A Construção de Identidades Africanas na Bahia: musicalidades em diáspora

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A construção de identidades africanas na Bahia: musicalidades em diáspora Marcus Bernardes 1

Resumo: O presente trabalho visa estabelecer conexões entre a construção de identidades e a aplicação de referenciais (simbólicos e estruturais) da África Central na musicalidade do Recôncavo Baiano. Serão analisados os traços referentes à tradição banto de uma manifestação musical denominada Samba de Roda. Embora em conjunto com os bantos, os iorubas façam parte dos dois modelos básicos de influência estética e simbólica na música afro-brasileira, a preponderância dos primeiros é extremamente relevante em se tratando desta musicalidade. A percepção de uma influência estrutural (em termos musicais) de um determinado grupo identificado por referenciais culturais comuns não expressa a ideia de uma continuidade entre um traço cultural africano e sua influência no Novo Mundo, no sentido de “transportar” uma cultura para as colônias. Porém, justamente o oposto. A criação de identidades no Novo Mundo já é uma prática de mudança cultural. Palavras-chaves:

Diáspora;

Identidades

Africanas;

Antropologia;

Etnomusicologia.

Introdução A fala possui uma função fundamental nas sociedades africanas em geral. A oralidade nesse sentido é encarada com respeito e sua transmissão de saberes é uma preservação da sabedoria dos ancestrais. As palavras devem ser ditas em um ritmo específico, a música possui um papel fundamental na ordem social e mítica dessas sociedades. O Samba de Roda, neste sentido, é possuidor dessa herança africana. Em se tratando de influências estéticas e 1

Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás. [email protected]

simbólicas da música afro-brasileira, destacam-se dois modelos: as tradições banto e ioruba. No que concerne ao Samba de Roda, a base estruturante é basicamente provenientes dos bantos como comprovado em estudos etnomusicológicos de Kazadi wa Mukuna (2006), Gerard Béhague (1976), José Jorge de Carvalho (2000) e outros. Este artigo procura demonstrar como os fatores culturais que moldam as visões de mundo dos indivíduos, em uma situação de diáspora, engendrou uma identidade africana no Brasil que por sua vez teve reflexos imperativos na música. A transmissão destes saberes (musicais), sobretudo transmitidos pela fala, foi preservada na memória dos descendentes dos africanos. Para povos que tiveram sua ancestralidade e cosmovisões em uma situação diaspórica, a busca e valorização do passado é uma constante necessidade. A música afrobrasileira, sobretudo a influenciada pelos bantos como é o caso do Samba de Roda, é a efetivação das relações estabelecidas entre cosmovisão e identidades sociais. A tradicionalidade do samba está ligada às relações entre os seus agentes, o universo simbólico no qual eles estão inseridos e as ambiências sociais em que estes atos se desenvolvem. Entender as construções musicais dos povos implica em perceber além dos aspectos estruturantes da Música (ritmo, harmonia, melodia), a conjuntura histórica

do

processo,

as

dinâmicas

culturais

e,

principalmente

as

manifestações simbólicas “universais” da sociedade. A música podendo ser caracterizada como a exteriorização de uma unidade (bem como de uma diversidade coletivamente aceita) simbólica de determinado grupo através de sons, é percebida como um produto das relações sociais em um dinâmico permanente de ressignificações. Segundo Carvalho (1994), o processo de criação musical envolve dois níveis, numa tensão permanente e universal. O primeiro nível se refere aos “processos semióticos de produção musical em si”. Tais elementos semióticos estão no domínio do universo simbólico dos agentes sociais; a religião vista como parte integrante da visão de mundo dos indivíduos é uma peça fundamental para entender este nível de construção. No segundo nível estão os idiomas da música, seriam os discursos sobre a música que se resumem em: o discurso dos “nativos” e os analíticos (etnomusicológicos). A produção

musical

envolve

processos

complexos

entre

cantores

e

instrumentistas, contexto e o próprio “texto” musical e musicalidades e visões de mundo (PINTO; 2001). É substancialmente sobre o último processo que este trabalho versa. As fontes significantes da música encontram-se no arcabouço da cultura2. As crenças religiosas trazem toda uma filosofia de vida que influencia diretamente os sujeitos nas formas de perceber o mundo. A religião, nesse sentido, desempenha mais do que outros elementos, um papel fundante para captar os sentidos de uma peça musical. Adotando uma perspectiva weberiana, a religião teria um alcance muito maior nas relações estabelecidas pelo grupo social sob sua influência do que outros aspectos da cultura, justamente pela sua capacidade de moldar a visão de mundo dos indivíduos. Este excerto tem uma implicação prática na conduta dos agentes sociais. A análise da mesma, que desemboca nas estruturas simbólicas (a cosmovisão), é fundamental em dois aspectos: primeiro em função de uma interferência direta na música 3 e, segundo nas suas ligações com a criação e desenvolvimento de identidades. Em seus estudos sobre os Deuses Orixás na África e Novo Mundo, Verger (1997) descreve várias cerimônias onde a função musical é sine qua non para os processos religiosos. No que tange ao Novo Mundo, os atabaques são responsáveis tanto em chamar os orixás quanto em transmitir suas mensagens. No início das cerimônias de Candomblé os atabaques são tocados sem o acompanhamento da dança ou do fator melódico. A pureza do ritmo associa-se a cada orixá. O elemento melódico destaca-se em cerimônias particulares (sacrifícios, oferendas, louvores). São cânticos (em linguagem ioruba), executados sem os tambores, marcados por singelas palmas. Esses

2

Adotando o conceito de cultura como simbólico (GEERTZ; 2008), as atividades antrópicas transmitem significados. A música como uma manifestação coletiva, como um “documento de atuação”, é pública na medida em que seu significado o é. Neste sentido, segundo Carvalho (1994; 06) “cada peça musical mobiliza um horizonte simbólico e formal próprio e singular, em que contextos culturais vários se entrecruzam”.

3

Em relação à música afro-brasileira podem-se destacar dois modelos básicos de influência estética e simbólica. As tradições religiosas iorubas: a evocação de orixás nas letras das músicas; padrão de compasso aditivo em 12 – seja 7 + 5, ou 5+7; estilo antifonal de canto; polirritmia. E as tradições bantos: raízes estéticas angolanas; variações de samba, ritmos binários (CARVALHO; 2000).

aspectos são importantes para perceber a linguagem musical atrelada aos fenômenos religiosos. Para entender historicamente este complexo cultural que é o Samba de Roda, é fundamental perceber as relações Portugal-África-Brasil. Antes mesmo da inserção do Brasil no mercado colonial, Portugal já mantinha relações escravistas com a África, no qual os negros escravizados ocupavam diversas funções urbanas e rurais. No Brasil, o crescimento das comunidades, a rentabilidade do tráfico de escravos e a indústria da cana impôs o trabalho compulsório. Os negros eram provenientes principalmente das regiões da Guiné e Angola. A população de escravos foi aumentando exponencialmente à medida que no século XVII iniciava-se certa vida urbana em Salvador, Recife e Rio de Janeiro.

Os negros africanos e seus primeiros descendentes crioulos e mestiços estavam prontos para fazer sua entrada na vida cultural do Brasil, ao som ruidoso e potente dos seus batuques, calundus e autos de embaixadas e coroações de reis do Congo. (TINHORÃO; 2008; 27)

José Ramos Tinhorão, em Os Sons dos Negros no Brasil, traz conceituações interessantes sobre os termos empregados na época colonial que se referia à musicalidade dos africanos e descendentes. Batuque seria um termo genérico português para os sons dos africanos considerados ruidosos, segundo as concepções musicais europeias vigentes na época. No entanto, por trás deste termo, se esconde uma diversidade de práticas religiosas, danças rituais e formas de lazer. O Calundu seria uma dança religiosa de escravos, também utilizada como sinônimo de Lundu, embora este designasse uma dança de roda profana à base de umbigas, marcada por palmas e entoada por violas. O termo samba parece substituir o termo genérico batuque quando a umbigada passa a prevalecer enquanto coreografia. Tinhorão, neste sentido, estabelece relações entre o Lundu e o Samba de Roda:

O pormenor de bailarem os pares “quase sem moverem as pernas, com toda a ondulação licenciosa dos corpos” é uma clara referência ao miudinho que passaria mais tarde aos sambas de roda, onde os dançarinos (homens e mulheres) aproximavam-se de frente uma para o outro, tremelicando o corpo apenas da cintura para baixo, para culminar no tal contato “imodesto”, ante os aplausos e gritos de estímulo dos presentes. (TINHORÃO; 2008; 66-67).

Outro elemento fundamental deste contexto são os cantos de trabalho. A visão dos cronistas da época colonial, segundo Tinhorão (2008), é que os cantos de trabalho eram importantes para o escravo naquela situação imposta e forçada, gerando através da música laços de solidariedade e força para continuar na labuta diária. Entretanto, é possível que tenham utilizado versos de seus cantos para conversarem enquanto trabalhavam, descobrindo formas de comunicação que o senhor não percebia, através de figuras de linguagem que mascaravam o real sentido das mensagens. A palavra cantada envolve relações entre a mensagem que a música pode passar e as interações entre poetas e músicos. No campo empírico há uma confluência do sagrado e do profano. No século XIX na Bahia, era provável que existissem distinções dos ritmos do candomblé e dos batuques. Estes (os batuques) foram expressões musicais que seriam a gênese do samba baiano e por consequência, do carioca (MUKUNA; 2006). Segundo o mesmo autor o termo batuque seria uma denominação portuguesa para samba de umbigada ou dança de roda existente nesse período, que por sua vez teria se originado (dentre outras influências) do Semba

(umbigada)

da

região

Congo-Angola.

Os

batuques

lúdicos

diferenciavam quanto ao grupo étnico executor, podendo ser distinguidos como originários do Congo-Angola ou crioulo, que possuía uma maior aceitação pelo seu status de “mais civilizado”. Tanto em Angola como no Congo, a presença do círculo na dança é fundamental. Este fato pode ser evidenciado num trecho do livro Contribuição Portuguesa para o Conhecimento da Alma Negra, embora seja uma visão etnocêntrica ocidental:

Nada têm [...] de extraordinário, estes batuques de Angola. Os dançarinos, só homens, só mulheres, ou uns e outros misturados, formam uma roda e vão andando de lado, a passos curtos, o corpo inclinado para a frente, mexendo os quadris e batendo palmas, ritmicamente, acompanhados pelo ruído incessante dos tambores ou pelo som da marimbas. Em certos casos, uma ou duas mulheres bailam isoladas no meio da roda, mas são sempre simples os passos dessa dança elementar. O que impressiona é o ardor que os pretos põem na dança, como se ela fosse qualquer coisa de essencial. O que inspira é muito mais um sentimento religioso que a sensualidade, ao contrário do que supõem os que confundem com esta o impudor natural. Uma coisa me convence, não só da importância que os pretos dão ao batuque, mas da existência, entre eles, dum sentimento de dignidade e orgulho: é a absoluta indiferença pelos espectadores brancos. (OLIVEIRA; 1952; 11)

Assim, batuques de sentido lúdico e batuques de sentido religioso influenciavam-se reciprocamente 4. Pensar o Samba de Roda em uma relação dicotômica que separa a instância do sagrado e do profano é uma tentativa de reduzir, até em termos analíticos, a compreensão do fenômeno cultural. O escopo adotado na pesquisa seria dialético, no sentido de compreender justamente a intersecção dos processos, a ambivalência.

Elaboração de um Modelo Abstrato

O mundo social empírico é complexo e polissêmico, cabe ao pesquisador estabelecer meios para torná-lo mais inteligível. Destarte o universal só pode ser contemplado pelo estudo das particularidades. É fato que

4

É fundamental perceber que no Recôncavo Baiano, a festa de Nossa Senhora da Boa Morte (segundo Verger, a Irmandade da Boa Morte foi fundada por mulheres do grupo étnico Nagô, cuja maioria pertencia à nação Kêto), é um exemplo notável de elementos católicos e dos divertimentos profanos no espaço público, no qual os batuques contavam como parte integrante no programa do evento católico (VERGER, 1997; SANSONE; SANTOS, 1997). A ideia de Nação segundo Vivaldo da Costa Lima refere-se a um “padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia fundados por africanos angolas, congos, gêges, nagôs” (LIMA; 1974; 77). A nação Kêto, desde os mais antigos terreiros da Bahia (Engenho Velho e Terreiro de Alaketu), passou a ser associado a um ideal de pureza nagô; ocorrendo no Recôncavo Baiano um processo valorativo da cultura ioruba. Estas Irmandades Negras expressavam o pacto colonial entre negros e brancos, preservando as tradições africanas, com uma estética própria e padrões de danças referentes à sua musicalidade. Para Carvalho (2000), a maioria dos gêneros musicais afro-brasileiros está ligada a essas irmandades. A Irmandade da Boa Morte em Cachoeira é um exemplo da ligação entre religiosidade e gêneros seculares tradicionais (samba de roda).

diferentes fatores influenciaram a construção do samba na Bahia; a historiografia da colonização retrata claramente a vinda de diversos povos africanos inseridos em um universo comum, subjugados a uma cultura dominante europeia. Esta questão no plano empírico torna-se impossível de ser analisada observando o todo. É necessária inicialmente a segmentação destas influências para uma melhor compreensão do processo. Outro aspecto importante, é que entendo as manifestações musicais no século XIX na Bahia (sambas e batuques) como uma manifestação de classe social, não relacionado apenas a um grupo étnico específico. Embora a base (material e imaterial) destes sambas esteja ligada a referenciais africanos, ocorreu em seu desenvolvimento uma apropriação desta música pelas camadas pobres e marginalizadas da sociedade baiana (sujeitos sociais múltiplos: escravos, crioulos, alforriados, brancos pobres, mestiços, prostitutas etc.). Assim os batuques do século XIX representavam uma afronta moral e também musical aos padrões estéticos das elites baianas, fato que se comprova nas proibições oficiais desta manifestação artística já muito popular (SANSONE; SANTOS, 1997). Entretanto o objetivo deste ensaio remete a algumas influências bantos na construção musical na Bahia. A delimitação da região do Congo-Angola foi feita a partir da constatação de que esta é a origem de parte significativa do contingente africano trazido à Bahia (FIGUEIREDO; 2010). Perceber traços da cosmologia destes agentes sociais, analisando suas sociedades, sua conjuntura histórica específica poderá elucidar várias reconstruções e reinvenções destes povos na cultura baiana, no caso aqui latente os sambas e batuques do século XIX na Bahia. Tais manifestações musicais serão determinantes para o ulterior desenvolvimento dos Sambas de Roda no Recôncavo, que foram adquirindo características específicas em função dos lugares sociais em que se estabeleceram, porém mantiveram aspectos universais que as legitimam a denominação de sambas de roda. Esta visão de universalidade é percebida enquanto categoria de análise, ou seja, um modelo abstrato para explicar o fenômeno cultural; já que existe uma pluralidade de tradições do Samba de Roda dentro e fora do território do Recôncavo baiano.

Contudo, mesmo percebendo tal diversidade, os sambadores5 reconhecem uma musicalidade chamada Samba de Roda que possui subtipos, gêneros; mas que de forma geral, possuem semelhanças estruturais. Em função desta busca por perceber ligações entre fatores subjetivos de um grupo social e os reflexos imperativos na musicalidade do mesmo, tenho a hipótese de que se existe uma cosmovisão genérica (designado por Mukuna como denominadores culturais comuns) comum aos povos congo-angolanos que no tráfico transatlântico estabeleceram-se na Bahia; talvez tais características

tenham

influenciado

determinadas

formas

musicais

(a

importante função da roda no samba, ideias de circularidade, sentidos religiosos na música, determinadas performances) do Samba de Roda em sua construção social. Esta cosmovisão é vista em sua forma unitária coerente como um modelo explicativo. Robert Slenes (1992) aponta três autores (Craemer, Vansina e Fox) que apresentam aspectos comuns da religiosidade da África Central. O núcleo seria a percepção do “complexo cultural venturadesventura”, no qual se busca a harmonia, a saúde, o equilíbrio, sendo os seus opostos frutos da interferência de espíritos e pessoas através da feitiçaria. Assim a manutenção destes valores remete a estados de pureza ritual.

As cerimônias e os tabus observados pela comunidade ou pelo indivíduo para atingir esse estado de pureza – associado especialmente à dança, à música e ao transe – geralmente são feitos em torno de um fetiche (charm), que é um objeto feito sob inspiração, incorporando os símbolos mais poderosos do movimento (religioso). (SLENES; 1992; 58).

No Brasil, parte-se desta mesma noção de ventura-desventura, entretanto reinterpretando novos símbolos adquiridos, pois a cultura é dinâmica. A cosmovisão congo-angolense (de povos falantes de kikongo, kimbundu e umbundu, principalmente) apresentaria uma dupla importância: uma influência mítica na música e principal referencial de criação para uma identidade banta, no movimento de diáspora África-Brasil. 5

Categoria êmica que expressa as pessoas envolvidas no Samba de Roda.

Identidade e Mudança Cultural

Embora a maioria dos antropólogos tenha insistido, durante o século XIX e boa parte do atual, que a unidade da África Central e Austral era apenas linguística, há razões para pensar que representantes desses povos, quando misturados e transportados ao Brasil, não demoraram muito em perceber a existência entre si de elos culturais mais profundos. (SLENES; 1992; 49)

Tais razões apontadas por Slenes, que extrapolam as similitudes linguísticas, seriam a base para compreender a construção de identidades. Para o autor este é um processo complexo ligado a acontecimentos que precedem a viagem atlântica. A identidade banta só foi possível em função de visões de mundo compartilhadas, em certo sentido, numa busca de semelhanças culturais. A memória coletiva possui um papel de conservação e transmissão dos valores das instituições em sociedades orais, como é o caso da África Central. Nessas

sociedades

estes

valores

eram transmitidos

pelas

tradições;

representações coletivas inconscientes (VANSINA; 2010) que influenciam as formas de expressão e constituem as visões de mundo. A semelhança estrutural da linguagem (entre alguns povos, pois entre outros não existia essa unidade banto preconizada por tantos linguistas europeus) pode ter sido o veículo inicial para as primeiras interações. O termo “malungo” possuindo analogias significantes em três grandes línguas (kikongo, kimbundu e umbundu) da África Central, além do sentido literal – para muitos autores: “companheiro” de barco, de sofrimento, “irmão” – apresentaria significados cosmológicos comuns aos povos falantes dessas línguas. A significação remete a outro termo: Kalunga (mar, rio). Este termo possui uma representação mental que extrapola a sua função literal e que era apreendida por estes povos como uma passagem para o mundo dos mortos. Na região Congo-Angola a cor branca simboliza a morte; enquanto os homens eram pretos (vida), os espíritos eram brancos. Assim a viagem transatlântica simbolizava uma passagem para o mundo dos mortos: o Novo Mundo. No processo do tráfico de escravos diferentes povos em suas pluralidades culturais e historicidades próprias, eram

aprisionados e amontoados em um ambiente comum, numa mesma situação de desespero e medo em frente ao desconhecido, sendo brutalizados pela escravidão. Estes momentos comuns lhe conferiam uma identidade que era construída em função de semelhanças como forma simbólica de resistência. A terminologia banto foi uma referência linguística cunhada na Europa no século XIX (SILVA, 2006), no entanto ulteriormente passou a ser designada pelos próprios africanos e descendentes como afirmação de uma identidade africana na Bahia. Assim, Slenes afirma:

Se num primeiro momento, na travessia da África e do Atlântico, os falantes de línguas bantu começaram a perceber que podiam trocar ideias com outras pessoas (...), no Brasil eles se deram conta de que sua liminaridade provavelmente iria durar para sempre. (SLENES; 1992; 56)

O estudo da problemática banto e de aspectos cosmológicos comuns aos povos da região Congo-Angola foi elaborado a partir da constatação de influências decisivas, tanto em aspectos estruturais da música quanto em significação simbólica6, na musicalidade no Recôncavo baiano. Em diversas letras7 dos gêneros tradicionais afro-brasileiros são notáveis as evocações estritamente referentes à África Central (Angola, Congo). Este desejo de retorno à África (Central), mais do que uma referência histórica, ou uma fantasia para fugir do sofrimento imposto pela escravidão, Angola e Congo podem ser pensados também como uma região mental (CARVALHO; 2000). 6

“Através dela [sincopa], o escravo – não podendo manter integralmente a música africana – infiltrou a sua concepção temporal-cósmico-rítmica nas formas musicais brancas. Era uma tática de falsa submissão: o negro acatava o sistema tonal europeu, mas ao mesmo tempo o desestabilizava, ritmicamente, através da sincopa – uma solução de compromisso” (SODRÉ; 1998; 25). Embora Sodré não enfatize, é necessário perceber o processo de socialização aos quais os escravos e seus descendentes estavam inseridos. Um exemplo, no que tange às práticas do Candomblé, os negros eram socializados em um respeito mútuo ao Catolicismo e às suas religiões autóctones. A respeito da estrutura musical, Lima (1996) destaca a influência banto de forma geral na música popular brasileira, citando o exemplo da célula rítmica de dezesseis pulsações: Versão a: (16) [x.x.x.xx.x.x.xx.] (nove batidas) Versão b: (16) [x.x.x.x..x.x.x..] (sete batidas)

7

Ver Carvalho (2000).

Para Sodré (1998), a organização formal do samba ou batuque africano foi trazida para o Brasil por escravos originários de Angola e do Congo, principalmente. Os mais importantes grupos populacionais desta região, segundo Figueiredo (2010), são: Kongo (ou bakongo, falantes de kikongo) localizado na margem sul do baixo curso do Rio Congo; Mbundu (Ambundo ou Bundu) estabelecidos ao redor da Bacia do Rio Kwanza; e Umbundu (ou Ovimbundu) no planalto Angolano. Estes dados geográficos são relativos à região do Congo-Angola pré-colonial. Ainda segundo o mesmo autor, nos três primeiros séculos de tráfico de escravos para o Brasil, os principais grupos eram da referida região. VERGER (1997) afirma que até aproximadamente o final do século XVII, em relação à Bahia, esses contatos foram particularmente intensos com Angola e o Congo. A respeito da importância desses povos para a construção musical no Recôncavo, no seu artigo Divertimentos Estrondosos: Batuques e Sambas no Século XIX, Jocélio dos Santos numa relação comparativa entre África Central e Bahia afirma “o batuque, que aparecia no Congo e em Angola sob a mesma denominação, era tido como uma dança de pretos provenientes das nações conguesa e bunda” (SANTOS; 1997; 18). Constatado o fato da importância desses povos congo-angolanos no processo musical e histórico (além de outros aspectos diversos que extrapolam a proposta deste capítulo), a construção de uma identidade africana na Bahia engendrada a partir de referenciais simbólicos compartilhados funcionou como uma espécie de síntese para uma quantidade enorme de significados e significantes culturais existentes em África, mas que na Bahia adquiriram outras feições. Como exemplo, Pierre Verger encontrou diferenças nas relações estabelecidas entre indivíduos e Orixás na África e no Novo Mundo. Em África, o Orixá é um bem de família, coletivo e que abarca toda uma comunidade. Nos terreiros de Candomblé, os Orixás são pessoais, isto é, cada adepto possui o seu e todos estão reunidos em torno do orixá do terreiro, “símbolo do reagrupamento, do que foi disperso pelo tráfico” (VERGER; 1997; 33). Este excerto, embora trate mais especificamente na região da África Ocidental, é ilustrativo para perceber que os referencias foram e sempre serão ressignificados. Embora as matrizes africanas sejam importantíssimas para compreender o processo de construção social da música no Recôncavo, as

ambiências em que se desenrolaram esses processos, os aspectos sociais diversos têm um papel definitivo para a cor de determinada musicalidade. O estudo da identidade dos bantos e suas implicações na música, nesse ínterim, é justamente a preocupação de perceber a aplicação desses referenciais centro-africanos efetivamente no Samba de Roda do Recôncavo da Bahia. A identidade é um conteúdo comunicativo que orienta o desenvolvimento das relações, contendo duas dimensões: uma pessoal (individual) sujeita a interações; e uma social (coletiva), onde seria o plano em que a identidade se erige. Assim, a identidade social surge como a atualização do processo de identificação e envolve a noção de grupo social (OLIVEIRA; 2003). A visão da construção de identidades africanas no Novo Mundo só possui sentido, tendo em vista os processos de ressignificação das práticas culturais. A criação de comunidades, desta noção de grupo social, a partir da junção de diversos grupos étnicos (mesmo com algum grau de reconhecimento) em um mesmo local e situação (diaspórica e escravista), só foi possível em função de processos de mudança cultural.

A tarefa organizacional dos africanos escravizados no Novo Mundo foi a de criar instituições – instituições que se mostrassem receptivas às necessidades da vida cotidiana, dentro das condições limitantes que a escravidão lhes impunha. (MINTZ; PRICE; 2003; 38).

A noção de instituição que os antropólogos norte-americanos se referem, remete a ideia de uma interação social regular de caráter normativo. Uma musicalidade, construída socialmente, é sobretudo um espaço de interações sociais. A percepção de uma influência estrutural (em termos musicais) de um determinado grupo identificado por referenciais culturais comuns não expressa a ideia de uma continuidade entre um traço cultural africano e sua influência no Novo Mundo, no sentido de “transportar” uma cultura para as colônias. Porém, justamente o oposto. A criação de identidades no Novo Mundo já é uma prática de mudança cultural. Pensar em grupos banto só tem sentido no contexto colonial, nas Américas, não em África. Para que estas práticas sejam ressignificadas por determinados agentes, pressupõem-

se, em primeira instância, um certo grau de reconhecimento mútuo (dado pela construção de identidades).

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