A CONSTITUIÇÃO DA PROSTITUTA COMO SUJEITO DE DIREITO PELO ESTUDO DOS MANUAIS JURÍDICOS

June 6, 2017 | Autor: J. Cunha Moura | Categoria: Ensino Jurídico, Crise do Ensino Jurídico, Prostituição, Prositution
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III Encontro Maranhense sobre Educação, Mulheres e Relações de Gênero no Cotidiano Escolar III Simpósio Maranhense de Pesquisadoras (es) sobre Mulher, Relações de Gênero e Educação Masculinidades nas Relações de Gênero no Espaço Escolar

A CONSTITUIÇÃO DA PROSTITUTA COMO SUJEITO DE DIREITO PELO ESTUDO DOS MANUAIS JURÍDICOS João Carlos da Cunha Moura* SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 A Formação da prostituta como sujeito de direito; 3 Aspectos dos ensinamentos em manuais jurídicos e as implicâncias no mundo fático; 4 Considerações finais; REFERÊNCIAS.

RESUMO: O artigo aqui apresentado tem o objetivo de investigar a formação da prostituta como um sujeito de direito moderno. Busca, ainda, discorrer sobre as relações de poder que controlam a sexualidade do sujeito, analisando a constituição das prostitutas como sujeito de direito dentro dos manuais jurídicos e a implicância destes ensinamentos nas práticas sociais. O método acatado é o método dedutivo visando a esclarecer o conteúdo partindo de premissas, chegando-se à conclusão de que a formação do sujeito moderno associado aos controles pelo poder e às disciplinas, podemos entender que em uma sociedade onde as regras morais não interferissem na constituição dos sujeitos de direito, a prostituição pode ser considerada um exercício livre de direitos, constituindo-se como uma atividade qualquer outra atividade na qual o corpo é reconhecido como a ferramenta primordial no desempenho. Palavras-chave: Sujeito de direito, Prostituição, Manuais jurídicos.

1 INTRODUÇÃO

A observação do Direito como um fenômeno social e a assimilação desta área do conhecimento como parte das Ciências Sociais e das Ciências Humanas possibilita o desenvolvimento de investigações sócio-jurídicas. Nesse sentido, considera-se essencial situar estudos interdisciplinares, que buscam reunir os conhecimentos das áreas de Direito, Sociologia, Economia, Antropologia, Ciência Política e Educação, com o objetivo de investigar a o máximo dos contextos de realidade social com base em métodos e técnicas de pesquisa que auxiliem na busca por uma pesquisa de qualidade. Perquirir os processos, a administração e a organização da sociedade moderna torna-se mais útil para os estudos de efetividade da formação de identidade e da subjetividade dos indivíduos do que a análise rigorosa de normas jurídicas, pois leis, normas, regras e reformas legislativas não possuem o condão de, por si só, resolver os problemas da execução *

Estudante do 10º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. E-mail: [email protected]

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da justa medida dos interesses de cada um em suas individualidades e diferenças, se na mesma medida ainda existem também problemas sociais e institucionais. O presente artigo reflete sobre a interferência das regras jurídicas na autonomia do sujeito na modernidade e explica que o sexo que está no núcleo de análise dos outros problemas da sociedade, principalmente no que tange àquelas que simplesmente preocupam-se em moldá-lo moralmente. Em virtude disto, procurar-se-á investigar de que forma a prostituição pode ou não ser considerada um exercício de direito sobre o próprio corpo. Em que medida pode o Estado, com finalidade apenas de regramento moral, exigir que as pessoas se comportem desta ou daquela maneira. Em qual de suas atividades se insere esta tarefa.

2 A FORMAÇÃO DA PROSTITUTA COMO SUJEITO DE DIREITO

A constituição da prostituta (ou do homem em situação de prostituição) como sujeito de direito assim, é discutida em demasia por movimentos socais e jurídicos sempre em torno de uma agonia provocada pelas questões sexuais e não pelas pessoas atingidas em si. FOUCAULT (2001, p. 379-380) explica que estes sujeitos são analisados como sujeitos de anormalidade, posto que seus corpos sejam considerados como amorfos e sem sentido. Uma vez que a prostituição é cunhada dentro de um sentido que só é exercido por uma pessoa sem considerações morais prementes dentro de si, isto é, que a prostituição acaba sendo uma consequência nefasta das aberrações de conduta impostas ao sujeito pelo que o saber-poder considera normal e anormal é que a prostituição precisa ser controlada. Foucault distingue – não sem certa estranheza, pois evidentemente eles não pertencem ao mesmo registro – dois modelos de “poder”: um, diz ele, corresponde à representação jurídico-política tradicional, definidas pelas teorias contratualistas em que regras determinam o obrigatório, o permitido e o proibido; o outro, que se baseia, de maneira conjuntural, em impulsos da sexualidade, irrompe em técnicas de comportamento instáveis e polimorfas. Mas, seja qual for o aspecto que adote, a particularidade de todo poder é enfrentar outro poder, portanto rivalizar com ele. (GOYARDFABRE, 2002, p. 190)

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As preocupações com os temas de prostituição e comércio sexual se refletem apenas no âmbito acadêmico e literário (mesmo que dentro do contexto de movimentos sociais), não levando em consideração o aspecto volitivo e as relações entre os sujeitos. Este machismo (paternalismo) é o que imprime estas moralidade e imoralidade às condutas dos sujeitos da prostituição e do comércio sexual. Principalmente no quesito de relevância feminina as condutas inseridas em contextos de depravações (prostituição, sedução etc.), são inseridas em desordem das condutas sociais e potenciais motivos de abalos na instituição mais sagrada da sociedade: a família. Por tal perigo moral, as práticas sexuais dentro da família deveriam ser reprimidas, pois a família desestruturada lançaria a mulher à prostituição. Assim, não importa a classe na qual a prostituta mulher se liga à prostituição, o importante é que ela esta afetando severamente a moral social. É por isso que nestes casos a criminalização feminina é sempre ligada a aspectos sexuais que a coloquem em estado de honesta ou depravada. (ZAFFARONI, 2005, p. 145). O que se convencionou denominar um “sistema de direitos”, na verdade privilegia maneiras de arquitetar juridicamente um arcabouço de limitações de escolhas e vontades que acabam por tolher a liberdade criativa do sujeito. A cristalização das regras em códigos de normas cristaliza também as forças de vida, sendo observada de perto pelas instituições de poder em toda e qualquer relação existente. Sob um discurso de proteção do perigo, o discurso paternalista jurídico resta periclitante para o próprio exercício da liberdade do sujeito (GOYARD-FABRE, 2002, p. 194). Curioso, então, é perceber que o movimento antiprostituição ou antisexo é sempre ligado à proteção da feminilidade, como se esta atividade fosse sempre designada para promover perversões de cunho masculino. Como FOUCAULT (1988, p. 28) quer demonstrar, é o sexo que está no núcleo de análise dos outros problemas da sociedade. Assim o interior do problema econômico e político da população está inserido no sexo (ou seria no discurso sobre o sexo?). Desta maneira, é necessário analisar cada ponto que se liga aos aspectos demográficos e de família (taxas de natalidade e nascimentos de relações legítimas dentro de 3

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matrimônios); estas características, então, seriam mais bem administradas se a mulher estivesse sob o pronto policiamento das instituições, pois são elas as geradoras das sementes e devem se manter longe de qualquer forma de perversão sexual, para não correr riscos. Dentro desta concepção masculinizada antes de se formar um “sujeito prostituta”, deve-se ter a formação de um “sujeito mulher”. Esta última casta e pura em contradição com a perversidade e impudicícia da outra. Bem neste ponto fica uma estrita responsabilidade da mulher pela prostituição. Por isto é que o homem não entra, em geral, nas estatísticas e conhecimentos sobre a prostituição. Por ser considerada eminentemente feminina, a prostituição masculina acaba ligada ao homossexualismo. Visto que a conjugalidade feminina é aspecto legítimo para o ato sexual (característica esta não levada em consideração ao homem), as mulheres acabam sendo privadas daquilo que as torna “um sujeito de direito”, fora deste âmbito conjugal. (FOUCAULT, 1985, p. 169). Assim, mulher é prostituta (puta) quando em matrimônio, acaba traindo o marido, mesmo não percebendo qualquer valor pelo ato, mas este ato é identificado como comércio sexual; e o homem não é considerado em condição de prostituição a não ser para a satisfação de outro homem, pois quando trai sua esposa é ou o explorador da fragilidade mulher ou o aproveitador adorado pelos outros machos por cumprir seu papel de homem conquistador (ainda mais se receber dinheiro por isto). Neste aspecto de formação alienada do sujeito, que não se forma em si, mas é formado por uma infindável rede de vigilância, controle e incitação contínua de sua culpa pelo mal que causa à sociedade (e não do que lhe é causado) que se arquiteta um edifício de normas legais e morais, as quais são as maneiras que as instituições tem para a produção de administrações e regulamentações sobre as diversas atividades dos sujeitos. O sujeito moderno passa a ser um sujeito jurisdicionado e juridicizado. Jurisdicionado, porque passa por um modelo que lhe diz em que condições deve-se agir, contratar, enfim situações e circunstâncias que lhe garantem uma vida dentro dos contextos jurídicos e consequntemente dentro do Direito. Juridicizado, porque para ser íntegro em sua individualidade, só o será caso esteja inserto no que se impõem como condições mínimas para o exercício de seus direitos. A qualidade de 4

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sujeito de direito é definida pelo que se lhe reconhece e atribui nas normas codificadas. Entretanto, não pode ser uma juridicização objetiva, pois deve ser vinculada à vontade prática da razão do indivíduo. (GOYARD-FABRE, 1999, p. 348). A concepção kantiana que resta utilizada para deslegitimar a atividade de prostituição argumenta que o sujeito seria utilizado como meio para a consecução de um fim (e não um fim em si mesmo), um objeto do prazer sexual de outro. Errônea, todavia, na medida em que todo e qualquer sujeito é ferramenta de utilização do outro para consecução de um fim deste outro. A alienação de mão-deobra e serviços não é outra coisa senão a grande utilização do outro como meio para as finalidades do mundo capitalista (MARX, 1996a, p. 296). A constituição de um sujeito moderno não passa pela identidade que o próprio indivíduo tem de si mesmo, mas pelo que ele é levado a identificar como seu. É necessário que este sujeito saia da obscuridade que lhe é lançada para fazer parte de um locus legítimo, que o sujeito saia de sua exterioridade para centrar-se para dentro de si, fazendo com que as normas e as normalidades estabelecidas estejam presentes em sua constituição. (BIRMAN, 1999, p. 156). Não por outra razão, mulheres prostitutas devem se reerguer das trevas para adentrar a luz das santidades de mãe e de pudica. É porque a vagina continua a ser alicerçada em grau sacro que a prostituição continua estigmatizada às mulheres e assim “tanto na consciência comum quanto no Direito, que literalmente exclui que as mulheres possam escolher dedicar-se à prostituição como trabalho” (BOURDIEU, 2002, p. 20). Por representar o novo e, assim, livrar os sujeitos (prostitua e cliente) dos grilhões das instâncias de poder, a possibilidade de viver sua sexualidade plenamente, a prostituta representa o lúdico, o prazer ou qualquer outro personagem no imaginário do cliente. Não é necessariamente o sexo que está em jogo neste ponto, mas os locais, em geral, a que a prostituição encontra seu locus. Festas, folias, danças, enfim, todo o aspecto de diversão ao qual a prostituição se encontra ligada acaba por impor aos agentes que praticam a atividade características que não se coadunam com a forma de viver na sociedade capitalista. Como diz MARX 5

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(1996b, p. 161) uma sociedade que exige do seu vivente o máximo de trabalho e de produção para outro que não si mesmo, e que não tem valor quando sai de si. Em busca da conceituação da atividade de prostituição para que se chegue a um resultado perfeito quando da aplicação em um caso concreto, os juristas tentam fechar conceitos objetivos em seus manuais para que isto facilite a absorção por parte da comunidade acadêmica. Com o intuito de deslegitimar a atividade (e este é um dos principais objetivos quando se fala em prostituição), os manualistas vão buscar formas de definir a prostituição, sempre ligando suas condições a degradação do ser humano, principalmente da mulher.

3 ASPECTOS DOS ENSINAMENTOS EM MANUAIS JURÍDICOS E AS IMPLICÂNCIAS NO MUNDO FÁTICO

Assim é que MIRABETTE (2001, p. 458), comentando a antiga redação do art. 228 do Código Penal Brasileiro, afirma que a prostituição se fabrica não necessariamente dentro de um fim lucrativo, entregando-se a prostituta por desregramentos sociais inerentes a si ou por pura ninfomania. DELMANTO (1988, p. 411), coloca a prostituição como o mero comércio habitual do corpo (sem levar em conta suas complexidades), e cita que tanto homens quanto mulheres podem se incluir neste conceito. DAMÁSIO DE JESUS (1993, p. 145), traz à tona as mesmas características sobre habitualidade e comércio sexual para indiscriminado número de pessoas, para caracterizar a prostituição. MAGALHÃES NORONHA (1998, p. 210-211) assinala que a prostituição não se sobrepõe às marcas de definição pontual e sim de uma forma de atividade que deveria ser vista pelo Estado e este deveria atuar sobre a prostituição conforme suas formas de agir. Destarte, haveria três formas de um Estado, a depender do seu ideal de “bem comum” para a sociedade, tratar a prostituição. A primeira forma é a de regulamentação, na qual o Estado busca regulamentar a atividade, aplicando locais, formas e normas específicas para o exercício. A segunda seria a do aboliconismo, ou seja, não haveria intervenção e, consequentemente, nem vedação, nem regulamentação especial. A última forma é a de vedação, como ocorre, por 6

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exemplo, em alguns Estados nacionais de orientação religiosa. Salienta ainda que a prostituição é algo baixo e vil, motivado por uma lascívia doentia da mulher e que a prostituição deve ser assimilada tanto a mulheres que usem o sexo para lascívia própria quanto para aquelas que usam o sexo como meio de sustento. Em caminho diverso, GRECO (2009, p. 571) diverge do pensamento acima e afirma que a prostituição apenas dar-se-á quando houver o concreto comércio do corpo, devendo haver uma relação de compra e venda, não importando prostituição aquela pessoa que se entrega sexualmente a título gratuito a qualquer pessoa (seja por transtorno psicológico ou por mera satisfação sexual). Não importará, neste caso, se há ou não o contato físico, posto que o cliente deseja a satisfação de prazeres de natureza sexual e mesmo que durante o serviço não haja qualquer contato físico, as características da prostituição estarão lá presentes. São poucos os autores de manuais jurídicos que se debruçam sobre os temas da prostituição e analisam apenas os artigos referentes à atividade (cujos dispositivos sofreram recente alteração em suas redações) de forma objetiva, sem aprofundar as condutas subjetivas, dos sujeitos ativos e passivos, voltando ao velho positivismo de que premissas maiores e premissas menores resultariam na cominação de determinada pena. Na redação original do Código Penal Brasileiro, havia um capítulo tratava da exploração de mulheres (neste termo) em relação à prostituição. Era o Capítulo V que listava os crimes “do Lenocínio e do Tráfico de Mulheres”, fundado sob um aspecto de gênero na formulação dos dispositivos que se continham nesse capítulo. Assim, vinculou-se por muito tempo a prostituição a uma prática puramente feminina, sendo obscurecida a esta prática por homens. Buscando um discurso mais abrangente e que fosse mais igualitário de direitos, o termo “mulheres” foi retirado e inserido o termo “pessoas”, com o objetivo de incluir além das mulheres, homens e crianças (GRECO, 2009, p. 561). A prostituição não é crime no Brasil, entretanto as condutas tipificadas no Código Penal Brasileiro que a ela se ligam (para exploração, favorecimento ou tráfico) são colocados a dois níveis de fundamentação que dão suporte ao crime. O primeiro é um suporte moralista, que afirma que a prostituição é algo ruim e mau 7

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para a sociedade. O segundo alicerce é paternalista, e acaba por adentrar na seara de um direito individual do próprio sujeito. Não obstante a proibição seja dirigida a quem explore a atividade, esta proteção é estabelecida de forma a proteger (paradoxalmente) a prostituta de ter o que ela deseja, sob um argumento de que é o Estado que sabe o que é melhor para o sujeito, ou seja, o melhor é não ser prostituta (ESTELLITA, 2007, p. 337). Os artigos que se seguem nessa seara não se diferem muito das redações anteriores e acabam apenas por aumentar a abrangência em relação às potenciais vítimas de exploração da prostituição. Inclusive alguns dos atos praticados acabam por se coadunar àquelas novas formas de comércio sexual que hoje se observam na sociedade. Assim, por exemplo, o artigo 228 do Código Penal Brasileiro que antes estava sob a rubrica de “Favorecimento da prostituição”, hoje se inscreve sob o sinal “Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual”. Ou seja, o comércio sexual no Código Penal Brasileiro teve sua concepção alargada, conforme as tendências do comércio sexual atual. O artigo 229 do mesmo diploma legal, que se traduz na proibição de manter uma “casa de prostituição”, parte do raciocínio de que se ser prostituta já é ruim, os lugares frequentados e que prestam auxílio para o exercício da atividade não seriam diferentes. O mesmo ocorre com o crime de rufianismo, disposto no artigo 230 do Código Penal Brasileiro, ou seja, o fundamento paternalista acomete a norma na medida em que tem o escopo de impedir que a prostituta possa ter um “gerente” ou alguma pessoa que ela mesma possa contratar para agenciar na escolha de clientes mais confiáveis. As ideias impostas não são declaradas, por óbvio, mas o intuito é demover o sujeito da ideia de participar da atividade sob o duplo argumento de que: i) a prostituição é ruim (moralismo) e; ii) proibir alguém de ter lucro com ela é uma forma de impedir que alguém se torne prostituta, para o seu próprio bem (paternalismo) (ESTELLITA, 2007, p. 338-339). O artigo 231 do mesmo diploma legal, também acabou por sofrer uma espécie de um alargamento e de um estreitamento, ao mesmo tempo. É porque o que antes era assinado como “Tráfico de mulheres”, passou a se chamar “tráfico internacional de pessoas” e com a última redação, dada em 2009, estabeleceu-se 8

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como “Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual” (NUCCI, 2010, p. 160). No caso do artigo 231 do Código Penal Brasileiro, por exemplo, o conceito de tráfico acaba sendo determinado pelo mero movimento de pessoas para exploração sexual de qualquer natureza, ou seja, a vontade do agente passivo (ou melhor, daquele que é tido como sujeito passivo pelos estudiosos do crime e movimentos sociais), não é considerada e não pode se movimentar entre Estados nacionais, não podendo, desta maneira, exercer sua atividade no lugar que lhe aprouver. O que se pode destacar é que existem, então, dois discursos presentes neste aspecto: um declarado que é a proteção do indivíduo e sua dignidade e outro real que é criar uma característica imoral da prostituição e não do tráfico em si (GRUPO DAVIDA, 2005, p.165). Percebe-se que os artigos em comento não se vinculam a extirpar a prostituição ou o comércio sexual de qualquer natureza, mas antes tentam, sob um discurso de proteção da dignidade humana, se valer pela punição daqueles que incitam ou exploram estas atividades. O problema se dá, no entanto, na formação da vitimização dos agentes passivos abarcados pelos artigos que hoje estão alicerçados dentro deste capítulo V do Código Penal Brasileiro que hoje toma o nome de “Do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual”. É que por causa desta redação, muitas vezes as pessoas inseridas no contexto são desvinculadas de qualquer personalidade ou identidade jurídicas para que o artigo tenha uma espécie de força do “fazer valer”, da efetivação da norma. CARVALHO (2010, p. 11) argumenta que não se deve restringir a tutela penal dos crimes contra a dignidade sexual à liberdade sexual e analisa que as possibilidades de proteção frente às explorações da prostituição são legitimadas afirmando que o fator que se protege, o bem jurídico tutelado é a integridade moral, este um bem indisponível, posto que a exploração da prostituição acabe por reduzir o ser humano a coisas, mero objeto de satisfação sexual de outra pessoa que será usado em benefício daquele que explora. 9

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O discurso de proteção das pessoas perante um mundo perigoso, abre uma espécie de preleção para todas as formas de repressão contra o que determinados seguimentos da sociedade consideram imoral e inaceitável. É este pânico moral que enseja maneiras de pensar e de se lutar contra o crime, no qual os direitos das pessoas que seriam protegidas pela norma, acabam sendo reprimidos. Assim, os crimes que se ligam à prostituição, por exemplo, não são aparelhos de proteção da prostituta, antes são instrumentos de repressão da própria prostituição. É que esta atividade, apesar das normas ampliadas conforme foi analisado acima, ainda é colocado em relação à sexualidade feminina. Usa-se um discurso epistemológico desvirtuado para adequar a um fim específico, no caso aqui analisado, a sexualidade feminina e a imoralidade presente na prostituição. Desta maneira, o Código Penal Brasileiro acaba alocando no mesmo espaço de sujeição indivíduos de diferentes identidades autorreconhecidas ou não. É que nesse sentido um menor de idade levado contra sua vontade para o exterior e uma mulher ou homem civilmente capazes que queiram sair do Brasil, por exemplo, para se exercer prostituição em outro país (por melhores condições financeiras, ou outro aspecto que lhes seja importante) são ambos considerados traficados, criando uma confusão de sujeitos de direito. Não por outra razão a antiga assinatura do Título VI, do Código Penal Brasileiro, era a de Dos Crimes contra os Costumes, antes de se tornar Dos Crimes contra a Dignidade Sexual, alcunha que ainda remete a determinadas formas controladas de prática de atos sexuais. A ideia antiga era a tradução de uma expressão que não direcionava os crimes para as vítimas, mas para uma ideia de moralidade imposta. No próprio Código Penal Brasileiro, antes das novéis reformas, retirarouse do texto legal a expressão “mulher honesta” em crimes que tratam sobre sexualidade, sendo adicionados os termos “pessoa” ou “alguém”. É o caso, por exemplo, do antigo artigo 215, do código citado, em que se tratava do crime de posse sexual mediante fraude e na qual o agente passivo era a somente a “mulher honesta”, com as mudanças (sob aqueles discursos de igualdade de direitos), o artigo passa a ser rubricado como “violência sexual mediante fraude” e a expressão “mulher honesta” foi suprimida e deu lugar à expressão “alguém” (NUCCI, 2010, p. 10

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89). No entanto, as formas de proteção sempre se ligam à feminilidade do sujeito, que passa a ser passivo tanto na condição de vítima jurídica quanto do ato sexual em si. Uma mudança no texto legal, no entanto, não se transfere na mesma medida para a vida na sociedade. O poder simbólico, a força simbólica já existente acaba por contaminar o habitus das relações sociais e faz com que estas relações não sofram mudanças. Sendo assim, não basta garantir um direito para que este seja exercido, uma vez que assimilou-se um laço de inferioridade ou de estigmatização (BOURDIEU, 2002, p. 46). Logo, garantir direitos para os sujeitos em prostituição e dentro do comércio sexual, não é garantir o exercício destes direitos, uma vez que socialmente a atividade ainda será vista como impura e sob as amarras sociais que lhes foram impostas. O que leva, apesar de tudo, a cair por terra o argumento antiprostituição de que, uma vez legalizada ou regulamentada, esta atividade acabe por ser válvula de escape para todas as mulheres em situação de pobreza, causando um risco sem tamanho à moralidade social (intentada sob um discurso de desvalorização da mulher). Isto mostra que não é só dentro do Direito Penal que a prostituição se faz presente. A atividade implica relação estreita com outras áreas do Direito e pode, por força do discurso sobre o seu exercício, acarretar perda de direitos civis, inclusive. É corrente afirmar na doutrina que a prostituição é pretexto suficiente para o rompimento do laço conjugal e destituição do poder familiar. De acordo com o artigo 1.638, inciso III, do Código Civil, perde por ato judicial o pai ou mãe que praticar atos contrários à moral e os bons costumes e como exemplo, dentro dos manuais, é comum destituir o poder familiar na situação em que os filhos que vivem “em companhia de mãe prostituta” (DINIZ, 2006, p. 542), sob o argumento de que os menores estariam sob más influências da atividade imoral da mãe. Ocorre que, no mesmo artigo, no inciso II o abandono do menor também faz perder o poder familiar por parte de pais e mães. Ou seja, o próprio discurso inscrito sobre a prostituição acaba paradoxal, no momento em que uma mãe exerce prostituição justamente para não deixar seus filhos ao abandono. 11

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Para fazer um contraponto com o Direito do Trabalho e o dispositivo analisado acima, deve-se lembrar que a prostituição é ocupação legitimada inserta nas regulamentações administrativas sobre o trabalho (esta atividade é inscrita dentro da Classificação Brasileira de Ocupações, sob o código 5198-05). Chega a ter um tom jocoso o fato de uma ocupação legitimada impor fim a uma relação familiar, não pelo fato de ser ilegal ou ilícita, mas pelo mero fato de não ser aceita moralmente e socialmente. Impõe-se por força de discursos de verdade uma forma de sujeitar as condutas do indivíduo a um direito construído por práticas judiciárias que punem e responsabilizam não pela conduta praticada, mas pelo que se é identificado (o locus do sujeito) dentro do corpo social (FOUCAULT, 2002, p. 11). Em todo aspecto, entretanto, a figura de direito fica relegada a segundo plano em nome de um interesse maior ditado por um ente abstrato, o Estado (não importando suas diretrizes ideológicas). No Estado de Direito eficaz não basta que haja as meras inserções de direitos sociais, elogiados como formas de conquistas, mas também passa por estabelecimento de limites para este poder que o Estado exerce. Não é só ditar na Constituição que o indivíduo tenha seus direitos respeitados, mas que estes direitos também respeitem as particularidades de cada sujeito, admitindo suas diferenças sem as colocar em diferenças duais que acabam por impor uma espécie de ordem constitucional do Bem versus o Mal – do que é para o bem do povo contra o que é mau para o povo. (CANOTILHO, 1999, p. 17). É o Estado que deve cobrir os direitos fundamentais e sociais garantidos em sua Constituição para os indivíduos, não o contrário (RIGOPOULOU, 2007, p. 349). É importante, então, que princípios, liberdades e aspectos de direitos individuais sejam cuidadosamente sopesados e sempre levando em consideração que esta é uma valoração estranha à Constituição, posto que esta não atribui valor objetivo às liberdades, sendo vista como algo subjetivo e que deve ser protegido para o cidadão e não protegido contra as ações deste.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prostituição se insere neste mundo de criação de subjetividade, por estar intrinsecamente ligada aos protecionismos sexuais, além de administrações que tentam a todo custo proteger uma espécie de identidade feminina construída e imposta. Como se as mulheres fossem vulneráveis por entrar nesta atividade e os homens sejam considerados em sua grande maioria exploradores sexuais das mulheres quando entram no mundo da prostituição e recebem contraprestação econômica pelo serviço sexual prestado a uma mulher. Por isso, é necessária uma discussão sobre a curiosa ligação de movimentos

e

argumentos

“antiprostituição”

ou

“antisexo”

à

proteção

da

feminilidade, como se esta atividade fosse sempre designada para promover perversões de cunho masculino. Assim, o interior do problema econômico e político da população está inserido no discurso sobre o sexo. È necessário analisar cada ponto que se liga aos aspectos demográficos e de família (taxas de natalidade e nascimentos de relações legítimas dentro de matrimônios); estas características, então, seriam mais bem administradas se a mulher e o homem estivessem sob o pronto policiamento das instituições, pois são elas as geradoras das sementes e eles devem se manter longe de qualquer forma de perversão sexual, para não correr riscos (médicos, sociais etc.). Os manuais jurídicos, então, assimilados e escritos dentro dos discursos burgueses, acabam por se colocar como mais um fonte de reprodução deste discurso. Um discurso que reflete a lógica social da manutenção do status quo de gênero, dualizado, na qual à mulher deve ser dado o âmbito privado de “rainha do lar” e ao homem o ambiente público, de provedor da vida e força de trabalho produtor.

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