A construção do atonalismo a partir da saturação triádica na Improvisação para flauta solo de José Alberto Kaplan

July 25, 2017 | Autor: Liduino Pitombeira | Categoria: Music analysis
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XX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - Florianópolis - 2010

A construção do atonalismo a partir da saturação triádica na Improvisação para flauta solo de José Alberto Kaplan Maria Leopoldina Cardoso Onofre Universidade Federal da Paraíba – [email protected]

Liduino José Pitombeira de Oliveira Universidade Federal de Campina Grande/ PPGM-UFPB – [email protected] Resumo: Este artigo pretende elucidar o processo composicional utilizado pelo compositor José Alberto Kaplan (1935-2009) na construção do atonalismo a partir da saturação de elementos triádicos, em sua obra Improvisação para flauta solo. Pretendemos ainda identificar em quais elementos o compositor se apóia para imprimir características nacionais nesta composição e de que maneira ele inova no uso desses elementos. Palavras-Chave: Kaplan, Improvisação, Atonalismo, Saturação triádica

1. Introdução A obra de José Alberto Kaplan (1935–2009), compositor argentino naturalizado brasileiro, reflete suas impressões sobre a cultura popular brasileira. Essas impressões foram tão fortes durante toda a sua vida, que, mesmo quando ele faz uso de materiais e técnicas composicionais tipicamente européias, é possível perceber traços da cultura popular do nordeste brasileiro. Dentre as obras do compositor que revelam claramente esta presença cultural está a Improvisação, para flauta solo, escrita em 1983 e dedicada ao flautista argentino, radicado na Paraíba, Gustavo Guines de Paco de Géa. Nessa peça, Kaplan utiliza materiais já bastante explorados, até o início da segunda metade do século XX, por compositores adeptos da corrente nacionalista brasileira. Kaplan inova através das combinações sucessivas da escala nordestina em diferentes centros, gerando cromatismo e uma atmosfera atonal. Além disso, há também referências à tonalidade e ao uso das escalas de tons inteiros e octatônica, também utilizados em combinações sucessivas em centricidades variáveis. 2. Elementos regionais em Improvisação Ao incorporar aspectos nacionais em sua Improvisação, Kaplan utilizou-se dos seguintes elementos encontrados na cultura nordestina: improvisação, martelo agalopado (um dos gêneros da cantoria nordestina), arquétipos intervalares e modo misto. Abordaremos a seguir cada um desses elementos de forma mais detalhada. Uma das características fundamentais da cantoria nordestina é a improvisação. Este fator é evidenciado na peça de Kaplan tanto no título, Improvisação, quanto no caráter

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improvisatório da obra, que é obtido pelo uso de ritardando e accelerando e pela inclusão de uma cadenza no trecho final. As notas longas, que param o fluxo quase contínuo de semicolcheias, e as pausas (utilizadas para possibilitar a respiração do intérprete) também contribuem para conferir esse caráter improvisatorório à obra. Além disso, o martelo agalopado, rítmo que Kaplan utiliza como fonte rítmica para a construção de sua obra, tem como uma de suas principais características a improvisação. Esse gênero poético-rítmico, em andamento rápido, é identificado como dianapesto-peônio, ou seja, dois anapestos (aqueles cuja métrica silábica acentual é composta de duas sílabas breves e uma longa) e um peônio (três sílabas breves e uma longa, podendo a sílaba tônica acontecer em qualquer posição). O martelo agalopado é formado de versos decassílabos onde o ritmo de declamação (onde se localizam as tônicas) impõe acentos sobre a terceira, a sexta e a décima sílabas ou pulsos de cada verso (SAUTCHUK, 2009, p. 45), ou seja: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10. A Figura 1 mostra o motivo rítmico característico do martelo agalopado e sua aplicação em Improvisação. Observa-se tonicidade rítmica na 3ª e 6ª notas do gesto melódico inicial da obra (Figura 1). Este gesto é formado por duas semicolcheias anacrúsicas seguidas por um colcheia no tempo forte, o que naturalmente acentua a colcheia (também por ser uma nota mais longa que a anterior), ocasionando, portanto, a sensação equivalente a uma tônica silábica, que na peça encontra-se exatamente na terceira nota e sequencialmente na sexta nota, ainda mais acentuadas pela presença respectiva de acento/staccato e staccato.

Figura 1. Motivo rítmico característico do martelo agalopado e aplicação desse elemento no gesto gerador de Improvisação.

Uma das características da cultura musical nordestina é a utilização do modo misto ou nacional. Segundo nos esclareceu1 José Siqueira em seu Sistema Trimodal, a música nordestina utiliza três modos: dois são equivalentes aos modos eclesiásticos lídio e mixolídio e o terceiro é uma derivação deles, denominado por Siqueira de modo misto ou nacional,2 que absorve a quarta aumentada do primeiro e a sétima menor do segundo (Figura 2). Kaplan faz uso dos modos lídio e misto, este último sendo utilizado predominantemente.

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Figura 2. Modos utilizados na música nordestina.

O contorno melódico de Improvisção é construído a partir de movimentos intervalares de terças maiores e menores, como se observa no gesto da Figura 1. Tais intervalos constituem o arquétipo da música tradicional nordestina, assim como graus conjuntos, notas repetidas e quartas justas. Segundo Vânia Camacho, “além das escalas modais, é comum, nos cantos da tradição oral nordestina, a recorrência de determinados intervalos, como, por exemplo, formações em graus conjuntos, notas repetidas, terças menores e maiores e quartas justas” (CAMACHO, 2004, p. 73). 3. Aspectos estruturais Segundo Straus (2000, p. 105), a teoria tonal tem pouco a nos revelar acerca da maioria das obras compostas do século XX, pois mesmo aquelas de sonoridade aparentemente tonal, geralmente, são produzidas por procedimentos não tonais, isto é, livres da utilização de harmonia funcional e encadeamento tradicional. Parece ser abundante, no entanto, em muitas obras do século XX que se utilizam do parâmetro altura, o uso de centros referenciais: notas, grupos de notas, acordes, materiais escalares recorrentes etc. A síntese realizada, por Kaplan, de elementos regionais e universais, e a forma como são dispostos dentro da peça, nos revelam o uso de centros referenciais. Kaplan tinha uma grande afeição pela tonalidade, como ele mesmo afirma: “... ainda acredito, no tonalismo – um sistema que, no meu modesto entender está longe de ter-se esgotado” (KAPLAN, 1994). Apesar de abundantes referências tonais, não podemos desvendar a estrutura de Improvisação com o uso da lógica harmônica funcional, devido à falta de encadeamentos tradicionais gerada pela mudança constante de centros dentro dos modos lídio e do modo misto nordestino. Kaplan utiliza dois arquétipos referenciais na obra: a tríade maior e o modo lídio (com sua variante mista). É importante salientar que Kaplan recorre exclusivamente a tríades maiores quando estas estão associadas aos motivos.

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A ocorrência da tríade tem um papel pungente na peça e em sua sonoridade final. A tríade não é empregada funcionalmente, mas apenas como uma referência sonora à tonalidade e como meio de reforço ao centro modal misto. Além disso, o emprego desse material triádico de forma saturada, isto é, com mudanças constantes de centros referenciais, cria naturalmente um espaço cromático e, como consequência, uma atmosfera atonal. A Figura 3 mostra o corpo referencial de tríades utilizadas na peça e a Figura 4 mostra a aplicação desse material, entre os compassos 22-24. Observa-se como a saturação triádica, ocasionada pela mudança de centros referenciais, proporciona o surgimento de cromatismo, conferindo à peça uma ambiguidade tonal-atonal. No segundo exemplo da Figura 4, todas as classes de notas, com exceção do Mi, estão presentes.

Figura 3. Tríades que compõem o corpo referencial em Improvisação.

Figura 4. Saturação triádica. .

O emprego do modo lídio e do modo misto na Improvisação está em sintonia com duas citações. A primeira, de Straus, que, mesmo se referenciando aos modos eclesiásticos (que ele denomina de coleção diatônica modal3), também pode ser estendida ao modo misto nordestino: “As coleções diatônicas são usadas na musica pós-tonal sem a harmonia funcional e o encadeamento tradicional da música tonal” (STRAUS, 2000, p. 117). A outra é de José Siqueira, mencionando a possibilidade de criar atonalismo através da utilização dos modos nordestinos: “A harmonia utilizada tendo por base esses novos modos nos transportará ao atonalismo, sem recorrer a processos violentos às vezes inaceitáveis, comuns a certos sistemas ora em voga” (SIQUEIRA, 1982, p.2). Como veremos a seguir as coleções modais (lídia e mista) serão utilizadas sem os recursos tonais de harmonia funcional e encadeamento tradicional, e é pelo uso

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desses modos, sucessivamente em diferentes centros, que Kaplan constrói uma atmosfera atonal na Improvisação.

Figura 5. Gestos iniciais de Improvisação

O exemplo mostrado na Figura 5 corresponde ao início da obra. Observamos que, logo nesse início, Kaplan faz uso do modo Lídio com centro em Ré, o qual, combinado a duas mediantes cromáticas de Ré maior, gera o terceiro modo de transposição limitada de Messiaen (em termos de classes-de-notas: 012-456-89A), que é o complemento de uma tríade aumentada (37B). Observa-se que as únicas classes de notas ausentes no trecho são Mi-Sol-Si, que formam uma tríade aumentada. Essas mediantes cromáticas sugerem os próximos centros: Fá (comp.4-8) e Fá (comp.9-14), ambos desenvolvidas com base no modo misto. O gesto gerador também será apresentado nesses trechos, mas de maneira variada. Dos compassos 15 ao 21 temos um trecho de instabilidade, no qual não encontramos referências modais. Nesse trecho, onze classes de notas são utilizadas, faltando apenas o Si. Esta instabilidade chega até a apresentação do gesto gerador novamente nos compassos 22-24, onde encontramos saturação triádica (Figura 4). A escala de tons inteiros, que pode ser pensada como uma expansão da tríade aumentada (introduzida como elemento ausente e complementar nos gestos iniciais da obra), aparece claramente no compasso 27, seguida de duas apresentações do gesto gerador em Mi maior e Sol maior (mediantes cromáticas entre si) (Figura 6).

Figura 6. Escala de tons inteiros.

No compasso 33 surge novamente o gesto inicial da obra, agora em Si seguido de uma transição cromática que conduz a uma reapresentação da escala de tons inteiros. A seguir o compositor passa a desenvolver novamente o cromatismo até a anacruse do compasso 47, onde

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utiliza uma escala octatônica acrescida do Fá, que é exatamente o centro modal seguinte (Figura 8).

Figura 7. Cromatismo e escala de tons inteiros.

Figura 8. Escala octatônica acrescida do Fá.

Para concluir a obra, aos três primeiros centros Ré, Fá e Fá são reapresentados palindromicamente. A obra conclui com uma tríade de Ré maior, demonstrando sua afeição pela tonalidade. Este último trecho, a partir do comp. 68, estruturalmente pode ser denominado de Coda. É nesse trecho que o compositor afirma tonalidade de Ré maior permanecendo nela até a conclusão da obra, apaziguando assim o conflito e a tensão gerados durante toda peça através da ambiguidade tonal-atonal. 4. Considerações finais Este trabalho teve como principal objetivo a busca

do processo composicional

utilizado por Kaplan na construção da atonalidade pela combinação de elementos modais e tonais, mais especificamente de tríades, de forma saturada. Vimos também as conexões regionais encontradas em Improvisação, no caso, a música da tradição dos cantadores nordestinos. O conhecimento histórico por parte do compositor sobre a música nordestina e sobre procedimentos composicionais foi o que o conduziu à criação de obra de feições nacionalistas, mas que não está limitada apenas ao uso desse tipo de material, pelo contrário, expande esses materiais pela saturação produzindo um trabalho original. A originalidade da Improvisação de Kaplan emerge

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da ambiguidade causada pela utilização de diferentes coleções de escalas (modais lídia e mista, tons inteiros, modo 3 de Messiaen e octatônica) e das grandes referências explícitas à tonalidade, pelo uso de material triádico. Desta forma, Kaplan sintetiza em uma única peça o tonalismo, o modalismo, o cromatismo e o atonalismo. Referências: CAMACHO, V. C. G., 2004. As Três Cantorias de Cego para piano de José Siqueira. Per Musi, v.9, p. 66-78. KAPLAN, J, A. Improvisação para flauta solo. Cópia de manuscrito. João Pessoa, 1983. KAPLAN, J. A., 1994: Resenha publicada no encarte do CD “Kaplan, obras escolhidas”, FUNESC, João Pessoa. SAUTCHUK, João Miguel. 2009. A poética do improviso: prática e habilidade no repente nordestino. (Tese de Doutorado). Brasília; Universidade de Brasília, Departamento de Antropologia. SIQUEIRA, José. Sistema modal na música folclórica do Brasil. João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura, 1981. STRAUS, Joseph N. Introduction to Post-Tonal Theory, 2nd Ed. Upper Saddle River: Prentice Hall, 2000.

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Utilizamos o termo “esclareceu” pelo fato de que José Siqueira não criou estes modos, mas apenas organizou algo já existente, como ele mesmo afirma: “Não tenho a pretensão de haver criado algo novo, nem de desfazer do que existe de concreto sobre a matéria. O que fiz foi, apenas, ordenar o emprego de três modos brasileiros, tão comuns dos povos do Nordeste, a quem presto esta singela homenagem, ao mesmo tempo em que espero haver contribuído para a fixação de algumas normas que serão definitivas à formação da Música Brasileira” (SIQUEIRA, 1981, p. 33). 2

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Tal escala já havia sido utilizada também pelo compositor húngaro Béla Bartók.

“A coleção diatônica é qualquer transposição das notas correspondentes às teclas brancas do piano. (...) Todas as escalas maiores, menores (naturais), e os modos eclesiásticos são diatônicas” (STRAUS, 2000, p. 108-109).

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