A construção de uma gramática e de uma identidade linguística: a língua geral em O Selvagem de José Vieira do Couto de Magalhães

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A construção de uma gramática e de uma identidade linguística: a língua geral em O Selvagem de José Vieira do Couto de Magalhães Paula Cristina De Paiva Limão Università degli Studi di Perugia, Italia

«Cada nova língua que se estuda, é mais importante para o progresso da humanidade do que a descoberta de um género novo e minerais ou de plantas. Cada língua que se extingue, sem deixar vestígios escritos é uma importante página da história da humanidade que se apaga, e que depois não poderá ser mais restaurada» (MAGALHÃES J. 1876: XXIX). Com estas palavras José Vieira do Couto de Magalhães exprime de modo clamante uma das preocupações do seu tempo, a da urgência de conhecer e preservar um património linguístico que se apresenta, para além de qualquer outro propósito político ou económico, como elemento constitutivo de uma dada identidade. Como sublinhado em várias passagens da sua obra, O Selvagem, publicada em 1876, Couto de Magalhães assevera que quando uma raça “civilizada” entra em contato com uma bárbara, duas são as possibilidades: a do extermínio ou a da transmissão da língua(1). O binómio conceptual civilizado/selvagem, tal como usado pelos letrados brasileiros nos finais do século XIX, restabelecia a funcionalidade de uma outra oposição, mais antiga, aquela entre cristãos e pagãos. Assim como o pagão representava um cristão em potencial, o selvagem também poderia ser compreendido como um ainda não civilizado. Esta dicotomia analisada de um ponto de vista puramente linguístico é desmontada pelo nosso autor que recorda como em grande parte do território brasileiro a língua tupi fosse falada por populações perfeitamente integradas, fazendo parte da sua idiossincrasia étnico-cultural: «Em geral nós, os brasileiros da costa, pensamos que a língua tupi só é falada por pagãos. Há engano nisso; temos milhares de compatriotas cristãos que a falam, e que não falam o português, os quais concorrem já com muitos milhões para a riqueza pública e pagam todos os impostos» (MAGALHÃES J. 1876: 137). A visão de Couto de Magalhães é no entanto a de conhecimento e não necessariamente a de preservação da identidade indígena na sua integridade, mas pelo contrário, a da promoção da miscigenação do elemento índio com o branco, como podemos constatar nas suas palavras: «Cumpre apenas não turbar, partindo de prejuízos de raças, o processo lento, porém sábio da natureza [...] os indígenas, por uma lei de seleção natural, hão de cedo ou tarde desaparecer; mas se formos previdentes e humanos, eles não desaparecerão antes de haver confundido parte de seu sangue com o nosso, comunicando-nos as imunidades para resistirmos à ação deletéria do clima intertropical que predomina no Brasil» (MAGALHÃES J. 1876: 137). O índio é-nos apresentado por Magalhães como uma grande raça, cheia de virtudes que poderiam contribuir beneficamente para a criação de uma nova raça brasílica: «Sombrios, bons, dedicados até ao heroísmo, alguns lhe chamam traiçoeiros e falsos. É porque quase sempre eles são vitimas de traições e falsidades que praticamos, abusando de nossa posição de raça conquistadora, e por isso lhes damos razão de sobra para reagirem contra nos, e se reagem com hipocrisia, é porque essa é a arma do fraco. É uma grande raça repito, Temos Immaginario e memoria: studi culturali

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muito a ganhar pondo-nos em contato com ela pelo órgão indispensável, do conhecimento de sua língua ; por muitos anos os índios hão de ser os precursores da raça branca em nossos sertões e nem Deus promoveria a grande fusão de sangue que se esta operando lentamente neste cadinho imenso do Brasil, se com isso não tivesse em vista a realização de um desses grandes desígnios que marcaram as épocas notáveis da história» (MAGALHÃES J. 1876: 275). A partir de meados da década de 70 do século XIX o tupi torna-se objecto de análise científica. Na confluência da recepção de alguns autores da linguística histórica o interesse pelo tupi moldou-se de forma a preservar quer o seu caráter instrumental quer o seu significado para a história nacional e a enriquecer o conhecimento civilizado sobre as raças e línguas humanas. É neste período que surge um movimento romântico nativista que pretendia registar a língua e as histórias tradicionais transcritas em língua geral. Variedades de língua geral são assim descritas em O Selvagem (1876) de Couto de Magalhães, nas notas sobre a língua geral de Hartt (1872), e entre outras nas obras de Brandão de Amorim (1857), de Barbosa Rodrigues (1890) e no Dicionário Nheengatu – Português e Português – Nheengatu de Stradelli (1929). José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), nascido em Diamantina em 1837 numa fazenda de gado de seu avô, foi embalado na sua infância – como ele bem lembra – por lendas tocantes e poéticas, metade cristãs, metade indígenas. Militar, político e intelectual, profundamente ligado à atividade do Instituto Histórico Geográfico brasileiro(2), revela-se um profundo conhecedor da produção científica do seu tempo sobre as ciências da linguagem, das gramáticas da língua tupi do século XVI e do guarani do século XVII o que o leva à elaboração de uma descrição do Nheengatu ou Língua geral amazónica, com um claro objectivo pedagógico. Como bem salienta Consuelo Alfaro, a obra de Couto de Magalhães define as linhas norteadoras de uma verdadeira política linguística de expansão do português que pressupõe obviamente um profundo conhecimento da língua indígena. As suas atividades profissionais (homem de negócios, dirigente de bancos, de empresas ferroviárias, de navegação e de exportação, foi presidente de diferentes províncias, entre as quais o Para) forneceram-lhe uma visão pragmática de como projetar o desenvolvimento económico brasileiro e permitiram-lhe o contato com as populações que eram objeto do seu estudo (ALFARO C. 2004). A obra O Selvagem é composta por 3 ensaios: um estudo etnográfico sobre as etnias do Brasil central que tinha sido publicado em separado em 1874 um curso de tupi, língua geral segundo o método de Ollendorf e um conjunto denominado pelo autor lendas tupi recolhidas durante as suas viagens. Trabalho de inegável importância para a preservação da memoria intelectual indígena retratada e registada na coleção de lendas tupi, O selvagem pode ser considerado um marco do cenário indigenista do século XIX pois representa o contexto histórico empírico do emprego da língua como instrumento de conquista, o papel do intérprete e importância da oralidade. O carácter pragmático da obra é bem explicitado na folha de rosto da edição de 1876 onde se pode ler: «Conseguir que o selvagem entenda o portuguez, o que equivale a incorporá-lo à civilização e o que é possível com um corpo de intérpretes formado das praças do exercito e armada que falem ambas as línguas e que se disseminariam pelas colónias militares, equivaleria a: I) conquistar duas terças partes do nosso território, II) Adquirir mais um milhão de braços aclimados e utilíssimos, III) Assegurar nossas comunicações para as bacias do Prata e do Amazonas, IV) Evitar no futuro grande efusão de sangue humano e talvez despezas colossais, como as que estão fazendo outros paizes da América» (MAGALHÃES J. 1876: folha de rosto). Tal propósito de integração do índio na construção do Estado nacional é, como sabemos durante o século XIX preconizada pela eficácia da persuasão ou pela força da guerra. A expansão agropastoril, em territórios ainda não conquistados aos índios, faz parte dessa construção. Novas áreas são ocupadas, novos territórios incorporados e o Estado nacional trabalha no sentido de demarcar essas novas fronteiras, fazendo-se presente nesses territórios. A ocupação de territórios indígenas, a modernização e as ideias de europeização são práticas que marcaram, de forma geral, a sociedade nacional no século XIX. A política indigenista do Brasil Imperial pauta-se pelas necessidades da sociedade envolvente e não pelas necessidades das comunidades indígenas. As ações governamentais estão voltadas para os objetivos das elites dominantes e interferem na vida das comunidades indígenas procurando discipliná-las. Este projeto conduz inevitavelmente à defesa da miscigenação das raças, já que Couto Magalhães defendia que no Brasil, os mestiços não apresentavam inferioridade alguma intelectual; pelo contrário, talvez até Immaginario e memoria: studi culturali

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fossem superiores, pois tinham que vencer barreiras muito maiores que os brancos para alcançar posições destacadas na sociedade: «Como na América do Norte, o anglo-saxonio, fundindo.se com o pelle vermelha, produzio o Yank, representante de uma nova civilização; assim o latino, fundindo-se com o tupi, produziu essa raça enérgica que constitue a quasi totalidade da população de S. Paulo e Rio Grande, e a maioria do povo do império» (MAGALHÃES J. 1876: XVIII). Devido à sua condição de militar, Magalhães viaja por quase todo o Brasil nas décadas 60 e 70 e como ele mesmo informa, tivera a oportunidade de conhecer mais de trinta tribos diferentes e visitado mais de cem aldeias indígenas. Nessas suas andanças verifica as consequências negativas da política da criação de aldeamentos: «[...] o índio catechisado é um homem degradado, sem costumes originaes, indifferente a tudo, e, portanto, á sua mulher e quasi que á sua família. Os aldeamentos indo-christãos não tem, pois, costumes originaes: sua família é a família christã, mais ou menos moralisada, segundo o caracter individual do catequista. D’ahi o desgosto, a preguiça, a ociosidade, que forçosamente corrompem tudo e cream a prostituição, a embriaguez e outros vicios. [...]Cada tribo que nós aldeamos é uma tribo que degradamos, é a que por fim destruímos, com as melhores intenções, e gastamos o nosso dinheiro» (MAGALHÃES J. 1876: 477, 484, 512). Couto de Magalhães combate assim em duas frentes; a primeira contra a política dos aldeamentos religiosos, e a segunda contra a perspectiva que sustinha que a raça selvagem do Brasil deveria ser exterminada a ferro e fogo (MAGALHÃES J. 1876: 507). Chegando a ser acusado por alguns intelectuais, como Joaquim Serra, de ocupar-se inutilmente dos assuntos relacionados com os índios, Couto de Magalhães (1876: 509) responde que todos os tipos de estudo, mais cedo ou mais tarde, adquirem alguma utilidade e que, se estudavam e procuravam classificar desde a mais miserável planta até o mais rude dos minerais, «[...] ..muito mais nobre e útil é estudar, descrever e classificar o homem americano». Nessa carta-resposta a Joaquim Serra ele aproveita para rebater as críticas e preconceitos que se faziam contra os índios na época. Para ele, era dever dos cristãos trazer os índios para o seio da sociedade. Defende assim o povoamento do país pelas populações indígenas e mestiças em vez de gastar-se com a política de migrações europeias. Refuta igualmente os argumentos de que os índios eram preguiçosos, estúpidos, bêbados e traiçoeiros, afirmando que essa era uma visão parcial de historiadores que encontravam os índios degradados pelo sistema da catequese ou por aqueles que, a pretexto de religião e civilização, queriam viver à custa de seu suor, e lamentou que os índios não tivessem historiadores para escreverem a história a seu modo. Finalmente, expõe quais seriam os meios ideais para catequizar os índios: a) não aldear nem pretender governar as tribos indígenas; b) ensinar as crianças de cada tribo a ler e escrever conservando sua língua materna; c) deixar os índios viverem no seu modo de vida tradicional, não alterando seus costumes. As mudanças viriam a longo prazo; o único costume a ser evitado seriam as guerras entre as tribos. Magalhães acreditava que os índios chegariam a um estágio de compreensão das vantagens da civilização por si mesmos, gradualmente e através de meios brandos, e essa era, a seu ver, a maneira mais conveniente de os incorporar à civilização. Neste sentido se enquadra em 1871 a criação do Colégio Isabel em Araguaia, com o objectivo de «[...] conservar-lhes o conhecimento da língua materna, seus costumes, sua alimentação e seu modo de vida» (MAGALHÃES J. 1876: 136). O autor, para a elaboração da sua obra, não se baseia, no entanto unicamente na sua vivencia pessoal d contato com as comunidades indígenas, mas demonstra conhecer e avaliar criticamente uma importante bibliografia dedicada ao tupi e ao guarani A Gramática do Guarani de Montoya acompanha-o na sua viagem a Araguaia. O Padre Antonio Ruis de Montoya que, em 1639, depois de ter estado mais de 30 anos entre os guarani, publicar o Notavel tesouro de la lengua guarani, o maior repertorio lexical e fraseológico até hoje existente de qualquer língua tupi-guarani (ALFARO C. 2004: 56). Couto de Magalhães frequenta igualmente a biblioteca de D. Pedro II onde conhece a gramática de Anchieta e copia um manuscrito de poesias tupi paulista adquirida em Roma pelo imperador. Na biblioteca do Instituto Histórico Geográfico. Brasileiro encontra copia de um conjunto de documentos, cujos originais se encontravam em arquivos europeus, para além do manuscrito de John Luccock, datado de 1818, que viria a Immaginario e memoria: studi culturali

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ser publicado posteriormente, em 1881, com o título A Grammar and vocabulary of the Tupi language. No decurso das suas viagens adquire outros trabalhos produzidos no século XIX como a obra de Batista Caetano de Almeida Nogueira, o Vocabulário da Língua Geral (de 1853) editado no Pará da autoria do padre Manoel Justiano Seixas e o Compêndio da Língua Indígena Brasílica (1958) escrita pelo coronel Corrêa de Faria, ambas elaboradas para uso do seminário Episcopal do Pará. Couto de Magalhães estuda também em grandes bibliotecas de Europa, sobretudo em Londres onde vive durante 4 anos para se dedicar à formação linguística, o que lhe fornece os modernos instrumentos conceptuais para criticar os trabalhos de classificação morfológica, que se limitam à forma externa, à aparência da língua (MAGALHÃES J. 1876: 50). Ainda que Hartt (1937 [1872]: 309-310) tenha procurado coletar frases do Nheengatu tal como as ouvia, foi Couto de Magalhães quem efetivamente concretizou, na emergente antropologia e linguística brasileiras, a observação direta como método de recolha de dados. Isso leva-o a prestar particular atenção ao som e à sua representação escrita, que se propunha, pela primeira vez nessa tradição, fonética. Adota para tal o alfabeto fonético de Magnus Lepsius e descreve detalhadamente, na primeira parte do livro, as características fonéticas e prosódicas da língua, bem como as convenções que adota para as representar. Embora atribua ao Conselheiro José Agostinho Moreira Guimarães, a responsabilidade pelo seu primeiro contato com o método Ollendorf, e a Joaquim Manoel de Macedo a leitura da gramática de Ruiz de Montoya, Arte de la Lengua Guarani (1640) – os textos e comentários que permeiam suas lições gramaticais revelam-no um autor conhecedor não apenas da tradição descritiva do Tupinambá – refere-se às gramáticas de Anchieta, Figueira, aos dicionários, aos catecismos; aos trabalhos mais recentes como os de Faria e Gonçalves Dias – mas também das gramáticas do Kiriri, Quechua e do Guarani. A motivação central da sua descrição gramatical é a aplicação de um método linguístico-pedagógico que considera eficiente para a aprendizagem da língua geral – o método Ollendorf. A sua ideia é que se formem intérpretes capazes de interagir com os “selvagens” e as suas críticas às produções anteriores vão não tanto ao modelo gramatical segundo o qual se organiza a descrição da língua, quanto ao uso que dele fizeram os jesuítas no período colonial. A obra é de fato dedicada à constituição de um quadro de interpretes instruídos em nhengatu, intérpretes não missionários, como no século XVI, mas interpretes militares, que na verdadeira conquista do território dominem a língua dos povos a serem integrados, de modo a serem considerados como pertencentes à sua comunidade: «Para o selvagem, aquelle que falla a sua língua é um seu parente, portanto seu amigo, e é natural. Elle não tem idéa alguma da arte de escrever; nao compreende nenhum methodo de aprender uma língua senão aquelle pelo qual adquirio a própria, isto é: pelo ensino materno; por isso quando um branco falla a sua língua, ele julga que esse branco é seu parente, e que entre a gente da sua tribo e na infância é que tal branco aprendeu a falla (MAGALHÃES J. 1876: XXXVII). O curso da Língua geral segundo Ollendorf apresenta uma estrutura didática de autoaprendizagem. A informação gramatical apresenta-se em comparação com português e o corpus tem duas formas: conjunto de orações a maneira de dialogo (pergunta resposta) e sucessivamente textos completos, lendas, com tradução e versão em português. O autor propõe assim o dialogo como input didático, já que cada uma das lições inicia com pequenos diálogos que apresentam objectivos comunicativos muito pragmáticos. Cada unidade letiva pressupõe a aquisição inicial de vocabulário que sucessivamente é integrado em orações que apresentadas em forma de dialogo relacionam-se com determinadas situações comunicativas. Numa terceira fase apresenta textos de natureza literária, recolhidos pelo autor. Na parte da obra que corresponde a um nível de aprendizagem mais avançado encontramos os mitos e as narrativas em nheengatu com as respetivas traduções e com exercícios de tradução. O foco nas habilidades orais representa um avanço no modo de conceber a questão didática. Neste sentido a parte descritiva do manual apresenta um inventário de unidades de crescente grau de dificuldade em que se explicitam regras gramaticais, sempre numa perspetiva comparada. Apesar de na folha de rosto de O Selvagem se indicar a inclusão de um curso da língua geral segundo Ollendorf, Magalhães no seu testo usa o termo “nhengatu” para denominar a língua geral da Amazónia(3). Neengatu criado a partir de nheen (língua) e katu (ser bom) ou seja língua é o termo com o qual os indios reconhecem a sua língua: Immaginario e memoria: studi culturali

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«Tupi era o nome de uma tribo, que, ao tempo da descoberta, dominava grande parte da costa. Se dissermos a qualquer índio civilizado do Amazonas: falle em língua tupi _ ele nao entende o que lhe queremos dizer. Estas duas palavras tupi e guarani nao significavam entre os selvagens que dellas usavam senão tribos ou famílias que assim se denominavam. Estas duas expressões: língua tupi ou língua guarani, seriam como se nos disséssemos: a língua dos mineiros, ou a língua dos paulistas» (MAGALHÃES J. 1876: XXXVI). O autor sublinha igualmente que a descrição e o curso que apresenta na sua obra, O Selvagem refere-se à língua tupi viva ou Nheengatu e não à antiga língua geral falada ao tempo dos jesuítas: «Hoje como sabemos em consequência da ação dos missionários que no norte do brasil se serviram do Tupi como língua de catequese mesmo junto a indios de outras língua, é hoje o Nheengatu língua de relação entre os índios nao tupis, particularmente entre as numerosas tribos de índios Aruak e Tukano dos afluentes do Rio Negro, Os indígenas dessas tribos falam a sua própria língua no seio da tribo mas para entender-se com outros índios ou com os civilizados falam o Nheengatu, idioma preferido dos caboclos do rio Negro. Por este fato porque falado por povos de outras línguas está o Nheengatu profundamente alterado em relação a antiga língua dos Tupinambá» (MAGALHÃES J. 1876: XXXVI). A partir da sua observação direta e da recolha de material que efetua nas suas viagens pelo interior da Amazónia, Magalhães procura no contexto do contato linguístico entre o português e o nheengatu, delinear fases distintas. Estabelece assim três períodos: o primeiro que chama de justaposição, em que na relação entre as duas línguas se assiste a uma alternância simétrica. Representa ambas as línguas em situações de bilinguismo já que as duas línguas entram na composição literária, com seus vocábulos puros, sem que estes sofram modificação (MAGALHÃES J. 1876: 90). O segundo período em que se assiste a um progressivo desaparecimento da simetria entre as duas as línguas e em que por exemplo na poesia popular os versos são em português e o refrão em língua geral. Neste caso o português desempenha o papel principal e a língua geral é usada para marcar o elemento repetitivo (ALFARO C. 2004: 59). Como diz Couto de Magalhães: «[...] pouco uma língua predomina e so ficam da outra algumas palavras, que ou nao tem correspondente na língua que tende a absorver a outra, ou sao mais suaves para o sistema auditivo da raça que vai sobrevivendo» (MAGALHÃES J. 1876: 90). O terceiro período esta exemplificado por textos em português onde já não esta presente o bilinguismo, apesar de haverem marcas da língua que desapareceu. Para ilustrar tal miscigenação e integração linguística afirma o nosso autor: «Elles estão falla fallando, para indicar que elles estão fallando muito. Numerosas formas da língua tupi passaram para o portuguez do povo; e como é o povo quem no decurso de séculos elabora as linguas, essa se ha de transformar ao influxo principalmente d’essa causa, de modo que dia virá em que a lingua do Brazil será tão diversa do portuguez quanto este é do latim» (MAGALHÃES J. 1876: 91). Voltando à lingua, ao Nheengatu, a descrição e afirmação de uma nova língua geral leva Magalhães a minimizar as diferenças entre as diferentes línguas faladas na região, admitindo, de qualquer modo a existência de uma porção de línguas, muito semelhantes entre si. Neste caso o que é importante não são as diferenças formais e variantes das línguas indígenas mas as situações comunicativas. O nheengatu é assim uma espécie de híper língua «uma das que ocupam maior superfície da terra» (MAGALHÃES J. 1876: 28-29). Para legitimar este estatuto de língua geral usa o critério da extensão territorial fazendo comparações com outras línguas de prestigio. Reticências embora tímidas, sobre a ideia de uma língua única, atravessando a geografia e o tempo, foram Immaginario e memoria: studi culturali

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formuladas no século XIX pelo estudioso inglês Charles Frederik Hartt, professor de geologia na Universidade de Cornell, Ithaca, que estudara o Nheengatu em viagens científicas realizada na Amazônia. A reflexão do nosso autor sobre a importância da língua nheengatu leva-o a tecer elogios à sua complexidade gramatical, comparável às das línguas mais célebres: «Pelo lado da perfeição, ella é admirável; suas fomas grammaticaes, embora em mais de um ponto embrionárias, sao comtudo tao engenhosas que, na opinião de quantos a estudaram pode ser comparada às mais celebres. Esta proposição parecera estranha a muita gente; mas o curso que começo agora a publicar, e que com o favor de Deos, espero levar a cabo de um modo completo, o deixara demonstrado. Muitas questões hoje obscuras em filologia e linguística encontrarão no estudo desta, que constitue uma nova família, a sua decifração» (MAGALHÃES J. 1876: XXXVI). Couto de Magalhães na sua obra não se limita, no entanto, à analise linguística, dedicando a terceira parte do seu texto à apresentação e ao estudo do aspeto mais intimo, relevante e representativo de cada povo: o mito. As lendas apresentadas são importantes para o autor porque reveladoras do código moral daqueles povos que ficaram cristalizados na idade da pedra. O universo do pensamento mítico indígena é envolto em dúvidas provocadas pelo silêncio do indígena em compartilhar seu misticismo e crenças aos não indígenas, parte das histórias são omitidas. O autor atribui tal omisso ao medo de não serem compreendidos ou que se faça troça deles já que , como afirma «entre eles, assim como entre nos, o amor próprio é a força moral preponderante» (MAGALHÃES J. 1876: 213). Couto de Magalhães inclui no seu compêndio lendas que obteve com o contacto direto com os indígenas, como as lendas do jabuti, contadas por um indígena mundurucu de nome Aruan. O testemunho das lendas é assim de importância crucial, verdadeiramente representativa de uma civilização, que como diz o autor «pouco a pouco se vai apagando diante da nossa». É o contato com as lendas que revela ao autor a verdadeira essência da alma indígena, essa poesia que possui um carácter tão singelo e infantil que é impossível lê-las e recolher uma verdadeira poesia selvagem: «[...]cada vez que reflito na singularidade do poeta indígena de escolher o prudente e tardo jabuti para vencer os mais adentados animais de nossa fauna, fica-me evidente que o fim dessas lendas era altamente civilizador, embora a moral nelas ensinadas divirja em muitos pontos da moral crista» (MAGALHÃES J. 1876: 223). O discurso etnocêntrico colonialista que considerava as línguas indígenas como «línguas pobres, desarticuladas, ininteligíveis, incapazes de expressar poesia» é refutado com poderosa argumentação por Couto de Magalhães J. para quem as línguas indígenas enriquecem o património nacional. Justificada a relevância do tema, o debate podia, enfim, entrar no mérito da questão: a imagem construída por Couto de Magalhães sobre o índio e o legado de suas manifestações literárias. O discurso colonialista havia desqualificado a poesia e os mitos indígenas, considerando-os como uma manifestação menor, grosseira e extravagante, fruto da superstição e recusando-se a enquadrá-los no campo da literatura, por se tratar de uma elaboração em línguas agrafas, rudimentares e incompletas, faladas por povos “atrasados”. Couto de Magalhães contra-argumenta. No caso das narrativas indígenas, ele adverte que o pesquisador pode-se surpreender, ao descobrir a notável e profunda filosofia e poesia que elas encerram. Lembra que embora o seu trabalho seja o de um simples colecionador de narrativas indígenas, este seu labor presta um grande serviço à Filologia e à Antropologia ao publicar os mitos numa língua tupi (MAGALHÃES J. 1876: 108). Esse será um dos primeiros princípios metodológicos, que norteia o seu trabalho de coleta da literatura oral: o conhecimento da língua, sem o qual qualquer juízo crítico está invalidado Maravilhado com a coleção de nove “lendas da raposa” por ele recolhidas «verdadeiro colar de pedras finas, tanto pelo espírito e animação do enredo, como pelo laconismo, sobriedade das cenas e clareza» não hesita em situá-las no quadro da literatura universal, afirmando que elas «sofreriam, sem desmerecer, o confronto com as fábulas de Esopo, Fedro e Lafontaine». Em outra passagem, Couto de Magalhães compara os mitos coletados com «os poemas de Homero, os Niedelugen, os poemas de Ossian», sustentando que os primeiros, «debaixo do ponto de vista antropológico são mais importantes, por serem os vestígios da literatura Immaginario e memoria: studi culturali

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espontânea de um povo antes que qualquer género de convenção, interesse ou espírito de seita e partido houvesse modificado as produções espontâneas do espírito humano» (MAGALHÃES J. 1876: 105, 126-128). Segundo ele, só é possível perceber o nexo das ideias entre imagens aparentemente desconexas, se for tido em consideração o princípio de que, para os índios, a palavra falada é mais um meio de auxiliar a memória do que um meio de traduzir as impressões. Ele diz que aplicou esse princípio de crítica à poesia popular, sobretudo aos cantos das populações mestiças profundamente marcados pela herança indígena e obteve resultados surpreendentes. Descobriu que «[...] suprindo-se por palavras o nexo que falta às imagens expressadas por eles em formas lacónicas, se revela um pensamento enérgico às vezes de uma poesia profunda e de inimitável beleza, apesar do tosco laconismo da frase» (MAGALHÃES J. 1876: 64-65). Tal como Magalhães também Ungaretti não resistiu ao fascínio destas lendas indígenas e traduz três mitos indígenas (tupi, carajá e bororo), com o titulo Lendas Índias do Génesis, que inauguram uma série de traduções brasileiras que Ungaretti publicou pela primeira vez na revista italiana Poesia. A primeira das lendas índias do Génesis é o mito tupi “Mai Pituna Oiuquau Ãna” (“Como a Noite Apareceu”), que Ungaretti traduziu para o italiano a partir da tradução interlinear em português de Couto de Magalhães que por sua vez traduziu a partir da versão oral tupi, que é o primeiro a transcrever, no seu O Selvagem (WATAGHIN L. 1998). O maior confronto, entre as ideias de Couto de Magalhães e o pensamento que predominava na sua época, reside no fato de ter insistido que o índio deveria entrar na composição da nacionalidade brasileira, ao passo que a ideia corrente era que a formação de uma civilização nos trópicos dependeria necessariamente da importação de europeus. Essas propostas de Couto de Magalhães não foram implementadas, especialmente porque a política imperial, baseada no progresso e no modelo europeu, não contemplava os índios, tidos como tipos humanos culturalmente inferiores. Assim, não havia interesse em formar um corpo de especialistas em línguas indígenas para promover a integração desses povos à civilização, nos moldes preconizados por Couto de Magalhães, nem tampouco em trocar os colonos europeus pela incorporação de índios no processo civilizatório e de melhoramento racial. De qualquer maneira, a obra de Couto de Magalhães responde aos propósitos do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, de investigar as origens do homem americano, compreender suas formas de organização e suas expressões culturais: discute as origens dos ameríndios; descreve suas aptidões físicas e culturais; classifica-os de acordo com os padrões científicos vigentes e encontra neles as qualidades necessárias para propor incorporá-los ao esforço imperial de desenvolvimento económico e aperfeiçoamento da civilização.

Notas (1) «O constante testemunho da história demonstra que por toda a pare, e em todos os tempos em que uma raça barbara se poz em contacto com uma raça civilizada, esta se vio forçada ou a extermina-la, ou a ensinar-lhe sua língua» (MAGALHÃES J. 1876: VII). (2) Com a criação do IHGB nasce um interesse efetivo pelas línguas brasileiras que se traduz não só na reedição dos seus textos clássicos mas também das gramáticas e dicionários produzidos pelos missionários, entre as quais salientamos a segunda (1874) e terceira (1876) edições de Anchieta, além de uma nova edição de Figueira (1687) Iniciam nesse período uma leva de expedições científicas que produziram materiais originais, tais como aquelas levadas a cabo por Karl Friedrich Philipp von Martius (1794- 1868), Batista Caetano (1826-1882), Couto de Magalhães (1837-1898), Charles Hartt (1840-1878), Karl von den Steinen (1855-1929) e Paul Ehrenreich (1855-1914). (3) Somente em 1850 como assevera Edelweiss é que a denominação “nheengatu” como expressão dialetal passou a ser conhecida. Data de 1877 uma gramática da língua geral da autoria de Pedro Luis Symson cujo titulo completo, a opinião de Edelweiss seria Gramática da língua brasílica geral, falada pelos aborígenes das províncias do Pará e Amazonas. A quinta edição (1955) foi denominada de Gramatica da língua brasileira, brasílica, tupi ou nheengatu, designativos vários (EDELWEISS F. 1969).

Bibliografia ALFARO Consuelo, La “Lingua Geral” Amazónica y los estudios de Couto de Magalhães (1837-1898), “Revista Internacional de Lingüística Iberoamericana”, vol. 2, n. 1(3), 2004, pp. 55-70, Iberoamericana Editorial Vervuert, Madrid. AMORIM Brandão de, Lendas em nheengatu e em português, “Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 100, 1857, pp. 3-475 , Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro. Immaginario e memoria: studi culturali

Paula Cristina De Paiva Limão A construção de uma gramática e de uma identidade linguística: a língua...

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BORGES Luiz Carlos et al., Ciência, imaginário e civilização em Couto de Magalhães, “Revista Brasileira de História da Ciência”, vol. 5, n. 2, jul.-dez. 2012, pp. 250-266, Rio de Janeiro. EDELWEISS Frederico G., 1969, Estudos tupis e tupi-guaranis: confrontos e revisões, Livraria Brasiliana Editôra, Rio de Janeiro. FARIA Francisco Raimundo Correia, 1858, Compêndio da língua brasílica para uso dos que a elle se quizerem dedicar, Santos Filho, Pará. HARTT Charles Frederik, 1937 [1872], Notas sobre a língua geral ou tupi moderno do Amazonas, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. LUCCOCK John, A Grammar and Vocabulary of the Tupi Language, “Revista Trimensal do Instituto Historico e Geographico Brazileiro”, vol. 44, n. 62, 1881, pp. 1-130, Instituto Historico e Geographico Brazileiro, Rio de Janeiro. MAGALHÃES COUTO DE José Vieira, 1876, O Selvagem, Typographia da Reforma, Rio de Janeiro. MONTOYA Antonio Ruiz de, 2011 [1640], Arte, vocabulario, tesoro y catecismo de la lengua guaraní, Centro de Estúdios Paraguayos “Antonio Guasch”, Assunción. NOGUEIRA Batista Caetano de Almeida, Esboço gramatical do Abáneê ou língua guarai, chamada também do Brasil língua tupi ou língua geral, propriamente Abancéênga, “Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro”, vol. 6, 1879, pp. 1-90. RODRIGUES João Barbosa, 1890, Poranduba amazonense ou Kochiyma-Uara Porandub, G. Leuzinger & filhos, Rio de Janeiro. SEIXAS Manuel Justiano, 1853, Vocabulário da língua indígena geral para o uso do seminário episcopal do Pará, Mattos, Belém. STRADELLI Ermano, Vocabularios da lingua geral portuguez-nheêngatú e nheêngatú-portuguez, precedidos de um esboço de Grammatica nheênga-umbuê-sáua mirî e seguidos de contos em lingua geral nheêngatú poranduua, “Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro”, tomo 104, 1929, pp. 9-768, Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro. TAYLOR Gerald, Apontamentos sobre o nheengatu falado no Rio negro Brasil, “Ameríndia”, vol. 10, 1985, pp. 5-23. WATAGHIN Lucia, Um mito tupi traduzido por Giuseppe Ungaretti: Mai Pituna Oiuquau Ãna (“Como a noite apareceu”), “Revista USP”, vol. 37, mar.-maio 1998, pp. 168-173, São Paulo.

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