A construção do desejo romântico em \"Senhora\" de José de Alencar

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A Construção do Desejo Romântico: uma leitura do capítulo I de 'O Resgate' de Senhora de José de Alencar Victor Augusto da Cruz Pacheco1 O amor romântico em Senhora, não está acima da vingança particular de Aurélia, que teve seu amor (ou a imagem do amor) pisada pelos interesses econômicos de Fernando Seixas. Entretanto, se considerarmos que uma das tópicas do Romantismo é o duplo, o cindindo, vemos que o romance não passa de um vestir de máscaras: os protagonistas escondem o que verdadeiramente sentem para eles mesmos, mas têm que mostrar este mesmo sentimento (o “sentimento real”, digamos assim) para a sociedade. Observamos que o começo do capítulo I de 'O resgate' sintetiza a descrição de Aurélia (personagem de beleza estonteante e com poder de sedução) que havia sendo trabalhada pelo narrador, e, também, novas camadas de significações vão sendo colocadas, visto que o capítulo em si já desponta o caráter sensual que ocorrerá no capítulo 4 que, alegoricamente, é a consumação do casamento. Aurélia ali estava como sempre, deslumbrante de formusura, de espírito e de luxo. Seu trajo era um primor de elegância suas joias valiam um tesouro, mas ninguém apercebia-se disso. O que se via e admirava era ela, sua beleza, que enchia a sala, como um esplendor. Aurélia ao contrário, à medida que adiantava-se a noite, desferia de si mais seduções, e parecia entrar na plenitude de sua graça. (p. 247) Neste trecho percebemos que as características principais de Aurélia são mantidas, mostrando a unidade descritiva da heroína do romance. Vale ressaltar aqui, que o significado do nome Aurélia tem grande importância: Aurélia é a deusa romana da madrugada; filha do ouro. É indicado então que ao decorrer da noite no baile, Aurélia toma a sua forma mais pura e “Quando completou-se esta assunção de sua beleza, o baile estava a terminar” (p. 248) . O ouro, obviamente, faz referência à riqueza da personagem, que faz questão de mostrar à sociedade, visto que o romance também gira em torno de um “reajustamento pessoal” entre os seres humanos. (Dimas, 2013 p. 8). Já no âmbito da intimidade entre o casal, percebemos um forte uso de sensualidade na descrição do capítulo. Há um trabalho do narrador em pontuar as percepções com o uso de verbos que ressaltam os cinco sentidos como “tocou”, “inebriando perfume”, “olhando”, “contemplava”, “beijo férvido”, etc. Além disso, se considerarmos que o capítulo I teria a sua conclusão no capítulo IV, vemos que uma leitura possível seria de que o mesmo se trata das preliminares sexuais, em que o sujeito aguça e estimula o desejo do outro. O desejo, aqui, é visto 1 Victor Augusto da Cruz Pacheco é aluno de graduação da Universidade de São Paulo, cursando bacharelado e licenciatura em Letras (Português – Espanhol). Tem como área de estudos a literatura irlandesa com a pesquisa de Iniciação Científica chamada “As representações da Irlanda revolucionária nos contos de Sean O'Faolain”.

como um “fogo intenso”, uma “vertigem”, uma “vibração íntima”, um “delicioso abandono” e uma “voragem onde submergiam-se a razão, a dignidade, a virtude, todas essas arrogâncias do homem” (Alencar, 2013 p.251), mas que é constantemente interditado (que ao longo do capítulo se mostra como um jogo de perpetuação e interdição do desejo) com uma consciência que está a serviço da vingança. Nesse caso, o outro estimulado pelo desejo é Fernando Seixas, que “(...) todavia não ousava. Nunca, nos tempos em que ele fazia o contrabando do amor, mulher alguma, por mais defesa que fosse o seu desejo, inspirou-lhe o respeito ou antes o susto, que o tolhia naquele momento, junto de sua esposa” (Idem, p. 251). Aqui vemos algo colocado por Mário de Andrade no texto “Amor e Medo”, que está voltado para confirmar que os poemas de Álvares de Azevedo representam o medo de amar do poeta. Há no romantismo um “respeito a mulher” que faz com que as “denominações [excluam a] plenitude feminina” tirando a visão apenas “fisiológica” da sua função. (Andrade, 2002). As causas disso, como diz Mário de Andrade, “ora são puramente históricas, provenientes de educação, de convívios; ora são temperamentais provenientes psicologia, da nossa sensibilidade e suas delicadezas e respeitos” (Andrade, 2002 p. 200). No capítulo acontece ambos os casos: Seixas, apesar da provocação e da prova pela qual está passando, contém o desejo, que é algo requerido pela demanda do recato social. Dessa forma, o desejo é posto no mesmo nível que o amor, deixando-o na mesma camada sublime. Mas a sua condição de objeto comprado por Aurélia faz com que “um frio mortal transpassava-lhe o coração, e ele ficava inerte, e tinha medo de si” (Alencar, 2013 p. 249), mesmo ele querendo esquecer tudo. Outro ponto que faz parte da tópica do Romantismo, que também está presente no capítulo, é a idealização do amor, expresso no quadro que interdita a continuação do desejo. A vingança e a lembrança dos antigos acontecimentos na vida de Aurélia a impossibilitou de viver o amor que deseja. O amor ainda existe e está na frente da personagem, entretanto vemos que há o recurso do duplo: ali na sua frente está o amor pessoa, a carne; já o retrato é o “amor imagem”, é a idealização e a representação simbólica dos sentimentos, típico do amor Romântico, que está ligado à capacidade da imaginação e até mesmo da projeção afetiva em uma pessoa. Aurélia tenta, com o quadro, enclausurar o amor-imagem, aquele amor idealizado durante a segunda parte do romance. Novamente, vemos a interdição do amor e da continuação do desejo carnal. Fernando se entregaria à Aurélia se ela não quisesse continuar com o seu plano. Mas isso, segundo Regina Lúcia Pontiere em A Voragem do Olhar, é uma “(...) temática da sedução amorosa, feita de aproximações e afastamentos, de aparições teatrais e desaparecimentos súbitos” (Pontiere, 1988 p. 128). O ponto mais culminante do capítulo é o seu desfecho em que há um interessante recurso utilizado pelo autor e também confirma uma expressão curiosa utilizada por Pontiere “(...) na ausência do falo, a fala” (Idem, p. 145):

Seixas aproximou-se; fazendo-lhe a cortesia do costume, com a voz já tranquila, e o modo natural, disse: - Boa noite. A moça entreabriu a caxemira quanto bastava para tirar os dedos afilados da mão direita, que estendeu ao marido. - Já? perguntou ela erguendo os olhos entre súplices e despóticos. O marido estremeceu ao toque sutil dos dedos, que calcavam-lhe docemente a palma da mão: - Ordena que fique? disse com a voz trêmula. Aurélia sorriu: - Não. Para quê? (Alencar, 2013 p. 253-254). O narrador se o utiliza da ambiguidade para que Aurélia mantenha o recato esperado por uma mulher, afirmando sua posição virginal, mas também insinuando, tanto para Fernando Seixas quanto para o leitor, um desejo que ela mesma recalca para que consiga prosperar com o seu plano. O papel do narrador é fundamental para a manutenção da ambiguidade com o seu comentário “O que exprimia essa frase, repassada do sorriso que lhe servia por assim dizer de matiz, ninguém o imagina.” (Alencar, 2013 p. 254) já que ele reforça a aura de dúvida no verdadeiro significado da frase. Com isso, vemos que a partir do capítulo I de 'O Resgate desponta uma aproximação carnal, onde os personagens, que até então se utilizavam da fala para suprir a ausência da consumação do casamento, possam desfrutar no final do livro o amor que os consumiam desde o princípio.

Referências Bibliográficas ALENCAR, José. Senhora. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. ANDRADE, Mário. “Amor e Medo”. In Aspectos da Literatura Brasileira. 6ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2013. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Martins, 1961 v. 2 _________ O Romantismo no Brasil. São Paulo: Editor Humanitas, DIMAS, Antonio. “Introdução”. In ALENCAR, José. Senhora. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. MORAES, Vera Lucia Albuquerque de. Entre Narciso e Eros: a construção do discurso amoroso em José de Alencar. Fortaleza; Editora UFC, 2005. PONTIERI, Regina Lúcia. A Voragem do Olhar. São Paulo: Perspectiva, 1988.

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