania aos negros, após a vitória da União. O ponto que gostaria de sublinhar, a partir da proposição historiográfica articulada pelo professor Barry Friedman, em seu trabalho sobre a trajetória dos conflitos entre judicial review e política nos Estados Unidos16, é o de que que o período que se seguiu, no âmbito da interpretação da Suprema Corte durante a reconstrução, foi influenciado não apenas pelo conteúdo da decisão Dred Scott, mas também, crucialmente, pela dificuldade política do cumprimento de suas decisões. A premissa geral da análise proposta por Friedman (2002a, p. 2) materializa-se na ideia de que o excesso da independência judicial pode ameaçar a soberania popular; já sua fraqueza pode pôr em risco as liberdades individuais. E, para compreender essa dinâmica é necessário entender como a política afeta o judicial review. Sobre o período que se seguiu à decisão do caso Dred Scott, Friedman (2002a, p. 20-21) entende que a crítica ao seu conteúdo acabou por inviabilizar a ascensão da supremacia da revisão judicial das leis. As decisões da Suprema Corte passaram simplesmente e não ser cumpridas, tornando-se em alguns casos manifestamente ineficientes: Perhaps the best measure of the Court’s relatively weak position was the lack of any strong feeling in favor of “judicial supremacy” – the notion that decisions of the Supreme Court would bind the other branches, particularly beyond the parameters of a particular case. Dred Scott had seriously wounded any nascent sense of judicial supremacy; Lincoln’s challenge to the decision rested specifically on a denial that the Court could bind the other branches for all time. During wartime, the Court had not proven particularly effective at protecting constitutional liberties, as Ex Parte Merryman made clear. In Merryman, the Chief Justice, on Circuit, issued a writ of habeas corpus to produce a prisoner held in military custody, allegedly for fomenting insurrection. Pursuant to presidential orders, the commanding officer declined to comply. Taney’s opinion in Merryman was a bow to his inefficacy: “I have exercised all the power which the Constitution and 16

Além do artigo citado na nota nº 12, compõem o trabalho: FRIEDMAN, Barry. The History of the Countermajoritarian Difficulty, Part One: The Road to Judicial Supremacy. New York University Law Review, v. 73, pp. 333-433; 1998. ______. The History of the Countermajoritarian Difficulty, Part Four: Law’s Politics, University of Pennsylvania Law Review. v. 148, pp. 971-1064; 2000. ______. The History of the Countermajoritarian Difficulty, Part Three: The Lesson of Lochner, New York University Law Review, v. 76, pp. 1383-1455; 2001. ______. The Birth of an Academic Obsession: The History of the Countermajoritarian Difficulty, Part Five. Yale Law Journal, v. 112, pp. 153-259; 2002b.

10 laws confer upon me, but that power has been resisted by a force too strong for me to overcome”. 17

Nesse sentido, considerando-se o recorte em análise, o que se pode depreender é que a Corte Constitucional necessita legitimar-se primeiramente pelo conteúdo de suas decisões, mas também carece de uma estrutura de Estado que as faça cumprir. Quanto maior a crise, mais complexa torna-se a manutenção de sua autoridade. Não é sem motivos, portanto, que a citação mais recorrente de Alexander Hamilton (1952, p. 230), no âmbito da teoria constitucional, diz respeito a sua definição de Judiciário como o Poder menos perigoso, no Federalista de nº 78, já que os juízes não comandam as armas, como o Executivo, tampouco o erário e a produção das leis, como o Legislativo.18

Conclusões A história do constitucionalismo é a história do homem em busca da liberdade. Como expressa Norberto Bobbio: “A liberdade pessoal é, historicamente, o primeiro dos direitos a ser reclamado pelos súditos de um Estado e a obter proteção”. Ainda: “O

“Talvez o maior sintoma da posição relativamente fraca da Corte tenha sido a ausência de qualquer sentimento forte a favor da ‘supremacia judicial’ – a noção de que as decisões da Suprema Corte vinculariam os demais Poderes, além dos aspectos relacionados ao caso particular. Dred Scott prejudicou seriamente qualquer sentimento em ascensão a favor da supremacia judicial; O questionamento de Lincoln à decisão residia especificamente na negativa de que a Corte pudesse vincular os demais Poderes, para sempre. Durante o período da guerra, a Corte não se mostrou particularmente eficiente na defesa de liberdades constitucionais, como Ex Parte Merryman demonstrou. Em Merryman, o Chief Justice, no Circuito, concedeu um habeas corpus para que se apresentasse um prisioneiro mantido em custódia militar, por, supostamente, fomentar insurreição. Em obediência às ordens presidenciais, o comandante se recusou a cumpri-la. A opinião de Taney, em Merryman, foi um reconhecimento de sua ineficácia: ‘eu utilizei todo o poder que a Constituição e as leis me conferem, mas esse poder encontrou uma resistência muito forte para eu superar’” (tradução nossa). 17

“Quem quer que considere atentamente os distintos departamentos do poder irá perceber que, em um governo onde um está separado do outro, o Judiciário, a partir da essência de suas funções, sempre será o Poder menos perigoso aos direitos políticos da Constituição; porque ele sempre será menos capaz de perturbá-los ou de causar-lhes dano. O Executivo não apenas dispensa as honras, mas sustenta a espada da comunidade. A legislatura não apenas comanda o erário, mas prescreve as regras pelas quais os deveres e os direitos de cada cidadão são regulados. O Judiciário, ao contrário, não tem qualquer influência sobre a espada ou o erário; nenhum comando da força ou das riquezas da sociedade; e não pode tomar qualquer resolução ativa. Talvez seja sincero dizer que não tem nem força nem vontade, mas apenas juízo; e depende em última instância do auxílio das armas do Executivo inclusive para a eficácia de seus julgamentos” (grifo do autor, tradução nossa). 18

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reconhecimento gradual das liberdades civis, para não falar da liberdade política, é uma conquista posterior à proteção da liberdade pessoal”.19 E como o homem não é apenas pensamento, mas também carne, vive em seu tempo. Em um século, mobiliza-se contra a escravidão dos negros. Em outro, contra a exploração da mão-de-obra operária. Países colonizados rompem com os antigos impérios, e novos impérios nascem. A noção de cidadania é ampliada, incorporando a voz e o voto das mulheres, os direitos das crianças, dos indígenas, dos imigrantes. Onde há opressão e arbítrio, nasce a resistência e o novo direito. A Constituição de 1988 é fruto de sua época, trazendo em si aspirações de um Brasil mais igualitário, mais cidadão, livre e político. Absorveu em sua linguagem tanto o vocabulário tradicional dos direitos, de suas gerações ou ondas, como também buscou oferecer uma saída democrática aos conflitos que perpassam a sociedade brasileira. A democracia não é o modelo que neutraliza, ou que tenta diminuir os conflitos, mas justamente o que os institucionaliza, absorvendo-os, e reconhecendo na população autonomia política para interferir nos caminhos do governo ao qual submete-se, sem recursos de violência. Neste sentido, é preciso sublinhar que nenhuma exceção é vantajosa. Como observadores da história, e do direito constitucional, sabemos que toda porta aberta à exceção termina por ser derrubada. No Brasil, após a edição do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, conhecido por ser o mais autoritário da ditadura, veio o seguinte – que interferiu no STF. No caso presente, onde o processo de impeachment impõe uma crise institucional, já que não é possível extrair nem discurso jurídico nem discurso político da decisão da Câmara,20 verifica-se o seu objetivo oculto de romper com a igualdade do voto, e com a 19

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 9ª reimpressão, p. 112. 20

Observo que o conceito de política adotado para desenvolver o argumento deste trabalho pressupõe deliberação entre pares e produção de discurso razoável. Ainda, sobre o conceito de poder político: “Há várias formas de poder do homem sobre o homem; o poder político é apenas uma delas. Na tradição clássica que remonta especificamente a Aristóteles, eram consideradas três formas principais de poder: o poder paterno, o poder despótico e o poder político. Os critérios de distinção têm sido vários com o variar dos tempos. Em Aristóteles se entrevê a distinção baseada no interesse daquele em benefício de quem se exerce o poder: o paterno se exerce pelo interesse dos filhos; o despótico, pelo interesse do senhor; o político, pelo interesse de quem governa e de quem é governado, o que ocorre apenas nas formas corretas de Governo, pois, nas viciadas, o característico é que o poder seja exercido em benefício dos governantes”, vide Política, verbete de autoria de Norberto Bobbio (1998, p. 955).

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liberdade política de a cidadania brasileira eleger o seu próprio governo. Rompe, portanto, com a legalidade democrática. O projeto que supostamente orientará o novo governo, lançado em dezembro último, em nenhum momento sequer foi submetido a exame e a debate da opinião pública, tampouco à aprovação do povo – do qual todo poder emana. Cumpre observar, ainda, que o instituto do impedimento foi concebido para servir aos interesses da cidadania, não contrariá-los. Constitui em remédio constitucional delicado, que deve ser utilizado com seriedade e sob claro e amplo debate público de conteúdo. O notório circo que o tem conduzido não fulmina apenas a moralidade do processo, mas elimina em cheio dois direitos políticos fundamentais da população: o de eleger o seu governo e o de, no caso da existência de denúncia de crime de responsabilidade, acompanhar a devida apuração. No sistema brasileiro, democracia e direitos possuem conexão vital: um não existe sem o outro. A narrativa que coloca as leis independentemente da cidadania, como infelizmente ainda é capítulo comum de alguns manuais, não foi a acolhida pela Constituição de 1988, a “Constituição Cidadã”. Por outro lado, talvez seja importante refletir que papel cabe ao Judiciário diante da crise instalada entre o Executivo e o Legislativo. Com os exemplos históricos mobilizados, busquei demonstrar como a postura de não-interferência pode levar a efeitos inesperados. Notadamente, aos de abuso contra direitos, por parte do Legislativo, e aos de catalisação dos ânimos, quando há disputa no campo político. Cabe destacar, ainda, o papel conferido ao Senado pelo desenho constitucional federalista. Diversamente da Câmara dos Deputados, que representa o próprio povo, e por isso é mais suscetível à pressão política, o Senado representa os estados da federação, e possui natureza conservadora, destinada a contrabalançar os ímpetos da efervescência partidária. De modo teórico, pode-se dizer que na primeira câmara impera o princípio democrático e, na segunda, o princípio republicano. E, neste sentido, é no Senado que se desenvolve o governo da opinião. Espera-se, portanto, que a condução do processo nesta Casa se dê de modo menos temerário. Finalmente, resgatar a relevância da democracia para a narrativa constitucional é, também, retomar a importância da legitimidade democrática das leis. Em uma perspectiva psicológica, como definiu Kelsen, a democracia orienta a disposição para a obediência.

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E, tendo-se em vista que não há sociedade sem conflito de interesses, a democracia consiste na única forma política que resolve conflitos de maneira pacífica. 21 A narrativa constitucional que se orienta pelo Estado Democrático de Direito, portanto, não possui natureza meramente dogmática, mas ampara-se sobre a crença de que toda lei, posta, deriva do pensamento humano livre – e tem nele destinatário. Além disso, em especial leitura da Constituição de 1988, e de sua perspectiva inclusiva, é necessário que interpretemos toda legalidade à luz da integração política, da dignidade humana, dos preceitos da igualdade e da liberdade – de pensamento, de associação e de manifestação. Os caminhos que levam ao aprofundamento do Estado Democrático de Direito, por conseguinte, não podem interligar-se aos que têm por Norte o autoritarismo, a exceção, o ethos da vingança e da traição; sob pena de nos perdermos no caminho.

Bona est lex si quis ea legitime utatur A boa lei é a que se faz uso legítimo

21

KELSEN, Hans. A essência e valor da democracia. A democracia, 2ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 23-107.

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