A Constituição de Séries na História da Historiografia: problemas de método e possibilidades de pesquisa

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A CONSTITUIÇÃO DE SÉRIES NA HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA: problemas de método e possibilidades de pesquisa

João Rodolfo Munhoz Ohara Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ Faculdade de Ciências e Letras de Assis Bolsista Fapesp Resumo: esta comunicação inicia a abordagem da possibilidade de escrever uma história da historiografia na qual os nomes próprios não gozem de um estatuto privilegiado na organização dos materiais de análise. Descentralizando a categoria ―autor‖, uma abordagem tal atravessaria a historiografia pela análise de enunciados, práticas discursivas ou não discursivas, construindo análises que evidenciem o caráter histórico e provisório dos seus elementos constitutivos, perguntando pelas suas emergências e condições de possibilidade. Para tanto, tomo de ilustração meu próprio projeto de pesquisa, no qual tento analisar a constituição de disposições consideradas epistemicamente virtuosas para o exercício do trabalho do historiador em determinado período. Assim, busco esboçar as linhas para uma abordagem da historiografia mais atenta às regras constitutivas do campo do que aos personagens ilustres ou infames da história disciplinar. Palavras-chave: história da historiografia; séries discursivas; práticas discursivas

Já faz algum tempo que Charles Carbonell lançou seu manifesto ―Por uma história da historiografia‖. (1982) Aceitarei, provisoriamente, que essa seria a data de constituição de um campo chamado ―história da historiografia‖, cujo traço característico seria tomar por objeto a produção historiográfica ocidental.1 Definido este pressuposto central, a questão que se impõe é a prevalência de um tipo de história da historiografia extremamente ligado à tão caricaturada fórmula dos ―grandes nomes realizando grandes feitos‖. (cf. BEVERNAGE et al., 2014) Manuais como os produzidos por Christian Delacroix, François Dosse e Patrick Garcia (2012) são provavelmente o exemplo mais óbvio – a história da historiografia acadêmica francesa apresentada sob ordenamento cronológico e organizada em capítulos a partir do que seriam as características comuns dos grandes historiadores de cada período, de Fustel de Coulanges a Fernand Braudel. Outros exemplos não são difíceis de achar: as coletâneas Nova História em Perspectiva, organizada por Fernando Novais e Rogério Forastieri (2011-2013), A História Pensada, 1

Se, por um lado, podemos dizer que o tipo de história da historiografia visado por Carbonell de fato surge apenas após 1982, permanece aberta a questão de em que medida esse tipo de estudo seria o único possível sob tal rótulo. Além disso, só podemos aceitar provisoriamente essa afirmativa porque é bastante discutível que esse tipo de projeto seja tão inovador ou inédito quanto Carbonell desejava – histórias da maneira ocidental de escrever a história já existiam sob formas e rótulos diversos desde, no mínimo, o século XIX. (cf. IGGERS, 2014; DELACROIX et al., 2012)

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organizada por Estevão Martins (2010), e tantas outras, todas buscam apresentar uma trajetória da nossa disciplina a partir da listagem de autores considerados mais importantes ou mais representativos de determinadas correntes historiográficas em determinados períodos – ou, de maneira ainda mais individualizante, esfumaçando os contornos da ideia de corrente historiográfica, que indicaria uma coesão relativamente maior, em prol do conceito de tradição, que teria seus limites mais amplos ou maleáveis. Para este texto, gostaria de explorar essa maneira específica de fazer ―história da historiografia‖, elencando três fatores interligados que me parecem condicionar a prevalência desse tipo de discurso, em detrimento de abordagens que se aproveitem do descentramento de categorias como ―autor‖, ―obra‖ e ―tradição‖, tal como inúmeros autores de outros campos historiográficos já levaram a cabo pelo menos desde o final do século XX. A partir do exame desses três elementos, passarei à proposta do que me parece ser uma abordagem igualmente interessante para a especialidade – a história serial tal qual compreendida por Michel Foucault.2 Ilustro a execução de tal abordagem com referências ao meu próprio trabalho de pesquisa. Assim, espero poder contribuir para a ampliação das possibilidades de pesquisa em história da historiografia, e fomentar uma história crítica da historiografia.

Produções Contemporâneas na História da Historiografia

Conforme disse inicialmente, só seria possível aceitar provisoriamente a ideia de que o manifesto de Carbonell seria fundador de algo como uma ―história da historiografia‖. Para além do seu olhar francês, historiadores brasileiros já tentavam estabelecer as referências para estudos de história da historiografia no Brasil muito antes de 1982 – mesmo que o escopo desses trabalhos seja muito mais limitado que aquele visado por Carbonell. (e.g. RODRIGUES, 1965; RODRIGUES, 1968; IGLÉSIAS, 1971; LAPA, 1976; HOLANDA, 1979; LAPA, 1985) E já neste período, à parte os estudos que visavam um recenseamento do campo para fins avaliativos, aqueles que tomavam como objeto a historiografia tinham em seu horizonte a ideia de seguir a obra de um autor ou de um movimento. (e.g. RODRIGUES, 1965; HOLANDA, 1979) E

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Parece-me importante estabelecer essa distinção qualitativa, pois a única semelhança que vejo entre a história serial praticada por historiadores como Mandrou e a história serial de Foucault é a ideia abstrata de uma história escrita a partir do estabelecimento de séries. O problema é que o que Foucault entende por série é bastante diferente do que os historiadores fazem. Uma série em Foucault não é uma série de dados quantificáveis, como nas histórias de Mandrou, mas uma série de discursos estabelecida a partir de critérios particulares a cada problema de pesquisa.

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mesmo depois dessa fase considerada ―fundadora‖ para os estudos sobre a historiografia no Brasil, não é difícil perceber a quantidade enorme de trabalhos que versa sobre a obra de um autor particular, de uma corrente historiográfica ou de uma instituição de pesquisa. (e.g. WEHLING, 1999; NICODEMO, 2008; GOMES, 2009; ANHEZINI, 2011; FREIXO, 2011; GONTIJO, 2013; OLIVEIRA, 2013; PROTÁSIO, 2014) A produção internacional não escapa à regra. Estudos sobre as correntes historiográficas consideradas mais importantes, ou fundamentais no estabelecimento da história como disciplina autônoma, acadêmica e cientificamente orientada, sobre autores específicos e suas contribuições historiográficas, são essas as direções principais... (e.g. IGGERS, 1983; BURKE, 1997; IGGERS, 1997; DOSSE, 2003; AGUIRRE-ROJAS, 2004; DELACROIX et al., 2012) Muito recentemente, algumas coleções de referência, como The Oxford History of Historical Writing e The Making of the Humanities, têm conseguido ampliar esse escopo e apresentar problemas mais transversais, mas não me parece ser o suficiente para caracterizar uma reorientação metodológica significativa. Outras iniciativas, a princípio muito valiosas, de escrever uma história global da historiografia esbarram em problemas teóricos complexos – como estabelecer critérios aceitáveis para construir um fenômeno como a historiografia de maneira global? (WANG; IGGERS, 2002; IGGERS; WANG, 2008) Outras, por fim, foram bem sucedidas por caminhos como o do estudo das apropriações e das transferências culturais na historiografia sem que houvesse um foco excessivo sobre ―obras individuais‖. (RAMOS, 2014; ROIZ; SANTOS, 2012)3 Assim, entendo que, embora seja um campo em crescimento quantitativo e qualitativo, os estudos sobre a historiografia moderna ainda contam com vastos espaços e lacunas possíveis de serem preenchidos com novas abordagens – e digo isso sem qualquer pretensão imperialista.

História Crítica da Historiografia

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Parece-me significativo que tais iniciativas abordem a historiografia a partir de conceitos desenvolvidos para outras especialidades, em especial a história cultural. Quando Igor Ramos fala da apropriação de Foucault e Thompson no Brasil, e Diogo Roiz e Jonas dos Santos falam da apropriação dos Annales no Brasil e das transferências culturais entre as historiografias brasileira e francesa, é importante lembrarmos que os temas da apropriação e das transferências culturais aparecem para resolver problemas específicos e não necessariamente ligados ao estudo da historiografia – o conceito de apropriação de Chartier ou de Certeau, por exemplo, ou a discussão de transferências culturais em Sirinelli. Parece-me que tal deslocamento conceitual pode ser bastante produtivo, e os autores aqui citados nos servem como evidência.

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Não quero dizer com isso que as maneiras pelas quais os historiadores têm trabalhado a história de sua própria disciplina sejam inadequadas. Muito pelo contrário, são maneiras perfeitamente legítimas de realizar a importante tarefa de lembrar que aquilo que fazemos hoje surge apenas a partir da configuração de determinadas relações discursivas, e que essas relações têm uma história, ou seja, não são o resultado de uma revelação mística ou de um acaso da Providência. São também importantes no papel do estabelecimento de uma revisão crítica de ―mitos‖ e ―lendas‖ construídas sobre determinadas figuras. (e.g. IGGERS, 1962; PROST, 1994; TORSTENDAHL, 2003; VARELLA et al., 2011)4 Mas gostaria de sugerir que para além dessa ―história disciplinar‖, termo que empresto de Stefan Collini (1988),5 é possível tomar a historiografia acadêmica como fonte para a elaboração de outro tipo de história. Gostaria de nomear provisoriamente este outro projeto de ―história crítica da historiografia‖. Entendo ―crítica‖ no sentido kantiano já explorado não só por Michel Foucault, mas também na esteira da obra de Colin Koopman (2013), ou seja, a ―crítica‖ como o estudo das condições de possibilidade de um fenômeno – neste caso, as formações discursivas da historiografia.6 Para este projeto particular de abordagem, não interessam tanto as categorias de ―autor‖, ―obra‖, tampouco conceitos como ―influência‖ ou ―contexto‖. Tais categorias podem ser pertinentes a outras abordagens da historiografia, mas ao deslocá-las quero chamar a atenção para outros fenômenos históricos. Meu objetivo é estudar formações discursivas e não-discursivas particulares, isto é, como em determinado momento pudemos entender algo de alguma forma. Para minha pesquisa doutoral, pergunto-me pelos discursos axiológicos que definiam a figura do historiador a partir de valores – caraterísticas e disposições – considerados virtuosos ou viciosos, ou seja, de tom moralizante. Entendo, hipoteticamente, que esses discursos agiam de maneira a produzir um tipo geral de subjetividade a ser construída através de um longo período de 4

Gostaria de indicar um artigo instigante sobre a perpetuação de ―lendas urbanas‖ na academia: REKDAL, 2014. 5 Como Collini, entendo por ―história disciplinar‖ uma história que ―oferece um relato do alegado desenvolvimento histórico de um empreendimento cuja identidade é definida pelas preocupações dos atuais praticantes de um campo científico particular.‖ (COLLINI, 1988, p. 388, tradução livre) Em outro texto, Collini desenvolve a ideia mais longamente: ―Autores do passado são introduzidos no cânone da disciplina como precursores ou antepassados, e passados em revista como que por um general distribuindo medalhas - e, às vezes, reprimendas - ao final de uma campanha bem-sucedida [...]. A lista de precursores canônicos, organizada em ordem cronológica, [...] então se torna a história da disciplina em questão.‖ (COLLINI et al., 1983, p. 4, tradução livre) 6 O que me parece invalidar alguma tentativa de entender minha afirmativa como se eu dissesse que as histórias da historiografia atuais são ―acríticas‖. ―Crítico‖ aqui tem um sentido bastante preciso, e não se dá a algum tipo de discurso moralizante, que pretende assumir que ―apenas daqui em diante faremos uma história de verdade‖.

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formação, no qual o indivíduo ―aprenderia a ser‖ um historiador, construindo um êthos peculiar, um conjunto de práticas e disposições consideradas virtuosas do ponto de vista epistêmico – como o ―amor pela verdade‖, a ―honestidade intelectual‖, etc. Essa questão foi colocada recentemente por Herman Paul (2011a; 2011b; 2012; 2013; 2014) para a historiografia europeia dos séculos XVIII e XIX, e, incentivado pelo mesmo, propus-me a experimentar com a ideia para a historiografia brasileira recente, a partir das premissas teóricas que mencionei acima. Como é possível entender a partir da leitura de Foucault (2012), o descentramento das categorias de ―autor‖ e ―obra‖ só faz sentido à luz do estabelecimento de séries discursivas, elas mesmas organizadas a partir de critérios bastante específicos. E é a partir dessas séries que é possível elaborar todo um tipo de análise sobre materiais que poderiam passar despercebidos sob a figura mais ou menos coerente do autor ou da obra, ou sob o rótulo nunca muito bem definido de ―influência‖. Ainda assim, depois de dar uma direção mais ou menos precisa ao trabalho que elaboro no momento, gostaria de questionar alguns fatores que me parecem favorecer o estudo a partir das categorias tradicionais que mencionei – três deles, mais especificamente, expressos nas seguintes ementas, que desenvolverei a seguir: (1) a historiografia acadêmica é um fenômeno de elite; (2) esse fenômeno, por ser muito local e especializado, produz um corpus documental bastante restrito e rarefeito; (3) a rarefação do corpus documental dificulta o trabalho em outras escalas, pois enfrenta sempre a questão da representatividade.

A Historiografia como Fenômeno de Elite

Não é novidade alguma dizer que aqueles que se dedicam ao ofício do historiador costumam pertencer a um tipo de agrupamento social bastante restrito e cujas condições econômicas permitem que os indivíduos dediquem anos de suas vidas à formação acadêmica. Ainda assim, emprego o termo ―elite‖ não em seu sentido econômico, mas pelo fato de que a entrada na ―corporação‖ é restrita e depende de uma série de condicionais que poucos indivíduos podem ou estão interessados em cumprir. Neste sentido, o número de indivíduos historiadores será sempre pequeno em relação a outros grupos, definidos por outros critérios – como classe (proletariado, burguesia...), gênero, sociabilidade (urbano, rural, migrante, etc.).

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Não me parece absurdo afirmar que esse tamanho reduzido de indivíduos pertencentes ao grupo favorece o tipo de narrativa que encontramos mais comumente nos estudos sobre a historiografia. De maneira semelhante à condução da ―história da filosofia‖, onde nomes e correntes aparecem em ordenamento linear, a história da historiografia organizaria seus poucos praticantes – ou, ainda, os mais destacados entre eles – de maneira a apresentar o processo de constituição da historiografia científica moderna, ou as ditas rupturas paradigmáticas promovidas por diferentes agentes.

A Rarefação Documental

Ligado ao primeiro fator, temos a rarefação documental. Seria impossível comparar o número de registros cartoriais produzidos por diferentes camadas sociais e a produção de material por parte de historiadores acadêmicos. Neste sentido, os deslocamentos produzidos pela história social a partir não apenas do uso de métodos quantitativos, mas mesmo de estudos mais localizados, a partir da leitura de processoscrime, por exemplo, torna-se improvável para a história da historiografia. Mesmo que a produção científica tenha atingido nos últimos anos patamares inéditos – o que sugere que talvez abordagens quantitativas possam se tornar plausíveis para a análise da historiografia a partir do final dos anos de 1990 – ainda é pouco factível imaginar estudos sobre historiografia inspirados em abordagens como, por exemplo, a de A Formação da Classe Operária Inglesa, que trata de maneira não-quantitativa um grande número de documentos, ou os estudos de Vovelle e Chaunu, considerados nomes importantes da história quantitativa. Para além da quantidade, também temos a dispersão dos materiais. A produção intelectual dos historiadores acadêmicos é de difícil acesso mesmo para seus pares – ainda mais se nos lembrarmos que nossa disciplina ainda tem no livro sua principal forma de publicação autoral. Ao historiador que deseja estudar a historiografia do século XX, livros esgotados e desaparecidos são problemas comuns; mesmo os periódicos não contam com uma distribuição adequada em bibliotecas universitárias. E o processo de digitalização no Brasil ainda é tímido quantitativamente e de qualidade terrível. Esses problemas materiais afetam ainda mais o já relativamente pequeno número de materiais-fonte. Assim, parece-me que essa rarefação documental está relacionada ao tipo de abordagem realizada atualmente. Para estudarmos uma corrente historiográfica, bastaria

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então estabelecer o corpus das obras mais características e relevantes dessa corrente para termos os materiais da pesquisa; enquanto isso, para autores individuais, a quantidade de materiais a serem buscados é infinitamente inferior ao estabelecimento de um movimento coletivo, o que permite que o pesquisador se devote a essa busca ―em profundidade‖. Mas essas duas estratégias carregam sempre o peso do próximo fator: a questão da representatividade.

O Problema da Representatividade

Problema comum na sociologia e na história social, a representatividade permanece uma questão aberta para a história da historiografia. O foco extremamente individualizante dos estudos existentes permite escapar parcialmente do problema, uma vez que a questão da representatividade nesses casos está mais ligada à pergunta ―em que medida tal texto é representativo da obra deste autor?‖ – uma pergunta que, de uma só vez, coloca em ação unidades pressupostas muito problemáticas, as de texto, obra e autor. Para os estudos que se dedicam ao estudo de correntes e tradições historiográficas, o terreno é mais delicado: trata-se de argumentar adequadamente pelos critérios adotados para a seleção de determinados autores e a exclusão de outros. Por exemplo: de quem falar quando estudamos o historismo alemão? Ranke? Droysen? E do movimento dos Annales? Bloch e Febvre, Braudel...? O problema da representatividade está diretamente ligado ao tipo de abordagem estabelecida. Na medida em que nos interessamos por estabelecer a unidade autor, surge o problema do critério para a seleção de suas obras e do estabelecimento das relações entre elas; se a unidade é mais ampla, de corrente historiográfica, o problema também se amplia, na medida em que não apenas temos de selecionar as características relevantes de cada autor, mas também quais autores fazem parte dessa corrente e os critérios para tal inclusão. De qualquer maneira, as pesquisas realizadas atualmente definem a representatividade e a relevância de suas fontes a partir dos problemas de pesquisa. Assim se pode triar o grande número de escritos legados por um autor ou por um grupo a partir de uma questão precisa, tornando as fontes tratáveis para a realidade da pesquisa individual. Quando grupos de pesquisa se devotam a esse tipo de problema, a questão é diferente. Tais grupos têm uma capacidade de tratamento de fontes muito maior, possibilitando que vários pesquisadores se dediquem a particularidades e, ao final,

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elaborem algo como uma ―síntese‖. Mas permanece aqui o problema da representatividade, no sentido de que essa ―síntese‖ final necessariamente opera com o estabelecimento de uma ordem sobre todo o material elaborado.

As Séries

Tendo em vista os três fatores elencados acima, gostaria de sugerir a possibilidade de uma abordagem que escapasse à perspectiva processual que estamos tão habituados. Isso porque, seguindo um dos principais insights da Arqueologia do Saber, suspender as categorias tidas por mais óbvias e estabelecer novos critérios de análise pode nos mostrar relações e problemas que passariam despercebidos. Não quero dizer, com isso, que farei uma arqueologia da historiografia; isso não seria apenas um trabalho hercúleo, como também estaria em contradição direta com o projeto da arqueologia.7 Mas ela não é o resultado necessário desse insight. O que proponho é que os ―atores‖ principais de uma história da historiografia não sejam mais os grandes nomes, responsáveis pelas grandes conquistas disciplinares, mas sim os discursos, as formações discursivas que tornam todo esse empreendimento possível. Entendo a historiografia não apenas como uma disciplina que nos condiciona no presente, mas também como uma formação histórica que pode, como todas as outras, ser decomposta e analisada para além das categorias mais usuais. Para a realização de tal tarefa, parece-me bastante profícuo lançar mão do recurso às séries – e, em seguida, passo a ilustrar a argumentação com minha própria pesquisa, atualmente em andamento. Foucault via nas séries a característica distintiva da historiografia social e da ciência que lhe era contemporânea: os períodos longos da história social e as rupturas da história das ciências seriam igualmente expressões de uma nova maneira de organizar os materiais e colocar problemas de pesquisa. Diz ele:

De agora em diante, o problema é constituir séries: definir para cada uma seus elementos, fixar-lhes os limites, descobrir o tipo de relações que lhe é específico, formular-lhes a lei, e, além disso, descrever as relações entre as diferentes séries, para constituir, assim, séries de séries, ou ―quadros‖ [...] (FOUCAULT, 2012, p. 9, grifos meus)

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Isso porque a própria categoria de ―historiografia‖ não faz sentido enquanto critério de delimitação de um projeto arqueológico. As disciplinas também são parte das categorias suspensas por Foucault – como autor, obra, influências... (cf. FOUCAULT, 2012)

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Ora, constituir séries, bem como todo um conjunto de tarefas associadas a esse tipo de abordagem, não apenas exige uma nova maneira de separar e ordenar as fontes, mas implica também em um tipo diferente de narrativa histórica. Pois as séries se estabelecem em função de problemas e critérios específicos, e não de generalidades, como a noção bastante vaga de ―contexto‖.8 Por conta disso é possível fazer uma história das prisões e da punição que atravessa o século XVIII sem mencionar a Revolução Francesa9, ou, no caso da presente pesquisa, analisar a história da persona do historiador acadêmico sem o recurso às unidades de ―autor‖, ―obra‖, ou outras. A primeira tarefa, portanto, seria estabelecer os critérios para o estabelecimento de uma série. Tomo tal tarefa em um duplo sentido: em primeiro lugar, o estabelecimento de uma série de materiais; em seguida, de séries discursivas. O recurso à ideia de série de materiais se fundamenta na necessidade de estabelecer um corpus documental tratável por um pesquisador individual que conta com tempo e recursos limitados. Esse tipo de limitação tem contornos muito diferentes se falamos de grupos de pesquisa, com vários assistentes, recursos vastos e sem um prazo curto e improrrogável10 – o que definitivamente não é o caso de uma pesquisa de doutoramento. Assim, a partir do problema de pesquisa levantado, tento estabelecer critérios para estabelecer a série de materiais adequada para a realização do trabalho. Para minha pesquisa, selecionei textos de caráter eminentemente avaliativo – resenhas e prefácios. Essa série obedece a critérios relativamente simples: são textos escritos (1) por um autor que dispõe das credenciais para avaliar um trabalho de seu campo; (2) referem-se a outros textos escritos por outros indivíduos igualmente credenciados; (3) circulam em veículos privilegiados no campo. Quanto às séries discursivas, elas são estabelecidas a partir da leitura e análise dos materiais já organizados: aqui serão isolados os trechos referentes aos enunciados axiológicos, isto é, às considerações relativas às disposições consideradas virtuosas ou viciosas para um historiador. Uma vez isolados esses elementos, é possível verificar variações, emergências ou supressões, desvios, e relações. É esse tipo de procedimento que permitirá colocar no centro da narrativa a persona do historiador. Uma vez que essa persona é elaborada coletivamente (cf. PAUL, 2014), torna-se irrelevante precisar um 8

Dominick LaCapra faz uma crítica feroz ao (ab)uso da ideia de ―contexto‖ na historiografia. Ver LACAPRA, 1985, p. 15-44. Michel de Certeau é igualmente crítico do uso de noções indefinidas para cobrir os vazios da explicação do historiador. Ver CERTEAU, 2011, 173-175. 9 Essa foi uma das críticas direcionadas a Vigiar e Punir por parte de alguns historiadores. Como seria possível falar das prisões modernas sem referência à Revolução Francesa? 10 Foucault, por exemplo, contava com vários assistentes e consideráveis recursos financeiros para conduzir sua pesquisa.

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indivíduo responsável por atualizar uma avaliação; as múltiplas temporalidades podem ser percebidas a partir da análise desses discursos sem necessidade de recorrer à ideia vaga de ―contexto‖.

Considerações Finais Como lembra Foucault, a suspensão das categorias de ―autor‖ e ―obra‖, como de tantas outras, não implica em uma rejeição absoluta. É perfeitamente cabível que, ao final da análise, possamos encontrar determinados agrupamentos discursivos que se possam definir por tais categorias. Mas isso não implica em que poderíamos ter trabalhado com elas desde o início. O que está em jogo é o estabelecimento de critérios claros para a análise de discursos, e, assim, colocar tais categorias à prova das evidências. Por isso não faz sentido assumir uma unidade de obra a priori: se houver tal unidade, ela se mostrará ao longo e ao final da análise, mas é preciso abrir a possibilidade de que há outras relações discursivas e que essa unidade que buscamos pode ser ilusória. Mais do que isso, mesmo que essas unidades reapareçam ao final do trabalho, o percurso já terá mostrado que as relações discursivas independem dos nomes próprios. O problema que tenho em vista é necessariamente um problema coletivo: qual é essa figura de historiador que, em determinado momento e em determinado lugar, foi estabelecida enquanto modelo? Esse tipo de construção não acontece nem individualmente, nem em uma escala muito curta de tempo. Ao mesmo tempo, não interessa especular relações causais que visem relacionar essas mutações discursivas com um contexto histórico mais amplo. Interessa descrever e mapear essas mutações como parte da análise das condições de possibilidade de uma determinada maneira de fazer história. O trabalho está apenas começando, e o recorte feito é bastante local, mas esse tipo de empreendimento me parece importante para respondermos, pelo menos em parte, ao problema das práticas do historiador. Mais especificamente, esse tipo de pesquisa pode nos auxiliar a entender o que significa ser historiador em determinado período e espaço, situando as disputas de diferentes projetos e mapeando as condições de possibilidade da historiografia. (cf. PAUL, 2014) Gostaria de enfatizar novamente que não acredito que esta seja a única abordagem possível, ou que ela seja a melhor entre as alternativas, mas apenas que ela pode oferecer uma perspectiva diferenciada de

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análise, e tal perspectiva pode ser bastante profícua para enfrentarmos as questões relativas à produção do saber histórico.

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