A construção do espaço festivo.pdf

June 1, 2017 | Autor: Ana Gediel | Categoria: Deaf Culture, Social and Cultural Anthropology
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Mesa: ANTROPOLOGÍA DEL CUERPO

A Construção do Espaço Festivo da Comunidade Surda de Porto Alegre, RS - Brasil Ana Luisa Borba Gediel1 Introdução A discussão sobre a comunidade dos surdos de Porto Alegre começa a ter sentido a partir do momento que passamos a entender certas questões que são particulares ao grupo, que orientam as formas e significados de perceber o mundo. O presente trabalho vincula-se ao grupo de surdos que freqüentam a associação Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul - SSRS, o qual está situado no bairro Jardim Botânico2, na cidade de Porto Alegre, RS, Brasil. A associação é composta por Surdos e alguns ouvintes, que vivem em locais diferentes na cidade e na região metropolitana. O grupo é formado por integrantes de todas as idades, provenientes da região metropolitana, que se reúnem nas sextas-feiras na sede clube. As reuniões objetivam momentos de lazer (jogos de sinuca, futebol) e também para as trocas e repasses de informações de ordem geral, contemplando atividades administrativas e ocorrências diárias sobre as outras comunidades Surdas do estado. Existem diferenças de classe, gênero, etnia, onde o elo principal de ligação destas pessoas é ser surdo. Aspecto este que tem como principal referência, não a delimitação fisiológica, mas um conjunto de simbolismos que os fazem pertencerem a uma cultura diferente, a chamada “cultura surda”3. Esse grupo de pessoas tem marcado em suas trajetórias uma dualidade: as denominações de deficiente e diferente. Na acepção da deficiência são consideradas as limitações sensoriais e cognitivas, já a percepção de diferença é construída a partir da constituição do próprio grupo, frente à legislação em pauta e as discussões do momento. Neste trabalho são enfatizadas as visões de mundo das pessoas surdas, portanto, cabe especificar aqui o foco na diversidade deste grupo minoritário. Nesse sentido, o grupo minoritário se organiza, constitui seus espaços na sociedade formando uma via de mão dupla: por um lado usufruindo dos grandes debates para se organizarem e se fortalecerem como grupos de atuação social e política, e por outro, na medida em que eles se organizam e se posicionam criticamente, formulam processos de várias ordens que podem ir de encontro das problematizações iniciais relativas ao seu posicionamento dentro da sociedade. As relações das pessoas surdas ultrapassam ambientes restritos as suas famílias, passando a reunirem-se em espaços mais abrangentes, a fim de constituírem vínculos sociais, políticos, afetivos, lingüísticos, entre outros, com pessoas afins. De acordo com Thoma (1997), as chamadas comunidades surdas foram criadas próximas aos anos de 1880 e 1960, em uma época em que predominava a orientação educacional voltada para a oralização das pessoas surdas, permitindo assim, “mascarar” a surdez. Apesar dessa orientação, os surdos começaram a criar suas próprias comunidades, formadas por grupos de pessoas que utilizam a 1

Doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Bolsista Capes. Avenida Dr. Salvador França, 1800. 3 Os surdos que participam da SSRS, conforme pude perceber durante as observações participantes que realizei no decorrer do ano de 2006/2007, consideram-se pertencentes a uma cultura diferente devido compartilharem um conjunto de significados que são próprios de pessoas que percebem o mundo através de sentidos senão a audição. A principal justificativa está pautada na linguagem. 2

2 mesma forma de comunicação, entendem e compartilham significados semelhantes sobre as particularidades do que é ser surdo. As comunidades que utilizam a língua de sinais para a comunicação estão organizadas “conforme as propriedades dos sistemas de percepções dos indivíduos e não necessariamente de acordo com a comunidade lingüística em que a pessoa nasceu4" (tradução minha - Keating e Mirus, 2006, p. 696). Estas comunidades estão organizadas conforme suas motivações em determinado tempo e espaço. Por exemplo, observa-se entre as chamadas comunidades surdas atuais vínculos essenciais entre língua e cultura. Trata-se daquilo que Evans-Pritchard (1972) aponta em relação a aprendizagem de uma língua como uma maneira de apreender também a cultura e o sistema social do grupo, os quais se expressam a partir do idioma. Como hipótese do trabalho, os surdos se identificam como pertencentes a uma cultura diferente, configurada através de apropriações específicas em relação aos significados atribuídos às formas de relacionarem-se e experienciarem o mundo que está fortemente atrelada aos usos da língua de sinais. Ao mesmo tempo em que as comunidades surdas começam a ganhar visibilidade frente à sociedade, aspectos legais começam a ser formulados por pessoas ouvintes em relação ao grupo, sua linguagem, educação, trabalho. Assim, a comunidade surda discute estas questões desde as suas próprias lógicas e vivências. Temos como principal exemplo, a criação da Lei nº.10.436, de abril de 2002, a qual reconhece como meio legal de comunicação e expressão, a Língua Brasileira de Sinais LIBRAS e outros recursos de expressão a ela associados. Esta é entendida como uma língua, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. Esta lei foi criada com base nas comunidades surdas, entretanto, não ocorreu um diálogo entre legisladores e o grupo, já que as comunidades surdas não se utilizam de uma linguagem homogenia em todo país, o que causa divergências quando concursos e outras leis e decretos são realizados a partir da lei nº.10.436, e grandes discussões ocorrem por não ter uma especificidade lingüística nas diferentes regiões do país. A formação de grupos minoritários de surdos parece tomar dimensões bem maiores do que imaginamos se nos remetermos aos números em relação a quantidades de pessoas surdas. A partir dos dados publicados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) é possível ter uma visão mais geral da população de surdos no mundo e no Brasil. Segundo levantamentos realizados no ano de 2000 mais de 5,7 milhões de pessoas tinham problemas de audição no mundo e 3,39% no Brasil. Pelo mesmo censo foi verificado que o número de surdos no Brasil era de 166.400, sendo 80 mil mulheres e 86.400 homens. No Rio Grande do Sul, as comunidades surdas estão alicerçadas a partir da utilização da língua de sinais para a sociabilidade, o que se estendeu aos espaços escolares de forma visível, modificando a realidade de duas décadas atrás, onde os surdos eram proibidos de usarem as mãos para se comunicarem. Atualmente, mais de 1,1 mil alunos surdos estão matriculados em quinze escolas que utilizam a Libras como meio de comunicação, distribuídas em algumas cidades do estado (Pelotas, Caxias do Sul, Santa Rosa, Santa Maria, Porto Alegre e região metropolitana). Na cidade de Porto Alegre - RS existem instituições de apoio aos surdos, como a Faders – Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas Portadoras de Deficiência e de Altas Habilidades no Rio Grande do Sul - e Feneis – Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos, além da Sociedade5 4

Tradução - organized according to properties of an individual’s perceptive system and not necessarily according to the speech community into which a person is born (Keating and Mirus, 2006, 696). 5

A Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul – SSRS - é uma associação, sem fins lucrativos, criada por um grupo de surdos, que compartilham uma linguagem gestual-visual e ideais sobre como os surdos devem ser reconhecidos frente à sociedade.

3 dos Surdos do Rio Grande do Sul – SSRS. Também estão organizadas seis escolas em que alunos e profissionais prendem e utilizar a Língua de Sinais. A constituição de grupos de surdos que não participam da associação também é representativa no estudo. Embora existam diferenças que demarcam a institucionalização ou não dos grupos de surdos, a representação do corpo é central. A vida cotidiana dos surdos está marcada a partir de uma utilização do corpo que é específica, constituída por movimentos que compõem a língua de sinais. A reflexão desenvolvida por Velho (1995) possibilita reforçar a importância de realizar um estudo, o qual está pautado na supervalorização de uma diferença. Esta diferença, a qual tende a ser diminuída pelo grupo, no caso específico, a surdez torna-se a grande chave para pensar a condição de não-ouvinte e legitimar grupo como pertencente a uma cultura diferente a partir da comunicação através de sinais. A questão toma ainda outra coloração quando a defesa da diversidade se reduz ao estreito círculo dos “estilos de vida”, que pela supervalorização das pequenas diferenças, que obscurece as grandes opções culturais, quer pela apropriação e esfriamento dos temas quentes, ao se focalizá-los por uma ótica, ela sim, homogeneizadora e domesticadora, em que nominando, explica-se e neutraliza-se o insólito, tornando-o assimilável (Velho, p.178, 1995). A dificuldade está centrada em encontrar argumentos que não tenham como ponto inicial da discussão sobre a perda da audição, o histórico sobre a deficiência, a legitimação dos surdos a princípio como deficientes auditivos, para posteriormente, serem colocados em pauta os assuntos considerados de interesse do grupo. No entanto, estas verificações são recorrentes para o grupo de surdos, ou apenas para auxiliar as pessoas ouvintes a construírem a história dos surdos, reafirmando as distâncias presentes, não apenas pela diferença lingüística, mas pela falta ou perda de um órgão dos sentidos? Levando em consideração os termos diferença e diversidade, estes podem ser expressos para evidenciar as possibilidades do outro, mas também para cometer o erro de apontar e ressaltar as diferenças como forma de diminuir, inferiorizar, classificar, ou simplesmente, excluir e criar um universo simbólico para os outros onde tais saliências assumem o papel de maior importância nos campos da vida afetiva, cognitiva e social dos sujeitos. O impasse de se pensar nas diferenças como forma de ressaltar um grupo, considerado como uma minoria, e que tende a requerer o seu espaço dentro da sociedade, devem ser salientadas para que o grupo não caia no esquecimento. Mas também temos a possibilidade de pensar nos surdos como pessoas, independente das diferenças, mas por suas incorporações em um espaço social e de um espaço social que está constantemente interagindo com o outro. Tais questionamentos trazem aflições e reflexões que perpassam as teorias, e que demonstram todas as dificuldades de comunicação, que são minhas, não deles, quando a incapacidade de se sentir à vontade com a língua do outro é, exclusivamente, um problema meu por representar a minoria em determinados momentos. A idéia da reivindicação de cidadania, argumentada por Leal & Dos Anjos (1999), compreende os interesses vigentes do grupo de surdos, os quais também estão à espera de respostas e resultados satisfatórios. Metodologia A etnografia nesta pesquisa tem a intenção de descrever um sistema de significados de um determinado grupo a partir das relações de sociabilidade, interpretando as camadas que constituem o “ethos” dos pesquisados. Conforme Geertz (1989) a etnografia transcende no

4 momento em que as articulações entre o que foi observado durante o trabalho de campo, as deduções realizadas a partir dos termos nativos, a escrita do diário de campo, os estranhamentos, os comportamentos estejam entrelaçados, mas não apenas como uma tomada superficial de valores e sim, como uma descrição densa de todos estes significados que fazem parte da sociabilidade dos surdos. A possibilidade de realizar a etnografia ocorreu devido à aprendizagem anterior da língua de sinais, além dos aspectos considerados essenciais para a realização do trabalho de campo. A comunicação corporal é um eixo essencial para pensar as formas de relações que ocorrem entre surdos e surdos e ouvintes, já que o indicativo de aprendizagem dos sinais facilita ou dificulta a aproximação. Conforme a desenvoltura para sinalizar, o respeito aumenta em relação às piadinhas, brincadeiras sobre os erros durante a conversação. Ao começar a freqüentar a SSRS, já havia aprendido a língua de sinais em Santa Maria – RS6, praticando desde o ano de 2000. Como a língua de sinais tem diferenças regionais, foi necessário rever os sinais, continuar fazendo aulas, embora conseguisse entender os que as pessoas falavam e me fazer entender, várias vezes era preciso interromper o diálogo para perguntar o significado de determinado sinal. Para os surdos, os ouvintes sempre estão em fase de aprendizagem da língua de sinais. É preciso a interação contínua, o convívio, mesmo que a pessoa que está sendo mencionada seja interprete há muitos anos. Este nivelamento de aprendizagem está estreitamente ligado a condição da surdez, visto que pessoas surdas que começaram a aprender a língua desde um ano e que no momento da conversação misturam os sinais convencionais com sinais caseiros não são consideradas como aprendizes. As pessoas mencionavam que a melhor aprendizagem era a partir o contato como o grupo, da mesma forma com a qual estava realizando. Entendo que atitudes como esta, demonstram o jogo situacional entre pesquisado e pesquisador, mostrando a complexidade de desenvolver sem participar das negociações propostas pelo grupo. A minha representação para o grupo é bastante diversificada, embora na maioria das vezes quando fui apresentada a um integrante que ainda não me conhecia era nomeada como intérprete. Em geral, as pessoas da comunidade surda nomeiam os ouvintes que se aproximam do grupo como intérpretes ou professores, o que legitima, de certa forma, a interação de pessoas surdas com pessoas ouvintes. Mesmo que em todas as apresentações tenha deixado claro o motivo da minha presença contínua na associação, esta parecia não ser convincente ou suficiente. Sempre era colocada a prova em relação à escolha do tema, minhas ligações pessoas que me fizeram escolher o grupo de pessoas surdas para pesquisar, se tenho parentes surdos, ou porque gosto tanto de estar junto com os surdos. A explicação da minha trajetória acadêmica e a pesquisa não é suficiente. Um dia fui questionada se realmente posso integrar a comunidade surda, quando me perguntou se já havia namorado um surdo. Respondi que tinha namorado, portanto, no momento não poderia namorar uma pessoa surda. Mesmo assim, ela continua, perguntando se nunca havia namorado ou se tinha vontade ou curiosidade. Então sinalizei que não via problema algum em um relacionamento entre surdos e ouvintes, já que o único impedimento seria a comunicação, o que para mim não seria problema. Os aspectos acima mencionados são considerados extremamente importantes, pois marcam minha entrada em campo e como sou percebida pela comunidade surda. Embora atualmente a condição de ouvinte passe quase despercebida, basta conhecer uma pessoa que a primeira pergunta a ser feita é se sou surda ou ouvinte. Esta condição surpreende os surdos 6

Cidade situada no centro do estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

5 quando ficam em dúvida e respondo que sou ouvinte, me respondendo que uso a língua de sinais de forma próxima, sem mexer os lábios ao encontro das palavras que estou sinalizando, o que geralmente é realizado pelos intérpretes, referência ouvinte usuária dos sinais mais próxima da comunidade surda. Tendo em vista que “cada tipo de metodologia traz consigo um conjunto de pressupostos sobre a realidade, bem como um instrumental, composto por uma série de conceitos, pelo treinamento do olhar e por técnicas de observação da realidade” (Víctora et al, 2000:33), as técnicas utilizadas fornecem elementos necessários para o cumprimento dos propósitos do trabalho. As técnicas ou instrumentos de coleta de dados utilizados: observação participante, diário de campo e entrevistas não-diretivas com integrantes da Comunidade Surda. Em relação à observação participante7, esta constitui-se como um método para coleta de dados de extrema importância, visto que desde a entrada em campo no mês de setembro de 2005 até o final do segundo semestre de 2007, foram realizadas inúmeras observações, desde as idas à Sociedade dos Surdos do Rio Grande do Sul, nas sextas feiras, festas realizadas na mesma sede aos sábados, visitas à um grupo que estuda em uma escola estadual de Educação de Jovens e Adultos, aulas para a aprendizagem de LIBRAS com professor surdo, passeios com integrantes da comunidade surda e atividades cotidianas realizadas no ambiente residencial ou em atividades públicas. Em relação aos diários de campo, apropriei-me da disponibilidade de recursos conforme o período de tempo em que estamos vivenciando, diferentemente, da época em que Malinowski escrevia seus diários, usufrui dos recursos da informática para construir as anotações das idas a campo, informações trocadas com informantes e os diários de campo. Também foi usada a tecnologia de gravação de voz digital, a qual facilitou a realização da notas de campo, pelo fato de que eram raros os momentos que conseguia escrever, pois além da observação, era necessário estar atenta às aproximações e diálogos realizados a partir da interação que ocorre de maneira diferente a que estamos acostumados, sendo preciso ouvir com os olhos e falar com as mãos. Por motivos éticos, os nomes das pessoas que colaboraram com a pesquisa não serão mencionados nesse trabalho. Entretanto, em vez da usual troca de nomes próprios por outros, optei por me referir as pessoas pertencentes à SSRS, utilizando figuras, as quais representam os sinais usados pelos surdos em representação de seus somes no cotidiano. Tais sinais, geralmente, estão vinculados a uma característica marcante da pessoa ou a utilização de um hábito ou cacoete freqüente. Entretanto, a identificação destes não é fiel, visto que em sua utilização, na maioria das vezes, eles têm movimento. No início de uma conversa com um(a) surdo(a) em língua de sinais a apresentação inicial é realizada a partir do uso de seu sinal identificador, o qual irá o identificar, e, posteriormente, a pessoa poderá soletrar o nome. Ex: Ana Luisa= (configuração da mão que corresponde ao sinal que contorna o lado direito da cabeça, acima da orelha, com o movimento da frente para o final da cabeça). O meu sinal foi adquirido no primeiro ano que comecei a aprender a língua de sinais, na cidade de Santa Maria, RS, no ano de 2001 e representa um hábito da época, pois usava cabelos curtos e frequentemente passava a mão para colocá-los para trás. Quando as pessoas estão conversando, elas não utilizam os nomes para citar pessoas que não estão presentes, mas o sinal que a representa.

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A partir de Cicourel (1975, p.89), observação participante é definida como um “processo pelo qual se mantém a presença do observador numa situação social com a finalidade de realizar uma investigação científica. O observador está face-a-face com os observados e, ao mesmo tempo, ao participar da vida deles no seu cenário natural, colhe dados. Assim, o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por este contexto”.

6 Os colaboradores da pesquisa, citados a partir dos exemplos etnográficos, são pessoas da comunidade surda, embora nem todos sejam sócios da Sociedade dos Surdos do Rio Grande de Sul, participam de grupos de sociabilidade em outras esferas públicas e privadas com pares surdos usando a língua de sinais. Performance e Sociabilidade: Diversão e Lazer das Pessoas que Integram a Comunidade Surda de Porto Alegre A partir de algumas (re)interpretações realizadas por Zumthor (2000, p. 36) do clássico autor Dell Hymes (1973), Performance pode ser definida nos seguintes aspectos: 1) A performance é reconhecimento. A performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu reconheço, da virtualidade à atualidade; 2) A performance se situa num contexto ao mesmo tempo cultural e situacional: nesse contexto ela aprece como uma emergência, um fenômeno que sai desse contexto ao mesmo tempo em que nele encontra lugar; 3) Para Hymes, pode-se classificar segundo três tipos a atividade de um homem, no bojo de seu grupo cultural: comportamento, tudo o que é produzido por uma ação qualquer; conduta, o comportamento relativo à normas socioculturais , sejam elas aceitas ou rejeitadas; enfim, performance, conduta na qual o sujeito assume aberta e funcionalmente a responsabilidade. Certos comportamentos podem ser interpretados outros podem ser contados. A interpretação geralmente faz par com o relato, mas não pode encontrar um sem o outro. 4) A performance e o reconhecimento daquilo que se transmite estão ligados, naquilo que a natureza da performance afeta o que é conhecido. A performance, de qualquer jeito, modifica o conhecimento. Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando ela o marca. O autor refere tais características no momento da interação face-a-face, a qual necessita ser reavaliada conforme a emergência do momento, ou seja, a performance faz com que as ações sejam mutáveis e heterogêneas, o é denominado como Movência. Alguns autores, ao referirem-se a língua e a fala, tratam especificamente da oralidade, ou seja, “performance se refere de modo imediato a um acontecimento oral e gestual” (Zumthor, 2000, p.45). Em relação aos surdos pode-se constatar que ocorre de maneira manual e gestual. Tal conceituação dá margem para pensar que a não utilização da oralidade é ressignificada pelo uso das mãos, a qual passa a ter regras, estruturas e tempos de realização para a sinalização. Neste sentido, a utilização dos sinais como uma estrutura lingüística são vivenciadas no cotidiano dos surdos sem comparações com a oralidade, já que estas apenas precisam ser olhadas e reavaliadas para os ouvintes, que muitas vezes usufruem da língua de sinais como mais um argumento ligado à gestualidade. No caso dos surdos, a sinalização e o uso da língua de sinais são percebidos em outro patamar que não o da oralidade. A língua de sinais aproxima-se equivocadamente da gestualidade devido à utilização das sincronias dos sinais que são realizados em conjunto com os gestos e expressões corporais que dão sentido à determinada palavra. Pode-se dizer que o entendimento de performance como competência de saber fazer traz o desafio de pensar que as outras formas comunicativas além da oralidade, devido terem os mesmos objetivos e serem consideradas por aqueles que a utilizam como

7 equivalente a língua oral, podem ser percebidas de maneira formalizada e contendo os gestos como parte constituinte da linguagem assim como em uma língua oral. Torna-se visível durante a comunicação em língua de sinais a idéia de Zumthor (2000) de que a performance não apenas se liga ao corpo, mas também por ele ao espaço, pois durante a utilização desta é preciso uma delimitação visual-espacial que permita a interação. Este espaço necessário para a movimentação do corpo para a realização dos sinais são bastante abrangentes, pois utilizam movimentos frontais e laterais para serem concretizados, além do uso de espaço necessário para que o outro (aquele que está realizando a interação no momento/ audiência) consiga visualizar nitidamente o que está sendo sinalizado, visto que é impossível ser realizado no mesmo espaço que usamos para a comunicação oral. Quando se quer contar um segredo, por exemplo, a partir da oralidade o espaço é mínimo, podendo ser realizado em voz baixa, próximo ao ouvido da audiência. Ao contar um segredo em língua de sinais, este é visível para as pessoas que estão ao redor, onde o espaço para que este seja entendido será de uma área ao redor do corpo, e a utilização de nuances nos sinais é a maneira para que os demais não entendam o que está sendo dito. Estava conversando com a respeito das relações vivenciadas em casa, com sua família, dentre os aspectos mencionados o ciúmes intenso da neta para com ela, quando mudou rapidamente de assunto para me falar do rompimento de um relacionamento. Para conseguir me contar sem que as pessoas ao redor percebessem o que e de quem estávamos falando foi preciso realizar alguns sinais mais próximos ao corpo, dar intervalos entre um sinal e outro, além de utilizar outros sinais, como dos nomes próprios para fazer referência. Mesmo que o que estivéssemos conversando era de interesse da própria informante, ela entendia o assunto como particular e apenas queria que eu soubesse dos acontecimentos. A diferenciação entre a privação de assuntos pessoais da língua oral para a língua de sinais é bastante nítido. O espaço da realização dos sinais torna-se visível às pessoas que estão próximas, portanto, algo que deve ser particular a passa a ser público. Neste sentido, as formas de sociabilidades do grupo tomam outros limites e direções, ou seja, os espaços para a comunicação são diferenciados, o tempo da sinalização é maior que o tempo da fala, a necessidade do olhar e atenção para escutar o outro está atrelado estritamente à visão e ao uso das mãos. Para que estes aspectos sejam enfatizados e reconhecidos, a atuação do grupo politicamente para a formação sólida da comunidade surda deve-se ser mencionada. A sociabilidade vivenciada, com a nítida demonstração de uma construção social a partir do convívio com a comunidade surda é trazida a todo o momento, desde a infância até a vida adulta ao conversar com , um dos integrantes da Comunidade Surda de Porto Alegre e membro participante da diretoria da SSRS, enfatizo a narração de sua trajetória seguindo idades, datas, e ao mesmo tempo, tomando perspectivas presentes atualmente para explicar os acontecimentos passados, o que pode ser atribuído a à memória “como estatuto de uma linguagem de símbolos (...), fragmentos do ato de pensar no qual se pretende descortinar o momento intangível de enlaçamento, a um só tempo, do eu e do mundo” (Eckert e Rocha, 2000, p.2). Esses espaços ou lacunas permitem visualizar os rumos que a narrativa percorre, em um determinado contexto, o qual se menciona a participação do coletivo. Durante a conversa, embora existisse a influência nítida do ator nos caminhos, houve também a sua própria reflexão a respeito das trajetórias vivenciadas, que naquele momento, privilegiaram alguns pontos e pessoas, mas que talvez, em outro momento ou para outro pesquisador, outras possibilidades de narrativas surgiriam.

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adulto, classe média, tende a traçar sua trajetória social através de Para tanto, caminhos que deixem claro as marcas de exclusão vivenciadas a partir da surdez, caminhos intencionais que demarcam o drama: “a minha história é bem emocionante, tu podes até chorar, porque meu pai é promotor de som e tinha sonho que eu trabalhasse com ele... tu vai ver!” A desenvoltura com que percorre de maneira cronológica os fatos e histórias ocorridas em sua vida, etapa por etapa, demonstra com clareza o interesse de construir um passado reforçando passagens traumáticas: “meus pais achavam que eu era “normal”, sempre o médico dizia durante a gravidez para a minha mãe que eu era “normal”, mas com pouco mais de um ano de idade meus pais começaram a notar que quando estava brincando, eles me chamavam e eu não atendia, tinha música alta, barulho, e eu continuava dormindo... levaram-me a outro médico e descobriram que era surdo, começaram a chorar, choram muito, se perguntavam por que. Meu pai chorava muito”. Todo o percurso infantil marcado pela corrida enfrentada por seus pais atrás de médicos, fonoaudiólogos, discussões sobre fazer ou não implante coclear no filho, até o encontro com um menino surdo na fonoaudióloga que freqüentava uma escola de surdos, é sempre marcada com a idéia de demonstrar a permanente luta ao preconceito de ser surdo, onde a melhor maneira de convivo em sociedade seria a partir da não-surdez, e a virada e aceitação por parte dos familiares, ao se deparar com a escola e a comunidade surda. A determinação de em traçar um percurso que possa se adequar aos seus interesses e ao interesse da comunidade e ao movimento surdo torna-se evidente durante toda a entrevista. A necessidade do pai de ter o filho ouvinte para continuar o seu trabalho, e a decepção está sempre muito presente em suas falas. Embora sua trajetória represente uma série de indícios que leve a pensar sobre um percurso como de qualquer outra pessoa de classe média, que freqüentou escolas particulares sem precisar trabalhar, participou de clubes e espaços sociais, teve a opção de escolha assim como tantos outros jovens com condições sociais semelhantes de ingressar em um curso universitário e, posteriormente, desistir e começar outro, para que atualmente esteja em fase de conclusão do curso universitário, com emprego estável, todas estas questões são consideradas a partir de um contexto de luta ao preconceito, desde os espaços escolares, os vizinhos, o clube... “eu tinha amigos ouvintes, mas era só por interesse, porque eu queria ficar com as gurias ouvintes, mas só eu era surdo, ninguém sabia a língua de sinais... a maioria dos meus amigos eram surdos... quando jogava basquete na SOGIPA, tinha que ser amigo dos ouvintes porque era o único surdo, e alguém precisava aprender a língua de sinais para me passar as táticas do jogo e as estratégias, mas só consegui jogar até o básico, por que a comunicação era muito ruim, eu não entendia o que eles estavam fazendo, o técnico não me passava as instruções... Então comecei a jogar basquete na associação dos surdos, daí sim, comecei a participar de todos os jogos, viajar para campeonatos, o time todo cresceu, passei para um nível mais avançado”. Embora a entrevista tenha sido dirigida inteiramente pelo entrevistado, esta demonstra a importância do fortalecimento das relações que o grupo formado por surdos reflete em suas vivências, e possibilite alcançar as condições atuais, constituindo-o como professor de educação física e professor de LIBRAS, preocupado em dar continuidade e divulgar a cultura surda, as quais não fariam sentindo se sua trajetória social incluísse outros personagens e grupos de convivência.

9 A partir da percepção da realidade da vida cotidiana é possível determinar os diferentes aspectos de sociabilidade relacionados às diferentes esferas constituintes da comunidade e da cultura surda. Simmel (1983, p.168), conceitua sociabilidade como: Aqui, “sociedade” propriamente dita é o estar comum com um outro, para um outro, contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais. As formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberadas de todos os laços com os conteúdos; existem por si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação destes laços. É isto precisamente o fenômeno a que chamamos sociabilidade. O conceito de Berger & Luckmann (2004) sobre a realidade da vida cotidiana apresenta-se como uma interpretação de todos os aspectos objetivos e subjetivos referentes às experiências passadas, em dado momento, pelas pessoas. A comunidade surda, através das vivências experienciadas cotidianamente por seus membros, cria universos de sociabilidade que são interiores ao grupo, ou seja, compartilhados dentro da esfera da associação dos surdos, entre surdos. O diálogo realizado durante uma aula de LIBRAS no início do segundo semestre de 2006 demarca as fronteiras e as especificidades do grupo, as quais são pontuadas a partir de outros referenciais pelo professor, mas trazem elementos determinantes para as relações de sociabilidade. Ao conversar sobre os locais para sair em Porto Alegre, LIBRAS) mencionou alguns sinais de bares e boates:

(professor de

- Os sinais de algumas boates que os surdos iam, no passado: Dado Bier, Opinião. - Não vão mais? - Quando eu era jovem, meu pai e minha mãe me davam dinheiro, daí eu podia ir, mas agora, vocês vêm surdos nas boates? - Quando eu saio, eu não vejo. - Os surdos não têm mais dinheiro para ir a boates, também tem o problema da violência, que os pais ficam com medo que os filhos sejam assaltados, a noite está violenta. A Associação dos Surdos, antes não tinha local de diversão e esportes, e hoje tem. Hoje nós podemos ir para lá para nos divertirmos, tem televisão, mesas de jogos... As pessoas saem do trabalho, da escola e tem um local de encontro, que podem se divertir! – Mas então houve uma troca de locais!?!? Não somente a falta de dinheiro? - Não! Os surdos, hoje, têm menos dinheiro que os ouvintes. Tu vês hoje surdos nas boates? - Não! Mas os surdos deixaram de ir as boates para freqüentar a Associação!?!

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- Tu vês ouvintes nas boates? - Sim! - Os surdos deixaram de ir às boates porque não tem mais dinheiro, agora só freqüentam lugares públicos, que não precisa pagar. Os carros, tu vês surdos dirigindo? Não! Não têm dinheiro para comprar carros. Mas os ouvintes têm! O dinheiro do surdo diminuiu. Não se vê surdos ricos, somente pobres, estudando, trabalhando. Não têm dinheiro! Cabe aqui salientar que este diálogo foi adaptado de uma conversa que ocorreu em LS para a língua portuguesa, portanto, muitas conjunções foram acrescidas para darem sentido à escrita em português, o que se faz desnecessário no uso dos sinais devido à incorporação de sentidos através das expressões corporais. Conforme o diálogo acima pode ser ter uma idéia das festas que os surdos freqüentam ou freqüentavam. A realidade financeira não é apenas um fato a ser considerado no universo dos surdos, mas dos ouvintes também. Entretanto, a partir desta etnografia tenho percebido que a mudança da maioria das atividades de sociabilidade para a Associação, ocorrendo uma transformação dos significados em relação às festas. A SSRS passa a ser considerada um local de convivência coletiva, tanto para a realização de festas em datas comemorativas, sede de jogos esportivos, realização de eventos particulares como aniversário e casamento, ou até mesmo para os bate-papos informais, assistir televisão, jogar baralho e tomar chimarrão. Neste sentido, é possível pensar na ressignificação de sentidos em relação aos locais freqüentados pelos surdos, percebendo a SSRS como um espaço de lazer e diversão. A Construção do Espaço Festivo e suas Diferentes Manifestações Embora os surdos estejam vivendo em uma localização geográfica em que não há distinções dos ouvintes, os estilos de vida passam a ser modificados. É preciso ter distanciamento, e no meu caso, outras pessoas vieram me perguntar sobre as festas, se realmente os surdos se divertem, se “isto” é considerado como festa. A explicação faz repensar o ideal de festa e diversão para um ouvinte e para um surdo, entendendo que esse ideal é representado de maneira diferente, sendo a música uma das principais mudanças. Para a descrição de diferentes festividades e espaços destinados ao lazer dos dois grupos com que realizo a etnografia foram essenciais para conseguir demarcar algumas considerações importantes em relação aos significados de mundo dados por estas pessoas. Na maioria das vezes em que participei de festas, das mais variadas datas comemorativas, como por exemplo, aniversários, dia das mães, festa junina, dia dos pais, dia do surdo ou de festas que não sejam motivo de dia especial, as pessoas surdas se divertiam muito, expressam felicidade de estar participando do evento. Ao invés da música, o que não pode faltar nas festividades é a comida, desde um bolo simples, um pacote de salgadinho para vinte pessoas, até um buffet variado, rodízio de pizzas, churrasco, frios, cachorro quente, entre outros. As fotografias também são recorrências importantes para a lembrança, para o registro do momento, para simplesmente estar mais próximo, mas ela está presente nas festas, independente da qualidade da câmera, desde o celular às câmeras analógicas ou digitais. É difícil sair de uma festa sem ver o flash e uma turma reunida para a foto, seja com direito à pose ou para registrar uma cena engraçada que está sendo realizada pelo amigo. A princípio parece estranho ir a uma festa que não tem música nem dança, mas aos poucos é visível de que o universo dos sons é uma concepção ligada aos ouvintes, e para os

11 surdos a ausência sonora é (re)configurada a partir de outros elementos, a forma de divertir-se é outra. A maneira de diversão está ligada ao contato entre as pessoas, conversas informais, piadas, histórias de outras festas, ou até mesmo as histórias cotidianas da família, envolvendo os problemas com os filhos ouvintes ou as questões do trabalho. As festas não têm música, a não ser quando estas são realizadas para surdos e ouvintes, abertas ao público. A alegria é evidenciada nas expressões dos rostos, nos sorrisos, no reencontro, na possibilidade de uma conversa sem as barreiras da linguagem, pois no cotidiano, a maioria dos contatos estabelecidos, seja no trabalho, na escola ou na faculdade são entre surdos e ouvintes, onde poucos conseguem manter uma comunicação fluente em LS. Nas reuniões festivas essa barreira é quebrada, é possível ficar horas e horas conversando, compartilhando dos mesmos códigos, de brincadeiras que são entendidas naquele contexto. Talvez estes mesmos elementos sejam encontrados nas festas de ouvintes, mas com a diferença de que a música parece preencher os espaços vazios, os silêncios, os constrangimentos, o que para os surdos é contornado de outra forma. A conversa parece ocupar mais espaço, flui de maneira diferente, não são somente os sons, mas a manifestação clara dos corpos, do movimento das mãos, dos braços, das inclinações, das risadas e alterações sonoras que seriam recriminadas em espaços de ouvintes por serem altas demais ou por chamarem a atenção. Os enquadres8 necessários frente ao público ouvinte deixa de ser uma regra, a interação pode ocorrer sem maiores preocupações, as performances deixam de ser contidas, tímidas frente aos pares; desde as expressões sobre uma história de namoro, com direito às encenações dos beijos pelo contador da história e as formas de como se desembaraçam as mãos, que ultrapassam os sinais convencionais, comportados, extremamente corretos na realização da língua de sinais. As festas são motivo de reencontro, comunicação, liberação, realização de gestualidades que somente têm sentido nestes contextos, face-a-face e com a audiência de outros surdos. Mesmo no cotidiano, em casa, com suas famílias os códigos são diferentes, existe outra postura, formas mais centradas de expressão, mais contidas. Portanto, o momento de festa é entendido como um evento em que se faz necessária uma performance específica, uma forma de atuação frente ao outro, e este outro entende e se faz entender por aqueles elementos que são ativados e se constituem nestas situações particulares. Músicas Quando falamos em festa, geralmente, temos um modelo cultural previamente estabelecido, que faz nos remetermos a um determinado estilo. Este estilo pode ser o mais variado possível, com comida, bebida, dança, apresentações, conforme o ritual em que está em evidência naquele momento. Uma característica que pode ser considerada como marcante nas festas dos ouvintes é a música, seja ela ambiente, com participação de DJ ou orquestra, esta particularidade cultural ultrapassa os estilos de vida e se coloca como um dos fatores centrais para o acontecimento de um evento. As músicas fazem parte de um repertório escolhido que não integra a vida cotidiana da maior parte dos surdos pertencentes à comunidade surda de Porto Alegre, pois se trata de um momento em que o grupo de surdos leva a partir de signos e significações próprias da sociedade ouvinte a sua forma de vivenciar o mundo. Neste sentido as musicas são apresentadas em corais ou teatralizadas. Todo o repertório musical é desenvolvido em língua de sinais. A escolha das músicas ocorre através do significado de suas letras em conjunto com as possibilidades performáticas da realização de tal música em língua de sinais e as suas adaptações ao serem interpretadas. 8

Utilizo a palavra enquadre referindo-me a idéia de frame utilizada por Goffman, o qual “situa a metamensagem contida em todo enunciado, indicando como sinalizamos o que dizemos ou fazemos ou sobre como interpretamos o que é dito e o que é feito” (RIBEIRO & GARCEZ, 1998, p.70).

12 Embora a música, na maioria das vezes, esteja distante da realidade da vida cotidiana dos surdos, esta desempenha papel importante no momento de interação entre surdos e ouvintes, podendo ser considerada como um elo de sociabilidade. Os momentos para a apresentação do repertório musical são especiais. O grupo prepara-se desde o momento da escolha das músicas conforme o local em que será realizado o evento, as formulações em língua de sinais extravasam, passando também por modificações que levem à sensibilidade de entendimento dos ouvintes, como a formulação de uma poesia, enfeitada de nuances que dão encantamento à leitura. Para a letra de uma música ser ressignificada é necessário despender tempo e um envolvimento do coletivo, o grupo auxilia e opina durante organização de cada música. Após a conclusão de toda transformação da música em língua de sinais e em gestos que aprimoram e levam a significados mais evidentes do que estão querendo demonstrar, ocorrem os ensaios. O grupo se reúne durante várias vezes, semanas, para conseguirem chegar ao resultado esperado. Faz-se presente a constituição da postura performática perante o público, suas formas de expressão que excedem àquelas realizadas durante uma conversação formal ou até mesmo informal, pois são verificadas outras formas de expressão corporal, próprias para a apresentação das músicas, podendo ser denominada como uma dramatização musical. No momento do evento um elemento extremamente importante e insubstituível é a audiência. A apresentação só é possível com a presença do público, e de preferência, com ouvintes na platéia, já que foram realizados todos os esforços para a organização de uma performance voltada à sensibilização do público ouvinte. É preciso seduzir, deslumbrar o público, dar visibilidade às possibilidades de encantamento a partir de um instrumento criado e usufruído pela cultura ouvinte. É preciso mostrar-se enquanto surdo capaz de atuar de maneira poética, de ser visto de forma positivada, que ultrapassam as barreiras vistas de maneira assistencialista pelos ouvintes. São realizados esforços que ultrapassam a musicalidade contida em cada um que constitui o coral, está intrínseca também uma construção política, que se diferencia totalmente da vontade de ser ouvinte, mas demonstram suas formas próprias de perceber o mundo, que podem ser entendidas através dos mais variados jeitos, como a música, por exemplo. Quem Ri de Quem? Quem não gosta de uma piada? Diverte o ambiente, faz as pessoas rirem, distrai. Claro que é preciso estar em uma hora, momento e ocasião compatíveis e pertinentes, além de saber contar uma piada para que ela tenha o efeito esperado. Vários surdos sabem e gostam de contar piadas (em LS), em geral sobre ouvintes, assim como os ouvintes contam as piadas de portugueses ou de cegos. Este assunto foi vedado e obscuro durante vários meses, era assunto e diversão para surdos, entre surdos, sem a presença de ouvintes, ou em situações em que estes ouvintes não estivessem entendendo o que estava sendo dito. Podendo ser apenas revelado entre pares. As festas, jantares eram considerados os alvos perfeitos para a contação de piadas. A inserção no universo das piadas dos surdos foi lenta. A primeira ocasião em que tive a oportunidade de presenciar uma piada, precedida por várias outras, foi em uma rodada de pizzas que ocorreu na própria Associação no início do ano de 2007. Sentei junto com um grupo de adultos bastante divertidos e que estavam muito à vontade com a minha presença, visto que já nos conhecíamos há bastante tempo. Já estávamos nas pizzas doces, quando em , um homem de meia idade que sempre está fazendo um ato “sem muita reflexão” pequenas brincadeiras, começa a contar uma piada, e logo todos começam a rir junto com ele, pois além de contar são realizadas diversas expressões, fazendo o momento ainda mais

13 engraçado. A história era simples, aparentemente sem graça (quem sabe para os ouvintes), pois falava de surdos e ouvintes, onde os ouvintes eram passados para trás, e os surdos eram espertos e a condição da surdez era essencial para o mérito ou trapaceio a ser dado ao ouvinte. lembrou Ao finalizar a história todos riam muito, como eu, mas imediatamente ao final, que eu era ouvinte e me pediu desculpas pela piada. Todos ficaram sérios. Então falei que não havia problemas, que a piada realmente era muito engraçada e que tinha gostado muito. As risadas voltaram. Após esta cena, na mesma noite foram contadas várias outras piadas. Ao citar a entrada em campo de Geertz (1989), em Bali, que ocorreu a partir de uma briga de galos, organizada na praça central da aldeia, após algumas semanas de sua estadia no local, auxilia perceber que, embora pudéssemos analisar tal evento de diversas formas, o autor optou pelo argumento de que a fuga com os demais balineses, com a chegada da polícia, possibilitou a sua inserção em campo. Neste sentido, o momento festivo, interligado ao período de tempo próximo às pessoas da Associação, a utilização contínua da LS, foram fatores que propiciaram que as piadas fossem contadas, e enfim, houvesse a primeira participação em algo que considero extremamente particular dos surdos, não pelo fato de serem piadas sobre ouvintes, mas por presenciar as formas em que estas foram contadas, com expressões corporais marcantes e o envolvimento deste código que deve ser contido, como um símbolo de referência pertencente ao grupo. A piada envolve uma atuação performática emergente daquele que está contando e também dos espectadores, sendo que existe uma interação do início até o final, pois se durante o percurso ela não está agradando, o contador logo muda suas estratégias para divertir quem está à sua volta. Porém, apenas algumas pessoas conseguem contar piadas, se expressar de forma que os demais considerem engraçado. Na maioria das vezes em que ouvi os surdos contarem piadas duas características são recorrentes: a representação de gênero, pois estas são contadas por homens; e com relação ao conteúdo, o qual representa uma menção positivada da surdez. As piadas, assim como o exemplo etnográfico acima citado, desenvolvem situações em que o surdo é colocado em risco a partir da presença de um ouvinte, mas pela própria condição da surdez a pessoa surda se reconhece como surda e é rapidamente compensada, seja com o alívio de uma multa, mesmo que esteja errada, por ter furado uma fila no branco ou deixar de ser assaltada. Diversas são as situações cotidianas colocadas nas pautas das piadas, sendo que estas trazem o mesmo jogo identitário que horas os surdos utilizam para conseguirem benefícios, mas de maneira satírica, não como um direito adquirido e sim como uma maneira esperta de se dar bem. O senso de humor dos surdos é muito recorrente, na maioria das situações de sociabilidade que vivenciei no grupo de surdos que não participam da SSRS, evidencio a aproximação contínua das pessoas com brincadeiras em relação ao outro, seja para demonstrar a diferença de idade, evidenciar a gordura ou os cabelos brancos do amigo. Eles geralmente encontram em suas observações minuciosas algo que possa incomodar o outro de uma maneira divertida para a audiência. As piadas são observadas em diferentes contextos nos dois grupos em que a etnografia está sendo realizada, seja em festas públicas com entrada para surdos e ouvintes, em espaços de lazer dentro da SSRS e fora dela, em festa privadas, onde somente está presente o público surdo e algumas exceções como eu. Quando os lugares estão mesclados por surdos e ouvintes e os ouvintes entendem a LS, os surdos contam suas piadas de maneira discreta, sem que os ouvintes consigam perceber o que está sendo contado. Esta performance é recorrente quando ocorrem eventos na SSRS e são chamados intérpretes para tradução simultânea ao público ouvinte presente. Outra questão que deve ser ressaltada é a relação das piadas como um momento de preconceito dos surdos para com os ouvintes, onde é possível inverter os papéis de quem é

14 quem, ou seja, quem é considerado minoria naquele momento e que tem problemas de entendimento é o ouvinte. Portanto fica claro a dificuldade de entrar no universo das piadas e vivenciá-las em conjunto com os surdos, já que esta refere-se de maneira pejorativa aos ouvintes e é tida como um dos elementos constituintes da “cultura surda”, que deve ser repassado a cada geração, além da criação de novas piadas para inovar e transformar este elemento construído de maneira específica pelas pessoas surdas. Datas comemorativas Cabe salientar o campo onde foram realizadas as confraternizações do Dia do Surdo, que é comemorado no dia 26 de Setembro, dia reconhecido nacionalmente e que legitima um grupo minoritário a partir do orgulho de ser o que é. Durante esta festividade me reuni com o grupo de surdos não-participantes da SSRS, o que desconstitui o grupo de força política em relação à comemoração da data e o peso institucional, ou seja, o grupo estava desprovido de argumentos politicamente corretos sobre o que é o Dia do Surdo e de discursos sobre a importância da data como forma de visibilidade do grupo. Eles estavam reunidos para comemorarem o seu dia, organizados em um pequeno salão cedido pela escola estadual onde estudam, onde cada um trouxe um prato para contribuir na organização da festa, refrigerante (devido o local, não era permitida a entrada de bebida alcoólica), e devido à decoração, foi organizado um painel com fotos de outros encontros do grupo, contendo a frase: “Feliz Dia do Surdo” abaixo das fotografias. Assim como Dia do Surdo temos vários outros exemplos, como Dia do Índio, Dia da Consciência Negra. Estes dias se referem à celebração de grupos constituídos por pessoas que se diferem étnica e/ou lingüisticamente da população restante que vive no mesmo país. Cada grupo com as suas especificidades, suas datas comemorativas, estipuladas nacionalmente como um dia em que os outros devem lembrar ou ao menos saber da existência destes. Percebe-se a partir dos dados coletados uma base política e ideológica na decisão de constituição do Dia do Surdo, visando relembrar e/ou celebrar as especificidades culturais deste grupo. Estas constatações, no entanto, estão atreladas ao grupo participante da SSRS, visto que eles são idealizadores e formuladores desta data, além de serem agentes de mobilização para o (re)conhecimento pela sociedade ouvinte, visando a legitimidade e visibilidade das pessoas surdas como constituintes de um grupo cultural. No dia 26 de setembro, a SSRS realizou um evento aberto a pessoas surdas e ouvintes. Neste evento ocorreram palestras com diretoria da SSRS e uma solenidade, onde foram prestadas homenagens póstumas aos fundadores e agradecimentos às pessoas que participaram e participam da Instituição, as quais são reconhecidas institucionalmente como importantes na construção da história deste grupo. Tais acontecimentos foram-me relatados posteriormente à comemoração na SSRS por pessoas surdas que participaram do evento. Ambos os grupos apropriaram-se da mesma data de maneiras diferentes, atribuindo sentidos mais institucionalizados por parte dos integrantes da SSRS e, por parte do outro grupo vivências de sociabilidade e comemoração mais íntima, o que não minimiza ou desvaloriza a importância de comemoração da data como um momento festivo marcante. Os dados etnográficos demonstram que as festas, comemorações e momentos de encontros das pessoas surdas, assim como as dos ouvintes, têm diferenciações em suas formas de confraternização, ou seja, participar de uma festa ou um momento de lazer somente para surdos pode ser entendido como um momento particular, onde os referenciais utilizados para a festividade são aqueles específicos dos surdos. Os encontros em locais como restaurantes e bares são escolhidos a partir de outras evidências, tais como a acessibilidade e atendimento. Durante uma sexta-feira à noite, no início do mês de outubro fomos até uma pizzaria no Bairro Menino Deus (Porto Alegre) para comemorarmos o aniversário de duas pessoas.

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, uma Inicialmente, quando estavam escolhendo o lugar da comemoração, questionei das colaboradoras do grupo, porque ir àquela pizzaria, então respondeu que o local era ótimo, as pizzas muito gostosas e que já havia ido ao local outras vezes. Ao chegar na pizzaria todos os participantes já haviam sentado e guardaram meu lugar no centro da mesa. Acomodei-me e logo começamos a conversar e o rodízio de pizzas teve início. O grupo todo estava bastante alegre, eufórico, queriam contar todas as novidades da semana, outros, queriam fazer brincadeiras, mas a motivação era diferente das festas, mais formalizada. Os sinais eram “comportados”, sem gestualidades expandidas, o que demonstrava que o local era propício para brincadeiras desde que elas fossem sem maiores exageros, sem demonstrações para o restante dos freqüentadores. Entendi também a escolha do local a partir do atendimento oferecido, pois todos os garçons tentavam compreender e se fazer entendidos por meio de mímicas para explicar os sabores, mostrar pizzas para o grupo ter a possibilidade de escolher, além da aprendizagem de alguns sinais, tais como galinha, porco e alho para conseguirem comunicar quais as pizzas que estavam oferecendo. Este episódio foi bastante diferente do ocorrido na comemoração de outros dois aniversários, quando nos reunimos em uma churrascaria (início do mês de agosto de 2007), onde os garçons pareciam se esquivarem da mesa, além de perguntarem se alguém do grupo aceitava determinado tipo de carne quando passavam pelas costas das pessoas. As comemorações acabam ocorrendo em determinados espaços, os quais conseguem oferecer atendimento diferenciado, o que leva as pessoas surdas a escolherem os espaços para freqüentarem, a partir dos serviços oferecidos. Tal constatação demonstra também um motivo para utilização da SSRS na realização de eventos, como aniversários, jantas e outras festas já instituídas pela própria associação. Um exemplo etnográfico que pode ser mencionado no uso do espaço da SSRS é a organização festiva do Dia das Bruxas, que ocorre há alguns anos na associação. Devido ao evento de comemoração dos 45 anos da Instituição, a Direção da SSRS decidiu comemorar o dia das Bruxas no dia 6 de outubro com uma festa à fantasia aberta ao público. A expectativa era grande por parte daqueles que iriam à festa, pois não estava claro como seria a organização do evento, se haveria luzes ou seria apenas os holofotes, se haveria desfile de fantasias, se haveria pessoas de fora da instituição, enfim, como seria conduzida a festa. Mas ao chegarmos no clube, eu e , ficamos surpresas por que o local estava com pouca ornamentação, algumas abóboras e morcegos de papel pendurados no teto e as mesas com toalhas alternadas de laranja e preto, com pequenas decorações em cima. O restante estava exatamente do mesmo modo do que nos dias normais, sem festa. Pouquíssimas pessoas chegaram no horário, a festa realmente teve início quando o grupo de estudantes de Santa Maria chegou, pois todos eles estavam fantasiados. Como em outras festas, não havia ouvintes, a não ser eu e o esposo de uma surda. As luzes estavam totalmente ligadas, os participantes eram os mesmos, e próximo à meia noite começou a apresentação do desfile feminino e masculino para a escolha da melhor “Fantasia Halloween 2007”. O mais interessante dos desfiles é que havia uma interpretação quase teatral em cada apresentação realizada no palco. A incorporação da fantasia lançava-se junto com os sinais e as performances realizadas no palco, as quais eram aplaudidas pelo público que assistia aglomerado no salão do clube. A Cinderela, vestida a caráter, demonstrava suas habilidades na dança e no charme despendido durante o desfile. A Presidiária contava que havia sido libertada de uma penalidade, a qual não sabia por que motivo cumpria, pois já que havia nascido na prisão e apenas aos 21 anos foi liberta. A Bruxa falava sobre suas maldades, mas que na verdade não

16 era uma pessoa tão maléfica quanto os outros pensavam que fosse. As meninas gato, tigre, vaca e Minnie (de Walt Disney) dançaram, sacudiram os rabos e atiraram beijos ao público. A Diaba demonstrou que era a melhor, a malvada e a mais esperta, que ninguém conseguiria ser tão astuta quanto ela. A Betty Boop entrou no palco desfilando, mas o desfile fazia parte da atuação do personagem. Esses são alguns exemplos entre várias outras apresentações que também fizeram sua atuação no palco. Todas as roupas estavam condizentes com as performances realizadas. Em relação aos homens ocorreu da mesma maneira. O Pirata falou da vida nos mares. Os Vampiros sugaram o sangue dos jurados e estabeleceram diálogo com o público. O Lutador de artes marciais apresentou seus principais golpes no placo. O Príncipe convidou a princesa para subir ao palco, dançarem uma música e finalizarem a apresentação com um beijo. Enfim, as apresentações não eram apenas das fantasias mais belas, mas da atuação dos atores no palco, a melhor sintonia e a melhor interpretação da fantasia. Esse desempenho foi crucial pelo entendimento dos jurados, os quais escolheram não somente as fantasias, mas as atuações dos candidatos no palco. A comunicação toma caráter amplificado a partir da existência de variáveis sociais, as quais produzem efeitos sobre o comportamento lingüístico no momento em que os indivíduos interagem face-a-face (Goffman, 1998). Nas festas, as relações sociais parecem muito mais insinuantes do que nas sextasfeiras, mas ao mesmo tempo são discretas, pois as pessoas não ficam olhando para o lado para ver a conversa dos outros. As paqueras, assim como em uma festa onde as luzes estão apagadas, também acontecem, mas com maior sutileza, visto que os sinais são visíveis e devido ao fato de que as luzes ficam acesas para a própria comunicação. O ambiente das festas é palco para muitas distrações e diversões, inclusive para as piadas. Espaços de Sociabilidade e Performance na Vida Cotidiana O conceito de Berger & Luckmann (2004) sobre a realidade da vida cotidiana apresenta-se como uma interpretação de todos os aspectos objetivos e subjetivos referentes às experiências passada vivenciadas pelas pessoas. A comunidade surda, através das vivências experienciadas cotidianamente por seus membros, cria universos de sociabilidade que são interiores ao grupo, ou seja, compartilhados dentro da esfera da associação dos surdos, entre surdos. Neste sentido, um dos aspectos integrantes da cultura, que tem extrema significação, é a linguagem. Esta se fundamenta através das experiências cotidianas vivenciadas em campos delimitados de significação conforme cada grupo específico. A linguagem comum de que disponho para a objetivação de minhas experiências funda-se na vida cotidiana e conserva-se sempre apontando para ela mesmo quando a emprego para interpretar experiências em campos delimitados de significação. Por conseguinte, “destorço”, tipicamente a realidade destes últimos logo assim que começo a usar a linguagem comum para interpretá-los, isto é, “traduzo” as experiências não pertencentes à vida cotidiana na realidade suprema da vida diária (Berger & Luckmann, 2004:43-44). O exemplo etnográfico ligado a uma forma de lazer, realizado pelos integrantes da SSRS, são as novelas assistidas em redes televisivas nacionais. A apropriação do espaço da SSRS foi diferenciado no dia em que foi transmitido o final da novela Paraíso Tropical aos telespectadores no horário das 20h 30min, no decorrer do ano de 2007, pela rede Globo. Esta novela teve como enredo final um suspense, que deveria ser revelado apenas no último capítulo, contendo o envolvimento do público a partir da divulgação da mídia para o público responder “Quem matou Thaís?” (personagem assassinada na metade da trama de forma

17 misteriosa). Não distante da realidade cotidiana dos ouvintes, com relação à novela, os surdos estavam atentos ao último capítulo que se passou em uma sexta-feira. Como de costume, próximo às 20h fui até a Associação, onde encontrei um grupo reduzido de pessoas. Logo perguntei o motivo da escassez de pessoas naquela noite e me responderam que era devido às aulas em Santa Maria – RS, pois as pessoas eram as mesmas que participavam das aulas e da Associação. No horário do tele jornal, Jornal Nacional, das 20h o presidente da Associação ligou todas as televisões, o que geralmente não acontece, pois apenas uma TV localizada à esquerda do salão fica ligada e disponível para todos. Naquela noite mais duas televisões foram ativadas, uma próxima à cozinha, para que as pessoas que estivessem no bar ou trabalhando na cozinha tivessem acesso e a outra próxima às mesas de jogos e da churrasqueira, onde eu estava sentada junto com mais um grupo de pessoas. Percebi então a movimentação das pessoas para o redor das televisões e logo começaram os questionamentos de quem havia matado Thaís? Todos davam seus palpites, enumeravam quantos personagens poderiam ser o assassino, e assim como os demais, fui questionada por mais de uma vez sobre quem eu acreditava ser o assassino de Thaís. As respostas eram múltiplas, mas todos estavam ansiosos para o começo da novela. Quando foi anunciado o último capítulo as pessoas se aglomeraram e sentaram-se. As perguntas foram cessadas e apenas se ouvia o barulho das crianças ouvintes, sentadas nas cadeiras que ficavam atrás do público adulto surdo. As crianças faziam concurso de quem conseguia gritar mais alto, já que nenhum adulto ali iria recriminá-los, mas no decorrer das primeiras cenas eles também ficaram em silêncio para assistir ao final dramático. Percebi que os homens ficavam em pé, ao redor das cadeiras, tomando cerveja ou comendo alguma coisa, com o interesse de não serem percebidos como espectadores ativos como as mulheres. Apenas quatro homens já considerados idosos estavam sentados junto às mulheres que tinham faixa etária variada. Dei uma olhada ao redor das outras televisões e o mesmo acontecia. As únicas pessoas que estavam sentadas jogando can-can (jogo de cartas bastante apreciado pelos surdos) sem dar uma observada na tela foram um grupo de aproximadamente seis homens que estavam ao redor de uma mesa afastada de todas as televisões. As cenas eram assistidas através das imagens e seus diálogos entendidos pelo caption (tradução escrita simultânea). No entanto, a tradução muita vezes não coincidia com as falas dos autores, era atrasada e tinham falhas de digitação. Conforme as cenas, era a tradução tinha escrito “silêncio”, “ação”, “suspense”, “música”, o que fez um grupo de pessoas me perguntarem o que significava aquelas palavras naquele contexto. Além das palavras escritas erradas ou desconhecidas para eles com aquele sentido, por exemplo “trança” que na novela estava representando a palavra “rolo”, “confusão” e eles conheciam-na como trança nos cabelos. Este momento foi bastante difícil, por que meu papel não era mais de público, como o restante do grupo, mas como uma ouvinte que tinha de explicar algumas palavras que estavam sendo colocadas em cena imediatamente, procurando sinônimos plausíveis e prestando atenção nas próximas cenas que também poderiam conter palavras não-usuais para os surdos em determinado contexto. A etnografia da fala não nega a construção formal, mas evidencia a interação face-a-face na qualidade emergente da fala, e neste caso, a qualidade emergente da sinalização ligada ao contexto em que irá se desenvolver a performance entre a pessoa que estava questionando as frases da legenda na televisão e eu, que estava reproduzindo sentidos emergentes no momento de encontrar sinônimos para determinadas palavras. Neste sentido, comecei a questionar sobre o meu papel e a forma que era vista pelos surdos no momento em que a performance autorizada fazia parte de um contexto muito próximo, podendo expressar para a audiência minha competência comunicativa, não mais

18 como uma estranha, pois a maioria já me conhecia e autorizava aquele papel; não mais como visita, pois a atenção dada no primeiro ano havia se transformado, era tratada como mais uma pessoa (surda ou ouvinte conhecida); por outros era vista como a intérprete; também poderia ser considerada na lista “das que estavam à procura de namorado”, visto que sempre ia sozinha e conversava com várias pessoas, inclusive homens; e no dia do último capítulo da novela tive a impressão de estar sendo testada por aquelas pessoas, na possibilidade de entendimento intercultural, ou até mesmo exercendo um papel importante de mediadora, visto que era impossível ter o mesmo entendimento dos ouvintes, mesmo que as palavras sejam as mesmas, são usadas em diferentes contextos. A SSRS torna-se um espaço propício para realizar vários tipos de sociabilidade, desde um momento destinado ao lazer como assistir uma novela ou um filme legendado, tomar chimarrão ou cerveja com os amigos, até mesmo para uma festa aberta ao público, substituindo outros locais direcionados a este tipo de diversão, tais como boates, bares e pubs. A reivindicação de espaços de sociabilidade, a busca por direitos de cidadania e acessibilidade, a organização de grupos e associações demarcam relações de poder e organização da vida cotidiana autodenominada como uma cultura diferente: a “cultura surda”. O espaço revela uma significativa importância para os grupos que utilizam LS para a “representação de idéias sobre tempo, música, matemática, emoções, e estruturas sociais” (tradução minha – Keating, 2000, p.235). Neste sentido, a apropriação dos surdos em relação à SSRS torna-se de extrema importância para o desenvolvimento da comunicação em LIBRAS, para a disseminação das histórias contadas por surdos que passam de geração para geração, criação de piadas, realização de festas, comemorações em datas especiais, do mesmo modo como este espaço é apropriado para discussões e debates sobre regulamentação e visibilidade dos surdos na sociedade. Referências Bibliográficas BAUMAN, Richard. Story, Performance and Event: Contextual studies of oral narrative. Cambridge University Press, 1986. ______. Arte Verbal como Ejecución. In: GOLLUSCIO, Lúcia (org). Etnografia del Habla. BS As: Eudeba, 2002. BERGER, Peter. L. LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade. 24ª edição. Petrópolis: Vozes, 2004. BLOM, Jan-Petter; GUMPERZ, John. O Significado Social na estrutura lingüística: Alternância de códigos na Noruega. In: RIBEIRO, Branca Telles. Sociolingüística Interacional. Porto Alegre: AGE, 1998. CICOUREL, Aron. Teoria e Método em Pesquisa de Campo. In: GUIMARÃES, A. Z. Desvendando Máscaras Sociais, 1975. EVANS-PRITCHARD, E. E. Trabalho de campo e tradição empírica. In: Antropologia Social. Lisboa: Edições 70, 1972. GALLOIS, Dominique; CARELLI, Vincent. Diálogo entre povos indígenas: a experiência de dois encontros mediados pelo vídeo. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 1, n. 2, jul./set. 1995. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. _______. O saber local. Petrópolis: Vozes, 2006. IBEGE. http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/27062003censo.shtm. Acesso em 05/05/2007. K E AT I N G, Elizabeth. Space. Journal of Linguistic Anthropology 9 (1-2) 234-237. American Anthropological Association, 2000. MONTEIRO, Myrna Salerno. História dos Movimentos dos Surdos e o

19 ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Antropologia das formas sensíveis. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 1, n. 2, jul./set. 1995. SIMMEL, Georg. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. THIOLLENT, Michel. Critica metodológica. Investigação social e enquête operária. São Paulo: Polis, 1980. VELHO, Gilberto. Projeto Metamorfose: Antropologia das sociedades Complexas. 2ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. VICTORA, Ceres. G. et al. Pesquisa Qualitativa em Saúde: uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo editorial, 2000. ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo

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