A construção da memória em O Vale da Paixão de Lídia Jorge

June 19, 2017 | Autor: Emanuel Guerreiro | Categoria: Memoria, Lídia Jorge, O Vale da Paixão
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A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA EM O VALE DA PAIXÃO DE LÍDIA JORGE

(…) no fundo, o que é a escrita? A escrita é (…) a memória do sonho das coisas futuras. Lídia Jorge (Marques, 2004:23)

1. «Ela lembra-se (…).» (Jorge, 1998:17)1

«Escrevi como quem faz um acto litúrgico, escrevi sob uma grande tensão, ao mesmo tempo que sob uma espécie de grande alegria, foi como se percebesse que esta era a única forma que eu tinha para invocar uma certa figura. E que, quanto mais eu escrevesse, mais eu a invocava e mais ficava inteira.» (Pedrosa, 1998:68). Com estas palavras, Lídia Jorge descreve o acto de escrita, o processo de construção do romance O Vale da Paixão: a ideia motivadora é a recordação de uma personagem masculina, constantemente ausente, mas sempre presente através dos seus objectos, como a farda militar, cartas e desenhos de pássaros, e dos relatos de quem o conheceu, presentificando-o à personagem-narradora. Recorrendo às formas verbais «convoco», «chamo», «invoco», ela evoca o «tio», que, afinal, é o seu pai, partindo das recordações e dos episódios de partidas e regressos do soldado Walter Glória Dias, «(…) conhecido pelo assobio, pelo andar e pelos animais que desenhava (…)» (pp. 18-19).2 O núcleo da narrativa é um encontro nocturno em que o pai visita, em segredo, a filha, no seu quarto, às escondidas da família do 1

Todas as citações seguirão esta edição, indicando-se, a partir de agora, apenas, a página entre parênteses. «(…) Walter possuía umas mãos estranhas, umas mãos que desenhavam como se tivessem a memória da natureza debaixo das unhas.» (p. 63, meu sublinhado). 2

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patriarca Francisco Dias, na casa de São Sebastião de Valmares, lugar ficcional no sotavento algarvio e que, também, servirá de cenário ao romance O Vento Assobiando nas Gruas (2002). A narradora, a «sobrinha» vulgo «filha» de Walter Dias, ao receber, como herança, a sua antiga manta de soldado, ponto de partida para a evocação e para contar uma história, estabelece uma ligação entre a noite de Março de 63, quando ele subiu ao seu quarto, e «esta noite», em frente da manta, que constitui o tempo presente da narração – duas noites que se ligam por uma presença, como numa repetição, uma circularidade que se completa numa confluência de passado e presente.3 Walter surge, de novo, «(…) por repetição ou por memória duma clandestinidade que não mais se justifica.» (p. 13). O segredo, que, na verdade, nunca o foi, agora, já não tem por que se manter, sem medo de ninguém, protegidos que estão pelo vazio e pelo silêncio da casa, ecoando ausências e partidas, mas cheia da presença dele, em mais uma noite para a despedida. No primeiro parágrafo, como «incipit», a narradora começa por usar a primeira pessoa, mudando, no segundo parágrafo, para a terceira, recuperandoa posteriormente, por exemplo, em finais de capítulos, ao declarar o propósito da evocação, numa busca ao passado para se reconciliar com o presente.4 Esta

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«Ela (…) percebia que não iria haver mais nenhuma noite (…) – Só dispúnhamos de uma única, aquela noite de chuva, e termos a certeza de que estávamos a correr dentro dela, sem a podermos repetir, impedia-nos de a viver. Mas esta noite está rente a essa noite, e ambas são contíguas como se fossem só uma, fechadas entre o sol-posto e o amanhecer. A quem interessa o longo dia que ficou de permeio?» (p. 17). A presença de Walter Dias marca ambas as noites: na primeira, foi a revelação de um laço familiar que se escondia, numa aproximação desejada e imaginada pela filha; nesta noite, ele regressa, já morto, como para completar algo que falhara ou faltara, ou apenas para pedir desculpa, como já fizera: «Esse ano e esse mês caminham para dentro desta noite (…). Esta noite está atravessada pelos dias da chegada de Walter, em sessenta e três.» (pp. 100 e 109). 4 «Lembro-o esta noite, para que Walter saiba.» (pp. 95 e 200); «Lembro-me como se fosse esta noite.» (p. 142); «Chamo esse tempo de silêncio (…), para que Walter, esta noite, saiba.» (p. 154); «Lembro-o para que Walter, esta noite, saiba.» (p. 162); «Conto-o apenas para que Walter saiba.» (p. 165); «Digo-o esta noite, para que Walter Dias saiba, diante da sua manta de soldado.» (p. 177); «Convoco para esta

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mudança da voz narrativa, da narradora homodiegética, testemunho de vivência directa dos eventos relatados («Sim, eu era testemunha (…).», p. 24, recorrendo às formas verbais «lembro-me», «vejo», «ouço»), oscilando entre eu-narrador e eu-narrado, dá lugar a uma «fictícia» omnisciência, que permitiria um conhecimento global, total, sem incertezas. Essa alteração dá-se de forma mais marcada a partir da chegada de Walter, em 63 (pp. 106 e ss.), como se fosse a partir desse momento que a narradora começasse a existir como ser-para-si, dado o reencontro com o pai e a assunção do segredo que os une. É esta a história: a recordação da numerosa família Dias e do percurso errante de Walter, desde Goa à Argentina, passando por Austrália, África, Londres e Canadá, tem como motivo a recuperação da figura do trotamundos, construída pelos discursos de quem o conheceu e que a sua filha recolhe e une, como se de uma «memória colectiva» se tratasse, entre história e mito,5 conhecimento que, agora, ela pretende revelar-lhe.6 A narradora reconstitui o passado7 na evocação de um espaço familiar, dando a conhecer a informação

noite essa paragem, para lembrar as cartas inolvidáveis. Para que Walter saiba.» (p. 181); «Para que Walter Dias saiba, esta noite, em que nos encontramos diante da sua manta de soldado.» (p. 204); «(…) é preciso lembrar mais, esta noite, para que Walter saiba, antes de nos despedirmos.» (p. 206). 5 Cf. o episódio em que Walter enfrenta o pai, na estrumeira, que quer obrigá-lo a trabalhar como os irmãos, e ele, com doze anos, recusa-se. O pai ameaça-o com uma forquilha e ele, gritando, oferece, corajosa e desafiadoramente, o peito, levantando a camiseta. Este confronto, narrado pela lavadeira Alexandrina à «sobrinha» ainda criança, assume-se como uma narrativa das origens e da definição de um herói, «(…) talhando (…) uma figura inteira.» (p. 55): «(…) entre o pátio e a estrumeira, fugindo da estrumeira, Walter Dias existia. Ela tinha-o herdado, a enfrentar os garfos aguçados duma forquilha.» (p. 57). 6 Em intertextualidade com a Ilíada, recupera-se uma frase que pode funcionar como definição quer da memória quer do trabalho da narradora: «(…) fala exactamente como eu te ensino sem omitir um único pormenor (…).» (p. 21). A identificação entre a personagem e a narradora pode ler-se neste passo, explicitando o processo de construção narrativa e afirmando a sua natureza poiética, isto é, o fazer do texto: « (…) ela sabia que a vida não pertencia apenas a quem pertencia, mas também a quem a relatava. E que a vida de Walter não era só dele, era de muitos porque em Valmares todos a imaginavam e relatavam o que imaginavam. Walter também existia nos outros e cada um tinha um pedaço dele, um pedaço de que falavam com gosto, como se Walter lhes pertencesse. Os Dias comungavam dele, alimentavam-se da sua vida (…).» (p. 54). O nome «Dias» pode ter uma dupla leitura: para além do nome próprio da família, leia-se também como substantivo comum - os dias alimentavam-se de Walter, isto é, a memória permanente da figura ausente, acrescentada com as notícias que sempre chegavam. 7 «E foi assim que aconteceu. Ainda o tempo de reconstituir esses gestos (…).» (p. 9).

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sobre o «tio» colhida desde criança, a que juntou a sua própria experiência ao conhecê-lo em 51 e reencontrá-lo em 63, o que permite retomar células da história, ser um com o outro. A casa de Valmares é o cenário fulcral da narrativa, do retorno à infância (da narradora e do pai), «(...) carregada de memórias, lugar secreto, (...) onde o passado permanece, vivo nas coisas que dele falam, que o evocam (...).» (Magalhães, 1992:160). A diegese estrutura-se numa alternância de discursos de várias personagens e de tempo(s), entre o presente da evocação da narradora e o recurso a uma longa analepse para contar a história da família. Este recurso à pluridiscursividade é instaurador de ambiguidade, pois, ao revelarem-se várias perspectivas, estamos perante a relativização da verdade e do conhecimento, principalmente quando se trata de «re-criar» uma figura ausente. O recurso à focalização interna permite o relato por várias personagens, interseccionando os seus pontos de vista, para conhecer a personagem central e o seu universo psicológico. Elemento essencial da construção da identidade e modo de apropriação do tempo, a memória permite a conservação de informações para evocação futura, fruto de impressões sensoriais, vivências psíquicas, imagens mentais e elaborações intelectuais que se localizam no tempo e num espaço do passado, passíveis de presentificação. Trata-se de representações, isto é, aquisição de conhecimento da realidade circundante como uma gravação, um registo conservado que retém e reproduz, trazendo à consciência algo que já aí esteve, permitindo a sua releitura ao tornar presente algo que pertence ao passado, num reencontro com o tempo. A memória é um órgão de ficção – parece dizer a verdade, mas revela o papel ficcional da representação; é escolha, pois o 4

discurso das personagens que pretende representar Walter Dias é uma interpretação subjectiva e pode falhar por tendenciosa, incompleta ou incerta, por ser criada ficcionalmente, misturando memória e imaginação.8

2. «Convoco esse tempo (…).» (p. 95)

Que memória do pai guarda, então, a narradora? Nunca revelando o seu nome próprio, marca de identidade,9 esta é construída sobre as marcas de uma presença cuja ausência é repleta de significado:

(…) a presença de Walter em alguns cantos da casa a havia preenchido – Tinha ficado com a imagem da sua figura sobre os ladrilhos, de frente, de costas, junto à mesa, no meio deles e, depois, sozinho, unido à charrete. Herdara esse movimento, por aqui, por ali, fixo, andando, sem narrativa própria, e no entanto repetido e persistente. Possuía-o gravado (…). (p. 26).

Apesar do temor e da insistência do pai, na noite de 63, quando a questiona violentamente sobre o que lhe terão contado e envenenado contra ele,10 «(…) ela (…) sempre havia transformado o que escutava (…). A filha (…) fechava-se a sós com essas narrativas arcaicas, modificando-as e reconstruindo-

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«Walter só de passagem tinha a ver com esse lastro de imagens. Ela sabia. Walter passava-lhes ao lado.» (p. 74) 9 Ela sempre soube que Walter engravidara Maria Ema e que se recusara a casar, preferindo partir para a Índia, sendo a honra da família reposta pela união com Custódio, o irmão mais velho. Esta duplicidade entre ser filha e, simultaneamente, sobrinha definirá a personagem, pois ela «(…) sempre tinha sabido da existência duma ambiguidade, uma duplicação, resultante duma entidade dupla, unida lá atrás, na préhistória das suas vidas (…). E tinha conhecimento de que em todos os documentos de identificação havia uma mentira, mas ela colaborava com a mentira, porque da ambiguidade surgiam acontecimentos férteis e calorosos como se nascessem de verdades.» (p. 20). Oscilando entre as designações filha de Walter e sobrinha de Walter, só por quatro vezes se refere a si própria como «a filha de Maria Ema» (pp. 46, 107, 149, 159). 10 «“Ah, o que não te terão contado! (…) Falaram-te de mim como um trafulha, um trotamundos, um atravessa-mares. Aposto que te envenenaram. O que sabes tu sobre isso? (…) Diz-me, repete o que te disseram eles. Diz-me a verdade… (…) Diz-me o que te disseram eles, o que te contaram, o que sabes tu sobre nós os dois!”» (pp. 19 e 22).

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as (…).» (pp. 19 e 55). Ela assimila e cria para si própria e por si própria, «(…) rodeada de objectos e seres deixados por ele, imagens, ideias e fundamentos, tecidos e desenhos, os suficientes e adequados, provenientes dele, e se tinha desejado aquele encontro, era só para lhe explicar como vivia com ele, na ausência dele, por tudo isso que possuía.» (p. 16) A partir das histórias sobre Walter ou de qualquer objecto que o representa simbolicamente, a filha dá forma à presença e ao retrato do pai. Apesar da dissimulação, do encobrimento e da mentira, tudo o que se relacionava com ele era bom, tudo organizado e disposto como se ordenado numa película que ela designa como «o filme de Walter Dias», por ela mesma rodado.11 Enunciemos, então, as cenas desse filme. Uma das mais antigas recordações é o dia em que Fernandes, o marido da tia Adelina, ensinou-lhe a letra W, do nome do pai, uma letra nova, mas clandestina, logo proibida de nomear. A presença constante do embarcado, do dividido (p. 91), revela-se nos desenhos que ele envia, dos diversos lugares por onde passa, e a filha tornou-se a única possuidora, a herdeira universal dos seus desenhos, formando o Álbum dos Pássaros de Walter Dias. Os desenhos eram enviados para Maria Ema, em cartas que Custódio lia ao pai, e, quando ela esgotava a saudade e a memória do homem a quem se entregara, a filha herdava-os. O primeiro contacto entre pai e filha ocorre em 51, quando Walter regressa da Índia e entrega o equipamento militar à cunhada, pedindo que o guarde «(…) num local muito especial da casa. “Num bom lugar muito, muito especial (…)”.» (p. 28). Fruto do acaso, ou não, os objectos acabarão no roupeiro 11

«(…) estava habituada a pôr o filme de Walter a rodar, sempre que desejava, estivesse onde estivesse, e que ele sempre lhe aparecia, tal qual como era agora, e tal qual como fora antes, e esse filme era uma herança imaterial, invisível para os demais, mas concreto para si (…). Um filme feito sobre a aparição de Walter.» (p. 25).

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do quarto da filha, tornando-se no «(…) legado mais palpável que ele lhe deixara (…)» (p. 37), presença «in absentia»,12 até que, ganhando traça, é tudo enterrado «(…) como materiais dum crime. (…) como se a farda fosse um animal que tivesse carne e apodrecesse.» (p. 39). Descrevendo assim o sentimento que a família nutria por Walter, esse «corpo de pano» não desaparece; deixando de ser matéria, converte-se em lembrança, incorporando-se «(…) na circulação do sangue e nas cavernas da memória, para aí ficarem alojados no fundo da vida, persistindo ao lado dela (…).» (p. 39). É nesse ano que Walter, Maria Ema e a filha conseguem escapar à vigilância na casa de Francisco Dias (auxiliados por Custódio, possivelmente) e vão a Faro, onde pai e filha tiram uma fotografia.13 Este episódio tem uma cópia, na noite de 63, quando o pai, ao seu lado, em frente de um espelho, exclama: «Meu Deus, como nos parecemos!» (p. 31), não se recordando de que aquele momento já acontecera doze anos antes. No entanto, a memória da narradora, pela distância temporal, não se revela completa: «Ela não sabia como (…), nem era capaz de reconstituir (…). Apenas tinha a ideia (…), não sabia como tinham ido nem como haviam voltado, como tinham escapado (…) [,] não sabia se guardava a lembrança do instante, se o próprio instante era uma invenção criada a partir da imagem.» (pp. 34-35). Produto construído, ficcional, o «eu» é também uma invenção de si própria, o que a leva a duvidar se o que a sua

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«(…) um punhado de trapos e ilhoses podia constituir a pessoa que o envergara, e essa pessoa podia permanecer em casa e fazer companhia, e ser protecção, até que alguma força ou alguém o desfizesse, e mesmo assim, alguma parte do fundamental permanecia. (…) Walter tinha ficado inteiro dentro do roupeiro. (…) como uma pessoa que esperasse dia e noite uma visita.» (p. 38). Quando queria, ela abria a porta do roupeiro e o «pai» lá estava, começa a aparecer sempre que ela o procura, física ou mentalmente. 13 A fotografia permite guardar a memória do tempo e remete para a evolução cronológica e para um legado da infância: «Lembrar-me propriamente, só me lembrarei de ter sido erguida por ele, no momento da fotografia, quando ambos juntávamos as cabeças, e salvo as idades e as proporções, parecíamos iguais.» (p. 30).

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memória guardou é real ou imaginação,14 criando a partir dos objectos a que atribui uma carga emocional. Como um crime, clandestina, a fotografia será escondida por Maria Ema «(…) entre almanaques e terrinas, envolvida em papel pardo, metida no fundo de caixas e no forro dos quadros (…)» (p. 35) e a criança colabora no segredo: «E era isso que ela queria dizer a Walter Dias, naquela noite condensada, em que alguma coisa de fundamental se repetia, diante do espelho, mas não tinha palavras, não tinha tempo, não podia.» (p. 33). Esta ideia de efemeridade, do tempo não controlado, não dominado, que se esvai tão rapidamente que uma só noite não será suficiente para recordar tudo, para contar tudo, repete-se frequentemente, a que se alia uma nota de inefabilidade, de incapacidade verbal ou de excesso que torna impossível a verbalização.15 É também com esta fotografia que, antes do regresso de Walter, Maria Ema vem pedir um favor à filha: silêncio e que nunca se engane, tratando sempre Walter por tio, sem trocar o parentesco. Ela acede ao pedido, em troca da simples presença, da proximidade e de um relacionamento com o pai.16 «Protegeu-a essa imagem, a fotografia de Walter mostrada à pressa (…).» (p. 35). Juntamente com a fotografia, o revólver do soldado também constituirá uma defesa protectora para a sua filha, guardado debaixo do colchão. Esta força deixada pelo pai atenua o seu medo infantil do escuro, revelando-se como o elo

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«Ela imaginava.» (p. 55); «Ela gostava de imaginar a outra face.» (p. 60). «(…) nessa noite era impossível explicar, pois talvez ela não tivesse as palavras, ou tivesse, mas não as soubesse unir (…).» (p. 16); «E mesmo assim, só para resumir o que sabia, e que era tão pouco, ela não dispunha de tempo (…).» (p. 19); «E tudo isso ela teria conseguido explicar se tivesse tempo (…).» (p. 21); «(…) tempo que se escoava, (…) não poderia permanecer ali, (…) não dispúnhamos de tempo.» (pp. 21-22); «E era isso que ela desejava dizer, naquela noite de chuva (…), e não podia.» (p. 35); «(…) não tínhamos tempo.» (p. 37). 16 «A própria filha, durante esse tempo, não se importa de ser sobrinha (…). Fingindo, sem qualquer problema, fingindo a troco daquela memorável alegria. (…) Sim, eu sou apenas uma sobrinha, não me importo de o ser. (…) a filha não era filha, era sobrinha.» (pp. 120 e 122). 15

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de ligação e o objecto mais valorizado da sua herança.17 No entanto, separar-seá dele, quando o Dr. Dalila o atirar para o mar, enterrando a presença dessa memória. À carrinha e à égua, que o sedutor Walter usava nas suas conquistas, percorrendo as estradas de Valmares, chamaram Charrete do Diabo. A filha apropria-se do veículo das aventuras paternas, imaginando-se, no escuro do armazém, sem medo, a correr como ele, «(…) levando sob o braço o papel almaço, as tintas viarco e os lápis faber.» (p. 82). Esta brincadeira infantil, que, no fundo, constitui um legado e uma repetição dos actos de Walter, enfurece o avô, que ordena: «Retirem-na para sempre daquele lugar!». Mas ele ignorava que era dentro dela que se encontrava a semente de Walter, que dentro dela crescia e aumentava a recordação do pai, construindo cada dia mais uma imagem, uma presença, e daí nada seria possível retirar: «A imagem que fizera da pessoa dele era a sua herança.» (p. 54). Aliás, de todos, a narradora colhe directamente informações sobre o pai, mas com o avô, para quem ela será sempre a sobrinha de Walter ou «a filha da minha nora» (p. 82), haverá sempre uma barreira, uma distância latente, «(…) porque ele nunca falava para essa neta. Mas também não a privava de conhecer a diferença que tinha existido entre Walter e os outros filhos, se acaso ela quisesse ouvir, se é que ela ouvia. Andava por ali entre os demais como se fosse surda (…).» (p. 61). Esta postura de afastamento, isolando-se, como falha na integridade do «eu», fechada nas suas memórias e num silêncio que se apropria do que se passa à sua volta, descreve a narradora: «(…) Francisco Dias não

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«(…) se lhe levasse aquele objecto, Walter poderia desaparecer por inteiro, (…) ela não podia devolver-lhe a arma. Devolvê-la seria o mesmo que entregar a frágil anilha que lhe segurava o ser.» (p. 51).

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falava para ela. Talvez ela nem ouvisse. Quase muda, não falava, não ouvia, não sabia, (…) ausente, (…) sem dizer uma palavra, (…) a distraída, (…) sentada nas cadeiras, de costas voltadas, como era seu hábito.» (pp. 69, 72, 78). Esta atitude de Francisco Dias para com a narradora, igual ao pai («Onde Walter estivesse, estaria de costas viradas. Estaria bem.», p. 87), justifica-se por vê-la como uma imagem do filho, uma presença da sua ausência e na sua ausência, assumindose como uma marca perseguidora ao trazer-lhe à memória o filho e o seu delito. «Sei, vi, chamo esse momento.» (p. 104). Com esta fórmula, a narradora recupera um acontecimento que tumultuaria a paz da casa de Valmares: regressando em 63, Walter compra um carro, no qual os oito familiares viajam pelo Algarve, mas a verdade é que o veículo, reunindo todos num espaço diminuto, cria o clima para uma tragédia, já anunciado pela chuva diluviana, o tempo a carregar o espaço de fatalismo.18 Numa visita ao promontório de Sagres, Maria Ema, atraída pelo abismo do fundo do mar e não suportando mais o combate interior e o fingimento, tenta suicidar-se, mas Walter impede-a e consola-a do desespero, à frente de todos. Também ele experiencia um conflito interior, de consciência, e, reconhecendo e assumindo os seus actos, destrói e queima a charrete, eliminando as marcas do pecado, da sua falta, como se lutasse para acabar com uma injustiça, partindo, depois, para sempre.19

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«Choveu. Durante vários dias choveu, a casa ficou cercada. Era como se a chuva quisesse que os oito nos juntássemos, (…) estamos cercados pela chuva (…).» (p. 109); «(…) estávamos na escuridão da tarde, encurralados pela chuva, pela trovoada que passava, abrandava, dispersava e voltava, refluía, como se nos quisesse para sempre levar, excitados, perplexos, confundidos, envolvidos num mar de água.» (p. 117); «O carro era um espaço assinalado. (…) nunca tínhamos estado todos tão próximos em simultâneo. A proximidade juntava-nos. Era essa a finalidade.» (p. 121). 19 «Arrancará antes de o Sol romper, não voltará mais. Não voltará mais nada de Walter Dias a esta casa a não ser os boatos sobre si, sobre a lenda da sua chegada e da sua partida, tudo tão próximo e, no entanto, relatado com a imprecisão dum tempo medieval. Dele, dele mesmo, só voltará a notícia da distância, a notícia dos seus desenhos diferentes, conforme os locais por onde irá passando, e depois voltará esta manta, a confirmar o silêncio.» (pp. 133-134).

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3. «Um aconchego fantasma.» (p. 135)

Do abraço final, a filha guardou o calor do seu corpo, o hálito, o perfume, e tudo o que conhecia dele era bom: «Vejo-o como uma luz.» (p. 134). É a partir desta despedida que ela toma consciência de si e da sua identidade, é na partida do pai e na ausência de um dos elementos constitutivos da sua identidade que ela se afirma:

Tornei-me herdeira da imagem dum amor, duma paixão envolvida no seu desencontro (…). Eu era a filha dum acaso, dum ímpeto, dum desencontro de viagem, duma bruteza da juventude, da exuberância do corpo. (…) ela apenas tinha sido herdeira duma narrativa de amor de que conhecia os prolegómenos, o auge e o fim (…). A sabedoria daí adquirida era um ter, um haver, um depósito, uma sólida segurança que ela detinha. Uma herança. Eu possuía entre mãos essa inestimável herança.» (pp. 135136 e 160).

Após a partida de Walter, tem início o que a narradora designa como a década do silêncio e da ironia (p. 156),20 auto-denominando-se, agora, como a «filha legítima do soldado Walter» (p. 35). Começando por se envolver com o Dr. Dalila, que veio consultar Maria Ema, caída em depressão e neurastenia e tentando enforcar-se numa nespereira, o médico será o primeiro de vários amantes, escapando a filha à guarda e à vigilância maternas, que a acusa de ser «(…) a cara tinta e escarrada de Walter Dias, viciosa e depravada como ele, falsa e mentirosa como ele, traidora e inclinada ao mal como ele.» (p. 153). Tornavase-lhe, agora, evidente o seu fascínio infantil pela charrete.

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A memória também se faz de silêncio, de silêncios: «Lembro-me desse silêncio, desse progresso em direcção à realidade do mundo, à espessura da matéria. Lembro-me de tentar mover-me contra o silêncio. E os sons que existiam e me faziam caminhar em frente, eu ia buscá-los lá atrás (…). Nasciam da vontade de recompor o som espumoso dos passos de Walter.» (p. 139).

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O passado também é evocado através da memória epistolar21 e a narradora recorda as cartas envenenadas (p. 191) dos Dias, que partiram em busca de uma vida melhor, fugindo ao autoritarismo paterno e nunca mais regressando, cartas que quebram o silêncio, lançando a dúvida e a mentira, ao despertar algo que ficara guardado e que nunca fora referido: contam que Walter viajava com a manta de soldado no porta-bagagens do carro e que tentara abusar de Maria Ema e da filha; logo, concluíam que a atitude dissoluta da sobrinha «(…) deve-se sem dúvida a uma experiência grave ocorrida entre ela e Walter, o tio ou pai, como se queira. (…) pode ter acontecido. Ou aconteceu.» (p. 198). Tendo mitificado a figura do pai, desde a infância até à adolescência, após a sua partida seguiu-se a fase rebelde. Confrontada com o boato de um uso da manta para fins impróprios, a filha inicia uma nova construção do pai, já não cinéfila, agora literária: «(…) lembrou-se de contar o que corria sobre a manta do soldado (…)» (p. 162), a manta sobre a qual ele deitava as mulheres que seduzia. Será esta a forma pela qual ela quer apropriar-se da imagem paterna, descobrir quem é, vê-lo por dentro, invadi-lo: «(…) um homem que era soldado, que pintava pássaros e não trabalhava, tinha de se manifestar pelo sexo, porque de outro modo a figura não seria completa, não se entendia (…).» (p. 70). Esse trabalho de traça (p. 210) é uma experiência de profanação, um trabalho abominável (p. 211), para aniquilar em si própria a vida de Walter:22 dessacralizando as cartas e os desenhos, com frieza, devassando o seu interior, 21

«Convoco essas cartas, (…) para que Walter esta noite saiba. Chamo-as, desdobro-as e releio-as. (…) a memória depura-as, alisa-as, queima-lhes as descrições inúteis, as saudações repetidas, para se encadearem como anéis duma lagarta sem fim.» (p. 179); «Não recordo mais nada a não ser o que nelas está escrito.» (p. 188). 22 «Queria (…) captá-lo, apagá-lo, ultrapassá-lo, esquecê-lo, ser livre. (…) apagar a imagem dele que a afundava (…).» (pp. 212 e 232).

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quer transformar «(…) a doçura da sua imaterialidade evanescente numa parábola de natureza carnal para que desaparecesse. (…) Era preciso atingir o sexo de Walter.» (pp. 210-211). Escreve três narrativas, com títulos ilustrativos da vida paterna (O Pintador de Pássaros, A Charrete do Diabo e O Soldadinho Fornicador) e vai à Argentina, reencontrando o pai vinte anos depois, confrontar a própria personagem23 com o retrato de «(…) uma figura sedutora, ausente presente, que lhes havia alimentado a vida.» (p. 214). Mas a memória que dele tinha já não corresponde à realidade: a imagem sedutora do homem que ela guardou dista da figura que se lhe apresenta, um volumoso resto (p. 217), e a filha ainda hesita como o há-de nomear – se tio ou pai.24 Ele surpreende-se por vê-la, mas sabe tratar-se de um ajuste de contas, pois, ao ler as histórias, ele toma consciência do seu passado, como se estivesse perante um espelho. Revela que não desenha mais e ela reconhece que, afinal, ama aquele homem que lê as linhas amargas que ela escreveu sobre ele. Ela volta em paz e, dez meses após a notícia da morte de Walter, chega a Valmares um embrulho: «Deixo à minha sobrinha, por única herança, esta manta de soldado.» (p. 237). Acabará por enterrá-la debaixo das árvores de fruto, tal como haviam feito com a farda, mas, antes, chama, em pensamento, Walter e «(…) ele volta de novo, como uma luz, até ao fim da vida.» (p. 239). Contudo, este acto tem uma dupla leitura: cava a terra para enterrar o símbolo, presentificação da figura paterna já desaparecida, mas também se cava a terra para lá colocar uma semente, aliando uma ideia de morte a um desejo de vida, 23

Referindo-se-lhe como personagem (p. 216), revela o artifício que é a obra, expondo a experiência do acto de produção textual, em processo, numa metonímia da Literatura, a escrita-objecto-de-escrita, apresentando uma nota de auto-referencialidade, uma reflexão sobre o acto de criação literária na menção da obra por si própria: «(…) ela não o diz assim. Escreve-o.» (p. 167). 24 «(…) tanto faz chamar um nome ou outro nome, de tal modo a passagem do tempo nos deixou magoados.» (pp. 213-214).

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oposição que se desfaz numa comunhão recuperada. Assim, Walter volta a subir ao quarto da filha, como na noite de chuva protectora de 63, agora apenas uma sombra muda e imóvel, ficando inesquecíveis as suas promessas e os seus objectos conservados intactos na mente da filha, onde ela guarda a imensa herança que ele lhe deixara; «(…) depois já nem sombra era, como uma morte. Fazia falta mas apagava-se. (…) Walter pode deambular por este espaço, em paz, até ao fim da vida.» (pp. 208 e 238). Lídia Jorge alcança, neste romance, um apurado domínio da língua, um trabalho da palavra que confere um ritmo gradativo à narração, em que o tempo e a memória, representação de uma experiência humana, definem uma identidade, construindo, também a autora, literariamente, o filme de Walter Dias a partir do olhar da sua filha, evocação de um homem sem destino ou à procura dele e de si próprio.

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