A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA AFRICA PELOS ROMANOS ATRAVÉS DAS MOEDAS

June 1, 2017 | Autor: Regina Bustamante | Categoria: African Studies, Roman History, African History, Ancient Roman Numismatics
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A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA AFRICA PELOS ROMANOS ATRAVÉS DAS MOEDAS1 Profª Drª Regina Maria da Cunha Bustamante2

RESUMO: No mundo antigo mediterrâneo, Roma destacou-se por constituir um dos maiores impérios, abarcando distintos povos, dentre eles, os norte-africanos. Para tanto, foram demandadas, dentre outros aspectos, a elaboração e a consolidação de significados e valores, que nortearam e organizaram as ações romanas e suas imagens de “si” e, concomitantemente, dos “outros”, gerando diferenciação e hierarquização. No presente estudo, analisaremos uma das estratégias romanas de definição e reconhecimento da África através de moedas cunhadas desde fins do período republicano até o início da dinastia imperial dos Severos. Optamos por trabalhar com a Teoria das Representações na vertente da Psicologia Social desenvolvida por Moscovici, centrando-nos processos de ancoragem e objetivação. PALAVRAS-CHAVES: Roma Antiga; África do Norte; Representação Social; Moeda

TITLE: The Roman construction of social representations of Africa by means of coins ABSTRACT: In the Ancient Mediterranean, Rome was noteworthy for being one of the biggest empires, containing different peoples, among them, the North African ones. For that to happen, it was needed, among other things, the elaboration and consolidation of meanings and values, that based and organized the Roman actions and their “self” image, and concurrently, their image of “others”, generating a differentiation and constructing hierarchies. In this work, we will analyze the Roman strategies of definition and recognizing of Africa by means of coins minted since the end of the Republican period until the beginning of the Severus imperial dynasty. We chose to work with the Social Representation Theory in the school of Social Psychology as developed by Moscovici, centering in the processes of anchoring and objectification. KEYWORDS: Ancient Rome; North Africa; Social Representation; Coin

Introdução No mundo antigo mediterrâneo, Roma destacou-se por formar um dos maiores impérios, englobando uma diversidade de povos com culturas distintas, dentre eles, os da região norte-africana. O processo de expansão romana, iniciado ainda na República, fez com que Roma subjugasse diferentes sociedades para estabelecer o seu império. Roma empenhou-se em construir uma identidade entre as

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Trabalho apresentado no I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (LARP) / MAE / USP: “Representações da Romanização no Mundo Provincial Romano”, ocorrido no período de 27 a 29 de novembro de 2013, na Faculdade de Educação da USP. 2 Professora Associada de História Antiga da UFRJ e do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Pesquisadora do Laboratório de História Antiga (LHIA) da UFRJ. 1

múltiplas culturas, que estavam sob seu domínio, formando uma comunidade de abrangência mediterrânea. A constituição desta comunidade demandou, dentre outros aspectos, a elaboração e a consolidação de significados e valores, que nortearam e organizaram ações e imagens, de “si” e, concomitantemente, dos “outros”, gerando diferenciação e hierarquia em relação ao “outro”. A adoção dos conceitos de identidade e alteridade rompe com uma concepção de separação de culturas totalizadas, que vivem como se fossem isoladas historicamente, abrindo-se, portanto, para o dialogismo, as experiências relacionais e as interações culturais sem deixar de serem reconhecidas as diferenças. Este processo caracterizou-se por negociações e conflitos e se inseriu no jogo de interesses sociais, políticos e econômicos. As formas de identidade e alteridade são específicas de um contexto histórico e social determinado, tanto aos processos internos da sociedade quanto às suas relações e aos contatos com outras sociedades próximas ou distantes. Portanto, pertencer ou não a um grupo ou a uma sociedade é uma construção social e cultural, cujo significado e forma variam no tempo e espaço, podendo coexistir uma multiplicidade de identidades/alteridades que interagem umas com as outras, fomentando práticas de negociação cultural que transcendem às contradições dualistas através das experiências relacionais. Evidenciamos, assim, uma pluralidade de situações, que instigam o estudo das diversas estratégias, como no caso romano, em que se objetivava manter uma comunidade frente à realidade multicultural mediterrânica. Ao lado dos parâmetros para se situar frente aos “outros” pelo poder militar e pela autoridade política, como a historiografia tradicional enfatiza, atentamos para outros parâmetros que privilegiam uma visão do “eu” e do “outro” a partir das experiências relacionais do cotidiano, condizentes com os diferentes aspectos culturais presentes no Mediterrâneo Antigo. Assim, a “identidade romana” foi construída tendo em vista as interações culturais historicamente verificáveis, nas quais se insere a concepção de alteridade. Portanto, a mesma operação, que possibilitou conceber o “outro”, inscreveu também os parâmetros da identidade romana. O estudo dos mecanismos de abordagem da diferença em sociedade pressupõe a compreensão das formas de reconhecimento em que o grupo se compreende e se fabrica como unidade (AUGÉ, 1999; BURITY, 2002; HALL, 2002; SILVA, 2000). Identidade e alteridade encontram-se intimamente interligadas. Assim, as identidades coletivas envolveriam sistemas complexos de interpelações e reconhecimentos através dos quais os agentes sociais se inscreveriam na ordem das formações sociais de diferentes formas. No presente estudo, objetivamos analisar uma destas estratégias de definição e reconhecimento da África através de moedas cunhadas pelos romanos. Para tanto, optamos por trabalhar com a Teoria das Representações na vertente da Psicologia Social, especificamente de Moscovici, objetivando identificar e compreender o processo de constituição das representações sociais da África pelos romanos, que traduziram posições e interesses dos atores sociais objetivamente confrontados e que, paralelamente, descreveram a África tal como pensaram que ela era ou que gostariam que fosse. Desta forma, 2

estabelecemos uma relação entre as representações sociais e a prática social, observando sua articulação e interação. As representações sociais nos facultaram analisar o processo de tornar familiar algo não familiar, isto é, classificar, categorizar e nomear novos acontecimentos e ideias com as quais inexistia contato anteriormente, possibilitando, assim, a sua compreensão e manipulação a partir de valores e teorias preexistentes e internalizados e amplamente aceitos pela sociedade romana. Segundo Moscovici (2009, p. 60-61), para transformar o não-familiar em familiar, ou seja, transformar algo em senso comum, é necessário o funcionamento de dois mecanismos: ancoragem e objetivação. O primeiro mecanismo busca ancorar ideias estranhas, reduzi-las a categorias e imagens comuns e colocá-las num contexto familiar. A objetivação significa descobrir a imagem de uma idéia, de um conceito, tornando-o concreto. Transformar um ser impreciso em algo que pode ser visualizado, assim, cria-se uma imagem mental visando se apropriar do objeto estranho. As representações são dependentes da forma como são comunicadas, do poder derivado desta transmissão e de como esta realidade foi controlada no passado e veiculada posteriormente. Consideramos que a representação social só existe quando o objeto reúne “espessura” ou “relevância” suficiente para ser representado por um grupo social, e, neste grupo, o objeto ou objetos sejam detectados nos seus comportamentos e estejam presentes em seu discurso e na propagação das suas representações, fazendo parte da vida cotidiana das pessoas, através do senso comum, pois é elaborado socialmente e funciona no sentido de interpretar, pensar e agir sobre a realidade a partir de um conteúdo simbólico e prático. É a partir deste quadro conceitual que analisaremos as representações sociais da África pelos romanos. Priviligiamos, aqui, a sua representação em emissões monetárias romanas, que produziram a objetivação da África pelos romanos. Consideramos que a moeda foi uma mídia bastante efetiva, pois era utilizada cotidianamente e se caracterizava pela facilidade de transporte e, dependendo do tipo de moeda, pela ampla circulação. A leitura e a compreensão das moedas demandavam o compartilhamento de uma representação socialmente reconhecível, fundamentando-se, para tanto, no senso comum, familiar. Optamos por um arco de tempo que vai de fins do período republicano, quando da implantação do domínio romano na região norte-africana até o primeiro terço do século III, que corresponde ao governo da dinastia dos Severos, de origem afro-síria.

1. Os romanos na África Segundo Decret (1998, p. 20-25), os vocábulos Afer, Africa, Africanus foram empregados somente em textos latinos. O termo latino Africa originou-se de Afri, nome dado pelos romanos a uma das tribos que habitavam o antigo território cartaginês3, atual Tunísia [MAPA 1], onde os romanos iniciaram o domínio da 3

Cartago foi uma colônia fundada pelos fenícios, provavelmente no século IX a. C., na região próxima à atual Túnis (capital da Tunísia). Cartago assumiu gradualmente a supremacia entre as cidades fenícias independentes da África do Norte, fundou numerosas colônias em solo africano e estendeu seu domínio por parte da Sicília, Sardenha, ilhas Baleares e Hispânia. Ver: WARMINGTON, 1983, p. 449-472 e BUSTAMANTE, 2009, p. 15-26. 3

região após a derrota dos cartagineses na Terceira Guerra Púnica (149-146 a.C.)4. Assim, inicialmente, o étnico Afri era aplicado apenas às populações nativas submetidas por Cartago. MAPA 1:PRINCIPAIS ÁREAS TRIBAIS NA ÁFRICA DO NORTE NO PERÍODO ROMANO (RAVEN, 1984, p. XXIX)

Nota: As tribos apresentadas não são necessariamente contemporâneas.

Posteriormente, alguns autores latinos, como Salústio (Guerra de Jugurta XVIII) e Plínio, o Velho (História Natural VII, 200) utilizaram Afri para designar todos os povos da África do Norte. Por sua vez, Pompônio Mela (Corografia I, 4, 20) utilizou o termo para designar todo o continente. O interesse dos antigos romanos pela Africa vem desde o período da República Romana, quando houve a disputa pela hegemonia do Mediterrâneo Ocidental entre Roma e Cartago, que levou às denominadas Guerras Púnicas entre os séculos III e II a. C. [MAPA 2] Com a vitória romana, fundou-se, em 146 a.C., a primeira província romana fora do continente europeu, a Africa Vetus, no antigo território cartaginês. Em meados do século I a.C., com as Guerras Civis do Primeiro Triunvirato entre Pompeu e Júlio César (Apiano. História Romana XCIV) e o apoio do rei númida Juba I ao lado perdedor (Guerra da África XXV; XXXII; XXXVI e XLVII, História Romana LII de Dion Cássio e História Romana II, 96-100 de Apiano)5, o

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Houve três Guerras Púnicas: a primeira ocorreu entre 264 a 241 a.C., a seguinte entre 218 e 202 a.C. e a última, entre 149 e 146 a.C. Ver: HARRIS, 1989; GARRAFFONI, 2006, p. 47-75; BUSTAMANTE, 2008, p. 37-61. 5 Sobre os motivos que teriam levado o rei númida a apoiar Pompeu, apontam-se tradicionalmente três: o pai de Juba I, Hiempsal II, fora restituído ao trono, após a usurpação de Hierbas, por Pompeu, de acordo com Salústio em Fragmentos das Histórias I, 53 e Plutarco em Vida de Pompeu XII; em 64 e 63 a. C., enviado pelo pai a Roma para reclamar do dissidente númida Masinta, Juba entrou em confronto com Júlio César que defendeu a causa do adversário, segundo Cícero em Discurso sobre a Lei Agrária II, 22, 58 e Suetônio em A Vida dos Doze Césares 71; a proposição do tribuno da plebe C. Escribônio Cúrio, partidário de Júlio César, de anexar a Numídia, exposta pelo próprio Júlio César em Guerra Civil II, 25, 4 e Dion Cássio em História Romana XLI, 41, 3. Para Bertrandy (1991, p. 289-297), Juba I aproveitou-se da divisão dos romanos para aumentar o seu reino, retomando o antigo anseio de Massinissa, na medida em que, segundo Dion Cássio em História Romana XLIII, 4, 6, Cipião prometeu-lhe os territórios romanos na África do Norte em troca de seu apoio. As ambições de Juba I, entretanto, foram obstacularizadas pela insuficiência de apoio no interior da Numídia. Tal situação decorria da própria estrutura do reino que, desde a sua criação, repousava sobre uma 4

Reino da Numídia tornou-se a província romana da Africa Noua. No último terço do século I a. C.6, durante o governo de Augusto, a Africa Vetus, a Africa Noua e mais as quatro colônias de Cirta, que Júlio César concedera ao italiano P. Sítio, foram unificadas, formando a África Proconsular, sob a administração de um procônsul, advindo da ordem senatorial. A partir daí, o domínio romano foi se expandindo, no sentido leste-oeste, até as Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), abrangendo do litoral mediterrâneo às cadeias montanhosas do Atlas saariano [MAPA 2]. MAPA 2: OCUPAÇÃO ROMANA NA ÁFRICA DO NORTE (BARTON, 1972)

 Período Republicano

 Sob Júlio César e Augusto  Séculos I e II

 Século III

2. A África pelos romanos A associação da região norte-africana com elefante é recorrente em emissões monetárias anteriores às romanas, como podemos verificar no meio shekel (siclo) cartaginês [MOEDA 1], datado de aproximadamente 213 e 210 a.C. e cunhado durante a Segunda Guerra Púnica para uso na Sicília. No seu anverso, há a cabeça laureada de Melqart7, perfilada para a esquerda e, no seu reverso, um elefante caminha para a direita. Nicolet (1997, p. 567) aponta que os “monarcas bárcidas” desejavam, nas emissões monetárias, serem assimilados a Melqart-Herácles ou se consideravam representantes desta divindade de confederação de tribos, da qual algumas delas, como a dos getulos, manifestavam reais veleidades de independência, que resultaram na deserção tanto de nobres getulos da cavalaria real com suas armas, servos e bagagens bem como de simples soldados getulos em proveito de Júlio César, conforme exposto em Guerra da África LVI, 3 e XXXII, 3-4. O pesado jugo militar e fiscal númida sobre os getulos, segundo Guerra da África LXXIV, levou à revolta e, para reprimi-la, Juba I deslocou tropas que lutavam contra Júlio César. 6 A data da união da África Velha com a Africa Nova é motivo de controvérsia: Augusto em Res Gestae XXIV, 2, Estrabão em Geografia XVII, 3, 25 e Dion Cássio em História Romana LIII, 12, 4-7 não fornecem um testemunho claro de que esta unificação ocorreu em 27 a. C. Ver: FISHWICK, 1993, p. 53-62. 7 Conhecido como deus de Tiro, seu nome significava “rei da cidade”, sendo, portanto, um deus políade (NICOLET, 1997, p. 588; LÓPEZ CASTRO, 1997, p. 55-68). Era também referido de Héracles tírio em grego ou, em latim, de Hércules tírio, devido às semelhanças da sua mitologia e seu culto com os do semideus Héracles/Hércules. 5

caráter guerreiro e viril, dotado de grande força física. Nada mais apropriado para aqueles que buscaram subjugar Roma através do confronto militar. Podemos acrescentar outro aspecto atribuído tanto a Melqart quanto a Héracles-Hércules: o papel “civilizador” de territórios periféricos nas colonizações mediterrâneas. De acordo com López Castro (1997, p. 55-68), o herói civilizador se apresentava como um elemento ordenador do caos e também como ordenador social e político, tal como os bárcidas também almejavam. MOEDA 1 Zeugitânia / Cartago ca. 213-210 a.C. 2,85g SNG Copenhagen 383

Este animal era uma das mais emblemáticas espécies da fauna africana juntamente com o leão. Desde a Pré-História, os animais selvagens eram representados nas gravuras rupestres encontradas ao sul de Orã (noroeste da Argélia) e estavam relacionados à atividade de caça (GAUTIER, 1952, p. 27 e 161; SOUVILLE, 1992, p. 52 e 57), bastante praticada entre os povos que erravam pelo interior norte-africano, segundo Salústio (Guerra de Jugurta XVIII). O interesse pelos animais não se restringia apenas ao fornecimento da carne e da pele. No caso específico do elefante, deve-se destacar que o comércio do marfim já era praticado com a Península Ibérica desde 2000 a.C. (DESANGES, 1983, p. 431) e que o animal domesticado era utilizado nos exércitos cartaginês (POLÍBIO. História I, 11; I, 18; I, 30; I, 34; I, 39; III, 1; APIANO. História Romana IX; FRONTINO. Estratagemas IV, 7, 18; FLORO. Epítome de História Romana II, 13, 67; PLÍNIO, O VELHO. História Natural VIII, 8.) e númida (SALÚSTIO. Guerra de Jugurta XLIX e LII). Na Segunda Guerra Púnica, a presença de elefantes8 nas tropas de Aníbal, sua façanha de atravessar os Alpes com estes imensos e pesados animais e o grave perigo da tomada de Roma pelos cartagineses marcaram o imaginário romano. Assim, entre os romanos, houve a forte associação entre África e elefante, constituindo sua representação social, que serviu para classificar e definir a “alteridade” africana, procurando colocá-la num contexto familiar. Em 81 a.C., foi cunhado um denário [MOEDA 2] cujo reverso apresentava o elefante. No seu exergo, há inscrição Q C M P, referência a Quintus Caecilius Metellus Pius Scipio, que recebeu o nome de Pius por sua piedade filial quando das suas gestões para obter o regresso do seu pai, Cecílio Metelo Numídico, exilado em 99 a.C. Daí, no anverso deste denário, se apresentar a cabeça perfilada da Pietas com 8

Na campanha de Roma contra o exército do rei Pirro de Épiro (atual norte e oeste da Grécia), que invadiu a Itália em 280 a.C., foi o primeiro contato dos romanos com os elefantes compondo uma força militar. Um aes signatum, do início do século III, tem, numa de suas faces, o elefante e, na outra, um porco, que pode ser uma referência à bizarra ocasião em que, numa das batalhas contra Pirro, os elefantes utilizados por suas tropas se assustaram com os grunhidos dos porcos, mantidos pelo exército de Roma para sua alimentação, cuja carne era muito apreciada pelos romanos. 6

diadema, tendo, à sua direita, a cegonha, ave consagrada a Juno pelos romanos, simbolizando a piedade filial (CIRLOT, 1985, p. 130). O elefante fazia alusão à atuação paterna na guerra contra o númida Jugurta (112-104 a.C.), quando se destacou na reorganização das tropas romanas e na obtenção de importantes vitórias. Assim, em 107 a.C., quando regressou a Roma, foi celebrado um esplêndido triunfo e ele recebeu o epíteto de Numidicus, referência à sua atuação na África. MOEDA 2 Norte da Itália 81 a.C. 3,80g RCC 374/1

Em moedas berberes do século I a.C., emitidas por Hiarba, rei dos massílios, e por Juba I, rei númida, figura o busto feminino adornado com uma espécie de chapéu lembrando a cabeça de elefante9. Este tipo de adorno elefantino foi também utilizado em diferentes lugares e períodos, como por exemplo, em moedas com Alexandre Magno, cunhadas por Ptolomeu I no século IV a.C.; em representações de Agatócles, tirano de Siracusa (361 a 289 a.C.), para comemorar a vitória sobre Cartago; e, em moedas do século II a.C., cunhadas por reis bactrianos, vitoriosos na campanha contra os indianos. A representação da África pelos romanos como mulher vestindo um adorno elefantino na cabeça é o que encontramos no anverso de um raro10 áureo [MOEDA 3], cunhado para comemorar o segundo triunfo de Pompeu em 71 a.C., quando da sua vitória sobre Sertório na Hispânia, conforme indicado, no reverso, pela quadriga triunfal (conduzida por um ginete, montado num dos cavalos) trazendo Pompeu, que segura uma palma com a mão direita, e a Vitória voando com a coroa 11. O anverso faria referência a uma vitória na África, como apontada pela coroa de louros que circunda a representação da África, que se encontra ladeada por uma oenochoe (vaso), à esquerda, e um lituus (bastão augural), à direita, apetrechos religiosos. Como bem observado pela Profª Drª Maricí Magalhães, estes dois objetos conferem o caráter de divindade à África. As características do elefante – grandes orelhas, tromba e presas – tornaram-se sinais diacríticos que os romanos identificaram como a representação social da África.

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Um estudo sobre as emissões monetárias berberes foi realizado por Kormikiari (2001). Há apenas 4 espécimes conhecidas e somente uma em mãos de um colecionador privado. 11 No exergo, há a inscrição PRO·COS. 10

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MOEDA 3 Espanha Tradicionalmente, datado de 71 a.C. 8,9 g Crawford 402/1a (anverso) e 402/1b (reverso)

Quando a Guerra Civil do Primeiro Triunvirato alcançou a África, foram cunhados denários para pagamento das tropas, que tinham elefantes como tipos monetários. Entre 47 e 46 a.C., Cecílio Metelo Pio Cipião liderou a resistência pompeiana contra as tropas de César na África. Filho de Públio Cipião Nasica, logo, descendente de Cipião Africano, que derrotou Aníbal pondo fim a Segunda Guerra Púnica, foi adotado por Quinto Metelo Pio, aliado de Sula contra Mário (89-80 a.C.) e seus partidários. Embora não fosse um patrício, sua riqueza e conexões familiares lhe deram influência política. Estabeleceu estreitas relações com Pompeu, que se tornou, em 53 a.C., marido de Cornélia (recém viúva do filho de Marcos Licínio Crasso), filha de Cecílio Metelo. No ano seguinte, Pompeu o fez seu colega no consulado, convertendo-se, a partir de então, num aberto adversário de César. Assim, em 49 a.C., defendeu que César devia licenciar seu exército no rio Rubicão, se não quisesse ser declarado inimigo da pátria. Após a vitória de Júlio César na Batalha de Farsália (na Grécia) em 48 a.C. e da morte de Pompeu no Egito, Cecílio Metelo se uniu a Pórcio Catão e demais partidários pompeianos na África para resistir às forças cesaristas. Neste momento, foram cunhados denários com a figura do elefante, na medida em que a África se constituiu num bastião de resistência da facção aristocrática dos nobilitas contra os populares, que defendiam uma forma de poder pessoal que desestabilizaria a República oligárquica senatorial nos moldes, então, vigentes. Um dos denários [MOEDA 4] reitera, no anverso, a representação perfilada da África personificada com adorno elefantino, que teve acrescida a referência à sua fertilidade agrícola, mais especificamente, cerealífera, através da espiga de trigo, à direita, e do arado, embaixo. O anverso completa-se com as inscrições SCIPIO IMP (à esquerda) e Q METELL (à direita). No seu reverso, Hércules em nu frontal, com a mão direita nos quadris, encosta-se na clava, sobre uma pedra, coberta por uma pele de leão. Assim, conjura a virtude guerreira – e a almejada vitória – e se faz também menção às Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), que separa África da Hispânia. À direita, há inscrição EPPIVS e, à esquerda, LEG F C.

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MOEDA 4 Oficina militar itinerante

na

África 47-46 a.C. 3,98g Crawford 461/1

Outro denário [MOEDA 5] refere-se ao lendário Cipião, o Africano, vencedor do temível Aníbal e ancestral de Cecílio Metelo. Também cunhado entre 47 e 46 a.C., provavelmente em Útica (na atual Tunísia), a imagem perfilada e laureada do Senhor do Olimpo, Júpiter, encontra-se no anverso do denário, acompanhada da legenda monetária Q METEL PIVS. No reverso, o elefante e, no seu exergo, SCIPIO IMP. MOEDA 5 Provavelmente, Útica 47-46 a.C. 4,07g Crawford 459/1

Mesmo com os seus ancestrais vitoriosos em campanhas na África, infelizmente para Cecílio Metelo, a Vitória não lhe favoreceu, novamente, diga-se de passagem. Foi derrotado na Batalha de Tapso (na hodierna Tunísia) em 46 a.C., mas conseguiu escapar... por pouco tempo. Quando fugia para Hispânia, uma tempestade arrastou seus navios para costa africana, sendo capturado por P. Sítio, general de César, e acabou por se suicidar em Hippo Regius (na moderna Argélia). O tipo monetário do busto feminino com adorno elefantino, entretanto, se manteve para representar a África, conforme constatamos no anverso do áureo [MOEDA 6], cunhado em 43 a.C. No seu reverso, enfatiza-se o domínio político-militar através da cadeira curul, com pernas ornamentadas com águias, sobre a qual repousa o elmo coríntio. No exergo, as legendas: L CESTIVS (acima), SC e PR (no meio) e C NORBA(NVS) (abaixo)

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MOEDA 6 Roma 43 a.C. 8,06g Crawford 491/1a

Compondo o conjunto das emissões monetárias de Cecílio Metelo na África, há um denário [MOEDA 7] em que a referência à África se configura de outra forma no seu anverso, enquanto, no reverso, apresenta a tradicional imagem da Vitória alada, em pé, virada para a esquerda, segurando um longo caduceu numa das mãos e, na outra, um pequeno escudo redondo. Do lado direito da Vitória, a legenda P CRASSVS IVN (P. Crassus Junianus) e, do esquerdo, LEG PRO P R (legatus pro praetore). A “alteridade” africana se revela no anverso: uma figura frontal feminina em pé, com vestido comprido ricamente adornado, tendo a mão esquerda ao peito e, com a direita, segura o ankh, símbolo egípcio da vida. A Profª Drª Maria Cristina Kormikiari, quando da apresentação deste estudo no I Simpósio do LARP, propôs a possibilidade de outra leitura do objeto, bem pertinente, ao nosso ver, por estar mais diretamente relacionada ao ambiente religioso púnico: o objeto da mão direita poderia ser o “signo de Tanit”, símbolo antropomorfo, bastante presente em restos arqueológicos de origem púnica, composto de um triângulo, cujo vértice superior sustenta uma linha horizontal e, acima desta, um disco, representando a deusa púnica Tanit, protetora de Cartago e consorte de Baal Hamon (NICOLET, 1997, p. 588). Na moeda, a cabeça do corpo feminino é leonina, assemelhando a deusa egípcia Sekhmet12. Na extremidade superior da moeda, na altura da cabeça da figura antropozoomórfica, há inscrição GTA e, ladeando a figura feminina, SCIPIO IMP (à direita) e Q METEL PIVS. (à esquerda). Estamos frente ao Genius13 Tutelaris Africae ou Genius Terrae Africae: GTA.

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Na mitologia egípcia, Sachmet, Sakhet, Sekmet ou Sakhmet ("a poderosa") é a deusa da vingança e das doenças. O centro de seu culto era na cidade de Mênfis. Muitas vezes é confundida com Bastet, embora tenha outra conotação neste caso. Sua imagem é uma mulher coberta por um véu e cabeça de leão. Muito temida no antigo Egíto, sendo ela o símbolo da punição de Rá, o Deus-Sol, que a enviou Sekhmet (um possível aspecto mau de Hathor) para destruir os humanos que conspiravam contra ele. 13 Varrão, segundo o bispo Agostinho (A Cidade de Deus VII, 13), definiu “gênio” como um deus preposto a tudo que deve ser engendrado e que tem poder neste domínio. Esta ampla definição englobava, portanto, cada pessoa, família, província, colégio, unidade militar, lugar e coletividade. 10

MOEDA 7 Útica 47-46 a.C. 3,83g Crawford 460/4

Ela era a divindade protetora da África e estava associada à Tanit cartaginesa. A Dea Africa e estava imbricada em todas as atividades da vida dos antigos africanos. No século I, Plínio, o Velho, em História Natural XXVIII, 24, expressava a relevância desta deusa para os africanos: “Na África, ninguém toma nenhuma resolução sem antes ter invocado a Dea Africa.” A História Augusta (Vida de Macrino III, 1) confirma a continuação desta deferência, pois informa que os governadores romanos da África consultavam a deusa14. Ela foi associada ao princípio feminino, que presidia a fecundidade da terra, o que se evidencia através de alguns de seus atributos, como o ankh e a cornucópia, o que a distancia da destruidora Sekhmet. No final do século II, Tertuliano, em Apologética XXIV, 7, citou Africae Caelestis15 como uma divindade da região norte-africana. Esta grande divindade feminina tornou-se a patrona da África e, notadamente, de Cartago, a principal cidade norte-africana e uma das mais importantes do Mediterrâneo Ocidental. O célebre templo à deusa e seu oráculo persistiram em Cartago até 42116. A deusa foi protegida e inclusive privilegiada pelos romanos em Cartago, segundo a Regra XXII, 6 de Ulpiano: “deos heredes instituere non posumus praetere... Caelestem Salinensem Carthagini”. No início do século III, a imperatriz Júlia Domna17, esposa do Septímio Severo, imperador de origem norte-africana, foi identificada com a divindade africana numa inscrição de Mogontiacum18 (CIL XIII, 6171). Em 221, o então imperador Heliogábalo, também pertencente à domus severiana, deu-lhe um lugar em Roma junto com Sol Inuictus, o que, segundo Herodiano (V, 6, 4), foi aparentemente uma boa ocasião para transladar o tesouro cartaginês da deusa. Seu templo no Capitólio romano manteve-se pelo menos até 259 (ILS 4438). Entretanto, em certas passagens da documentação literária, o culto a Dea Africa aparece em algumas ocasiões como hostil 14

Entretanto, Momogliano (1992, p. 212), citando Barnes (1970, p. 96-104) levanta dúvidas quanto ao valor desta afirmação da História Augusta. 15 O termo Africae Caelestis encontra-se numa inscrição (AE 1976, 312 = 1973, 294) encontrada na Hispânia Tarraconesa e datada entre o final do século III e o início do seguinte. 16 Halsberghue (1984, p. 2207 et ss.) e Le Glay (1966, p. 1233-1239). Entretanto, Chastagnol (1994, p. CL), embasando-se na História Augusta, informa que o oráculo do templo cartaginês foi fechado por intervenção de funcionários públicos em 399, antes do santuário ser convertido em igreja cristã aproximadamente 8 anos depois (AGOSTINHO. A Cidade de Deus XVIII, 4; QUODVULTDEUS. Livro das promessas e predições de Deus III, 4). Para Chastagnol, a História Augusta tinha a preocupação com o desaparecimento progressivo e acelerado dos valores tradicionais e costumes (mos maiorum). 17 Sobre esta imperatriz, ver Gonçalves (2013, p. 100-106) que, ao abordar a construção da imagem imperial em Septímio Severo e Caracala, faz uma análise cotejada entre a documentação escrita (textos e epigrafia) e a imagética (moedas, estátuas, camafeus e pinturas) sobre Júlia Domna, na medida em que esta era um importante componente da domus imperial severiana por ser esposa de Severo e mãe de Caracala e Geta. Ver também GHEDINI, 1984. 18 Cidade da Germânia no Reno; moderna Mayence (GAFFIOT, 1998, p. 988). 11

ao governo de Roma. Na História Augusta (Vida de Pertinace IV, 1-2), há uma passagem que faz referência a rebeliões sufocadas na África por Pertinace em fins do século II, que foram inspiradas pelas profecias emanadas do templo da deusa19. Objeto de culto público, a divindade Dea Africa encontra-se referida em documentos epigráficos e arqueológicos, por exemplo, no templo em Thamugadi, colônia romana na província da Numídia (na Argélia). A importância da Dea Caelestis ou Africa pode ser sentida nesta colônia romana a tal ponto que foi identificada ao Genius Patriae da cidade. Ela recebeu culto oficial num grande santuário, o da Aqua Septimiana Felix. (LESCHI, 1947, p. 87-99, COURTOIS, 1951, p. 60-64; ROMANELLI, 1970, p. 125-126; LASSUS, 1981, p. 49-55). Esta construção foi erguida no início do século III na extremidade oposta da cidade, próximo ao curso do rio. Supõe-se que no lugar já havia uma construção antes da edificação da Aqua Septimania Felix. Este templo era centrado numa piscina de águas salutares, sendo, por isso, Dea Africa cultuada juntamente com Esculápio e Serápis, duas divindades com faculdade salutífera relacionadas à propriedade curativa da água da nascente. Le Glay (1978, p. 573-89) considerou a dedicação de parte do templo a Serápis como uma manifestação da devoção de Cômodo (a edificação do templo se realizou sob seu governo) e dos Severos (a ampliação do templo ocorreu durante esta dinastia) ao deus alexandrino. Mas, a cella principal, a do meio, era para o culto da Dea Africa. Neste complexo, foi descoberto um grande vaso com a figura da Dea Africa numa de suas faces, ladeada por um leão agachado aos seus pés enquanto presidia uma cena de sacrifício20. Também em Lambesis, sede da III Legião Augusta, havia dois templos contíguos, um dedicado a Ísis e o outro, a Dea Africa. Geralmente, os templos desta deusa localizavam-se afastados do perímetro urbano, característica dos cultos de tradição púnico-berbere (ROSSIGNOLI, 1993, p. 559-595), distintamente das divindades latinas, cultuadas preferencialmente no espaço urbano. Constatamos, então, que a representação iconográfica antropozoomórfica da Dea Africa como uma mulher leontocéfala foi alterada. No século I a.C., sob influência romana, houve sua humanização e o leão se tornou seu atributo, tal como se encontra no supramencionado templo de Aqua Septimania Felix em Thamugadi. É assim que Dea Africa aparece no reverso do áureo [MOEDA 8] do imperador Adriano, para comemorar sua visita à região: com seu adorno elefantino, um de seus braços está sobre uma cesta de frutas, tendo atrás duas espigas de trigo; reclinada, afaga com a outra mão a cabeça do leão; acima à esquerda, a legenda AFRICA. No anverso, o busto perfilado para esquerda com sua então titulação: HADRIANVS e AVG COS III PP.

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Há controvérsias quanto a esta passagem, pois há uma corrupção do texto. Picard (1959, p. 41-62) defende o emprego da palavra canum em lugar de earum para qualificar o oráculo fundamentando-se na comparação com outros textos. Momigliano (1992, p. 212) não aceita esta colocação. Chastagnol (1994, p. 260, n. 1), apesar de adotar a palavra canum com reticências, reconhece o caráter oracular do templo da deusa em Cartago, mas ressalta que a existência de sublevações não é certa. Ver também ZECCHINI (1983, p. 150-167). 20 Posteriormente, edificou-se uma fortaleza bizantina sob as ordens do general Salomão. A data da construção do forte bizantino é incerta. Courtois (1955, p. 315, n. 1) a situa em 539, quatro anos após a destruição de Thamugadi pelos mauros; enquanto Lassus (1981, p. 15) colocou a destruição da cidade numa data mais próxima de 477, quando os vândalos abandonaram a Aures (final do reino de Huniric). 12

MOEDA 8 Roma 134-138 7,23g RIC 298

Também acompanhada pelo leão a vemos no reverso de um áureo [MOEDA 9], emitido no governo de Septímio Severo (193-211). Mas, agora, está cavalgando o animal, que salta sobre um rio. Na mão esquerda, segura um longo cetro e, na direita, raios. Circunda a legenda INDVLGENTIA AVGG e, no exergo, IN CARTH. No anverso, o perfil laureado do imperador para a direita com sua titulação: SEVERVS PIVS AVG. MOEDA 9 Roma 204 7,24g RIC 207

O mesmo imperador também cunhou, entre 202 e 210, um denário [MOEDA 10], cujo reverso, está Dea Africa, sua mão esquerda segura a dobra do manto e o braço direito está coberto, provavelmente, com uma pele de leopardo; aos seus pés, o leão. No anverso, o perfil laureado do imperador voltado para a direita e sua identificação: SEVERVS PIVS AVG. MOEDA 10 Roma Entre 202 e 210 1,84g RIC 253 S

Dea Africa possuía outros atributos, além do leão, como por exemplo, cornucópia para enfatizar a riqueza agrícola da região. Esta prosperidade acentuou-se durante a ascensão da dinastia dos Severos (193235), de origem africana e síria, ao poder imperial, quando houve um período de grande desenvolvimento para as províncias norte-africanas. Randsborg (1991, p.128) nos apresenta um quadro síntese [QUADRO]

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com os resultados dos trabalhos de arqueologia subaquática realizados por Anselmino e sua equipe no porto de Óstia, por onde entravam os produtos de diferentes regiões do Império para Roma, no qual se destaca a expressiva importação de produtos norte-africanos a partir do século II, alcançando seu apogeu na primeira metade do século III. QUADRO: Percentuais de Ânforas de Várias Partes do Império Romano para Óstia Período: Região Anos Itália Gália Hispânia África do Norte Egeu 0 a 50 28 29 31 11 1 50 a 100 15 32 28 19 6 100 a 150 17 19 31 29 4 150 a 200 2 9 10 55 23 200 a 250 4 6 10 71 10 250 a 400 0 22 0 40 38

Assim, encontramos, no reverso do denário [MOEDA 11] do governo de Adriano, África sentada e recostada num monte de pedras, com a mão esquerda segura a cornucópia e tem aos seus pés um cesto com frutos. Na outra mão, há um enigmático escorpião. Tradicionalmente, o escorpião é considerando negativamente por ser um animal peçonhento devido às suas quelíceras e à cauda armada com um aguilhão venenoso (LURKER, 1997, p. 232-233; CIRLOT, 1985, p. 188; BIEDERMANN, 1993, p. 173). Entretanto, Biedermann (1993, p. 173) pontua que, para compensar sua ameaça mortífera, o escorpião também era associado à veracidade e à ressurreição. Ele aparece ainda no mitraísmo21, como observado por Profª Drª Maricí Magalhães. Lurker (1997: 233) informa que “em combinação com Mercúrio, o escorpião pode ser símbolo da abundância e da sorte”, o que estaria mais condizente com os outros elementos da moeda: a cornucópia e o cesto com frutos. Poderíamos também aventar que a presença do escorpião seria uma referência temporal da época da viagem22 do imperador Adriano à região, fazendo desta moeda um marco comemorativo da visita imperial. Entretanto, a próxima moeda [MOEDA 12] questiona esta última hipótese, pois o escorpião está presente numa moeda batida no governo de Septímio Severo. A legenda da MOEDA 11 não deixa dúvida sobre a identificação da personagem: AFRICA23. No anverso, o busto perfilado e laureado do imperador e seus títulos: HADRIANVS AVG COS III P P.

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Na mitografia mitraica do sacrifício do touro por Mitra, da coluna vertebral do bovino saiu trigo e o seu sangue tornou-se vinho, o seu semen, recolhido e purificado pela lua, gerou animais úteis ao homem. Ao local do sacríficio, chegaram: um cão, que comeu o trigo, um escorpião, que enfiou as suas pinças nos testículos do animal, e uma serpente (Turcan 1992: 218). 22 Escorpião é o oitavo signo do zodíaco; o Sol passa através dele durante o período de 23 de outubro a 21 de novembro. 23 Bierdermann (1993, p. 173) aponta que “o continente africano ostenta o escorpião como animal emblemático na arte simbólico medieval”. Entretanto, compreendemos que esta associação insere-se num contexto histórico diferente daquele da Antiguidade e bem específico do Medievo: o antagonismo bastante concreto entre uma África do Norte islâmica e uma Europa cristã, ameaçada pela expansão islâmica e mesmo pela sua presença no próprio continente europeu, na Península Ibérica. 14

MOEDA 11 Roma 134-138 3,41g RIC II 299d; BMC 813

A mesma representação da Dea Africa e seu enigmático escorpião encontram-se no denário [MOEDA 12] cunhado por Septímio Severo, cuja titulação aparece no anverso (SEVERVS PIVS AUG) circundando seu perfil laureado. MOEDA 12 Roma Entre 202 e 210 2,06g RIC I 254 s

Ademais, busca-se reiterar o aspecto da submissão da região ao domínio romano. No reverso do sestércio [MOEDA 13] – (SC: Senatus Consultum) – cunhado no governo de Adriano (117-138), a personificação da África encontra-se ajoelhada e estende uma das mãos ao imperador e com a outra segura uma cornucópia. A inscrição monetária enfatiza a situação de dominação: RESTITUTORI AFRICAE. No anverso, o perfil laureado de Adriano com seus títulos HADRIANVS AVG COS III PP. MOEDA 13 Roma 134-138 24,22g RIC 940 f

África representada como uma mulher com adorno elefantino manteve-se nas emissões monetárias de fins do século III e início do IV [MOEDAS 14, 15 e 16].

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MOEDA 14 Diocleciano (284-305): DIOCLETIANVS AVG | F ADVENT AVGG NN Argenteus: 3,31g Cartago 296-298 África com estandarte (Vexillum) 24 e presa de elefante MOEDA 15 Maxêncio (306-312) Follis: 8,83g Cartago 306-307 África com estandarte (Vexillum) e presa de elefante RIC 57 MOEDA 16 Severo II (306-308) Follis: 8,94g Cartago África RIC 44b

Conclusão Em fins do século IV, entretanto, no mosaico [MOSAICO] da Villa Ercolia na Praça Armerina na Sicília, a África encontra-se sem seu tradicional adorno elefantino, num processo de humanização que lembra parcialmente o que ocorreu com o leão. O elefante, então, se apresenta como mais um dos atributos da África e juntamente com outros animais da fauna da região (tigresa e íbis) a rodeiam. Ela segura uma presa de elefante – pleonasmo do próprio animal e reiterado através do outro exemplar encostado na rocha – , que, por sua forma cônica, recorda uma cornucópia, conforme apontado pelo Prof. Dr. Gilvan Ventura da Siva quando da apresentação do presente texto no evento. Estamos longe da traumática memória do elefante como aterrorizante arma dos exércitos de Pirro e Aníbal. Na outra mão, há um “bonsai” de oliveira. Segundo Camps-Fabrer (1953), mais que em qualquer outra parte do Império Romano, o ramo da oliveira foi na África um símbolo da paz na medida em que a cultura da oliveira conjugou segurança, bem-estar e prosperidade tanto para a população local, em especial para a elite provincial, quanto para Roma. No mosaico, à direita, fios tingidos de púrpura secam num galho. É uma

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Quando a Dea Africa é representada carregando o vexillum (estandarte militar), ela assume o aspecto do exército romano na África. No entanto, se aparece vestida em trajes longos e carregando o estandarte e uma cornucópia, toma uma característica mista tanto civil quanto militar e supostamente deve assegurar a paz e a abundância. Mas, se está segurando apenas a cornucópia, pode simbolizar tanto a província da África Proconsular em si no sentido mais restrito, isto é, aproximadamente ao que é hoje a Tunísia ou a todo um grupo de províncias norte-africanas que se estende do Egito ao Oceano Atlântico. 16

jovem e bela mulher, de pele escura e longos cabelos encaracolados, seminua e ricamente adornada com joias de ouro (diadema, brinco, colar, bracelete e pulseira).

Local: Grande corredor da Villa Ercolia da Praça Armerina (Sicília) | Período: fins do século IV |; Tamanho: Detalhe de uma das extremidades de um mosaico que mede 59,63m X 5m | Ref. Bibl.: LEPELLEY, 1979, p. 4 Eis a representação social da África pelos romanos em fins do século IV: uma terra bela, exótica, generosa e rica e completamente “domesticada”. Era mais uma região sob a égide do poder romano. O Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva lembrou a tradição clássica de personificação das regiões como figuras femininas. De fato, nomeava-se a terra com a forma feminina na medida em que nela se geravam os seus naturais, que eram sustentados através de sua exploração, similarmente à mãe que dá a luz aos filhos e os amamenta. A terra era vista como potência e reserva inesgotável de fecundidade, gerando filhos e riquezas. Huskinson (2000, p. 7-8) ressalta que havia também a questão de gênero para explicar a utilização da personificação feminina como entidades culturais e geográficas das províncias imperiais: as províncias, representadas por mulheres, possuíam outra característica associada ao feminino, a vulnerabilidade, situando-as, assim, numa posição de inferioridade em relação a Roma. As emissões monetárias romanas foram um dos meios privilegiados para efetivar o processo de ancoragem da “alteridade” africana, reduzindo-a a uma imagem posta num contexto familiar. Observamos que a representação social romana da África a torna concreta – objetivada – transformando o que era “estranho”, “exótico”, “ameaçador”, antagônico, em algo que pôde ser visualizado e apropriado. África era uma região estratégica em termos geopolíticos e econômicos, o que levou a interações – pacíficas e bélicas – com os romanos. Logo, reunia “espessura” ou “relevância” suficiente para ser representada pelos romanos. Evidenciamos, nas moedas romanas, a transformação da África, uma região desconhecida e ameaçadora, em algo que pôde ser visualizado, “domesticado”, “civilizado”; criou-se uma imagem mental que propiciou a apropriação do “objeto estranho”. As emissões monetárias constituíram-se em um poderoso e eficaz instrumento de transmissão, divulgação, que permitiu tornar o não-familiar em familiar, em senso comum, e, assim, se controlava o “outro”. Passava, então, do discurso imagético da moeda para uma prática política de domínio, nomeando, classificando, pensando e traduzindo posições e interesses 17

hegemônicos romanos ao descrever a África tal como pensavam que ele era ou... como gostariam que fosse.

Agradecimentos À Profª Drª Maria Isabel D’Agostino Fleming pelo convite para participar do I Simpósio do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (LARP): Representações da Romanização no Mundo Provincial Romano. Aos colegas presentes no evento pelas suas observações que contribuíram para o aperfeiçoamento deste trabalho. À pesquisadora Profª Drª Maricí Martins Magalhães pela leitura crítica do texto.

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