A construção das diferentes experiências no ensino médio público

June 2, 2017 | Autor: Maria Torquato | Categoria: Youth, High School, sociology of experience
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A CONSTRUÇÃO DAS DIFERENTES EXPERIÊNCIAS NO ENSINO MÉDIO PÚBLICO The Construction of Different Experiences on Public High School

Maria Socorro Gonçalves Torquato Universidade Bandeirante de São Paulo/SP [email protected] Resumo A partir da teoria da experiência de François Dubet e da metodologia de Bernard Lahire – análise das redes de interdependência1 – este artigo traça três diferentes perfis de alunos do ensino médio público noturno (interessados e disciplinados, menos interessados e indisciplinados e, por fim, os evadidos), encontrados em pesquisa empírica realizada pela autora na época em que cursou o mestrado. Além disso, aponta as razões dos diferentes caminhos seguidos por esses estudantes e os significados que eles atribuem à escola. Enfim, tece as experiências díspares que os educandos, influenciados pela bagagem que trazem de ambientes externos à escola, constroem dentro desta chegando às seguintes conclusões: a escola representa, sobretudo, um importante espaço de sociabilidade, no qual os alunos que se evadem o fazem, principalmente, porque não conseguem torná-la sociável. Os alunos que têm facilidade para se integrarem ao mundo escolar e que constroem projetos de vida ligados a ele tendem a produzir experiências positivas. Já aqueles que demonstram dificuldades para assimilar os conteúdos e não possuem esses projetos normalmente, ao se sentirem aquém dos “bons alunos”, “arranham” a sua autoestima e constroem experiências menos positivas. Palavras-chave jovem; ensino médio; sociologia da experiência. Abstract Considering François Dubed’s Sociology of Experience and Bernard Lahire’s methodology – Interdependence Network Analysis – this article outlines three different profiles of students (interested and disciplined, less interested and undisciplined, and dropouts) from public high school, according to empirical research conducted by the author during her master’s degree research. Besides, it shows the reasons why students follow different paths and the meanings they attribute to school. Finally, it divides the different experiences, that they build, influenced by the background they bring from outside the school, reaching the following conclusions: school represents, above all, an important socialization sphere, in which drop-out students did not suceed in. Students who are easily integrated to the school world and those who build life designs connected to school have a tendency to construct positive experiences. Those who show difficulties with the contents and do not have plans connected to school, in general, lower their self esteem and go through less Utilizada no livro “Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável”, de 1997.

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positive experiences. Keywords youth; high school; sociology of experience.

Introdução Este artigo apresenta alguns dos principais resultados da investigação realizada no contexto da dissertação de mestrado defendida pela autora, em agosto de 2002, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (Departamento de Sociologia) da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação do professor doutor Orlando P. de Miranda – O papel do ensino médio público noturno de periferia na vida dos jovens que o freqüenta. A pesquisadora buscou apreender, a partir da ótica dos alunos, os motivos que os levam a frequentar o curso. A investigação se justifica não só em virtude do crescente número de matrículas no ensino médio no quinquênio 1994/99 (57,3%),2 mas também pelo aumento da violência nas escolas3 e, ainda, pela discussão relacionada à crise de identidade desse nível de ensino, que foi deixando, progressivamente, o papel exclusivo de formar os filhos das elites econômicas e intelectuais que almejavam o acesso ao ensino superior, tornando-se, na década de 1940, também profissionalizante, qualificando, nos anos 1970, as camadas médias, principalmente, as populares. Em razão desses fatos, da expansão e das reformas pouco adequadas, o ensino médio público foi paulatinamente se desestruturando, criando um vácuo nas definições sobre a finalidade da formação (FANTINI; STREHL, 1994). A construção do objeto de pesquisa da mencionada dissertação se deu a partir da contribuição dos trabalhos dos seguintes autores: Guimarães (1995); Lahire (1997); Zago (2000); Romanelli (1995; 2000); Dubet (1996); Dayrell (1996); Beisiegel (1982); Gomes (1996), que abordam a escolarização das camadas populares. A pesquisa foi norteada pelas seguintes questões específicas: que influência a escola e o curso em questão exercem sobre os alunos? Em que essa escola e esse ensino contribuem na formação acadêmica, profissional e na autoestima do aluno? Por que alguns estudantes interrompem os estudos, embora saibam que o mercado de trabalho tem sido exigente no que tange à escolaridade? O que difere os alunos que desistem daqueles que continuam até o término do ensino médio? Os projetos e as perspectivas de futuro são diferentes? Os valores culturais e o poder econômico diferem? Enfim, quais as experiências4 proporcionadas ao educando pelo ensino médio da escola pública? Na primeira fase da pesquisa, um estudo de caso, foram abordados 110 alunos com o Fonte: Inep/MEC 9/99. No período de 1971 a 2004, as matrículas no ensino médio regular ampliaram-se mais de oito vezes, e a rede estadual foi a que mais cresceu. 3 Em 1999 e 2000, foram realizadas pesquisas pelo Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo (UDEMO), constatando que mais de 80% das escolas pesquisadas sofreram algum tipo de violência (depredações a móveis, pichações, brigas, furtos, tráfico de drogas, arrombamentos e outros). 4 Experiência é aqui entendida como o trabalho realizado pelo indivíduo sobre si mesmo; é a com2

binação da sua formação anterior, do seu projeto de vida e das estratégias escolares (colas, maior dedicação às disciplinas que julga mais importantes, etc.), tudo isso tangenciado pela seleção escolar e pela integração (absorção de regras, sistemas de valores, etc.) (DUBET, 1996).

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intuito de obter o perfil geral da população a ser pesquisada. Foram aplicados dois questionários de múltipla escolha a três classes de segunda série do ensino médio noturno da Escola Estadual Professora Fanny Manzoni Santos (periferia da grande São Paulo). O primeiro foi utilizado para obter informações gerais, e o segundo, detalhar as informações já obtidas. Numa segunda fase, passamos a observar sistematicamente os alunos em sala de aula, nos intervalos de aula, na entrada e na saída do período. Escolhemos a segunda série B para assistir às aulas, aleatoriamente, uma vez que constatamos que as diferenças entre as três classes eram mínimas no que tange às faixas etárias e econômicas, à estrutura familiar e à sociabilidade. A convivência de duas semanas somada à ajuda dos professores e alunos possibilitou-nos detectar os alunos mais frequentes, interessados e disciplinados e, em oposição, os menos frequentes, menos interessados e indisciplinados. Separando-os em dois grupos, escolhemos cinco de cada grupo para duas entrevistas, com um intervalo de dois anos entre a primeira e a segunda. Paralelamente, fizemos um levantamento nos documentos da escola, localizando nome e endereço dos 21 alunos que se evadiram das mesmas turmas no ano letivo anterior (1997). Desse total, sete haviam se matriculado novamente em 1998 (três em classes regulares e quatro na Educação para Jovens e Adultos –EJA), quatro não foram localizados (mudaram de endereço), e um recusou-se a participar da pesquisa. Trabalhamos com os nove restantes aplicando os dois questionários. A pretendida montagem de um grupo de controle com cinco estudantes evadidos acabou se fazendo automaticamente, pois, dos nove entrevistados, quatro encontravam-se vinculados ao supletivo com matrícula na rede privada, restando, portanto, como realmente evadidos, os cinco que seriam efetivamente entrevistados. Assim, com a constituição de três grupos, entramos na terceira fase da pesquisa – as entrevistas centradas nas histórias escolares dos sujeitos –, que nos forneceu respostas às nossas indagações. Para analisarmos sociologicamente nosso material empírico de forte conotação biográfica, estabelecemos alguns parâmetros inspirados no modelo proposto por Lahire (1997), ou seja, a busca de combinações específicas de traços gerais pertinentes, os quais nos proporcionaram um direcionamento para pontos específicos, evitando, assim, alguns riscos. Os referidos parâmetros foram estes: a) os processos familiares que ajudaram o aluno a manter uma relação positiva ou negativa com a escola; b) o grupo de referência para o aluno, fora da família, que o influenciou negativamente ou positivamente em sua relação com a escola; c) a relação entre a escola, o trabalho e a perspectiva de futuro do aluno; d) a experiência construída na escola.

Perfil da População Pesquisada A população pesquisada foi composta de estudantes tanto do sexo masculino como do feminino, oriundos da classe média baixa, solteiros, moravam com suas famílias e almejavam fixar-se no mercado de trabalho para ajudar na renda familiar e ter acesso a certo tipo de vestuário e lazer que seus pais não poderiam lhes dar. Como discute Abramo (1994), os jovens nessa fase da vida sentem necessidade de se Comunicações • Piracicaba • v. 16 • n. 2 • p. 47-60 • jul.-dez. 2009

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identificar com algum grupo e, para isso, precisam possuir o código do grupo escolhido, ou seja, vestirem-se como ele, frequentarem os mesmos lugares que esse grupo frequenta, ouvirem e possuírem as músicas favoritas dele, terem a sua linguagem, etc. Percebemos que eles acreditavam que a escola fosse um veículo de ascensão social, isto é, uma instituição que poderia torná-los cidadãos – embora possuíssem uma noção bastante vaga do conceito de cidadão/cidadania –, além de ajudá-los a se prepararem para o mercado de trabalho e proporcionar conhecimentos úteis. É como se a escola fosse um investimento para o futuro próximo. Esses mesmos alunos pretendiam continuar seus estudos, num curso de terceiro grau ou num curso técnico. O futuro, para eles, parecia passar pela escola, mesmo que naquele momento houvesse a sensação de que ela não correspondia às suas expectativas. Os conteúdos eram considerados facilmente assimilados, embora, para muitos, eles não estavam ligados ao dia a dia. Mas quase todos comungavam a ideia da escola como um importante espaço de sociabilidade. De modo geral, é o mesmo perfil do estudante da rede estadual de ensino encontrado por Mendes (1991), em pesquisa realizada com uma amostra bem maior (704 alunos), abrangendo a capital e a grande São Paulo, os períodos noturno e diurno e as quatro séries do ensino médio e profissionalizante. No final do ano letivo pesquisado (1998), dos 147 alunos matriculados, 110 foram promovidos, 17 transferidos, 17 evadidos e 3 retidos após a recuperação do mês de janeiro.5

Os Alunos Os mais frequentes e mais disciplinados

Todos os cinco alunos – aqui mencionados pelas seguintes abreviaturas; Dv; An; Fv; Dc; e Db – ingressaram no mercado de trabalho apenas após a conclusão do ensino fundamental. Isso mostra o quanto a contribuição financeira dos filhos não era urgente para suas respectivas famílias e aponta, ainda, para a existência de um pacto implícito entre filhos e responsáveis: o mundo do trabalho só seria conhecido após o ensino fundamental; antes era necessário preparar-se o mínimo possível porque, do contrário, seria difícil conseguir o futuro próximo, um trabalho devido às exigências cada vez maiores do mercado Entretanto, mais que isso, parecia haver por parte dos responsáveis um sentimento de obrigação de dar aos filhos o que consideravam o mínimo, o ensino fundamental, o que seria, em geral, tanto quanto ou mais do que os pais conseguiram realizar. Já o ensino médio ficaria a cargo dos filhos, sob sua responsabilidade, pois eles já poderiam “andar com as próprias pernas”. Percebemos um distanciamento dos pais em relação à escolaridade dos filhos após o ensino fundamental – deixam de cobrar as tarefas diariamente, de ajudá-los com as lições –, se bem que continuem acompanhando-os e, acima de tudo, esperando bons resultados. Embora os pais ou responsáveis desses jovens não tenham ultrapassado o ensino fundamental – muitos não chegaram nem a concluí-lo, com exceção dos pais de Dv, nossos entrevistados

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Fonte: Secretaria da Escola Estadual Professora Fanny Manzoni Santos.

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concluíram esse nível de ensino sem apresentarem grandes problemas. An e Dv reprovaram o primeiro ano, mas superaram tal reprovação e tornaram-se “bons alunos”. Cada aluno, em particular, viveu um conjunto de fatores que o levou ao sucesso durante o ensino fundamental. Destacamos neste artigo aqueles que conseguimos detectar dentro dos limites de nossa pesquisa6 e que julgamos de grande relevância. O fato de An ter recebido de seu padrasto uma educação rígida no que tange à disciplina (aprendendo a obedecer e a cumprir as tarefas) e à necessidade de estudar para que no futuro não passasse pelas mesmas dificuldades financeiras que a família havia enfrentado durante a sua infância parece ter facilitado seu sucesso escolar. Percebemos, pelas suas afirmações, que todas as ações escolares soavam como obrigação: gostar de ler, apreciar política, prestar atenção nas aulas, enfim obrigação de ter sucesso na escola e valorizar a cultura escolar. Tudo isso, no nosso entendimento, era fruto da educação disciplinadora do padrasto. Além do mais, An via o padrasto, figura respeitada e admirada, ler esporadicamente os jornais da grande imprensa, o que pode ter fortalecido a sua valorização pela cultura escolar. Dv aprendeu desde cedo que para ser igual ao pai, do qual se orgulhava muito por não deixar faltar nada em casa, não ser alcoólatra – como muitos pais de seus colegas do bairro –, precisava estudar como ele, que havia concluído o ensino médio, pois só assim conseguiria um bom emprego e seria um bom pai mais tarde, a exemplo de seu progenitor. Dv presenciava, ainda, o pai ler diariamente um jornal de expressão nacional, do qual possuía uma assinatura, mostrando-lhe, indiretamente, a importância da cultura formal. Fv, além de estar em permanente contato com as tias maternas que estudavam – apenas uma delas não chegou a concluir o ensino médio – adorava o pai, que ela considerava muito inteligente. Ele havia concluído o ensino fundamental e era bastante presente e atencioso com ela. Durante os primeiros quatro anos do ensino fundamental de Fv, ele se encarregou de ajudá-la nas tarefas escolares, passando mais tarde essa tarefa para as tias, embora tenha continuado a acompanhar sua vida escolar, sempre perguntando se tudo estava indo bem na escola. Tudo isso, somado ao fato de o pai ter o hábito de ler aos domingos um jornal da grande imprensa, levou Fv a valorizar a cultura escolar. Dc, além de viver rodeado de irmãos que estudavam – todos concluíram o ensino médio –, viveu desde o seu nascimento num clima familiar em que a cultura escolar era valorizada, pois seu pai era pastor evangélico (estudava a Bíblia) e toda a família envolvia-se com a igreja, seja na escola dominical, no grupo de jovens da igreja ou na banda de música. Sempre moraram ao lado da igreja, facilitando, assim, essa convivência. Ademais, a mãe, que era quituteira, tinha o hábito de ler livros e revistas de receitas. Embora o pai de Dc não interviesse diretamente em suas tarefas escolares, esperava e cobrava sucesso, um bom desempenho escolar. Por último, temos Db, criada pela avó e pela mãe analfabeta, sendo-lhe atribuídas, no seio familiar, funções que exigiam a cultura escolar (fazer e pagar contas, ler e Nosso objetivo era focar o ensino médio, portanto nosso alcance no ensino fundamental ficou bastante reduzido.

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escrever correspondências, fazer compras, etc.) e responsabilidades (cuidar da casa, dos irmãos mais novos, etc.). Acreditamos que esses dois fatores, reforçados pelo clima vivido mais tarde na igreja evangélica (ler a Bíblia, interpretá-la e, a partir da oitava série, atuar como monitora da escola dominical), tenham contribuído de forma positiva para seu sucesso no ensino fundamental. Percebemos que o sucesso escolar acontece quando os educandos têm um projeto para o futuro próximo, intrinsecamente ligado à escola, e quando paralelamente vivenciam a valorização desta, como é o caso de Dv que, tendo um projeto de conseguir, num futuro breve, um bom emprego numa empresa de grande porte, com salário mais alto do que o de então, registrado em carteira de trabalho e com direitos trabalhistas, acreditava que isso se daria por meio do grau de escolaridade. Ao mesmo tempo, esse aluno vivia num ambiente de trabalho em que foi promovido porque era o empregado com maior nível de escolaridade. Para ele, trabalho e escola eram duas coisas inseparáveis e ter “um bom emprego” era a garantia de poder realizar seu sonho de consumo (carro), tendo, mais tarde, condições de sustentar uma família como seu pai. O mesmo ocorria com An, que também tinha a escola como trunfo para manter-se e crescer no trabalho e, por meio deste, conseguir realizar seus sonhos de consumo (carro, hobbies e lazer), além de, num futuro distante, sustentar a sua própria família. Acresça-se a isso o fato de que Dv convivia em seu trabalho com colegas mais velhos, com nível de escolaridade superior ao seu, ocupando cargos mais elevados na hierarquia da empresa, o que o levava a valorizar a cultura escolar ainda mais, interessando-se por ela. Finalizando, temos o exemplo de Dc, que via a escola ligada ao seu projeto profissional: era preciso fazer o ensino médio para ingressar no curso de pedagogia, o qual lhe auxiliaria em seu projeto de tornar-se produtor e vendedor de toda a linha de brinquedos para playground. Esse curso daria confiabilidade para seus produtos – uma vez que negociaria com donos de pré-escolas, além de lhe dar chance de mudar de profissão, caso esse projeto não desse certo. Ao mesmo tempo, vivia na igreja, com os amigos, e, em casa, com os pais e os irmãos, um clima de valorização da cultura escolar, ainda que não fosse externada. Esses argumentos fortalecem-se, em nosso entendimento, quando olhamos para as histórias totalmente diferentes de Db e Fv. Ambas tiveram sucesso no ensino fundamental, que cursaram sem problemas, mas, ao ingressarem no primeiro ano do ensino médio, não tinham projetos ligados à escola, ao contrário, estavam vivenciando momentos em suas vidas em que a escola não tinha sentido. Db estava trabalhando como babá, assim não precisava para essa ocupação mais do que o ensino fundamental, aliás esse grau de ensino em sua família já era uma grande vitória – a avó e a mãe eram analfabetas, e seu irmão mais velho havia parado os estudos antes de concluir o ensino fundamental. Em seu trabalho nada a estimulava a continuar os estudos. Trabalhar estimulava-a, era algo novo ter seu próprio dinheiro. Fv, ao ingressar no ensino médio, passou a namorar e sair com colegas para bares, em vez de entrar nas aulas. Sentia-se livre, pois até então o pai havia proibido as saídas noturnas com colegas, mas agora, trabalhando, tendo seu próprio dinheiro e estudando durante 52

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o período noturno, não tinha como seu pai controlá-la, portanto a escola ficou em segundo plano, o único projeto era divertir-se, não havia outro. Elas só voltaram a se interessar pela escola após passarem por experiências negativas em busca de trabalho formal (carteira assinada, direitos trabalhistas, etc.) e perceberam que, para adentrarem nesse mercado, seria necessário, no mínimo, a conclusão do ensino médio, ou seja, quando firmassem um projeto para um trabalho formal e o ligassem à escola. E, no caso de Db, há ainda a experiência como monitora da escola dominical e a convivência na casa do pastor, que reforçavam a valorização da cultura escolar, ajudando-a na decisão de voltar aos estudos. Os cinco alunos sentiam-se valorizados e respeitados devido aos seus contatos extraclasse com os professores, dos quais pegavam livros emprestados, ouviam conselhos, discutiam sobre política, colhiam dicas sobre cursos superiores, vestibulares, carros, etc. Em comum, todos apresentaram as notas; os cinco as mantiveram positivas em sua maioria, para isso se utilizaram de várias estratégias, dentre elas: o estudo para as provas e a realização dos exercícios de fixação. Temiam as notas negativas e a repetência, embora tivessem informações de que não havia mais reprovação na escola pública, mas não se arriscaram. Foram acompanhados pelos pais, não mais como no ensino fundamental, pois estes não intervinham diretamente – como se esse nível de ensino fosse responsabilidade exclusiva do aluno –, e esperavam o sucesso escolar. Ao término do ensino médio, esses jovens conservaram apenas algumas amizades construídas na escola e afirmaram ter restringido o lazer. Parece que construíram uma experiência positiva na escola. Eles apresentavam disposição para o aprendizado escolar, valorizavam a cultura formal, sentiam-se valorizados por frequentar a escola e pretendiam continuar os estudos, que estavam ligados aos seus projetos profissionais. O ensino médio reforça a valorização da cultura formal desses alunos, além de instrumentá-los com essa cultura e proporcionar a eles um espaço importante de sociabilidade que, no entanto, é perdido ao término do curso.

Os menos frequentes e menos disciplinados

Pudemos perceber que as famílias desses jovens – Ld, Ax, Vl, e Ad – conseguiam, ainda que de forma modesta, se manter sem a ajuda financeira dos filhos e, mais uma vez, percebemos, com exceção do exemplo de Ld, um pacto implícito entre pais e filhos: os filhos concluiriam o ensino fundamental primeiro para depois inserirem-se no mercado de trabalho. No caso de Ax, os pais vão além, exigindo a conclusão do ensino médio. Permitir que os referidos jovens ingressassem no mercado de trabalho não era sinônimo de que pudessem parar de estudar, embora os pais não mantivessem um acompanhamento tão estreito como no ensino fundamental, cobravam bons resultados e a conclusão do ensino médio. Os entrevistados viviam experiências diferentes em seus contatos mais próximos. Temos o exemplo de Ld, que aprendeu em casa com o pai, o avô e os tios paternos a imporComunicações • Piracicaba • v. 16 • n. 2 • p. 47-60 • jul.-dez. 2009

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tância da formação técnica, de obter uma profissão por meio de cursos técnicos, mas que, além disso, aprendeu a valorizar a cultura escolar por intermédio dos pais, que cursaram até o ensino médio. Parece-nos que amigos não exerceram influências significativas em termos de vida ou na valorização da cultura formal. A entrada precoce no mercado de trabalho ao lado do pai e o fato de passar a morar sozinho a partir dos dezesseis anos, no fundo do quintal dos avós paternos, parecem ter contribuído para o amadurecimento de Ld, levando-o a preocupar-se, antecipadamente, com um futuro profissional e, consequentemente, com a escola. Ax tinha em casa exemplos que, de certa forma, não o ajudavam a valorizar os estudos. A irmã, dez anos mais velha, concluiu o ensino médio, casou e permaneceu fora do mercado de trabalho. Os dois irmãos e o pai, embora não tivessem o ensino médio,7 trabalhavam e sustentavam a casa. O pai, apenas com a quarta série do ensino fundamental, havia conseguido criar a família e comprar casa própria. Em casa e com os amigos, Ax não tinha contato estreito com a cultura formal, estava interessado em paqueras, carros e futebol. Além do mais, o ensino médio representava para ele um empecilho à entrada no mercado de trabalho, à obtenção do próprio dinheiro que lhe possibilitasse, assim, realizar sonhos de consumo, uma vez que o pai não o deixava trabalhar sem antes concluir o ensino médio. Talvez por tais motivos, Ax mantivesse desprezo em relação aos conteúdos curriculares. Vl convivia com um pai que gostava de aprender e estudar, mantinha livros em casa, embora não os lesse, fazia cursos e que, aos quarenta e cinco anos, começou a cursar Direito, quando ela estava ainda na sétima série do ensino fundamental. Ou seja, Vl vivia em casa um clima de valorização da cultura formal e era cobrada pelo pai para que mantivesse um bom andamento escolar. Porém, a necessidade de trabalhar, e mais tarde de estudar, tornou um tanto distante o contato entre pai e filha. Vl passou a ter maior contato com as madrastas a maioria dessas mulheres não havia concluído o ensino fundamental –, principalmente com uma delas, que conheceu aos onze anos, bastante respeitada por V1 e que foi sua fonte de conselhos e influências, além de oferecer-lhe seu primeiro emprego, aos quinze anos. Essa ex-madrasta possibilitou-lhe um outro parâmetro de vida ligado ao trabalho manual, diferente daquele oferecido pelo pai. Além disso, essa aluna convivia também com a irmã mais nova e as amigas um clima que estava longe da cultura forma. Assim, Vl aprendeu a valorizar a cultura escolar pelo contato com o pai e, certamente, tal valorização foi reforçada pela escola, que se tornou, porém, uma realidade pouco familiar, uma vez que “A presença objetiva de um capital cultural familiar só tem sentido se esse for colocado em condições que tornem possível sua transmissão” (LAHIRE,1994, p. 338). Inferimos que essa falta de familiaridade com a cultura escolar tenha sido responsável pelas dificuldades apresentadas por Vl em algumas disciplinas durante o ensino médio. Certamente, Rg aprendeu a valorizar o ato de estudar na própria casa, pois, dentre os membros de sua família, apenas a mãe e um dos irmãos não haviam concluído o ensino Um de seus irmãos concluiu mais tarde esse nível de ensino.

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médio, porém ainda assim não se familiarizou com a cultura formal. Ele não gostava de ler, estudar e se manter informado sobre as notícias políticas, econômicas e sociais do Brasil e do mundo. Aprendeu desde os doze anos com um dos cunhados – o qual se tornou seu melhor amigo – que era possível trabalhar e sustentar uma família sem ter muita instrução. Em contrapartida, tinha o exemplo da irmã mais velha, a única que chegou até o ensino superior e que, segundo a concepção de Rg, fez muito esforço para pouco resultado, uma vez que “apenas dá aula”. Rg teve a ajuda e a presença da referida irmã até os onze anos, quando ela casou e foi morar distante, em São Paulo. Rg passou, então, a conviver mais de perto com o cunhado, que foi morar no quintal da casa dele. Surgiu, portanto, uma mudança radical no modelo a seguir. O modelo do cunhado foi reforçado pelos colegas do bairro, do time de futebol e da escola, que não tinham familiaridade com a cultura formal e estavam mais interessadas em futebol, paqueras, motos e carros. A distância da cultura formal parece ter sido reforçada pelas repetências na quinta série – no mesmo ano em que perdeu a ajuda da irmã e passou a recusar ajuda dos outros irmãos – e na sétima série. Ad viveu um clima familiar também bastante distante da cultura formal, pois a mãe dedicava a maior parte do seu tempo ao trabalho, e o pai deixou de acompanhá-lo na vida escolar por ter se separado de sua mãe. Ad passou, então, a conviver cotidianamente somente com os irmãos mais novos – que padeciam das mesmas carências – e com os primos maternos (adolescentes) que moravam no mesmo quintal. Não encontrou em casa, nem com os primos, nem com os amigos do bairro, um modelo de convivência com a cultura formal. Tal contato era mantido apenas na escola, a qual frequentava por obrigação (a mãe o obrigava) e porque era um local de divertimento. Durante o ensino médio, passou a frequentar a escola por vontade própria, pois queria prestar vestibular e fazer medicina, não precisando mais ser cobrado pela mãe. Ao contrário do que poderíamos pensar, o gosto por medicina não significou familiaridade e gosto pela cultura escolar, apenas um sonho de infância reforçado pelo fato de passar a trabalhar em um consultório médico. Ad só vai se mostrar interessado pelo aprendizado escolar no final do ensino médio, pois, após abandoná-lo durante um ano e meio devido ao serviço militar, voltou mais maduro e preocupado com o aprendizado, e não mais só com o diploma. Embora valorizassem o diploma e mantivessem uma boa relação com a escola, esses jovens não apresentavam facilidade para lidar com os conteúdos programáticos, não gostavam dos estudos e nem se interessavam por eles, em decorrência da falta de familiaridade com a cultura escolar. Somente conseguiram notas positivas graças às colas, à ajuda de colegas, que realizavam os trabalhos escolares deles, e a outras estratégias. A dificuldade de se tornarem “bons alunos” parecia afastá-los cada vez mais da cultura escolar, e a forma como reagiam, tomando toda responsabilidade do “fracasso” para si, fazendo com que se sentissem incapazes de tolerar horas de estudos (leituras, interpretações, etc.) e corroessem sua autoestima, não os impedia, entretanto, de manterem Comunicações • Piracicaba • v. 16 • n. 2 • p. 47-60 • jul.-dez. 2009

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o domínio sobre os mecanismos escolares, pois sabiam utilizar as estratégias para que não fossem formalmente reprovados pela escola. Pareciam, ainda, levantar a autoestima por meio do trabalho.

Os desistentes

Embora tenha sido possível para as famílias manterem esses jovens fora do mercado de trabalho por alguns anos – tempo suficiente para concluírem o ensino fundamental, se não houvesse interrupções ou repetências –, após começarem a trabalhar, passaram a contribuir no pagamento das despesas domésticas e para o próprio sustento, ao contrário do que ocorreu com o grupo anterior (“Os alunos menos frequentes e menos disciplinados”). Mr só após a morte do pai tornou-se uma peça chave no orçamento doméstico, uma vez que, além da contribuição financeira da mãe (cozinheira), a família contava apenas com o salário dele. Rm passou a morar fora da casa dos pais, juntamente com o irmão, precisando, então, do próprio salário para se sustentar. Lm, diante da nova família que o pai constituiu, teve a necessidade – juntamente com a irmã solteira – de prover o próprio sustento. Eg, ao lado do irmão mais velho, começou a ajudar os pais nas despesas domésticas e a pagar o aluguel, uma vez que a família era composta por mais dois membros que não trabalhavam. Por último, temos As, único que ingressou no mercado de trabalho após a conclusão do ensino fundamental (com 20 anos), embora, antes, fizesse esporadicamente serviços como eletricista em casas da vizinhança para ajudar na manutenção da sua casa e de si próprio. Porém, foi só somente depois da entrada no mercado de trabalho formal que começou a ter uma contribuição imprescindível, época em que a família passou a ter mais um membro e a contribuição financeira da mãe tornou-se bastante escassa, uma vez que, na “tapeçaria” em que trabalhava, os serviços tornaram-se cada vez mais raros. Mesmo tais jovens pertencendo a famílias carentes que precisavam de mais um membro trabalhando para ajudar no pagamento das despesas domésticas, não nos parece ter sido esta a causa principal para entrarem no mercado de trabalho, com exceção de Rm, mas sim a necessidade de fazer algo que lhes garantisse um retorno positivo, valorização diante do outro e de si mesmos e aumento da autoestima. O fato de o trabalho proporcionar ajuda financeira à família e ao educando – no que tange ao vestuário, lazer e material escolar – traria respeito por parte da família e abrandaria a marca de derrotado construída na escola por meio das notas baixas, da impotência diante de conteúdos pouco inteligíveis e da reprovação formal pela própria escola. O que nos leva a chegar a tal conclusão é o tempo razoável que eles levaram para ingressar no mercado de trabalho. Considerando tratar-se de famílias de classe média baixa, seria tempo suficiente para concluírem o ensino fundamental, caso não houvesse interrupções ou repetência, ou seja, não havia urgência financeira para começarem a trabalhar. Portanto, só depois de estarem trabalhando passaram a dar uma contribuição doméstica imprescindível. Percebemos que as idades dos alunos desse grupo quando conseguiram o primeiro emprego não são muito diferentes daquelas dos dois grupos anteriores: eles tinham respectivamente 15, 17, 17, 14 e 20; os do primeiro grupo tinham 15, 15, 18, 18, e 17; e 56

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o segundo grupo, 17, 17, 17, 16 e 15. A diferença maior estava na conclusão do ensino fundamental, que ocorreu pela maior parte dos integrantes dos dois primeiros grupos antes que começassem a trabalhar. Além do mais, a conclusão do ensino fundamental representa, em geral, já ter conseguido realizar muito mais do que seus pais realizaram, e desistir é um ato familiar já vivido pelo próprio entrevistado e por outros membros mais velhos da família. A entrada no mundo do trabalho, embora tenha melhorado a autoestima do educando, aumentou a distância em relação à escola, pois as oito horas diárias de trabalho geraram cansaço físico e mental, dificultando ainda mais a assimilação dos conteúdos, provocando atrasos, faltas e a quantidade de notas negativas. Além do mais, existe o fascínio com o poder de compra que, apesar de pequeno, permite, por exemplo, a aquisição do vestuário desejado. Os alunos viram, portanto, cada vez menos a necessidade da escola em suas vidas porque conseguiam trabalhar, ganhar dinheiro e gastá-lo sem ao menos concluírem o ensino fundamental. Acrescente-se o fato de que não conseguiam ver ligação entre trabalho e estudos. O importante passou a ser cada vez mais o trabalho e o lado pessoal (namoro, casamento, etc.), porém continuariam a estudar até onde suportariam: conclusão do ensino fundamental e ingresso no ensino médio. O esforço talvez tenha acontecido porque apreenderam a escola como valor positivo e como aquela que os ajudaria a terem chances melhores no mercado de trabalho e, assim, até onde conseguirem, vão fazendo um investimento para o futuro. O desinteresse e a dificuldade em relação aos conteúdos programáticos os levaram ao uso de várias estratégias para conseguirem aprovação, dentre elas a cola. As dificuldades e o desinteresse podem ter sido gerados, dentre outras coisas, pelo escasso contato com a cultura formal fora da escola. Os pais não os ajudavam nas tarefas escolares, seja pelo baixo grau de escolaridade (com exceção dos pais de As, os demais não ultrapassaram a quarta série do ensino fundamental), seja por falta de tempo, ou por outros motivos que não nos foram revelados. Isso não significa que os pais fossem alheios à vida escolar dos filhos, ao contrário, frequentavam as reuniões bimestrais e esperavam bons resultados, embora não soubessem como ajudá-los. Mesmo tendo concluído o ensino fundamental e prosseguido no ensino médio, tais estudantes não conseguiram articular um projeto de futuro ligado à escola. Não enxergaram uma ligação entre ela e suas vidas, seu cotidiano e seu trabalho, embora tenham aprendido que a escola é importante para se ter um futuro promissor. Além disso, três dos jovens em questão (Mr, Rm e Eg) passaram por problemas de adaptação na nova escola em que foram cursar o ensino médio, pois tiveram dificuldades para fazer amizades e entraram em choque com os colegas de sala, em geral mais novos e com interesses diferentes, como cabular aula para namorar e paquerar, bagunçar em sala de aula e com os professores, etc., enquanto eles estavam preocupados com marido/esposa, noivo(a), ter aula, trabalho, futuro profissional, etc., além da dificuldade em assimilar conteúdos novos de disciplinas desconhecidas até então (Física, Química e Filosofia), desencadeando, assim, notas baixas. Comunicações • Piracicaba • v. 16 • n. 2 • p. 47-60 • jul.-dez. 2009

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[...] percursos acidentados (sejam decorrentes de reprovações ou de interrupções) aumentam a distância entre idade cronológica e idade escolar, e, quanto maior a diferença, mais improvável se torna a conclusão de um ciclo de ensino [...] (ZAGO, 2000, p. 27).

Uma vez não conseguindo transformar a escola em um espaço agradável de sociabilidade e também tendo dificuldades de articular estratégias para conseguirem boas notas, vivem o pesadelo das notas vermelhas, que reabrem a ferida da baixa autoestima minada. O fracasso escolar é mais que a simples falha em uma empreitada, ele é um veredicto que leva a uma reorganização da percepção de si. Humilhado, o aluno pode se achar dentro da impossibilidade de se livrar do julgamento escolar, a recuperação da autoestima exige uma revanche sobre a escola, Dentro dessa perspectiva, crescer pode ser sinônimo de ter um trabalho, renunciar à escola. (DUBET, 1996). O abandono da escola se dá porque ela deixou de ser um espaço de sociabilidade e de representar uma fonte de aprendizado útil para suas vidas, seja como crescimento pessoal ou como ferramenta para o trabalho. Daí sentirem a necessidade de eliminar da vida tal obstáculo, pois, além de lhes roubar momentos de descanso e de oprimi-los, reprovandoos por meio de notas vermelhas e de conteúdos não inteligíveis para eles, a escola parece acentuar seus complexos, diminuindo-lhes a autoestima. Rm foi a única a concluir o ensino médio, movida pela necessidade de galgar um patamar mais elevado no trabalho, ou seja, num determinado momento da vida, atrelou o projeto profissional à escola, usando-a para uma futura promoção. Rm foi a única aluna desta amostra que não teve um histórico de repetência; quando desistiu do ensino fundamental, o fez por imposição da madrasta. E, na época em que desistiu do ensino médio, tinha claro ter atingido um objetivo profissional: um bom emprego, ou seja, não precisava mais, naquele momento, da escola. Os demais que não continuaram os estudos, embora afirmassem sentir certo desconforto perante a esposa, o empregador e os amigos pelo fato de não terem concluído o ensino médio, não conseguiram retornar à escola, apesar dos projetos nesse sentido, pois os obstáculos são muitos.

Considerações Finais A democratização do ensino médio8 levou as camadas populares a terem acesso a ele. Tais camadas apresentavam uma fraca familiaridade com a cultura formal9. Em decorrência, e paralelo a essa inserção, geraram-se tensões entre as duas culturas díspares, assim como a contraposição entre a autonomia juvenil e uma organização escolar que tenta impor a utilidade dos estudos e certa disciplina. Tema trabalhado por Celso de Rui Beisiegel em seu livro “Estado e Educação Popular”. São Paulo: Pioneira, 1974. 9 Similar ao que Dubet (1996) chamou de “Os novos alunos do Liceu”. 8

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A maneira como cada jovem administra essas tensões influencia, de forma significativa, sua formação (DUBET, 1996). Os três grupos de alunos com os quais trabalhamos diferem-se pelo fato de seus membros possuírem ou não projetos profissionais e de vida ligados à escola e de vivenciá-la ou não como locus de sociabilidade e de aprendizado para a vida presente, uma vez que a escola pode ser vista de forma positiva ou negativa, dependendo das experiências fora dela, funcionando, ainda, como um espaço lúdico, agradável ou não. Percebemos que é mais fácil para o primeiro grupo construir experiências positivas do que para os outros dois. Embora não se constitua o ideal, pois seus membros vivem a experiência de trabalhar e estudar concomitantemente, o que lhes traz dificuldades como cansaço físico e mental, menos tempo para se dedicar aos estudos, etc., prevalece o esforço para conciliar trabalho e estudos e associar a escola aos seus projetos de futuro. Já o segundo grupo, embora represente uma experiência positiva, pois na escola encontram amigos entre pares, professores e funcionários, trocando informações, ostentando o status de estudantes de ensino médio e conseguindo dominar as estratégias para aprovação no final do ano letivo, vive, contudo, a dicotomia entre trabalho e escola, a opressão das aulas e de conteúdos pouco inteligíveis que lhes somam experiências negativas. Porém, nesses dois casos, eles conseguem controlar, de certa forma, o seu futuro, sendo sujeitos da vida escolar. No terceiro grupo, as experiências construídas no ensino médio são bastante negativas no que tange a fazer amigos, a aprender os conteúdos escolares, à autoestima, etc., o que os leva a abandonar a escola e a buscar no trabalho uma experiência positiva na qual se sustentem como sujeitos, deixando de ser barcos à deriva, prestes a afundar. Percebemos que, para os três grupos, a escola não se apresenta como um local em que se absorvem regras, como um sistema de valores. Ou seja, a formação não se dá a partir dela, mas sim a partir das experiências e das tensões nela vividas. Os três grupos relacionam-se de formas diferentes, uma vez que tiveram experiências diferentes. A escola não existe mais como instituição, mas como uma organização em que a coordenação das ações provém de um ajustamento aos constrangimentos do meio, da capacidade propriamente política de coordenar as ações da heterogeneidade dos atores e dos objetos que eles têm em vista (DUBET, 1996).

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