A Construção do Poder na \"Revolução\" de Avis (1383-1385)

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ANAIS DO VII ENCONTRO HUMANÍSTICO

Endereço para correspondência e pedidos: Universidade Federal do Maranhão - Centro de Ciências Humanas Núcleo de Humanidades - Av. dos Portugueses, s/n – CEP: 65085-580 – São Luís – MA – Brasil. Fones (98) 2109.8300 / 2109.8302 – Fax:: (98) 2109. 8301 E-mail: [email protected] Home page: www.nucleohumanidades.ufma.br

Núcleo de Humanidades Centro de Ciências Humanas Universidade Federal do Maranhão

ANAIS DO VII ENCONTRO HUMANÍSTICO 19 A 23 DE NOVEMBRO DE 2007 CCH/UFMA

TEXTOS DAS MESAS REDONDAS

1a Edição São Luís - Edufma 2008

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO Reitor: Natalino Salgado Vice-Reitor: Antônio José Silva Oliveira CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS Diretor: Lyndon de Araújo dos Santos NÚCLEO DE HUMANIDADES Coordenador: Claudio Zannoni COMISSÃO EDITORIAL: Antônia da Silva Mota (DEHIS/UFMA); Claudio Zannoni (DESOC/UFMA); José Henrique de Paula Borralho (DEHIS/UEMA); Almir Ferreira da Silva Jr. (DEFIL/UFMA); Manoel William Ferreira Gomes (DEPSI/UFMA); Maria da Graça Pereira Guimarães Corrêa (DELER/UFMA); Maria Mirtes dos Santos Barros (DEARTE/UFMA); Ronaldo Rodrigues Araújo (DEGEO/UFMA); Sílvia Cristina Duailibe Costa (CCH/UFMA) CONSELHO EDITORIAL Alfredo López Austin (Instituto de Investigaciones Antropológicas de México); Ana Jacó Vilela (UERJ); Anna Casella Paltrinieri (Universitá Cattolica del Sacro Cuore di Milano); Antônio Carlos Robert Moraes (USP); Antônio Cristian Saraiva Paiva (UFC); Antônio Paulo Rezende (UFPE); Ari Pedro Oro (UFRGS); Deise Mancebo (UERJ); Edmundo Antônio Peggion (UNESP); Edna Maria Ramos de Castro (UFPA); Eliseo López Cortés (Universidad de Guadalajara - México); Enrique Serra Padrós (UFRGS); Gema Galgani Esmeraldo (UFC); Giovanni da Silva de Queiroz (UFPB); Ilse Sherer-Warren (UFSC); Izabel Missagia de Mattos (UCGO); João Lima Sant’Anna Neto (UNESP); Liana Maria Sálvia Trindade (USP); Marco Aurélio Werle (USP); Sílvia Maria Schmuziger de Carvalho (UNESP) ORGANIZAÇÃO DESTE VOLUME Claudio Zannoni ARTE DA CAPA Foto Pablo Cabado - Museu de Antropologia de Xalapa (México) EDITORIAÇÃO Victor Alves de Lima

Encontro Humanístico (7.: 2007: São Luís, MA) Anais do VII Encontro Humanístico / Organização de Claudio Zannoni - São Luís: Edufma, 2008. 264p.; 21cm. ISBN - 978-85-85048-97-6 1. Ciências Humanas - Encontro científico UFMA. CDD. 001.35 CDU. 168.522:061.3(812.1)

VII ENCONTRO HUMANÍSTICO Organização: Núcleo de Humanidades (NH) - UFMA Cêntro de Ciências Humanas - CCH - UFMA COORDENAÇÃO GERAL: Prof. Dr. Claudio Zannoni (Coordenador NH) Prof. Dr. Lyndon de Araújo Santos (Diretor do CCH) COMISSÃO CIENTÍFICA: Profa. Dra. Antônia da Silva Mota; Prof. Msc. Manoel William Ferreira Gomes; Prof. Dr. Almir Ferreria da Silva Júnior; Profa. Dra. Maria Mirtes dos Santos Barros; Prof. Msc. Ronaldo Rodrigues Araújo; Prof. Dr. Alexandre Fernandes Corrêa; Profa. Ms. Maria Olília Serra COMISSÃO DE COMUNICAÇÃO/DIVULGAÇÃO Prof. Dr. Claudio Zannoni; Prof. Msc. José Henrique de Paula Borralho Profa. Msc. Maria da Graça Guimarães Corrêa; Prof. Msc. Ronaldo Rodrigues Araújo COMISSÃO DE APOIO E INFRAESTRUTURA: Prof. Msc. Manoel William Ferreira Gomes; Profa. Dra. Maria Mirtes dos Santos Barros; Prof. Msc. Ronaldo Rodrigues Araújo; Prof. Msc. José Henrique de Paula Borralho; Funcionários e Monitores da UFMA

APOIO INSTITUCIONAL Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Universidade Estadual do Maranhão (UEMA); Departamento de Artes (UFMA); Departamento de Filosodia (UFMA); Departamento de Geociências (UFMA); Departamento de História (UFMA); Departamento de Letras (UFMA); Departamento de Psicologia (UFMA); Departamento de Sociologia e Antropologia (UFMA); Curso de História (UEMA)

PATROCÍNIO ALUMAR

APRESENTAÇÃO O VII Encontro Humanístico superou as expectativas. Foram 1.500 participantes; 411 Comunicações Orais; 87 Painéis; 40 mesas-redondas; 4 conferências; 21 mini-cursos; 8 oficinas. A programação cultural contou com o espetáculo teatral, “O Imperador Jones”; o show de três bandas de rock formadas por universitários; mais uma amostra de filmes. Tudo isso é resultado de um trabalho em equipe, que envolve alunos, professores, o pessoal da gráfica universitária responsável pela confecção do material de divulgação do Encontro Humanístico, como: cartazes, folders e caderno de resumos, em condições precárias de trabalho. O VII Encontro Humanístico teve como primeira experiência a inserção da IV Jornada de Sociologia e do Iº Colóquio de Consciência Negra. Esperamos que estes eventos possam se multiplicar nos próximos anos tornando, o Encontro Humanístico, a voz da pesquisa universitária na área de ciências humanas. Lembramos também a contribuição de outras universidades que colaboraram conosco para a realização desse evento, em especial a UEMA, mas também UNDB, UNICEUMA, FAMA, São Luís e outras. Tivemos também a participação do COLUN e do CEFET/MA. Por isso, podemos dizer que o Centro de Ciências Humanas da UFMA tem o privilégio de promover o Encontro Humanístico, insistindo que mantê-lo é contemplar apresentações e discussões dos resultados de pesquisas nas áreas das ciências humanas.

O Encontro Humanístico existe, não para fazer ruído acadêmico, mas para elaborar uma melodia polifônica. Se, propositalmente, não seleciona um foco temático, não pretende com isto apenas colecionar informações, mas viabilizar o diálogo entre sujeitos desse universo. Propõe, pois, relacionar conteúdos diversos, fermentando a multi em interdisciplinaridade, numa perspectiva transversal. Pretende, então, dialetizar a variedade do conhecimento, talvez encontrando indícios de continuidade na fragmentação, de unidade na diferença. O Encontro Humanístico objetiva mostrar, na prática, que o que emerge do processo transforma o próprio processo, resgatando a complexidade irredutível e enxergando, na aleatoriedade do caos aparente, a ordem implícita. Estudantes, pesquisadores e professores têm encontrado nesse evento anual uma oportunidade singular para trocar experiências. A publicação deste livro com os textos das mesas-redondas, apresentadas no encontro, se insere nessa perspectiva.

A Comissão Organizadora

Sumário A LINGUAGEM E A REFLEXÃO INTERDISCIPLINAR....13 Letícia Marcondes Rezende ESCRAVIDÃO E POLICIAMENTO NO MARANHÃO EM MEADOS DO SÉCULO XIX..............................................21 Regina Helena Martins de Faria AS REPRESENTAÇÕES DA ESCRAVIDÃO NA IMPRENSA JORNALISTICA DO MARANHÃO NA DÉCADA DE 1880...............................................................................31 Josenildo de Jesus Pereira A CONSTRUÇÃO DO PODER NA “REVOLUÇÃO” DE AVIS (1383-1385).................................................................41 Adriana Maria de Souza Zierer ALGUNS VALORES QUE PERMANECEM: a idade média e os dias atuais.............................................................51 Neila Matias de Souza TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO............59 Veraluce Lima dos Santos O TRABALHO SOB O SIGNO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO........................................................................71 Ilza Galvão Cutrim REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDE SÃO LÚIS: além da retórica municipalista, o que serve como entrave para sua “efetivação”?....................................79 Eduardo Celestino Cordeiro; Juarez Soares Diniz PROJETO UFMA SÃO LUÍS 400 ANOS..........................89 Alexandre Fernandes Corrêa

PALAVRA-MONUMENTO: a expressão da finitude na poesia de Hölderlin........................................................99 Ellen Caroline Vieira de Paiva DANÇA-TEATRO: uma tendência artística transformadora................................................................107 Leônidas da Souza Santos Portela AUTISMO: uma discussão sobre conceito, classificação e educação inclusiva................................................113 Manoel William Ferreira Gomes IMITAÇÃO E IMAGINAÇÃO ‘DA MIMESIS ÀS PAIXÕES’: a ilusão do reflexo para Rousseau..............................121 Luciano da Silva Façanha TELEOLOGIA E HISTÓRIA EM KANT: da Crítica do Juízo à Idéia de uma História Universal...............................133 Zilmara de Jesus Viana de Carvalho PARA ALÉM DA PRESERVAÇÃO DA VIDA: a vontade de poder....................................................................143 Ellen Caroline Vieira de Paiva A PRÁTICA COMO CENÁRIO DA APRENDIZAGEM.....151 Arão Paranaguá de Santana O PROJETO “O EXTENSIONISTA” E A PREPARAÇÃO DE PROFESSORES DE TEATRO...................................157 Célida Braga A NOSTALGIA PÓS-MODERNA: o Complexo de Dédalo em perspectiva...........................................................167 Alexandre Fernandes Corrêa O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL E AS AÇÕES AFIRMATIVAS. Cotas de negros para a universidade: a “quem” e a “que” se destinam?..............................177 Cícero H. Batista Lobo; Sérgio Costa; Juarez S. Diniz UM OLHAR SOBRE MOÇAMBIQUE: a percepção da paisagem na literatura africana. O romance Terra sonâmbula, de Mia Couto..................................189 Márcia Manir Miguel Feitosa 10

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O ROMANCE UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA, DE MIA COUTO............................195 Juliana Morais Belo CONSTRUÇÃO DA GEOGRAFIA MÉDICA E DA GEOGRAFIA DA SAÚDE...............................................201 João Batista Pacheco O ESPAÇO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE DE EVENTOS DA SÁUDE: sazonalidade climática e doenças tropicais.....................................................213 Ronaldo Rodrigues Araújo A EXALTAÇÃO DA FESTA PÚBLICA E A RECUSA DA REPRESENTAÇÃO........................................................219 Edilene Pereira Boaes O DESABROCHAR DA SOCIEDADE NA LIBERDADE..................................................................227 Karliane Fontinele A NOVA HELOÍSA: espelho da filosofia rousseauniana no século das luzes......................................................233 Maria de Jesus Gonçalves Dominici CONFLUÊNCIAS ENTRE O EMÍLIO E O REI-FILÓSOFO............................................................237 Maria do Socorro Gonçalves da Costa TEMA ECOLÓGICO PARA LOUIS VUITTON: uma análise semiótica das categorias semânticas cultura e natureza.....................................................243 Maria da Graça P. G. Corrêa; Marize B. R. Aranha; Luís Rodolfo C. Sales O DOM DE GOVERNAR: São Luís e a idéia de justiça nos Livros da Camara (século XVII)..........................249 Alírio Cardozo AS CAPITÂNIAS PRIVADAS NO ESTADO DO MARANHÃO E PARÁ DURANTE OS SÉCULOS XVII E XVIII..............................................................257 Rafael Chambouleyron

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A LINGUAGEM E A REFLEXÃO INTERDISCIPLINAR* Letícia Marcondes Rezende**

Resumo: Este artigo traz uma reflexão sobre a organização do conhecimento dentro da universidade e a sua relação com a sociedade. Mostra que uma das características fundamentais das ciências humanas, que é a dificuldade que elas apresentam para mensurar os seus resultados e produtos, é, ao mesmo tempo, o seu fracasso e a sua vitória. Essa mesma invisibilidade as protege porque é apenas visível para olhares profundos e não superficiais. Palavras-chave: Método. Conteúdo. Diálogo. Saber. Sabedoria. Identidade. Autonomia. Abstract: This paper brings a reflection on knowledge organization inside the university and its relation to society. It stresses that one of the fundamental characteristics of human sciences, which is the difficulty they present to measure their results and products, is, at the same time, their failure and their victory. This invisibility itself protects them because it is only visible to profound and not superficial approaches. Keywords: Method. Contents. Dialogue. Knowledge. Wisdom. Identity. Autonomy.

* Conferência proferida durante VII Encontro Humanistico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, no dia 19 de novembro de 2007 **Professora da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP de Araraquara. Email: [email protected].

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O artigo detalha aquilo que entendo pelos dois termos do título e faz articulações possíveis entre linguagem e interdisciplinaridade. Há um uso abusivo do termo interdisciplinar atualmente e um equívoco com termos próximos, tais como transdisciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar, etc. Na realidade, eles pouco importam mas importa o modo como os investimos de significados e como explicamos e distinguimos tipos de atividades, de práticas, de atitudes, que revelam compreensões diferentes dos termos em questão e, portanto, revelam compreensões diferentes do conhecimento e de sua organização. Esses termos aparecem com mais freqüência em épocas de transformação e mudanças institucionais. Essas mudanças podem ser impulsionadas internamente, quer dizer, pelo próprio amadurecimento de uma área de conhecimento que se autocritica e se esgota como organização estabelecida de um certo modo, ou externamente e, nesse caso, impulsionadas por demandas econômicas, demográficas, sociais, políticas, etc. Penso que também seja difícil separar as pressões internas das externas, pois deve mesmo sempre haver interação e diálogo entre as partes interessadas no conhecimento, nos processos formativos, e as pessoas não podem estar isoladas em uma sociedade. Esse espírito de diálogo vai predominar neste texto. Mas o conceito de diálogo, aqui defendido, distancia-se de consenso, de meio termo, de caridade cristã e de harmonia, conceitos com os quais sempre ele é identificado (ou mesmo confundido) e vai na direção do conflito, do desequilíbrio, das tensões, que são necessários para que uma ordem de organização superior seja alcançada quando as tensões forem para além da adaptação e novamente assimiladas e equilibradas. Portanto, as tensões entre o poder do Estado, organizações sociais e políticas, demandas econômicas e financeiras precisam dialogar com os professores e pesquisadores que estudam, organizam, criticam e questionam um tipo de conhecimento ou um modo específico de organização do conhecimento. É claro, também, que vão existir mesmo entre professores e pesquisadores aqueles que não fazem a interpretação necessária e profunda ao renascimento de uma nova ordem e são essas próprias personagens internas que colaboram com as externas e as primeiras a defender as mudanças externas dentro da universidade. De não-mutantes são os mutantes por excelência, sempre à espera do momento de cumprir o dever, de colocar uma lei e um decreto em prática, de se adequar à legislação vigente. Não podemos esquecer também que — além daqueles que se provocam e se auto-organizam porque em algum dia de suas vidas um raio diabólico ou uma fagulha divina os tirou de um adormecimento e os colocou diante de Deus ou, quem sabe, do diabo; e daqueles que cumprem o dever se aplicando o máximo possível em deixar cursos, programas, currículos e disciplinas como querem o poder instituído e o Estado — há aqueles para os quais não importa para qual lado vão a universidade e o conhecimento: são todos os lados iguais. Na maioria dos casos, estes últimos, de fato, têm razão, e há uma inteligência protetora nesse 14

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acomodamento e nessa economia de energia, que sustenta um raciocínio simples e verificável na prática: a mudança é a mudança do mesmo. Os três comportamentos são visões possíveis dentro do universo que deve ser a universidade: o acomodamento, a mudança para o diferente e a mudança para o mesmo. É compreensível que as coisas aconteçam desse modo. Aqueles que se constroem cotidianamente não sentem a necessidade da mudança externa e institucional. Os dois lados, poder instituído externo e personagens internos à universidade, professores e pesquisadores, precisam ter autonomia e identidade. E quando se tem autonomia e identidade, o diálogo significa perdas e ganhos para todos os lados e não consenso e harmonia. Por exemplo, atualmente vemos uma imposição do Estado na universidade e uma única concepção de universidade preponderar: a universidade que gera produtos visíveis e mensuráveis e se esquecem de que muitos desses produtos visíveis, mesmo pertencentes à ciência e à tecnologia hoje existentes, eram invisíveis e foram alcançados por meios sofisticados e por protocolos experimentais de visibilidade em laboratórios com lentes potentes, que transformaram o invisível em visível. Por exemplo, um dos desafios das ciências humanas é a questão da visibilidade e da mensurabilidade. E talvez a característica primeira das ciências humanas seja essa sua proximidade com o invisível e com a divindade e a expectativa de que a unidade de medida para as ciências humanas nunca será encontrada. O que acontece com a organização do conhecimento, das disciplinas, dos cursos e currículos não é diálogo, e sempre uma das partes envolvidas não tem identidade e autonomia. Essa parte da universidade sem identidade e autonomia é a parte mais forte ou a mais frágil? É claro também que a resposta a essa pergunta vai depender de pontos de vista. Isso é lamentável para o desenvolvimento de um país e de uma sociedade conscientes da importância do conhecimento na sua organização. Começa a ficar claro por que os termos tais como interdisciplinar, multidisciplinar, pluridisciplinar, trandisciplinar aparecem de modo mais intenso em tempos de mudança. Para responder a essa questão, basta atentar para o termo “disciplina”, que, segundo o dicionário Aurélio, significa, “como termo geral, regime de ordem imposta ou livremente consentida, observância de preceitos e normas e, de modo específico, significa conjunto de conhecimentos para cada cadeira de um estabelecimento de ensino ou simplesmente matéria de ensino”. Mas a matéria de ensino depende, para existir como tal, de uma organização do conhecimento e, portanto, inclui também a moldura, a forma, o contorno, que possibilitaram a organização de um conteúdo de um certo modo. Se começamos a questionar o porquê de uma disciplina, ou de uma organização de um conteúdo estarem como estão ou serem ensinados como são ensinados, ou serem pesquisados como são pesquisados, começamos a perceber que há, em tomo do conteúdo, um contorno que o aprisiona de um certo modo; há uma história do modo como o conteúdo se organizou com o passar dos tempos; há personagens (indivíduos com historicidade, quer 15

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dizer em carne e osso) que podemos apontar como responsáveis por esse contorno; há momentos históricos e condições contextuais que podemos remontar e apontar como sendo o momento que deu forma ao conteúdo de um certo modo. Ou, ao contrário, não conseguimos facilmente recuperar essas autorias, não porque não existiram mas porque se perderam ao longo da história. Como diz o Prof. Carlos Franchi (1991) a respeito do ensino de línguas: trata-se de um baú de guardados. Cada um saberá encontrar na especificidade que domina essas personagens e esses momentos históricos. Eu saberia dizer isso para o conteúdo de línguas, lingüística, ensino de línguas materna e estrangeiras que são os domínios com os quais eu tenho uma familiaridade. Os pares forma e conteúdo ou método e conteúdo são importantes para a argumentação que estamos desenvolvendo neste texto. Toda disciplina existe como disciplina porque tem um método ou uma forma que a sustentam, que a configuram de um tal modo. Precisamos ter consciência ou conhecimento explícito (que é a mesma coisa) de que essa forma se configurou desse modo historicamente, contextualmente, e consciência sobretudo (e isso é importante) de que isso não está pronto, nunca esteve, e nunca estará: está, ao contrário, em constante reorganização e, isso, cotidianamente. O conteúdo é um suporte para atividade do sujeito, assim como é um texto para a leitura de cada leitor específico, que, com a sua experiência de vida e de leitura, produzirá como resultado um texto diferente do outro. Cada ator (professor ou pesquisador) que investe criativamente, que age sobre um conteúdo e que ensina para outros atores com idades e contextos sociais diversificados, percebe a reorganização e o movimento do conteúdo; percebe frestas, fronteiras, pontos obscuros, abismos, novos caminhos de reorganização do conteúdo que ensina ou pesquisa Nesse momento de perspicácia e discriminação do potencial de organização ou de caminhos de um conteúdo desvendados pela própria prática, pela própria ação, o ator (professor ou pesquisador) percebe a beirada que brilha e cintila como uma estrela e que não pertence ao conteúdo: trata-se de sua própria imaginação, de seu espírito criativo, de sua reflexão. É o seu ser em ação que se manifesta. Percebe também que essa clarividência só aconteceu por meio de uma prática de ensino ou uma prática de pesquisa de um conteúdo específico (e para nós, nesse ponto, ensino e pesquisa não se diferenciam); percebe que é o seu domínio do conteúdo ou de uma especificidade, ou, ainda, de uma matéria que lhe oferece resistência, dramas pessoais de ensino e de aprendizado e que lhe permite, por meio de processos cognitivos de base, tais como discriminação, comparação, avaliação, reversibilidade, etc. atingir essa clarividência, esse espírito que brilha e cintila. Isso jamais se revelaria sem um conteúdo. É a plasticidade que se pode efetuar sobre um conteúdo, é o movimento da percepção de um mesmo conteúdo sob vários ângulos que permite perceber o vazio. Quer dizer, trata-se de um vazio que é pleno, ou que não é unidirecional mas multidirecional. Trata-se não ver as partes separadas do todo que as constitui. É um vazio que existe porque tem a matéria que 16

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lhe dá contorno (vejam que aqui invertemos o que falamos acima, mas essa inversão se completa com o raciocínio já feito): do mesmo modo que o método ou a forma dá contorno à matéria, é a matéria que permite dar contorno ao vazio ou à forma ou ao método que jamais se revelariam no vazio que é vazio. Embora essa cintilância seja um vazio, uma forma, é um vazio-pleno que dependeu do conteúdo e da prática do sujeito que o interpreta e o vivencia (professor, aluno, pesquisador, leitor, etc). Essa energia da criatividade e da descoberta, como conseqüência da atividade prática e do diálogo, não é acumulada em nenhum lugar e em nenhum livro: é perdida no cotidiano das escolas e dos laboratórios. Da pesquisa até temos resultados mas também não temos nunca os registros dos caminhos e descaminhos. Até porque sempre escrevemos livros e compêndios sobre os saberes acumulados e estáticos e jamais sobre a sabedoria ou sobre a dinâmica dos valores ou significados de um conteúdo ou dos conteúdos para tempo, espaços e sujeitos diversificados. Nunca colocamos no papel a energia e o investimento gastos para descobrir um outro caminho, por exemplo, na transmissão de um conhecimento para um aprendiz, quando ele apresenta alguma dificuldade de compreensão, ou o momento de encruzilhada de caminhos no trabalho de pesquisa, que, muitas vezes, como conseqüência também de pressões externas para a produção da pesquisa em uma certa direção, não exista. Nesses momentos de decisão e opção, cresce, com tal esforço, muitas vezes, o professor e o aluno, mas a disciplina fica incólume, sem se alterar. Na pesquisa também, cresce o pesquisador, às vezes a própria pesquisa evolui para outros caminhos, às vezes evolui apenas linearmente. Prova de que não temos esses alicerces, essas forças acumuladas no conteúdo das disciplinas e dos saberes é o fato de que eles estão constantemente sendo alvos de forças externas (autoridade, Estado, etc) para que mudem, ganhem novos rótulos e novas configurações. Embora com toda a prática de ensino e de pesquisa existentes, se separamos do resultado dessa prática (que existe muito mais para a pesquisa do que para o ensino) o próprio investimento e criatividade, em três gerações (aquele que ensina hoje porque aprendeu com um professor há 20 anos que aprendeu com um outro há 20 anos antes) teremos três gerações e um século de conteúdos incólumes, quer dizer estaremos falando no final de um século a mesma coisa que se disse no início do século. Se isto é assim, se sempre foi assim e se vai continuar sendo assim, melhor que todos nos conscientizemos disso (de que há pessoas e forças que sustentam as mudanças e que tomemos as rédeas desse processo e deixemos as nossas marcas nesses saberes investidos). Porque a questão que fica é: Por que alguns podem forçar a mudança em uma direção e outros não? Será que aqueles que realmente forçam a mudança cotidiana e invisível se alimentam com isso? são auto-suficientes? se bastam? Por que exatamente quem vivencia o ensino ou pesquisa de um conteúdo não são eles os protagonistas desse amadurecimento e mudança? Por que há uma assimetria muito grande entre os grupos? Nunca vemos um grupo de professores ou de pesquisadores na 17

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origem desse processo, mas quase sempre a universidade é a receptora dessas mudanças e reestruturações. É claro, como já dissemos acima, o Estado e o poder constituído precisam de colaboradores internos sem os quais nenhuma mudança seria proposta. As reestruturações curriculares chegam à universidade por leis e decretos e os membros da academias são quase sempre solicitados a participar de um diálogo no qual as coisas já estão predeterminadas. Onde fica a conclamada autonomia da universidade, ou pelo menos de uma parte dela? O que é feito com a outra parte da universidade que aposta em uma condução diferente do conhecimento e dos saberes? Interdisciplinaridade hoje é ser polivalente (pluridisciplinar? multidisciplinar?) saber de tudo e de nada, não ter aprofundamento algum, ter informações gerais e não universais; não ter domínio de especificidade alguma, não estar no ápice e ao mesmo tempo na fronteira de um conhecimento. Chegar ao ápice de uma especificidade e, portanto, aos seus fundamentos filosóficos, que serão compartilhados com especialistas de outras especificidades, fica reservado para a formação da elite e para os países do primeiro mundo; interdisciplinaridade, hoje no Brasil, é ser flexível; é ser adaptável às regras do mercado, é pertencer a um grupo de profissionais de segunda ou terceira categorias que vai ser jogado para o lado que for conveniente ser jogado, sem resistência (assim como é a forma sem a matéria e sem sujeitos; e assim como é o conteúdo sem a forma e sem os sujeitos): amorfo, maleável, sem princípios, sem fundamentos, sem resistência e que cumpre o que o poder de decisão central, muitas vezes que não pertence nem ao nosso país, quer que cumpra; ser interdisciplinar é se anular em direção a um todo (a globalização) do qual individualmente não fazemos parte e do qual muitos já foram excluídos e marginalizados. Não se trata da conquista do universal. A articulação do todo com a parte, do universal com o particular que pertence à uma tradição humanística da qual todos fazem parte com ser humanos se perde e se desfaz e é substituída por conceitos coletivos como globalização que não conseguem integrar o ser humano na totalidade da humanidade: é um todo que não contém a parte. É bem verdade que a tradição humanística clássica se desvirtuou em um elitismo ou em um eruditismo e se distanciou também do homem comum, do homem cotidiano e também não consegue responder mais aos desafios de formação. Como exemplos desses posicionamentos instrumentais, podemos conferir a retirada, da grade curricular das universidades, das licenciaturas em línguas clássicas e das línguas estrangeiras, que não existem na escola básica, e a permanência do inglês e a entrada do espanhol. É muito engraçado e chega a ser até cômico o argumento de que tais e tais línguas não precisam ter licenciaturas porque elas não mais existem na escola básica. Quem as retirou da escola básica e há apenas algumas décadas? Não foram os mesmos protagonistas, ou a mesma ideologia, que depois de um intervalo dado para que a memória se apague dão continuidade a tais mudanças. Só estavam preparando o terreno para poder elaborar 18

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agora essa argumentação sobre o já destruído. Aguardem o próximo capítulo e as próximas décadas. Trata-se de uma questão de tempo para se argumentar de que não precisa existir também o bacharelado para tais línguas; que elas não têm utilidade, não servem para nada. Mas quem define o critério de utilidade e de serventia? A partir de qual ângulo se fazem essas análises para dizer o que deve ficar e o que deve ser retirado? Os critérios são externos. Mas é também (e agora internamente) a ausência de alicerces novamente profundos, de reflexão interdisciplinar por exemplo, em relação ao ensino de línguas em geral e ao ensino em particular da língua materna e das línguas estrangeiras que facilitam (porque débeis e insuficientes) esses verdadeiros roubos em nossa formação. A reflexão interdisciplinar é uma metacognição; é a consciência do ato de pensar. Ela acontece quando se suspende, em ato, o pensar e focamos a beirada que cintila como uma estrela; quando pensamos o pensar; quando se percebem os vasos comunicantes, o diálogo entre conteúdos construídos e estruturados. A interdisciplinaridade é um esforço para se perceber uma atividade estruturante que sustenta o conhecimento organizado, o transforma mas que é também a sua gênese. E não seria isso a linguagem? A linguagem não é uma propriedade específica das línguas naturais. Ela é uma atividade de construir representação, estabelecer referenciação e regulação ou equilibração. Portanto, a linguagem é um diálogo. Ela é, ao mesmo tempo, psicológica e ligada à construção da identidade e sociológica, levando em consideração a alteridade. A maior parte de nossa atividade de linguagem é interna e invisível. Trata-se de uma atividade metalingüística inconsciente (atividade epilingüística). A linguagem é um processo de medida. Estamos o tempo todo medindo a distância ou a proximidade de significados diferentes mas próximos, quer dizer, parentes. Avaliamos, comparamos, vemos o que é igual e o que é diferente. Em resumo: discriminamos o tempo todo. O estilo, a sutileza constituem, nessa reflexão, fundamento. Na concepção de linguagem aqui defendida, todos os enunciados de uma língua são ambíguos e a linguagem — e, conseqüentemente, as línguas — não são instrumentos de comunicação, não passam mensagem alguma, nem há codificação e decodificação. A linguagem é um trabalho de investimento de significados feito pelos sujeitos sobre sistemas de expressão, no nosso caso, sobre sistemas de expressão verbal (textos orais ou escritos), e a comunicação (quando existe) é o resultado de tal trabalho. Sempre quando propomos a indeterminação da linguagem, construímos um lugar especial para o trabalho do sujeito. Nesse caso, a linguagem é um mecanismo de equilibração que existe em todo ser vivo e que ganhou no ser humano uma sofisticação. Procurar a linguagem, definida desse modo, quer dizer, interdisciplinarmente, é um desafio para gramáticos e lingüistas, que têm por tradição descrever línguas e não estão habituados às reflexões filosóficas ou interdisciplinares. Encontrar as propriedades da linguagem como uma atividade de represen19

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tação, definida interdisciplinarmente nas marcas e nos arranjos das línguas, é também um desafio por outro lado, para psicólogos, filósofos, lógicos, sociólogos, antropólogos que sempre estudaram a linguagem, como propriedade universal do ser humano de construir representação e assimilaram-na, ao longo do tempo, à reflexão, ao juízo, ao pensamento, etc, mas nunca descreveram línguas e nem se ativeram às marcas e aos arranjos léxico-gramaticiais das línguas. Vemos, com essa pequena introdução ao conceito de linguagem que a nossa formação — no caso a que eu conheço melhor — de professores de línguas materna e estrangeiras, ou de estudiosos de lingüística (mas penso que posso e devo, e é também o objetivo deste meu texto, generalizar tal reflexão aos outros conteúdos também: matemática, história, química, etc) é polarizada e pendular: ora língua sem linguagem , ora linguagem sem língua. Trata-se de uma formação fragmentada e não integradora. Como causa dessa polarização no ensino e aprendizado de um conteúdo específico, no nosso caso, de línguas, temos as polarizações maiores: teoria e prática, forma ou método e conteúdo, abismos entre os graus de ensino e não solução de continuidade entre os diferentes níveis de ensino e a conseqüente hierarquização da mão-de-obra que trabalha com o conhecimento: professores e o ensino de um lado e pesquisadores e pesquisa, de outro. A grande e primeira polarização, geradora das outras aqui já mencionadas, é a que existe entre o conhecimento e o poder ou entre o conhecimento e a sociedade organizada de um certo modo, por exemplo, as hierarquias existentes entre mão-de-obra especializada ou não. É necessária uma mudança de visão de mundo para que a reflexão interdisciplinar aconteça. A insistência na existência dos vasos comunicantes entre as polarizações permitirá uma educação crítica, formadora e integradora. Penso que essa situação é quase insolúvel e continuará por muito tempo, porque, quando se fazem novas mudanças, exatamente aquilo que é invisível e que contribui negativamente para a avaliação das ciências humanas, para a não-obtenção de recursos, de honras, de méritos e de privilégios mostra o seu lado positivo: é fugidio, a sua captura é muito difícil e não se faz visível para mudanças superficiais. Essa é a vitória da invisibilidade e, apesar de tudo e de todos e de todas as mudanças com intuitos bons ou maus ou mais ou menos, a dimensão humana do conhecimento renasce e está sempre disponível para olhares sérios e profundos. Essa é a nossa esperança para as ciências humanas.

Referências: FRANCHI, Carlos. Criatividade e Gramática. CENP-Secretaria de Estado da Educação São Paulo, 1991.

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ESCRAVIDÃO E POLICIAMENTO NO MARANHÃO EM MEADOS DO SÉCULO XIX* Regina Helena Martins de Faria**

Resumo: Este estudo aborda a constituição de aparatos de policiamento no Maranhão provincial, destinados, principalmente, à captura de escravos fugidos e à destruição de quilombos. Destaca a importância dos escravos na composição da população da província e as formas de resistência consideradas mais perigosas: as fugas e os quilombos. Apóia-se na legislação para apresentar a estrutura de funcionamento dos mencionados aparatos. Palavras-chave: Maranhão Provincial. Policiamento. Escravidão. Quilombos. Abstract: This study broaches the policing apparatuses constitution in Maranhão provincial, destined, mostly, to the capture of fugitive slaves and to the maroon destruction. It highlights slaves’ importance in the composition of the province population and the resistance forms considered more dangerous: the escapes and the maroons. It supports in the legislation to present the functioning structure of the mentioned apparatuses. Keywords: Maranhão Provincial. Policing. Slavery. Maroons.

*Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa redonda “Controle social e resistência escrava na crise do escravismo no Maranhão”. Baseia-se em e chega a reproduzir fragmentos do texto de minha tese de doutorado (FARIA, 2007).** **Professora do Departamento de História da UFMA, doutora em História pela UFPE, coordenadora do Grupo de Pesquisa Políticas de Segurança e de Trabalho. Maranhão, séculos XIX e XX. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO A recente historiografia sobre a escravidão superou a dicotomia que durante tanto tempo definiu a imagem dos africanos e seus descendentes, escravizados no Brasil, vistos ora como líderes guerreiros chefiando quilombos, ameaçando a vida e a tranqüilidade dos senhores e a segurança do Estado, ora como cativos submissos que aceitavam pacificamente sua (má) sorte1. A bandeira da superação é empunhada emblematicamente por Eduardo Silva (1989), ao anunciar num artigo que entre Zumbi e Pai João havia o escravo que negociava, construindo espaços de liberdade na escravidão. Assim, parodiando João José Reis e Flávio dos Santos Gomes (1996, p.9), pode-se afirmar que “onde houve escravidão houve resistência”: quer aquela cotidiana das pequenas negociações do dia-adia, quer aquela estremada, da fuga, da formação do quilombo, da insurreição, do suicídio ou da agressão física que chegava, às vezes, ao assassinato. Os corriqueiros atos de resistência eram administrados pela justiça privada dos senhores ou de seus prepostos nas fazendas e nos casarões das vilas e cidades. Os estremados requeriam a participação do aparato repressor estatal, especialmente quando se tratava das fugas e dos quilombos, que recebiam atenção especial. As fugas, como não eram consideradas atos criminosos, não tinham penalidades previstas para os fugitivos na legislação portuguesa ou na brasileira, sendo incriminado apenas quem dava guarida ao escravo fugido. No início da colonização, portanto, a captura desses fugitivos podia ser realizada por qualquer pessoa que os encontrasse. No decorrer do século XVII, câmaras municipais legislaram a respeito, criando a profissão de apresador de escravos fugidos, que se popularizou com o nome de capitão-do-mato, embora tenha recebido outras denominações. A vinculação de tais profissionais ao Estado ficava apenas na autorização que precisavam obter do poder municipal para poderem exercer seu ofício, pois eram remunerados diretamente pelos senhores dos escravos que capturavam2. No caso dos quilombos, a responsabilidade do Estado era maior. Quando os capitães-do-mato encontravam ajuntamentos de escravos fugidos, que não conseguiam debelar com seus auxiliares, o aparato militar estatal costumava ser requisitado pelas autoridades locais. Nos tempos coloniais, duas organizações armadas podiam ser destacadas para essas ações: as tropas regulares ou de primeira linha, profissionais, embrião do futuro Exército; e as tropas auxiliares, em especial as Milícias, porque as Ordenanças3 não podiam atuar fora das localidades onde eram constituídas. No Brasil Império, essas tropas milicianas coloniais foram extintas, tendo sido criada a Guarda Nacional ou Milícia Cidadã, que também podia ser convocada para o combate aos quilombos, enquanto as tropas do Exército eram gradativamente afastadas dessas funções, devido as províncias passarem a ter seus próprios corpos 22

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de policiamento militar, inclusive alguns voltados para a captura dos escravos fugidos e o combate aos quilombos (FARIA, 2007). Descrever sucintamente a constituição destes aparatos policiais é o principal objetivo deste artigo.

2. RESISTÊNCIA PROVINCIAL

ESCRAVA

NO

MARANHÃO

Quando o Maranhão se integrou ao Estado nacional, em 1823, era uma das províncias com maior percentual de escravos negros em sua população, se não fosse mesmo a maior. O aumento na importação de trabalhadores africanos escravizados, na segunda metade do século XVIII e na primeira do século XIX, para atender a expansão da grande lavoura de algodão e arroz, havia mudado seu perfil demográfico, antes, acentuadamente marcado pela presença do indígena, escravizado ou não. Um censo populacional realizado por volta de 1820 identificara que 53,3% dos seus 152.892 habitantes eram escravos (LAGO, 2001). Em meados do século XIX, a situação não estava muito diferente, pois 51,6% das 217.054 pessoas que ali viviam ainda estavam submetidas ao jugo da escravidão, conforme recenseamento de 1841 (MIRANDA, 1841). Os cativos concentravam-se na parte norte do lado oriental da província, considerando que a colonização agrícola se expandia do litoral para o interior e da fronteira do Piauí para o centro do Maranhão. Mas eram numerosos também nas fazendas que vicejavam nas baixas terras em volta do Golfão Maranhense, a chamada Baixada Maranhense, e na faixa litorânea do lado ocidental. Escrevendo no final do decênio de 1810, o capitão Francisco de Paula Ribeiro (2002, p. 108), militar português em serviço no sul do Maranhão, estimava que, na parte setentrional da província, a proporcionalidade era de seis a sete escravos(as) para cada habitante livre ou liberto. Na parte meridional, a situação era inversa: de quatro a cinco livres ou libertos(as) para cada pessoa reduzida à escravidão. Em tais circunstâncias, as fugas eram freqüentes e os quilombos numerosos. As densas florestas tropicais e os rios perenes tornavam possível a sobrevivência nas matas. Desse modo, tem-se notícia de quilombos no Maranhão desde os primeiros anos do século XVIII. Mas foi na centúria seguinte que se multiplicaram, de tal forma, que o historiador Matthias Assunção (1996, p. 436) julga terem se tornado um “fenômeno endêmico”. Pontilhavam por toda a parte setentrional da província. Levantamento documental realizado por Maria Raimunda Araújo (2001)4 os identifica em terras de Alcântara, Guimarães, Pinheiro, Viana, Santa Helena, Carutapera, Icatu, Iguará, Brejo, Tutóia, Rosário, Itapecuru e São Gonzaga, sendo a região de Turiaçu/Gurupi, na fronteira com o Pará, a de 23

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maior ocorrência e onde resistiram por mais tempo. Eram verdadeiras hidras, na inspirada imagem cunhada por Flávio Gomes (2005), que, batidas em um lugar, ressurgiam em outro, nas pantanosas matas da Amazônia maranhense. Quanto ao Maranhão oriental, um inventário feito pelo Projeto Vida de Negro da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos só encontrou ali um caso de quilombo, depois de 1845 (apud ASSUNÇÃO, 1996, p. 459). O avanço da colonização dessa região ia constituindo núcleos populacionais e novos municípios se formavam com sua estrutura burocrática, símbolo do avanço do processo civilizador. A região do Turiaçu/Gurupi, por se manter pouco devassada, até as últimas décadas da escravidão continuou como reduto de comunidades quilombolas. Debelar essas comunidades de fugidos era uma preocupação constante dos governantes e da classe senhorial, porque as fugas e os quilombos eram as formas de resistência escrava consideradas as mais perigosas à ordem escravista. No entendimento de Clovis Moura (2003, p. 103, grifos do autor), “o negro fugido era o rebelde solitário que escapara do cativeiro”. Nesta condição estava no primeiro estágio da consciência rebelde de protesto contra a escravidão. O segundo estágio era alcançado quando esse sentimento era socializado e o rebelde solitário se juntava a outros para a formação de um quilombo, “entidade radical” de negação ao escravismo. Em sua análise, o quilombo e a sociedade escravista tinham estruturas antagônicas, expressas nas seguintes contradições: no primeiro, “homem livre, terra livre confiscada, trabalho comunal livre, coletivismo agrário, forças armadas de defesa, e família alternativa livre”; na segunda, “escravo, latifúndio escravista, trabalho compulsório, produção para o senhor, forças armadas de repressão, família reprodutora de escravos” ( MOURA, 2003, p. 108). Face ao exposto, compreende-se que o governo da Província do Maranhão tenha criado aparatos de policiamento direcionados ao combate das comunidades quilombolas e à repressão às fugas.

3. O POLICIAMENTO ESCRAVAGISTA A reforma constitucional de 1834 transformou os Conselhos Provinciais em Assembléias Legislativas, concedendo-lhes o direito de deliberar sobre diversas questões, entre as quais estava a definição da força pública provincial. No exercício desta nova atribuição, o Poder Legislativo da Província do Maranhão autorizou a constituição de corpos policiais, alguns direcionados às zonas rurais, priorizando a luta à resistência escrava.

a) Os Corpos de Polícia Rural

A primeira matéria aprovada pela recém-constituída Assembléia Legislativa da Província do Maranhão, em relação à força pública, foi a criação de um Corpo de Polícia Rural em cada distrito de paz5 da província, exceto nos da capital (MARANHÃO, Lei n. 5, de 23 de abril 24

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de 1835. CLP). Em São Luís, a capital, havia então Corpos da Guarda Municipal Permanente com soldados profissionais e aquartelados, o que explica a mencionada exclusão. Os Corpos de Polícia Rural (CPRs) seriam tropas pequenas, de três a dez soldados com um comandante, dependendo do tamanho da população, da extensão e das necessidades do distrito. Seus componentes tinham direito a um vencimento mensal, armamento e munição pagos pelo governo provincial. Embora devessem atender às solicitações das autoridades judiciais nomeadas pelo Governo (juízes de direito e juízes municipais), estavam diretamente vinculados aos juízes de paz, magistrados eletivos que serviam ao Estado de forma litúrgica6 e que eram, à época, as maiores autoridades policiais em âmbito local, com poderes para julgar os crimes de menor potencial ofensivo, segundo terminologia jurídica atual. Sintomaticamente, a destruição de quilombos e as providências para que não se formassem eram atribuições dos juízes de paz. O engajamento dos soldados rurais nessas ações era explicitada na lei de criação dos CPRs, que estipulou as gratificações que eles deviam receber dos senhores dos escravos fugidos que prendessem. Seguindo o que era praticado pelos capitães-do-mato, ficaram estabelecidos três níveis de gratificação para tal serviço, de acordo com o grau de dificuldade da captura: dois mil réis para os apresamentos realizados no próprio povoado; cinco mil se ocorressem fora dele; e dez mil quando se dessem em quilombos. Neste último caso, as gratificações eram divididas igualmente entre o comandante e os soldados que houvessem participado da expedição. Ainda não foram identificadas as localidades em que os CPRs chegaram a se organizar, no seu curto período de vigência. Em 1838 foram declarados extintos, sob a justificativa de que o policiamento militar em toda a província devia ficar a cargo do Corpo de Polícia da Província do Maranhão (CPPM), criado em 1836.

b) As Guardas Campestres

É possível que os praças do CPPM não tenham se desincumbido a contento das funções de capitães-do-mato porque, em 1839, o presidente da província, Manoel Felizardo de Sousa e Mello (1839, p. 28-29), defendia a formação de tropas especiais, aptas a penetrar nas matas e a perseguir através delas “os escravos fugidos e facinorosos”, extinguindo “quilombos e coutos de malfeitores”. Desse modo, na legislatura de 1840, os deputados provinciais autorizaram a constituição de Corpos de Guardas Campestres (CGCs), com organização e atribuições praticamente idênticas às dos CPRs (MARANHÃO, Lei n.º 98, de 15 de julho de 1840. CLP). Atuando nas décadas de 1840 e 1850, as Guardas Campestres passaram por três momentos: o primeiro, de 1840 a 1843; o segundo, de 1843 a 1847; o terceiro, de 1850 a 1858. 25

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Quando foram criadas, ficaram vinculadas às prefeituras de comarca, instituições que haviam sido constituídas no Maranhão, desde 1838, assim como em outras províncias, para substituir os juízes de paz na condição de maior autoridade policial nos distritos. Pouco tempo depois, a Reforma Judicial de 18417 extinguiu as prefeituras de comarca e criou os cargos de delegados e subdelegados de polícia, que se tornaram verdadeiros “policiais juízes”, pois tinham competência para julgar os crimes de menor potencial ofensivo, como antes o fizeram os juízes de paz, por quase toda a década de 1830. Todavia, essa Reforma confirmou o combate aos quilombos como competência do Juizado de Paz, que a manteve enquanto durou a escravidão. As Guardas Campestres ficaram, então, subordinadas aos juízes eletivos. A similitude das atribuições dos CGCs com as desempenhadas pelos capitães-do-mato pode ser percebida na forma de assalariamento que lhes fora determinada por lei: só seriam remunerados pelos cofres públicos nos dias em que estivessem “empregados no ataque e destruição de quilombos e coutos de malfeitores”, podendo receber as costumeiras recompensas prometidas pelos senhores dos escravos fugidos. No primeiro momento foram organizadas em Itapecuru-Mirim, Viana, Guimarães, Cururupu e Santa Helena, onde havia queixas da existência de quilombos. No segundo momento passaram a se denominar Esquadras de Guardas Campestres (EGCs), vinculadas aos delegados e subdelegados, podendo funcionar também nos distritos da capital. Dessa vez, foram organizadas em freguesias das comarcas da capital (Nossa Senhora da Conceição, São Joaquim do Bacanga, Nossa Senhora da Luz do Paço); de Alcântara (São Matias de Alcântara, Santo Antônio e Almas, São Bento, São Vivente Férrer); Itapecuru (Nossa Senhora das Dores do ItapecuruMirim, São Sebastião da Manga, Nossa Senhora do Rosário, Santa Maria de Icatu, São José do Preá) e Viana (Nossa Senhora da Conceição de Viana, São Francisco Xavier de Monção, Nossa Senhora de Nazaré do Mearim e no distrito de Anajatuba) (MAGALHÃES, 1844, Mapa 11). Extintas em 1847, um forte argumento utilizado pelo presidente da província para serem reativadas, no ano de 1850, foi a informação de terem os guardas campestres capturado 592 fugitivos (569 escravos e 23 desertores) na ilha do Maranhão, nos três anos em que ali aturam (COUTINHO, 1850, p. 7). Na última fase, mantiveram o perfil que lhes fora imprimido em 1843, sendo constituídas desta vez em doze lugares: nas delegacias da capital e em Guimarães, Alcântara, São Bento, Rosário, ItapecuruMirim, Codó, Coroatá, São Luís Gonzaga, Chapadinha e Santa Helena (MACHADO, 1953, p. 9). É importante destacar que os lugares em que foram criadas, em suas três edições, foram justamente aqueles em que havia quilombos, como se pode verificar confrontando-os com os lugares identificados no mencionado levantamento realizado por Maria Raimunda Araújo (2003). Quando as EGCs foram extintas, em 1858, mais uma vez foi alegado que a província deveria redirecionar os recursos para a reestruturação do CPPM. 26

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c) As Esquadras do Mato

A segunda desmobilização das Guardas Campestres coincidiu com a aprovação da Lei Provincial nº. 236, de 20 de agosto de 1847, que determinou a nomeação de capitães-do-mato em todos os termos da província. A vinculação à burocracia estatal desses tradicionais caçadores de escravos indica que eram vistos como parte da “força pública” provincial, competindo ao Poder Executivo estabelecer sobre eles algum mecanismo de controle. Desse modo, foi disposto que cada juiz de paz indicaria ao governo provincial os nomes das pessoas que julgasse aptas ao posto, em seu distrito. O presidente da província as nomearia, gratuitamente, e os títulos de nomeação seriam registrados nas respectivas câmaras municipais. Cada distrito de paz poderia ter até dois capitães-do-mato, cada um com até cinco soldados, escolhidos por eles e nomeados pelo juiz de paz, formando uma pequena força armada, referida na documentação da época como Esquadra do Mato (EM). Os capitães-domato vinculavam-se ao juiz de paz, que podia suspendê-los quando não merecessem mais sua confiança, nomeando outros em caráter interino, até serem efetivados pelo governo provincial. A lei que instituiu as EMs não previa salários nem fornecimento de armas e munições aos seus integrantes. Os capitães receberiam prêmios pelos escravos capturados, o dobro dos valores anteriormente estabelecidos para os guardas campestres: 20.000 réis por cada um aprisionado em quilombo; 10.000 réis “pelo que andar a corso”; e 2.000 réis pelo encontrado nas cidades, vilas e povoações, e até uma légua distante das mesmas. Os prêmios e as despesas com alimentação e custódia dos escravos nos “depositários públicos”, enquanto não fossem resgatados por seus senhores, tudo devia ser pago pelos proprietários dos escravos. Competia aos capitães-do-mato manter uma lista atualizada dos escravos fugidos do distrito onde atuavam, prestando conta de suas ações ao juiz de paz, em relatórios semestrais, que deveriam ser enviados ao Chefe de Polícia, autoridade maior da província na área de segurança, naquela época. Porém, tudo indica que não teve sucesso a intenção de atrelar os capitães-do-mato ao aparato estatal no Maranhão provincial. Nos anos subseqüentes à promulgação da lei que regulamentou a vinculação, os governantes informavam que haviam nomeado todos aqueles indicados pelos juízes de paz, mas reclamavam que esses magistrados não enviavam as listas dos escravos de seus distritos nem informavam sobre a atuação desses caçadores de escravos (COUTINHO, 1850, p. 7). A reestruturação das Guardas Campestres, em 1850, é um indício de que a experiência não fora proveitosa.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a extinção das EGCs, no final da década de 1850, a captura dos escravos fugidos e o combate aos quilombos do Maranhão manteve-se a cargo dos capitães-do-mato, das tropas regulares provinciais (o CPPM) e das companhias de milicianos da Guarda Nacional (que deviam existir em todos os distritos). No entanto, as forças expedicionárias que eram organizadas para “bater” quilombos também podiam contar com a participação das tropas regulares nacionais: os soldados do 5º Batalhão de Infantaria e, nos anos de 1850 ao início dos de 1860, com as cinco Companhias de Pedestres que existiam na província. E não se pode esquecer dos chamados paisanos, homens livres e pobres, civis, não engajados a tropas regulares ou milicianas, que desde os tempos coloniais eram chamados a engrossar as fileiras das mais diversas ações bélicas: apresamento de índios para o cativeiro; disputas entre fazendeiros, entre outras. Todavia, o estudo desta temática está dando apenas seus primeiros passos na História do Maranhão. É preciso continuar esquadrinhando a documentação para se conhecer como atuavam os aparatos de policiamento escravagista aqui apresentados. Afinal, soldados, escravos fugidos, quilombolas e capitães-do-mato, todos saíam da grande massa de “desclassificados”, gerada pelo sistema escravista, que penalizava não só os escravos, mas também os livres pobres, preteridos no mundo do trabalho e vistos como “vadios” e “facinorosos”, por não se adequarem à lógica do trabalho compulsório então predominante8. Notas 1 Sobre o debate historiográfico acerca desse dualismo, ver QUEIRÓZ (2000), SCHWARTZ (2001), GOMES (2003) 2 Ver LARA (1996). 3 Os integrantes das Milícias e das Ordenanças serviam regidos pelo princípio de milícia. Segundo KEEGAN (1995, p. 242), esse princípio “ estabelece o dever de prestar serviço militar para todos os cidadãos aptos do sexo masculino; a falta ou recusa em prestá-lo leva geralmente à perda da cidadania”. Ou seja, todos os homens eram obrigados a pegar em armas para defender o rei e suas possessões ou a quem o representasse. Em muitas monarquias constitucionais e nos Estados democráticos do século XIX, esse princípio continuou a vigorar, agora em nome da defesa da vida e das propriedades dos cidadãos. 4 Ver também GOMES (2005). 5 O art. 2º do Código de Processo Criminal define que um distrito de paz compreende uma área fixada pela Câmara Municipal, contendo “pelo menos setenta e cinco casas habitadas” (BRASIL, Lei de 29 de novembro de 1832. CLI.). Com freqüência, a área de um distrito correspondia à de uma freguesia. 6 O conceito de liturgia é weberiano. Cf. WEBER (1999. v. 2. p. 233-287). Apropriome da interpretação que dele fez Fábio Mendes Faria (2004, p. 113), quando diz: “Entendemos por liturgia formas de prestação de serviços administrativos por notáveis locais com seus próprios recursos, não-remuneradas e voluntárias. Sua prática administrativa caracteriza-se pelo diletantismo, pela mobilização do

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_________________________________________________________________ Escravidão e policiamento no Maranhão em meados do século XIX prestígio pessoal, pelo domínio dos processos orais e pela busca constante de resultados consensuais negociados. As diretivas do poder central serão objeto de contínua tradução local pelos notáveis”. 7 Essa reforma se fez por meio da Lei nº. 261, de 3 de dezembro de 1841, e dos Regulamentos nº. 120 e 122, de 31 de janeiro e 2 de fevereiro, respectivamente (BRASIL. CLI). 8 Ver PRADO JUNIOR (1999), FARIA (2001).

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AS REPRESENTAÇÕES DA ESCRAVIDÃO NA IMPRENSA JORNALÍSTICA DO MARANHÃO NA DÉCADA DE 1880* Josenildo de Jesus Pereira**

RESUMO: No Maranhão, a partir da década de 1870, a agricultura mercantil de exportação escravista aprofundou o seu processo de decadência promovendo uma ruptura entre a racionalidade ideológica e a base sóciopolítica em que se fundamentavam as relações de dominação de classe. Nesse contexto, setores das classes dominantes, como estratégia ideológica, utilizaram-se do discurso baseado na idéia de uma crise com o objetivo ocultar esse processo e recompor o equilíbrio. A escravidão foi apresentada como o seu fator estrutural. A imprensa jornalística desempenhou uma ação significativa uma vez que os articulistas de periódicos, a partir de seus vínculos ideológicos com as classes sociais maranhenses, não só divulgaram bem como discutiram a respeito da escravidão no contexto da crise e apontaram as eventuais soluções para a mesma. Palavras chaves: Maranhão. Representação. Escravidão. Imprensa. Década de 1880 ABSTRACT: In Maranhão, from the 1870’s, the commercial agriculture with slaving base started to ruin, promoting the break between the ideological rationaliy and the social and political base that were the roots of the relations based on domination. In order to recompose the balance, sectors of the dominant classes used “the image of the crisis” as an ideological strategy. Slavery was presented as the structural factor. In the process of construction and dissemination of the arguments that were elaborated to persuade the other social classes about the “crisis”, the journalistic press had a significant action because, due to their ideological links with social classes from Maranhão, the news writers not only disseminated the news but also started a discussion about slavery in the context of crisis and showed some solutions for it. Keywords: Maranhão. Representation. Slavery. Press. Decade de 1880.

* Texto apresentado sob a forma de Comunicação na Mesa Redonda: “Controle Social e resistência escrava na crise do escravismo no Maranhão”, no VII Encontro Humanístico, de 19 a 23 de novembro de 2007. Trata-se de fragmentos da tese de doutorado defendida na USP em março de 2007. ** Professor do Depto. de História da UFMA. Doutor em História pela USP.

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1. INTRODUÇÃO A escravidão é uma das mais relevantes categorias explicativas do processo histórico brasileiro, e, em igual medida, as idéias que orientaram a sua abolição, porque elas imprimiram marcas até hoje presentes nas relações sociais, econômicas e culturais do país, sobretudo, no que se refere à experiência de vida da população negra. No Brasil, a escravidão chegou ao fim por meio da “Lei Áurea”, decretada em 13 de maio de 1888. No contexto da abolição, as condições sócio-econômicas de províncias brasileiras, sustentadas pelo trabalho escravo, não eram comum entre si devido o deslocamento do eixo dinâmico da economia brasileira da área que corresponde, hoje, ao Nordeste para o CentroSul do país. Esse fato se deveu à decadência econômica de províncias baseadas em lavouras tradicionais de cana-de-açúcar, algodão e tabaco, e à expansão paralela da produção de café em províncias do Centro-Sul, sobretudo na de São Paulo (PRADO JUNIOR:1971). O Maranhão integrava o conjunto de províncias do “Nordeste” decadente. As interpretações desse estado de decadência apontam como fatores geradores a contínua diminuição da mão-de-obra escrava provocada pelo fim do tráfico internacional de escravos e o refluxo de seus produtos exportáveis: algodão e açúcar, no mercado externo, dada à concorrência estrangeira. (MESQUITA: 1987) Nessas circunstâncias, parte dos grandes proprietários rurais via a sua fortuna entrar em franco declínio, sendo obrigados a venderem escravos e terras para pagarem dívidas contraídas com os donos do “capital mercantilescravista”, isto é, os ricos comerciantes, os quais, por meio de empréstimos, financiavam a produção. Alguns comerciantes e proprietários rurais instalaram fábricas têxteis nas cidades de Caxias, Codó e São Luís, a capital da província, e um Engenho Central no vale rio Pindaré com a perspectiva de industrializarem a área de grande lavoura. (CALDEIRA:1988). Nesse contexto, verifica-se uma densa migração de cearenses fugindo da seca para a província. Na década de 1880, essas características indicam o quanto era diferente as condições sociais e econômicas do Maranhão em relação às províncias do centro-sul do Brasil, sobretudo, a de São Paulo, na qual, em decorrência da lavoura do café, se desenvolviam processos de urbanização e industrialização permeados por um denso fluxo de imigrantes europeus. (PRADO JUNIOR:1971) Nas últimas décadas do século XIX, no Brasil, a escravidão era o tema de pauta de debate em diferentes lugares: cozinhas, alcovas, esquinas, bares, salões, igrejas, câmaras legislativas, mas, sobretudo, nos jornais. Neste artigo, se objetiva compreender o sentido de representações da escravidão naquele contexto de decadência da agricultura mercantil de exportação. Para tanto, se escolheu como aporte documental a imprensa jornalística por ser o fórum no qual, à época, o 32

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debate de qualquer tema tinha maior alcance. Em termos teóricos, definiu-se a dialética como método e classe social, ideologia e discurso como conceitos chaves da análise.

2. A IMPRENSA E A HISTÓRIA Para JONES (2005), os jornais têm múltiplas funções. Entre elas, a de ser um repositório de crônicas, de registros de eventos da vida diária e, sobretudo, um órgão de política que promove a livre discussão de uma diversidade de assuntos. Desse modo, eles são considerados documentos, nas ciências humanas, por serem um relevante material de pesquisa na medida em que fornece um conjunto de informações que possibilitam novas interpretações a respeito de temas tradicionais. De acordo com MOSCA (2002), em seus gêneros: político, religioso, literário ou pasquim, o jornalismo periódico capta, produz e faz circular idéias e sistemas de valores referentes a uma formação social, constituindo um espaço público de representação simbólica e, por isso, um circuito de interatividade imerso no jogo de forças sociais constituintes da experiência histórico-social de seus sujeitos. 2 No Maranhão, da década de 1880, tal como em décadas anteriores, havia jornais que se definiam como “noticiosos”, “políticos”, “religiosos” e “literários”, ao lado de outros que se especializavam em criticar os costumes; por isso, eram chamados de “imprensa baixa”. Muitos não eram publicados todos os dias. Alguns tiveram uma curta duração e outros a edição fragmentada. Além do mais, nem todos discutiam a escravidão. Em vista dessa circunstância, optou-se pela pesquisa em jornais diários e editados por empresas particulares, ou seja, periódicos não oficiais, ao se considerar que podiam apresentar um debate mais abrangente acerca do tema. Com base nesses critérios foram escolhidos três jornais diários: “Diário do Maranhão”, “O Paíz” e “Pacotilha”. O “Diário do Maranhão” foi fundado em 1855, por empresários, logo após o fim do tráfico internacional de escravos. Trata-se de um jornal do comércio, lavoura e indústria. A sua publicação era diária, exceto nos dias santos e feriados. Era composto por três folhas. Na primeira apresentava o Editorial e as notícias provinciais e nacionais. Na segunda folha se encontra a Secção Geral, na qual eram feitos os anúncios referentes à vida social e econômica da província, ou seja, o movimento de entrada e saída de navios do porto; a propaganda comercial; eventos sociais (festas, casamentos e óbitos), bem como os anúncios de venda, de compra e aluguel de escravos; de fugas; de homicídios praticados por escravos e de notícias a respeito de quilombos. Na terceira folha publicavam-se os anúncios gerais referentes à administração pública provincial. O jornal “O Paiz” foi fundado em 1863 pelo professor Themístocles Aranha, jornalista e editor do jornal por vinte anos. Até o número dezoito esse periódico circulava três vezes por semana, com o subtítulo de jornal católico, literário, comercial e noticioso. Depois passou a 33

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ser diário e editado com o subtítulo de “Órgão Especial do Comércio: órgão de Classe”. O jornal “Pacotilha” foi fundado pelo jornalista Victor Lobato, em outubro de 1880, no contexto do movimento abolicionista. A princípio, tinha como proposta ser um periódico popular e sem filiação político-partidária. Apresentava-se como um jornal abolicionista e republicano. Em janeiro de 1881 parou de circular para reiniciar em abril do mesmo ano, reformulado e de tamanho igual aos demais jornais diários. Em 1930, deixaram de editá-lo, para retomar em 1934 até o ano de 1938, quando deixou de circular em definitivo. Entre os seus redatores-chefes se destacam Antonio Lobo e João da Mata de Moraes Rego, filhos de famílias tradicionais de proprietários rurais, que se apresentavam como liberais. (IGNOTUS: 2001) Não é demais reiterar que nenhum discurso apresentado acerca de determinados temas é neutro em relação às condições históricas vividas por seus sujeitos, uma vez que os mesmos se orientam por um filtro ideológico. Desse modo, se lida com o jornal baseado na acepção de que não há um documento-verdade, objetivo, inócuo, pois, de acordo com CAPELLATO (1994:24) O documento é o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da sociedade que o produziu e também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver esquecido ou manipulado. Esse produto resulta de relações de forças conflitantes e do empenho de seus produtores para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem da sociedade.

No processo de leitura e análise das matérias apresentadas nos jornais, considerou-se que as palavras articuladas sob a forma de discursos incorporavam e expressavam visões sociais de mundo de pessoas concretas e, por isso, sempre carregadas “de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.” Nesse sentido, sublinha-se conforme BAKTHIN (2002:123) que

O discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio, etc. Qualquer enunciação por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política, etc).

Com base nesse pressuposto, pergunta-se o que estava subjacente nas idéias e os valores apresentados na imprensa jornalística acerca da escravidão num contexto de decadência da agricultura mercantil de exportação?. Parte-se da hipótese de que as representações da escravidão compuseram os fios de uma trama assentada na tese de uma crise moral, urdida como uma estratégia de ocultamento do processo de desagregação das classes dominantes maranhenses e elaboração de uma nova racionalidade de dominação. Vale ressaltar conforme CERTEAU (1996:99) que estratégia implica no “cálculo (ou manipulação) das 34

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_________________________________________________________________ relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado”.3 Nesse sentido, a idéia de uma crise moral decorrente da permanência da escravidão, além de neutralizar e isolar a luta dos escravos, em prol de sua liberdade e autonomia, em relação aos proprietários de escravos, ocultaria por um lado o processo de decadência em que se encontravam as classes dominantes em uma conjuntura em que a luta dos escravos, o abolicionismo e o desenvolvimento do capital industrial exigiam a configuração de outras condições históricas e sociais.

3. JORNAIS E AS REPRESENTAÇÕES DA ESCRAVIDÃO: sentidos e significados Na primeira metade do século XIX, segundo JORGE (1987), os jornalistas se caracterizavam pela ideologia e posição assumidas na política, daí o surgimento de uma imprensa doutrinária e combativa. Na segunda metade do século XIX, essa tendência se manteve, mas, sob as novas condições sócio-econômicas e políticas. O fim do tráfico internacional de escravos, a concorrência estrangeira e a retração de preços do algodão e do açúcar no mercado externo agravaram a agricultura mercantil maranhense e a situação financeira de proprietários rurais. Em tal conjuntura, a noção de uma decadência econômica era o diagnóstico geral. Acrescente-se a esse quadro, as fugas, os quilombos, as insurreições escravas e o movimento abolicionista desencadeado na Corte. Em vista disso, a necessidade de compreender e explicar o que estava acontecendo era imperativo. Com esse propósito, a escravidão e o sistema de coivara foram apresentados como os fatores geradores do atraso e da decadência econômica da província. Contudo, na década de 1880, a crítica moral da escravidão era o ponto central do debate. O comerciante Martinus Hoyer sublinhava: Cada cidadão devia contribuir direta ou indiretamente para a gradual extinção da dolorosa enfermidade que afligia a nação desde os tempos coloniais, e que havia entorpecido o progresso moral e material. Afinal, todos deviam trazer o seu quinhão, grande ou pequeno, para extirpar esse cancro social, e dentro em poucos anos levar avante a grande obra civilizadora. Assim, acabariam com a escravidão no Brasil, e isto sem violência, sem revolução política e quase sem abalos e sofrimentos. (Apud. VIVEIROS: 1992:500).

Desde a década de 1860, algumas reflexões acerca da técnica de produção eram publicadas em periódicos maranhenses. No jornal O Paiz (05.11.1861), publicou-se o artigo de “O Matuto”. Para ele, a lavoura estava agonizante entre a vida e a morte devido ao sistema de coivara e o trabalho escravo. O primeiro porque destruía o meio natural e o segundo por seu limite tecnológico e de produtividade, pois, como disse: “um feitor preto com algum cuidado e armado de bom chicote é quanto nos basta”. 35

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No artigo, “A Liberdade”, publicado no jornal Pacotilha (11.06.1881), o autor destacava que a escravidão era um “sono inglório” e a liberdade um “tesouro imenso”. Em O Paíz (20.02.1885) lia-se que a mesma era um “cancro maldito”. O Promotor Público, Benedito Leite (Pacotilha: 09.06.1883), formado na Faculdade de Direito de Recife, sublinhava que o trabalho escravo era condenável porque significava o “embrutecimento da inteligência, condição necessária da escravidão e causa infalível da ausência da arte, isto é, do progresso do trabalho”. Além do mais, era prejudicial aos proprietários, porque “o escravo não trabalhando para si perdia o gosto e a vontade, elementos poderosos da produção, levando-os a poupar-se ao trabalho o mais que pudesse perdendo-se assim parte de sua atividade”. Nessa perspectiva, os articulistas desse jornal endossavam o argumento de que a escravidão era o estágio da infância que tanto nos envergonha em face da civilização do século, que tem obstado a que marchemos na conquista do vellocino de oiro da igualdade humana há tantos séculos sonhada pelo homem do calvário (PACOTILHA: 02.04.1884).

Para o jornalista Themístocles Aranha (O Paiz, 22.02.1885) tratava-se de um “um funesto erro, uma planta venenosa que cresceu no solo da pátria, e precisava ser estirpada pelas raízes, enfim uma mancha no pavilhão nacional”. Mas, advertia que, embora sendo um erro de séculos, não poderia ser dissipada com rapidez, pois “a árvore estendeu raízes profundas por baixo dos alicerces do edifício social, se a arrancassem, violentamente, desabaria o edifício convulsionando o solo da pátria”. Nesse sentido, sublinhava:

[... ] Essa mancha que conspurca o lábaro da nação brasileira não poderá ser apagada com o emprego de reagentes fortes, porque com ela pode ser destruída a própria bandeira. Pede senhores, esta reforma muita calma, pede duas manifestações de coragem cívica - uma a de dominar e dirigir os sentimentos abolicionistas que trazem agitados tantos espíritos; a outra afirma francamente as nossas convicções, opondo resistência legal aos impulsos valentes desses sentimentos, e também aqueles que quiserem retroceder só assim se servirá patrioticamente ao país na perigosa situação em que se acha. E seja quanto antes tomada uma resolução, porque não pode a lavoura continuar no estado aflitivo em que se vê.

No jornal Diário do Maranhão (04.04.1888) a escravidão era representada como uma “secular instituição que tanto entorpeceu o país”. Qual era a lógica de tais representações quando se sabe que os proprietários rurais, por sua “consciência afetiva e moral” em relação à escravidão, em curto prazo, não se compreendiam vivendo sem a riqueza e o prestígio social conferido por ela, pois, a mesma, experimentada como uma necessidade e um valor era a linha do horizonte a partir da qual, sobretudo, os antigos produtores de algodão compreendiam o seu mundo. Daí as dificuldades em lidar com a perspectiva de sua extinção Um exame crítico dessas questões pode evocar significados de alcance mais profundo para além da aparência dessas idéias. Considerando-se as contradições de uma sociedade escravista em decadên36

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_________________________________________________________________ cia, a subseqüente quebra entre a sua racionalidade ideológica e a sua base social e política, se compreende essas representações como fragmentos de um discurso ideológico com um duplo objetivo. Por um lado, para promover o ocultamento da perda da vitalidade e do sentido dos nexos econômicos que asseguravam a reprodução das relações de dominação de que se beneficiavam os ricos comerciantes e, sobretudo, os proprietários rurais. Por outro lado, para adequar as classes dominantes às demandas como liberdade exigida pela mobilização escrava e o abolicionismo; o trabalho livre assalariado reivindicado pelo movimento do capital industrial impulsionado a partir da Europa Ocidental, bem como a recomposição das relações de dominação em novas bases, mas sem que perdessem o poder. Desse modo, as representações da escravidão adquirem inteligibilidade ao serem analisadas a partir das relações sociais vivenciadas, sobretudo, entre proprietários rurais e escravos em sua totalidade e, em particular, no contexto da decadência da agricultura mercantil de exportação. Considerando-se, a partir de THOMPSON (1987:09), que classe social é “um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência”, vale lembrar que os trezentos anos de escravidão criaram, no Brasil, uma experiência de vida, onde comerciantes e proprietários rurais enriqueceram e construíram um ethos cultural escravocrata com o qual não seria fácil prescindir a não ser quando a própria sobrevivência estivesse em jogo. Assim, tais representações da escravidão podem ser compreendidas como nuances do processo de construção de sua consciência de classe. De acordo com MARX, & ENGELS, F. (1961: 301) “o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política, e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência” Nesse sentido, as representações da escravidão, naquele contexto da decadência não podem ser lidas como simples idéias, uma mentira ou ilusão, pois se tratava de um conjunto de convicções, de orientações cognitivas orientadas por uma perspectiva social de classe, portanto de formulações ideológica considerando-se que

A produção de idéias, de representações, da consciência, está, diretamente, entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem como emanação direta de seu comportamento matéria”l. (MARX, 1985: 26)4

Nesse sentido, essas representações foram urdidas enquanto um discurso ideológico para servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes. De acordo com EAGLETON (1997), dizer que um enunciado é ideológico significa afirmar que está carregado de um motivo ulterior estreitamente relacionado com a legitimação de certo interesse em uma luta de poder. Não é possível 37

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desconsiderar que de concreto ocorria a desagregação das relações de dominação que sustentavam as classes dominantes. Desse modo, a idéia de uma crise geral provocada pela permanência da escravidão ocultava esse processo criando as condições para uma nova racionalidade de dominação de classe sem que as classes dominantes tradicionais fossem deslocadas dessa posição. Importa não esquecer que os ricos comerciantes e proprietários rurais era o público-alvo dos jornais Diário do Maranhão e O Paíz. O jornalista Temístocles Aranha, fundador do jornal O Paiz, era amigo do chefe do Partido Conservador, o senhor Augusto Olimpio Gomes de Castro. Essa situação os levou a limitar-se a fazer uma crítica moral a escravidão e a defenderem o seu fim de acordo com os seus interesses. No entanto, o discurso apresentado no Jornal Pacotilha, teve uma conotação crítica em relação à ideologia urdida pela escravidão, pois, seus articulistas se apresentavam como a vanguarda da modernidade do Maranhão defendendo o trabalho livre, a urbanização e fábricas como signos do progresso. Para destacar o conservadorismo das classes sociais tradicionais publicaram o artigo: O mal dos moços (PACOTILHA, 08.01.1883). Nele, o autor criticava a permanência do trabalho escravo no Brasil e as práticas sócio-culturais dele decorrentes. Ele destacou que todos os anos as academias, os institutos, os seminários e os liceus do país despejam no país centenas de rapazes com suas borlas à cabeça, seus diplomas em canudos, seus anéis de esmeralda, de rubi, de topázio, de opala e de safira. Esses “moços” eram advogados, magistrados, boticários, médicos, padres, diplomatas e engenheiros, ou seja, filhos das classes dominantes cuja riqueza era produzida pelo trabalho escravo. Naquela conjuntura, o autor, sublinhava era preciso empurrar com a respectiva força de seus pulsos: [...] O carroção do Estado na direção do seu destino social, sobre o trilho da ordem, montando a estrada, dando azeite ao sistema governativo, defendendo o precioso carro da hipérbole com a pena, com a língua ou com a espada contra salteadores noturnos e contra os inimigos famintos. 5

Supõe-se que o “destino social” era a sociedade do trabalho livre. A “ordem”, a permanência de relações de dominação, mas, organizada em outras bases a partir da abolição do trabalho escravo, isto é, o carro da hipérbole, o qual devia ser conduzido sob o controle dos protagonistas do progresso, ou seja, “os moços”, ao invés dos “salteadores noturnos” e “inimigos famintos”, isto é, os escravos com as suas diferentes formas de lutas como, fugas, quilombos e insurreições entre outras.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os articulistas dos jornais Diário do Maranhão, O Paiz e Pacotilha, a partir de suas relações com as classes sociais do Maranhão foram, também, os protagonistas da imagem da crise urdida como estratégia ideológica para ocultar o processo de desagregação das relações de 38

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_________________________________________________________________ dominação em que se sustentavam as classes dominantes. Para tanto, se apresentavam ao público leitor como se estivessem de posse de um “discurso competente” revestido de legitimidade científica sob a fórmula de um saber-poder constituído segundo a lógica de que, “não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância”. (CHAUÌ, 1997:07). Dessa perspectiva se credenciaram para tratar acerca da escravidão naquele contexto. A análise comparativa entre os discursos apresentados nesses periódicos indica que não diferiam entre si quanto à proposição de mudanças superficiais nas relações de dominação ainda vigentes, pois nenhum deles sugeriu um programa de transformações sociais que incorporasse à abolição do trabalho escravo uma reestruturação fundiária com base na defesa do fim da grande propriedade, o livre acesso a terra, a apropriação e usufruto da riqueza produzida pelos trabalhadores. Por fim, se espera que essa reflexão possa contribuir para que se relativize a tese da inadequação do negro à sociedade competitiva e se compreenda a realidade de exclusão social da população negra, no Brasil, como o resultado de um encaminhamento político e ideológico articulado num contexto de luta de classes, polarizado pelos proprietários rurais defendendo a permanência da concentração da riqueza e da terra, e pelos escravos em permanente luta pela liberdade para disporem, plenamente, de si e para si.

Referências: BAKTHIN, Mikhail M. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico nas ciências da linguagem. São Paulo: Hucitec/Annablume, 2002. CALDEIRA, José de R. C.. Origens da indústria no sistema agr0exportador maranhense (1875-1895): estudo micro-sociológico da instalação de um parque fabril em região do nordeste Brasileiro no final do século XIX. Mimeo. Tese de doutorado, São Paulo:USP, 1988. CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e História do Brasil, São Paulo: Ed. Contexto/Edusp, 1988. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução Ephrain F. Alves, 2ª ed., Petrópolis, RJ: Vozes. 1996. CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas, 7ª ed., São Paulo: Cortez, 1997. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução, Tradução. Luís C. Borges, Silvana Vieira, São Paulo: Boitempo/UNESP, 1997.

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IGNOTUS (Joaquim Serra). Sessenta anos de jornalismo: A imprensa no Maranhão (1820 – 1880), 3ª edição, São Paulo: Editora Siciliano, 2001. JONES, Alison. The many uses of Newspaper. University of Richmond Reports.http://www.oncampus.richmond.edu/academics/library/digital/ Documents, consultado em agosto de 2005. JORGE, Sebastião Barros. Os primeiros passos da imprensa no Maranhão (1821 – 1841). São Luís: PPPG/EDUFMA, 1987. MARX, Karl. A ideologia Alemã, São Paulo: Hucitec, 1986. MARX, K. & ENGELS, F. Obras escolhidas. Vol. 1. São Paulo: Editora Alfa-Omega. 1961. MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Mídia, poder e subjetividade, In: (Org.) Ghilardi, M. Inês & Barzotto, Valdir H., Nas telas da mídia, Campinas, SP: Alínea, 2000. pp. 7- 22. MESQUITA, Francisco de Assis Leal, Vida e morte da economia algodoeira no Maranhão: uma análise das relações de produção na cultura do algodão (1850 – 1890). São Luís: Editora da UFMA, 1987, PRADO JUNIOR, Caio. História Econômica do Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1971. THOMPSON, E. P. Formação da classe operária inglesa. 3. v. Volume I: A árvore da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio do Maranhão (16121895), 2º Vol., São Luís: Associação Comercial do Maranhão, 1992. ARANHA, Themístocles. Discurso na inauguração da segunda exposição do açúcar e algodão no dia 21 de fevereiro de 1885. O Paiz, São Luís, 22 de fevereiro de 1885. Coluna: Noticiário, p. 3. ELEMENTO Servil, O Paiz, São Luís, 20 de fevereiro de 1885. Coluna Publicações Gerais, p. 2 J. J. A Liberdade. Pacotilha, São Luís, 11 de junho de 1881. Coluna Publicações a pedido, p. 2. LEITE, Benedito. Discurso na cidade do Brejo por ocasião da entrega de cartas de liberdade a vinte cinco escravos pelo Juiz de órfãos. Pacotilha, São Luís, 09 de junho de 1883. Coluna: Publicações a Pedido, p. 2. O MAL dos Moços. Pacotilha, São Luís, 08 de janeiro de 1883. Coluna Variedades, p. 01. O MATUTO, A agricultura e a escola agrícola do Cutim. O Paiz, São Luís, 05 de novembro de 1864. Coluna Publicações Gerais, p. 2.

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A CONSTRUÇÃO DO PODER NA “REVOLUÇÃO” DE AVIS (1383-1385)* Adriana Maria de Souza Zierer** Resumo: Cada período histórico busca legitimar o poder dos governantes de uma determinada maneira. No período medieval o poder régio estava associado ao sagrado e ao Cristianismo. Neste sentido, com a eclosão do Movimento de Avis e a ascensão política de D. João, um bastardo que se tornou rei, era necessário a construção simbólica de uma imagem positiva ao fundador da nova dinastia. Desta forma, o cronista Fernão Lopes (1380-1460), uma espécie de historiador medieval, elaborou na Crônica de D. João I uma imagem do monarca como o eleito de Deus para governar Portugal. No contexto do Cisma do Ocidente, com dois papas na Cristandade, D. João é descrito como o “Messias de Lisboa”, partidário do papa de Roma, tido pelo cronista como o papa “verdadeiro”, daí ser favorecido pelo Criador nas lutas contra Castela, o que se expressava em vitórias nos conflitos bélicos. Segundo Lopes, o Mestre de Avis tinha o apoio dos “verdadeiros portugueses”, isto é, dos “miúdos” e lutava juntamente com o nobre secundogênito Nuno Álvares Pereira contra o Anticristo, representado pelo rei de Castela, que pretendia governar Portugal. Palavras-Chave: Movimento de Avis. Construção simbólica. Poder. Messianismo Abstract: Each historical period legitimates the governments’ power in a determinant manner. In medieval times royal power was associated to the sacred and to Christianism. With the occurrence of the Aviz’ Movement and the political ascension of John I, a bastard who became king, it was necessary a symbolic construction of a positive image to the new dynasty founder. Thus, the chronicler Fernão Lopes (1380-1460), a kind of medieval historian, elaborated in the Chronicle of John I an image of the king elected by God to rule Portugal. In the “Great Schism” context, with two popes in Christianity, John of Portugal is described as the “Messiah of Lisbon”, supporter of the Roman’s pope, pointed by the chronicler as the truthful pope, reason by which John of Portugal is favored by God in the fights against Castile, which was expressed in victories in the war conflicts. To Lopes, the Master of Aviz had the support of the truthful Portuguese people, this is, the little ones, and fought together with the non-primogenital noble Nuno Álvares Pereira against the Antichrist, represented by the king John of Castile, who intended to rule Portugal. Keywords: Avis’ Movement. Symbolic construction. Power. Messianism * Trabalho apresentado no VII Encontro Humanistico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa redonda “Temáticas da antigüidade e idade média à luz do passado e presente”. ** Professora Adjunta do Departamento de História e Geografia da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).

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1. INTRODUÇÃO D. João I atingiu o poder político em Portugal em 1383 através do Movimento de Avis, que deu início ao estabelecimento de uma nova dinastia no poder. A função do cronista Fernão Lopes uma espécie de historiador medieval, foi estabelecer uma legitimação simbólica para a ascensão do primeiro monarca da Dinastia de Avis. Para isso utilizou-se do sentimento de religiosidade da época em questão e transformou o primeiro monarca avisino no “Messias de Lisboa”, o qual através da ajuda divina conseguiu libertar Portugal do domínio de Castela com vitórias excepcionais nas batalhas de Atoleiros (1384) e Aljubarrota (1385). O contexto de ascensão de D. João ao poder em Portugal está relacionado à morte de D. Fernando (1367-1383), último monarca da Dinastia de Borgonha, que não possuía herdeiros masculinos para sucedê-lo. Seu governo havia enfrentado três guerras contra Castela da qual não fora vencedor de nenhuma. Por fim, o Tratado de Salvaterra dos Magos apontava que o descendente de sua filha, D. Beatriz e do soberano de Castela, D. João de Castela seria o novo monarca de Portugal, o que poderia levar o reino a cair nas mãos dos castelhanos. Este filho ainda não era sequer nascido e assim o trono deveria passar para a viúva do rei, D. Leonor, considerada por muitos como amante do Conde de Andeiro. Neste momento, D. João, Mestre de Avis e filho bastardo do irmão de D. Fernando, o rei D. Pedro (1357-1367), lutou contra esses dois grupos e assumiu o poder, primeiro como regedor, em 1383, e depois como rei, em 1385. Porém, como ele era bastardo, após a sua morte foi realizada a legitimação simbólica do seu governo através de vários escritos de forma que a nova dinastia criada por ele se firmasse no poder. O que garantiria a legitimidade do seu governo, segundo Lopes, não era apenas uma convenção dos homens, mas um desejo divino. Por isso, o autor na Crónica de D. João I constrói a imagem do “Messias de Lisboa”, isto é o soberano escolhido por Deus para governar e “salvar” o reino português do domínio castelhano, que foi associado pelo cronista a uma idéia de luta do bem contra o mal. O elemento que parecia confirmar definitivamente este argumento foram os resultados excepcionais das batalhas, apesar do efetivo menor do exército português e uma série de milagres contados pelo cronista Ao analisar o governo de D. João I, seu cronista Fernão Lopes afirmou que D. João representava o novo, isto é, o “amor à terra” e o desejo dos “naturais” ou a “arraia-miúda” em apoiar o reino e o Mestre de Avis contra o domínio de Castela, o que era contrário ao direito feudal vigente. Mas não havia ainda um “sentimento nacional” dentro de Portugal à época de D. João I, tanto que a maior parte da nobreza apoiou o rei de Castela, uma vez que, segundo o direito consuetudinário, seguido pelos nobres, esta era a norma correta a ser adotada. Até então havia uma fidelidade maior aos compromissos da nobreza enquanto 42

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grupo do que o compromisso com um território. Daí Fernão Lopes construir em seu relato a idéia de uma nobreza ideal, cuja ligação é com o reino e o monarca, personificado na figura de Nuno Álvares Pereira, em oposição à nobreza tradicional, acusada no relato de constituir os “enxertos tortos” da oliveira portuguesa. A justificativa de Fernão Lopes em torno de D. João como o eleito de Deus, isto é como o Mexias de Lisboa, conforme apresentado na sua crônica, tem por objetivo garantir-lhe a legitimidade. Em virtude de ser bastardo e por haver obtido o poder com base na força, era necessária uma legitimação simbólica do seu governo, pois embora tenha conseguido se eleger como rei nas Cortes de Lisboa (1385), D. Nuno, seu comandante militar, coagira os votantes a apoiarem D. João, o vencedor contra Castela na Batalha de Atoleiros (1384).

2. FERNÃO LOPES, LEGITIMADOR DA DINASTIA DE AVIS É significativo pensar que Fernão Lopes, cronista a serviço de uma dinastia, escreveu a Crónica de D. João I já após a morte do monarca (1433), entre os anos de 1440 e 1448. Seu relato é uma história encomendada que denigre alguns em detrimento de outros. D. João ficou conhecido com o epíteto de rei da Boa Memória e é possível acreditar que a memória das suas ações já fosse louvada quando estava vivo. Segundo Armindo de Sousa (s/d, p. 497), documentos da corte de poucos anos após a sua morte o intitularam como “Pai dos Portugueses”, o que parece confirmar tal hipótese. Assim, é importante perceber que o documento do cronista procura legitimar uma nova dinastia no poder, apresentando uma estratégia discursiva que não poderia ser contestada no campo simbólico, através dos milagres que o cronista descreve acerca das ações bélicas de D. João e D. Nuno, mostrando a preferência de Deus pelo Mexias e o consagrando no poder. Embora bastardo, palavra nunca mencionada pelo cronista, D. João foi rei pela “vontade divina” e por ser “filho de rei”, já que era filho do rei anterior a D. Fernando, o monarca D. Pedro (1357-1367). O historiador Jacques Le Goff ressalta o papel do documento escrito como um monumento que é utilizado em benefício dos dirigentes. Por isso, para o autor, “tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas” (LE GOFF, 1989, p. 13). Neste sentido fica claro que foi graças à propaganda empreendida principalmente através do discurso da corte, do qual a crônica é um dos elementos, que D. João I atingiu uma aura de salvador, como pretendia o seu relato. Assim é provável que a propaganda sobre os feitos do rei, enfatizando suas virtudes bélicas já estava sendo construída antes de sua morte, embora a sua crônica tenha sido redigida somente após a morte de D. João 43

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I (1433), entre os anos de 1440 e 1448, após o governo de seu filho D. Duarte (1434-1437) e durante a regência do infante D. Pedro. Após a confecção do documento, é possível que a propaganda tenha se consolidado e que a crônica fosse lida nos espaços públicos, como sugere Accorsi Jr. (1997, p. 103), de forma a transmitir os feitos engrandecedores do rei à população. Tal atitude contribuiu para a fixação de uma mensagem positiva dos feitos de D. João I, reforçando assim a “boa memória” do seu reinado e justificando frente à posteridade a ascensão da Dinastia de Avis ao poder. É importante salientar, portanto, que a produção de Fernão Lopes por se inserir na chamada “história encomendada” tem um posicionamento político. Assim, seu relato procurou denegrir alguns e beneficiar outros através de um discurso partidário e pró-avisino (FERREIRA, 1995, p. 117) . Por diversos motivos, Fernão Lopes ocupa um papel de destaque na literatura portuguesa. Em primeiro lugar, por ter adotado um modelo de trabalho diverso dos outros cronistas de seu tempo. Antes dele, os cronistas visavam fazer um elogio daquele que encomendava o documento, mas a partir de sua produção, outros elementos entraram em cena. Preocupou-se em aferir a veracidade das fontes e seu relato dos fatos é vivo, movimentado. João Gouveia Monteiro (1988, p. 111) chamou esta abordagem do cronista de linguagem ‘fílmica’, através da qual o cronista, munido da câmera da época, isto é, a sua pena, realizava a composição e sucessão de grandes cenários onde se desenvolviam os fatos. Fernão Lopes foi influenciado por diversos tipos de narrativa: hagiografias, sermões, romances de cavalaria. Sua narrativa liga-se à oralidade, escreve como que voltado a uma platéia. Há inclusive, várias passagens em que conversa com o leitor/ouvinte do seu relato, afirmando que não se estenderia muito sobre determinado assunto para não cansá-lo. Outro elemento importante foi a preocupação do cronista em mostrar a participação de outros segmentos sociais que não apenas os ‘grandes’. Assim a narrativa dá grande atenção aos ‘miúdos’, o que permite uma maior compreensão da sociedade do seu tempo. Ele próprio teve uma origem modesta, sendo proveniente talvez de uma família de mesteirais ou de camponeses que viviam nos arredores de Lisboa. Casou-se também com uma senhora de origem simples e uma sobrinha sua era casada com um sapateiro (MARQUES, 1976, p. 56-57). Daí provavelmente provém a sua simpatia pelos “miúdos”, os quais demonstraram o “amor pela terra” na Crónica de D. João I, uma importante justificativa para que o Mestre de Avis alcançasse o poder político. D. João por sua própria condição de filho ilegítimo, pertencente a uma ordem religiosa (era Mestre de Avis) e por isso não podendo casar-se (não era o candidato ideal para ser rei (REBELO, 1983, p. 53). A nova dinastia era marcada pela ilegitimidade. Daí a necessidade do cronista encarregado da memória do seu fundador para elaborar uma justificativa baseada principalmente nos sinais divinos ex44

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pressos principalmente nas vitórias guerreiras para justificar o novo governo.

3. ELEMENTOS JUSTIFICADORES DO “MESSIAS DE LISBOA” O elemento a ser ressaltado neste trabalho sobre a Crónica de D. João I é a relação entre a religiosidade e a sua apropriação pelo poder político. Desta forma, através do relato de Fernão Lopes, D. João é apresentado como o Messias de Lisboa, o exemplo de bom cristão capaz de salvar o reino português do domínio castelhano, o que garantiria no futuro também a salvação espiritual dos habitantes de Portugal. Quanto a D. João de Castela é descrito pelo cronista como mau cristão, tendo, portanto, aproximações com o diabo e personificando a imagem do Anticristo, isto é, aquele que vem destruir o reino de Deus e que na Bíblia pode ser representado por Satanás, por um dragão e por um tirano. Os termos Anticristo e Messias aparecem citados explicitamente na primeira parte da crônica de Fernão Lopes, respectivamente nos capítulos 63 e 123. De acordo com o historiador Nieto Soria o messianismo político está ligado a um rei escolhido por Deus, com ligações com os reis do Antigo Testamento. Segundo Soria, ele é considerado um escolhido para realizar uma determinada tarefa e por isso age como um instrumento do divino. Na obra de Fernão Lopes, a função de D. João é clara: expulsar os castelhanos que representam o Anticristo e apoiavam o “anti-papa” de Avignon e levar o reino à salvação. Este monarca é esperado para realizar uma empresa há muito desejada e tem a seu favor a eleição divina. Elementos sobrenaturais estão ligados à sua figura, como as profecias e os sonhos. Um exemplo é o sonho de Frei da Barroca, um religioso inspirado por Deus que sonhou que D. João seria o rei de Portugal. É importante também mencionar o contexto histórico do governo de D. João. O final da Idade Média é caracterizado pelo medo do fim dos tempos. Fome, guerras, aumento da exploração sobre os pobres, revoltas e a Peste Negra levaram muitos a temerem a ira Divina e o fim próximo. Além disso, entre os anos de 1378-1417 ocorreu o Cisma do Ocidente, com dois papas, um em Roma, outro em Avignon e num determinado momento por mais um terceiro papa, em Pisa. Toda essa conjuntura gerou o apego de alguns por idéias milenaristas sobre a chegada de um governante salvador ou Imperador dos Últimos Dias que lutaria contra o Anticristo e estabeleceria um período de felicidade na terra antes do Juízo Final. Essas idéias eram compartilhadas por alguns grupos como os franciscanos espirituais, favoráveis aos ideais da pobreza de Cristo, fraticelli, franciscanos radicais que se tornaram heréticos, e beguinos, comunidade religiosa suspeita de heresia. Eles se inspiravam no pensamento do monge calabrês Joaquim de Fiore (m. 1202) que pregava a 45

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existência de três Idades, a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo, sendo a última Idade considerada uma era de renovação, na qual os monges conduziriam os humanos a uma nova era de felicidade. Os escritos de Joaquim após a sua morte foram considerados heréticos, mas tiveram grande importância e o monge também falava bastante do Anticristo, que viria assolar a terra antes da era de felicidade, que para ele começaria em 1260. Utilizando esta expectativa messiânica de alguns elementos da sociedade portuguesa, como os beguinos e franciscanos espirituais, o cronista Fernão Lopes apresentou na sua crônica, a ascensão de D. João ao poder como um combate entre o bem e o mal. Pelo fato de D. João apoiar o papa de Roma, tido pelo cronista como o papa legítimo e de D. João de Castela apoiar o papa de Avignon, este monarca será intitulado pelo cronista como “herético e cismático” e suas ações apresentadas como condenáveis. Já as de D. João de Portugal terão a proteção de Deus, o que é demonstrado quando um santo, Frei da Barroca toma uma embarcação para Lisboa e faz a previsão de que o Mestre de Avis e os seus seriam os reis de Portugal (FERNÃO LOPES, 1990, v. 1, p. 49). Um primeiro indício da proteção divina ao eleito de Deus pode ser mostrado quando Fernão Lopes descreve o Cerco de Lisboa, realizado pelos castelhanos em 1384. De acordo com a lógica do cronista, por serem pecadores os portugueses deveriam ser colocados à prova para ver se mereciam realmente a vitória contra os maus cristãos. A cidade de Lisboa é vista como possuindo analogias com o povo português e com a Virgem Maria, e espera ser salva por D. João. Entre os milagres que apontam para a vitória dos portugueses, estão a aparição de homens com vestiduras alvas de anjos ao exército português e a chuva de cera que cai do céu (FERNÃO LOPES, 1990, v. 1, p. 213). Num primeiro momento, os portugueses rezam a Deus e parece que suas preces não são atendidas. A fome é grande entre a população. Numa resposta divina, uma peste é enviada somente ao exército castelhano. Mesmo ao misturar prisioneiros portugueses com os infectados, nada acontece e por fim, pelo fato de a esposa do rei castelhano ser infectada, este baixa o Cerco, o que representa a vitória portuguesa nas tribulações e seu merecimento em ser salva pelo escolhido de Deus, D. João. Este é apresentado pelo cronista como seguidor do “Evangelho Português”, sendo ele, assim como Nun’Alvares Pereira vistos como representantes do papa de Roma e que por isso, defendiam o reino de seus inimigos e para manter esta fé “espargiram seu sangue até a morte” (FERNÃO LOPES, 1990, v. 1, p. 340). D. João é comparado no relato a Cristo e a Moisés e D. Nuno a S. Pedro (FERNÃO LOPES, 1990, v. 1, p. 342). Desta forma, o reato deixa bastante claro a unidade entre o Mestre de Avis e seu comandante militar, capazes de, amparados um no outro, construir uma sociedade baseada em novos laços como a lealdade a um território, graças ao apoio de nobres não primogênitos, como era o caso de D. Nuno (ZIERER, 2004, p. 174). É importante 46

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lembrar ainda o papel de Moisés como aquele que levou o povo prometido de Deus à terra onde abundaria leite e mel e portanto o de D. Nuno como condutor de Portugal às vitórias contra o exército de Castela. As tribulações enfrentadas pela cidade de Lisboa, através da fome, da sede, da guerra e da peste (embora este último tormento só tenha atingido os castelhanos) poderiam significar um curto estabelecimento da vitória do Anticristo na terra, representado pelo papa de Avignon e seu apoiante, D. João de Castela. Porém a vitória de D. João representada pelo descerco pode ser entendida como o estabelecimento de uma nova sociedade, um novo período de felicidade na terra, governado por um rei escolhido de Deus (uma espécie de Imperador dos Últimos Dias, que combate o Anticristo) até o reaparecimento do Salvador, o Filho de Deus, separando definitivamente os pecadores dos salvos no Juízo Final. Este rei terreno pertencia, segundo a visão do cronista, também a uma dinastia eleita, a Dinastia de Avis. Portanto, Fernão Lopes consegue o estabelecimento de uma imagem positiva para D. João e sua dinastia, ancorada na religiosidade e na idéia de que D. João representa o bem, o cristianismo, o salvador de Portugal e aquele que estabelece um novo tempo, que o cronista intitula como a Sétima Idade, no qual elementos de categoria inferior seriam nobilitados (FERNÃO LOPES, 1990, v. 1, p. 350). Além disso, de acordo com o cronista seria iniciado também um período de justiça e de atendimento aos anseios dos “humildes”. Ao contrário de outros pensadores medievais como Santo Agostinho, Beda e Joaquim de Fiore, que vêem a sexta idade como um período de decadência próximo do fim dos tempos, o cronista apresenta a Sétima Idade como um “novo tempo” de felicidade na terra. A seguir, Fernão Lopes no seu relato atribui a uma autoridade religiosa, o frade franciscano Rodrigo de Cintra, a explicação dos acontecimentos do Cerco. O frei faz comparações bíblicas e aponta que se os castelhanos tentassem investir outra vez contra Portugal teriam uma fragorosa derrota. Portanto, a segunda investida do exército castelhano pode ser vista como a segunda tentativa de domínio do Anticristo, que, segundo o Apocalipse, precederia o Juízo Final. De acordo com o Apocalipse, os povos de Gog e Magog viriam junto com o Anticristo para preparar o seu advento. Pouco depois, porém, são derrotados pelos santos e mártires e quarenta dias após a sua morte viria o Juízo Final e a Parusia (FRANCO JR., 1999, p. 44). O cronista convenientemente estabelece o período de felicidade com a época introduzida por D. João I. No entanto, após o estabelecimento do governo joanino, instaurando o início da Sétima Idade, não haveria nenhuma outra modificação social, pois o cronista não pretende um rompimento com a ordem estabelecida, mas sim justificar o novo grupo político que ascendeu ao poder, a Dinastia de Avis. Na segunda parte da crônica, quando D. João já foi aclamado como rei pelas cortes de Coimbra é contado o episódio que vai legitimar pelas armas a vitória portuguesa contra Castela: a Batalha de 47

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Aljubarrota (1385). Antes da batalha, pode-se notar a preocupação de D. João na “diminuição” dos pecados dos habitantes de Portugal, proibindo práticas pagãs, como adivinhações e leitura de sortes, entre outras, além de encomendar procissões, visando agradar a Deus e receber o merecimento da vitória (FERNÃO LOPES, 1990, v. 2, p.101). Teoricamente, segundo o relato, havia a impossibilidade de vencer a batalha pelo fato de o exército português ser muito menor. Nos números exagerados de Fernão Lopes, os portugueses teriam 6.500 homens, enquanto os castelhanos 30.000. Já os historiadores como Oliveira Marques afirmam que os castelhanos eram entre 17.500 e 19.000 homens e os portugueses 7.000 (MARQUES, 1986, p. 530). Segundo a descrição do cronista, tudo no acampamento castelhano abundava: além dos homens, os armamentos, bebidas, conservas, o que indicava pelos fatos que o rei de Castela tinha todas as possibilidades para vencer a batalha. Mesmo assim, o monarca é mostrado com atitudes cruéis, como a de ter mandado decepar e cortar as línguas de homens, mulheres e crianças e de ter ateado fogo a igrejas, como a de S. Marcos, em Trancoso (FERNÃO LOPES, 1990, v. 2, 64). O cronista enfatiza várias vezes que apesar desta superioridade bélica, o rei de Castela invadia Portugal sem ter direito de fazê-lo, por não ter respeitado o Tratado de Salvaterra dos Magos, o qual previa que somente o seu descendente e da rainha D. Beatriz, filha do falecido D. Fernando, poderia ser o rei de Portugal. Tudo isso como para indicar que a despeito da sua vantagem, a vontade divina acabaria por pender para o lado de Portugal. É bastante mencionado no texto a questão de que o “juízo de Deus” seria feito. O texto enfatiza ainda as rezas de cada um dos lados, os portugueses recebendo a comunhão pelo lado do papa Urbano de Roma (FERNÃO LOPES, 1990, v. 2, p.103) e os castelhanos pelo lado do papa de Avignon. Segundo o cronista: “E dois bispos que ali vinham e alguns frades pregadores outorgavam indulgências da parte do antipapa a todos os que contra os portugueses tomassem armas ou dessem ajuda daquilo que tivessem para lhes fazer a guerra” (FERNÃO LOPES, 1990, v. 2, p.104). Porém os portugueses fiavam-se na mãe de Deus. Por a luta ocorrer na véspera da Assunção da Virgem Maria, os portugueses rezaram e fizeram o jejum, o que demonstrava a sua devoção (FERNÃO LOPES, 1990, v. 2, p. 93). A vitória nas armas que os portugueses tiveram representa, aos olhos do cronista, o próprio milagre e a confirmação de todos os fatos precedentes da eleição divina de D. João por Deus. Segundo Oliveira Marques (1986), a vitória portuguesa ocorreu porque o exército castelhano estava desmotivado e acreditava que a vitória já era certa. Quanto ao exército português, estrategicamente se posicionou melhor no planalto, construiu uma paliçada defensiva e abriu fossos e outras paliçadas, impedindo o avanço da cavalaria castelhana. Além disso, também contribuiu com a vitória o próprio desejo dos portugueses de vencer o combate. 48

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme foi possível observar Fernão Lopes construiu com sucesso a imagem de D. João I como salvador de Portugal, exemplo de cristão modelar e apoiante do papa de Roma. O elemento que consolidou esses feitos foi a batalha de Aljubarrota (1385), marco capaz de consolidar a imagem de D. João como bom governante, garantindo-lhe frente à posteridade o epíteto de “Rei da Boa Memória”. Os feitos bélicos, somados a tomada de Ceuta em 1415, confirmaram a figura de D. João como um rei poderoso nas armas e escolhido por Deus para governar. Para além dos efeitos positivos da conquista nas armas, houve também a vitória simbólica dos escritos de Fernão Lopes para consolidar uma imagem positiva da Dinastia de Avis através da figura de seu primeiro monarca. Mas é importante lembrar que o governo joanino foi marcado por aumento de impostos, as sisas, guerras prolongadas (a paz com Castela só foi assinada em 1411) e reclamações dos pequenos contra os abusos dos grandes. De forma que, a Sétima Idade tão prometida nos escritos de Fernão Lopes à arraia-miúda, aos “verdadeiros portugueses” que lutavam por sua terra, Portugal, ficou relegada, na prática, a um outro plano imaginário, que seria o da vida após a morte onde os “miúdos” poderiam finalmente encontrar a verdadeira felicidade. Referências: ACCORSI Jr., Paulo. “Do Azambujeiro Bravo à Mansa Oliveira Portuguesa”. A Prosa Civilizadora na Corte do Rei D. Duarte (14121438). Niterói: Universidade Federal Fluminense, Dissertação de Mestrado, 1997. AMADO, Teresa. Fernão Lopes, Contador de História. Lisboa: Editorial Estampa, 1991. DELUMEAU, Jean. Mil Anos de Felicidade. Uma História do Paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. DESROCHE, Henri. Dicionário de Messianismos e Milenarismos. São Bernardo do Campo: UMESP, 2000. FERNÃO LOPES. Crónica de D. João I . Lisboa: Livraria Civilização, 1990, 2 vols. FERREIRA, Maria da Conceição. “Imagens dos Reis na Cronística Medieval”. In: MORENO, Humberto Baquero (coord.). História de Portugal Medievo. Lisboa: Universidade Aberta, 1995, p. 15-19. FRANCO JR., Hilário. O Ano mil. Tempo de Medo ou de Esperança? São Paulo: Companhia das Letras, 1999. LE GOFF, Jacques. Memória. In: ROMANO, Ruggiero. (Dir.). Memória/ História. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1989. MARQUES, A.H. de Oliveira. “Fernão Lopes”. In: SERRÃO, Joel (Dir.). Dicionário de História de Portugal. Porto: Livraria Figueirinhas, 1976, p. 56-57. 49

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ALGUNS VALORES QUE PERMANECEM: a idade média e os dias atuais* Neila Matias de Souza ** Resumo: Já estando no século XXI a sociedade atual não pode negar as raízes de seus valores nascendo da Idade Média. Nesse longo período que durou mil anos, o homem medieval estava impregnado de noções, conceitos e virtudes relacionados ao caráter intrinsecamente religioso daquela época. Portanto, sua vida estava pautada em valores considerados fundamentais por todos aqueles que pertenciam àquela formação social. Isso pode ser evidenciado na construção do cavaleiro ideal – indivíduo pertencente à nobreza e que compartilhava de seus valores e normas de conduta – que deveria possuir os valores contemplados pela Igreja como essenciais na constituição de um bom cristão. É isso que é possível observar numa fonte do século XIII O Livro da Ordem de Cavalaria, de Ramon Llull, e numa fonte do ciclo arturiano A Demanda do Santo Graal. Entre os valores tidos como ideais nesses dois documentos estão a justiça, a caridade, a lealdade, a castidade, a fidelidade; o cavaleiro deveria segui-los e tornar-se um exemplo para a comunidade. Todas essas virtudes ainda hoje continuam muito presentes em nosso cotidiano, a partir da análise dessas duas obras iremos relacionar os valores medievais com os valores de nossa sociedade. Palavras-chave: Idade Média. Valores. Cavaleiro. Abstract: As being in the last century the current society cannot deny the roots of its values which come from the Middle-age. During that one-thousand year period, the medieval man was full of notions, concepts and valves related to the extremely religious character at that time. Therefore, man’s life was based on values considered like fundamental for everybody who belonged to that social background. It can be emphasized on the construction of the ideal knight – individual who comes from nobles and who shared his values and life’s rules – who should have the values required by the Church like essential in the formation of the Good Christian. This is observed on a source from the XIII century O Livro da Ordem de Cavalaria (Book of Chilvary Order) and A Demanda do Santo Graal (The Quest for the Holy Grail). Among the ideal values presented on these two documents we have: justice, charity, loyalty, chastity, fidelity; the knight should follow those values and become an example for the community. All those values are still very present on days, and from the analysis of those two books we will relate the medieval values to those of our society. Keywords: Middle Ages. Values. Knight. * Trabalho apresentado no VII Encontro Humanistico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa redonda”Temáticas da antigüidade e idade média à luz do passado e presente”. **Graduanda em História pela Universidade Estadual do Maranhão. Bolsista do CNPq/PIBIC/UEMA. Prêmio de Melhor Bolsista da Área de Ciências Humanas no XIX Seminário de Iniciação Científica da UEMA (2007). Orientadora: Prof. Dra. Adriana Maria de Souza Zierer – Dept. História e Geografia/UEMA

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Neila Matias de Souza _________________________________________________________________

1. INTRODUÇÃO Este trabalho se propõe a iniciar uma reflexão acerca de alguns valores que ainda se fazem presentes em nossa sociedade como resquícios do medievo. Entendemos que é interessante também sinalizar um ponto a respeito da Escola dos Annales. Não é novidade a revolução e a influência que esse movimento causou na forma de se conceber, entender e escrever a história. Com nomes que são referência para qualquer pesquisa historiográfica como Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernando Braudel, Jacques Le Goff e Georges Duby entre tantos outros, a Escola dos Annales pôde ao lado de sua bandeira por uma interdisciplinaridade vislumbrar novos horizontes para a pesquisa histórica. Mas ao lado de toda essa ovacionada revolução causada pelos Annales, houve também algo de negativo. É o que nos adverte Clóvis Pereira dos Santos, segundo ele as diversas linhas de pesquisa provocaram bairrismos entre si, fazendo com que uma anulasse a outra para poder justificar a sua própria existência, é o conceito psicanalítico do narcisismo das pequenas diferenças. (SANTOS, 2005, p. 40). Percebemos que a luta por uma história da Idade Média aqui no Brasil vem se configurando promissora, pois tem conseguido alguns avanços significativos como a existência de diversos grupos de pesquisa1 e associações como a Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM). Muito se discute sobre a importância da história medieval para o contexto brasileiro, e é exatamente nesse momento que observamos os bairrismos de que fala Clóvis dos Santos e como isso atrapalha o diálogo de uma história que se quer totalizante. Ao contrário do que se pensa não só o Brasil, que foi colonizado por Portugal (país com intensa experiência medieva), mas o Ocidente como um todo tem muito ainda de medievalidade, pois somos herdeiros dessa civilização cristã ocidental que foi a Idade Média. É o que nos lembra Jacques Le Goff: Esta longa Idade Média é, para mim, o contrário do hiato visto pelos humanistas do Renascimento e, salvo raras excepções, pelos homens das luzes. É o momento da criação da sociedade moderna, de uma civilização moribunda ou morta sob as formas camponesas tradicionais, no entanto viva pelo que criou de essencial nas nossas estruturas sociais e mentais. Criou a cidade, a nação, o Estado, a universidade, o moinho a máquina, a hora e o relógio, o livro, o garfo, o vestuário, a pessoa, a consciência e. finalmente, a revolução. (LE GOFF, 1979, p.12).

Com isso, apresentaremos aqui alguns valores presentes em duas fontes medievais que tratam de algo que ainda hoje envolve o imaginário das pessoas: os cavaleiros do tempo da Idade Média.

2. A CAVALARIA E SEU INÍCIO A cavalaria tornou-se uma instituição na Idade Média com uma ética e ideologia próprias que a fizeram ainda mais notável para a 52

Alguns valores que permanecem: a idade média e os dias atuais _________________________________________________________________

posteridade. É por isso que uma das imagens mais recorrentes da Idade Média é a dos cavaleiros, eles são concebidos como homens corajosos, virtuosos, nobres. Todas essas características são de fato observadas, no entanto, a última merece algumas considerações. Nem sempre a cavalaria dos tempos medievais foi como a conhecemos hoje, no seu início um aspirante a cavaleiro tornava-se um membro desse grupo apenas com o recebimento das armas. Isso é bem explicitado por Jean Flori, segundo esse autor os antigos rituais de entrega das armas eram um sinal de poder referindo-se aos imperadores, reis, depois príncipes quando atingem a idade das responsabilidades (FLORI, 2005, p.34). No que diz respeito aos cavaleiros, o autor afirma não conhecer rituais de investidura especificamente destinados aos cavaleiros antes do século XII. “A cavalaria, antes dessa data, ainda está no limbo e os cavaleiros são apenas guerreiros, subalternos na maioria, que combatem por seus mestres e dos quais se exige somente força física, coragem, fidelidade e obediência. Essas são virtudes de base da futura cavalaria” (FLORI, 2005, p. 36). Franco Cardini também sinaliza para essa questão quando afirma que: A tendência para a especialização da profissão das armas e, em seguida, para a desmilitarização geral das sociedades romano-bárbaras (...) fez com que as tradições antigas se mantivessem apenas nos grupos de elite que eram as companhias de soldados agrupados em torno de príncipes; e a entrega solene das armas tornara-se mesmo patrimônio dos rituais que assinalavam o acesso dos jovens príncipes ao mundo do poder. São estas as bases da cerimônia que nos habituamos a definir como “revestir de armadura” e que, juntamente com o combate a cavalo e os sinais exteriores da sua condição e do seu tipo de vida, teriam contribuído precisamente para a definição do cavaleiro. (CARDINI, 1989, p. 58).

Como podemos perceber, os primeiros tempos dessa cavalaria não foram circundados por uma áurea de fantasia e deslumbramento. Inicialmente os guerreiros que combatiam nessa corporação eram de origem pobre, muitos não tinham como sobreviver e viam na atividade guerreira uma possibilidade de conseguirem melhores condições de vida e ascender socialmente. Desse modo, nem sempre aqueles que compunham a cavalaria eram de origem nobre. Essa instituição só se torna exclusividade da nobreza no final do século XII, quando este grupo social se apropria da cavalaria, passando a retirar dela seus futuros membros. Então, de acordo com Léopold Génicot, nobreza e cavalaria fundem-se e a qualidade de pertencimento à ordem de cavalaria passa a ser hereditária (GÉNICOT, 2006, p. 284-286).

3. A ORDEM DE CAVALARIA Uma das fontes primárias referidas no início desse texto é O Livro da Ordem de Cavalaria de Ramon Llull. Esse autor foi um filósofo catalão 53

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que viveu no século XIII e foi educado na corte do rei Jaime I, de Maiorca, daí a sua influência para os assuntos ligados a atividade guerreira. Após ter sido convertido ao Cristianismo devido à visão repetida por cinco vezes de Cristo crucificado, Llull deixa todos os seus bens e família para seguir sua missão de conversão dos infiéis e de criação de um livro que seria o maior de todos e serviria de manual aos cavaleiros: - Amável filho – disse o cavaleiro – eu estou perto da morte e meus dias não são muitos, ora como este livro foi feito para retornar a devoção e a lealdade e o ordenamento que o cavaleiro deve ter para manter sua Ordem, por isso, belo filho, levai este livro à corte aonde ides e mostrai-o a todos aqueles que desejam ser novos cavaleiros. Guardai-o e apreciai-o se amais a Ordem de Cavalaria. (LLULL, 2000, p.11, grifo nosso).

Llull escreve essa obra que é uma espécie de manual pedagógico de como se tornar um bom cavaleiro numa época em que a cavalaria estava cada vez mais afastada dos ideais cristãos. Nesse sentido, ele afirma que um aspirante a cavaleiro só se tornaria um “bom cavaleiro” se seguisse os valores cristãos. Para isso o filósofo elenca algumas virtudes necessárias àqueles que desejavam ser bons cavaleiros, entre essas virtudes estão: justiça, caridade, lealdade, fidelidade, bondade, castidade e honra. Sendo possuidor dessas virtudes o guerreiro tornava-se, então, o cavaleiro ideal. Ramon Llull constrói esse ideal de cavaleiro numa época em que a cavalaria se apresentava em desprestígio quanto aos valores da Igreja, que vinha já há algum tempo tentando controlar o espírito agressivo desses guerreiros. A violência dessa época era provocada principalmente pelas guerras privadas e disputas de poder entre famílias. Para controlar a agressividade desses homens que atingia principalmente os mais necessitados, pobres e indefesos, a Igreja promovia alguns movimentos de contenção da violência da atividade guerreira como a Paz de Deus e a Trégua de Deus. A primeira se referia a não atacar alguns locais como, santuários, hospitais, Igrejas e pessoas como, padres, viúvas, donzelas e pobres indefesos, caso isso fosse desobedecido a pena era de excomunhão. Já a Trégua de Deus não permitia o combate em determinados dias da semana: da tarde de quinta-feira à tarde de domingo. Desse modo a Igreja tentava controlar aquilo que era impossível proibir. “Assim, embora sem proibir tout court a guerra (o que seria impensável, numa sociedade em que se verificava uma supremacia de guerreiros), limitava-se a guerra o mais possível”. (CARDINI, 1989, p. 59). E nesse processo de envolvimento da Igreja com a atividade guerreira, a instituição eclesiástica se utiliza de algo muito mais eficaz para tentar controlar a cavalaria: a transformação do ritual de investidura em um sacramento litúrgico comandado pela voz protetora da Igreja. Essa sacralização do adubamento do novo cavaleiro pode ser observada na seguinte passagem do Livro da Ordem de Cavalaria: O escudeiro diante do altar deve ajoelhar-se e levantar seus olhos, corporais e espirituais, a Deus e suas mãos a Deus. E o cavaleiro deve cingir-lhe a espada, para significar castidade e justiça; e, em significação

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Alguns valores que permanecem: a idade média e os dias atuais _________________________________________________________________ de caridade deve beijar seu escudeiro e dar-lhe uma bofetada para que se lembre disso que prometeu e do grande cargo a que se obriga e da grande honra que recebe da ordem de cavalaria.(LLULL, 2000, p.73 ).

Desse modo, a cavalaria passa a ser uma ordem guiada pelos ideais da Igreja especialmente no processo de investidura do cavaleiro, fazendo com que esse se aproxime cada vez mais das virtudes cristãs.

4. UMA DEMANDA PELA FÉ A Demanda do Santo Graal é uma fonte medieval que integra o ciclo arturiano dos romances de cavalaria. Nesse romance em prosa constituído pela reunião de vários textos com a mesma temática e sem um autor definido, podemos perceber a conjugação de vários elementos da cavalaria medieval como, por exemplo, a busca de aventura, a proteção de donzelas em perigo, a lealdade entre companheiros de batalha. O único original que nos restou dessa Demanda portuguesa é o códice 2594 da Biblioteca Nacional de Viena (MONGELLI, 1992, p.55). Esse documento, na verdade, é a tradução de um outro original, apreende-se daí as dificuldades a respeito das origens dessa chamada “matéria da Bretanha”: Não só por causa da enorme quantidade de textos, muitos deles ainda inéditos, como também pelas numerosas versões de uma mesma obra, cada uma delas desfigurando o exemplar anterior, ao gosto do copista, que naqueles tempos de dava o direito de interferir na narrativa, restringindo-a ou ampliando-a em nome de motivos nem sempre claros. (MONGELLI, 1992, p.55).

Essa novela de cavalaria é uma narrativa sobre a busca, uma demanda, dos cavaleiros de Rei Artur pelo Graal, uma espécie de vaso sagrado, no qual se acreditava conter o sangue de Cristo. Como o reino de Camelot governado por Rei Artur estava passando por grandes dificuldades, os cavaleiros da Távola Redonda2 partem em busca do Santo Graal para recuperar a prosperidade em Camelot. Entre esses cavaleiros que partem em busca do Graal, há o cavaleiro esperado por todos: Galaaz, aquele que traria a paz e a prosperidade para o reino de Artur: “Rei Artur, eu te trago o cavaleiro desejado, aquele que vem da alta linhagem do rei Davi e de José de Arimatéia, pelo qual as maravilhas dessa terra e das outras terão fim”. (MEGALE, 1999, p. 20). Embora todos os outros cavaleiros da corte arturiana como Lancelot3, Erec, Ivain fossem homens honrados, corajosos e valentes eles não possuíam a principal virtude para atingir o Graal: a castidade e a virgindade. Somente Galaaz a possuía e era, portanto, o cavaleiro ideal, seguidor dos valores cristãos e dos ideais da Igreja. Podemos percebem isso na citação acima em que Galaaz é descrito como pertencente à linhagem de Davi. Galaaz é em muitos momentos colocado à prova quanto ao cumprimento de sua missão, como no caso em que é tentado por uma donzela, filha do rei Brutus, que se enamora por louco amor à Galaaz: 55

Neila Matias de Souza _________________________________________________________________ Assim amou a donzela Galaaz, mas nunca o vira nem souber que coisa era amor, e olhava Galaaz e prezava-o tanto em seu coração, mais que todas coisas e como nunca mulher homem prezou; e por isso lhe parecia que, se não o tivesse à sua vontade, morreria. E por isto o cuidava ela conseguir muito facilmente, porque o cavaleiro era muito jovem e muito formosa. (MEGALE, 1999, p. 33).

Desse modo, enfrentando algumas provações para completar sua demanda em busca do Santo Vaso, Galaaz é único cavaleiro capaz de atingir esse objetivo pois era um homem casto e obediente a Deus, ou seja, detentor das virtudes cristãs, sendo, portanto, um bom cavaleiro, o cavaleiro ideal.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Através das duas fontes aqui apresentadas: O Livro da Ordem de Cavalaria e A Demanda do Santo Graal podemos observar a confluência de elementos religiosos para a cristianização da cavalaria. Na obra de Ramon Llull o cavaleiro ideal era aquele que possuía as virtudes cristãs de bondade, justiça, honra e castidade. Da mesma forma, na novela de cavalaria do Graal percebemos a construção do cavaleiro ideal exemplificado na figura do jovem Galaaz. Uma cavalaria cristianizada e temente a Deus era uma realidade que serviria de exemplo para a sociedade medieval. Desse modo, a Igreja através de longos e antigos processos como a Paz e a Trégua de Deus conseguiu sacralizar uma instituição essencialmente guerreira e pautada na prática da violência. Os valores cristãos que foram incorporados à cavalaria ainda hoje são considerados valores ideais a serem seguidos por todos aqueles que queiram se tornar bons cristãos e desejam seguir uma demanda religiosa de fé. É diante dessas questões analisadas no decorrer do texto que reafirmamos a atualidade dos estudos medievais para a nossa sociedade, que no século XXI ainda é uma sociedade fortemente cristã. Notas: 1 No Maranhão estão cadastrados junto ao CNPq os grupos Brathair – Grupo de Estudos Celtas e Germânicos e Mnemosine – Laboratório de História Antiga e Medieval. Há vários outros grupos de pesquisa no Brasil como o Programa de Estudos Medievais (PEM/UFRJ) e o Scriptorium (UFF) no Rio de Janeiro, o Laboratório de Estudos Medievais (LEME/USP) em São Paulo, entre outros. 2 De acordo com o prefácio da obra Romances da Távola Redonda de Chrétien de Troyes houve toda uma elaboração a respeito dessa famosa mesa. Ela teria em sua origem a influência de várias tradições célticas, entre as quais a da “Mesa dos Festins”, que em alguns lugares e em determinadas ocasiões podia vir a ter uma forma arredondada. 3 Lancelot era pai de Galaaz e embora considerado o melhor cavaleiro do mundo, cometia um grande pecado: traição. Lancelot mantinha uma relação adúltera com a rainha Guinevere, esposa de rei Artur.

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Anexo Quadrocomparativoentreasvirtudesquedeveriamserseguidaseos víciosaseremevitadospeloscavaleiros.

Referências: A Demanda do Santo Graal. Texto sob os cuidados de Heitor Megale. São Paulo: T.A.Queiroz, 1988. BURKE, Peter. A Escola dos Annales: a revolução francesa de historiografia (1929-1989). São Paulo, Editora da UNESP, 1997. CARDINI, “O Guerreiro e o Cavaleiro”. In: LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. FLORI, Jean. A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005. GÉNICOT, Léopold. “Nobreza”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, JeanClaude (org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval 2 V. São Paulo: EDUSC, 2002. LE GOFF, Jacques. Para um Novo Conceito de Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa, 1979. RAMON LLULL. O Livro da Ordem de Cavalaria (1279-1283). Tradução de Ricardo da Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Llúllio” (Ramon Llull), 2000. _______. Vida Coetânia (trad. de Ricardo da Costa). Disponível em: www.ricardocosta.com MONGELLI, Lênia Márcia. “A Novela de Cavalaria: A Demanda do Santo Graal”. In: MONGELLI, L. M.; MALEVAL, Maria do Amparo e VIEIRA, 57

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Yara F. A Literatura Portuguesa em Perspectiva. SP: Atlas, 1992, p. 55-78. SANTOS, Clóvis P. dos. “História e Psicanálise. As Mentalidades a partir da Metapsicologia de Freud e Lacan e um possível caso medieval”. In: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Relações de Poder, Educação e Cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana de Parnaíba (SP): Editora Solis, 2005, p. 39-45. TROYES, Chrétien de. “Lancelot, o Cavaleiro da Charrete”. In: Romances da Távola Redonda. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

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TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO* Veraluce Lima dos Santos**

Resumo: Abordagem da tecnologia como desenvolvimento humano. Apresentamos as tecnologias instrumentais, simbólicas e organizadoras como procedimentos técnico-científicos que contribuem para adaptar o homem ao meio em que se insere. Palavras-chave: Tecnologia. Desenvolvimento humano. Tecnologias instrumentais. Tecnologias simbólicas. Tecnologias Organizadoras. Abstract: Technology as human development approach. We present instrumental, symbolic and organizing technologies as terchno-scientific procedures that contribute to adapt man to the environment in which he is in. Keywords: Technology. Human development. Instrumental Technologies. Symbolic Technologies. Organizing Technologies.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanistico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa redonda “Tecnologia e desenvolvimento humano” ** Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão. Doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Évora-Portugal.

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O homem evoluiu, não só como animal, mas também como ser social; por isso, para o seu desenvolvimento físico e mental, é necessário que permaneça em contato com outros seres humanos. Como ser ôntico e ontológico, ele cria um mundo de cultura e de valores que é parte integrante de seu meio ambiente natural. Assim, as características biológicas e culturais da natureza humana não podem ser separadas. A humanidade surgiu através do próprio processo de criar cultura, e necessita dessa cultura para a sua sobrevivência e ulterior evolução. [...] A evolução humana, portanto, progride através de uma interação dos mundos interno e externo, dos indivíduos e das sociedades, da natureza e de cultura. (CAPRA, 2003, p. 291-292) À proporção que o homem cria cultura, instrumentaliza-se. É para a tecnologia, como forma de expressão de sua própria natureza, que ele se volta para instrumentalizar-se, produzindo mudanças, no sentido de atender às suas necessidades de sobrevivência (comida, abrigo, saúde e segurança), necessidades de desenvolvimento (educação, emprego, industrialização) e necessidades de afirmação (riqueza, estabilidade e crescimento). Podemos, assim, afirmar que “os produtos da tecnologia invadem as nossas casas, as nossas escolas e os locais de trabalho, envolvendo completamente as nossas vidas” (REIS, 1995, p.15). Nesse afã de atender às suas necessidades, o homem desenvolve tanto tecnologias instrumentais, quanto tecnologias simbólicas e tecnologias organizadoras (SANCHO, 1998). Isso devido à sua capacidade para gerar esquemas de ação sistemáticos, aperfeiçoá-los, ensinálos e transportá-los para grupos distantes no tempo e no espaço. As tecnologias instrumentais são procedimentos técnico-científicos empregados na fabricação de utensílios, aparelhos, ferramentas, objetos em geral utilizados pelo homem para suprir suas necessidades, não só de sobrevivência, mas também, de desenvolvimento e de afirmação, conforme já nos referimos anteriormente. As tecnologias simbólicas são os procedimentos técnico-científicos usados pelo homem para intermediar sua relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo em que se insere, através da representação simbólica. Incluem-se, nesse tipo de tecnologia, a linguagem, os sistemas de escrita, o conteúdo curricular dos sistemas de ensino, a língua como um código elaborado, os sistemas numéricos, a internet com um sistema de rede que conecta computadores em todo mundo. Quanto às tecnologias organizadoras, podemos dizer que são os procedimentos técnico-científicos empregados na organização da sociedade e do controle do homem no que se refere à vida em sociedade. Fazem parte desse grupo tecnológico “a gestão da atividade produtiva (taylorismo, fordismo, gremialismo...), das relações humanas, técnicas de mercado...” (SANCHO, 1998, p. 25), bem como a escola, através da gestão e controle do processo ensino/aprendizagem. As tecnologias instrumentais surgem com os primeiros instrumentos primitivos, simples lascas de pedras que tornaram possível a construção de abrigo e instalações primitivas. Deram ao “homo habilis” 60

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um lugar na história: por ser capaz de dar às pedras formas instrumentais que o ajudaram a manipular seu meio ambiente de modo vantajoso, tornou-se o ator principal da história, estabelecendo “a matriz mental necessária para o pensamento e o raciocínio, a linguagem e a cultura” (BURKE; ORNSTEIN, 1998, p. 29) A tecnologia da produção de instrumentos foi se aperfeiçoando cada vez mais, tornando, assim, possível a fabricação de lâminas muito finas e pequenas que permitiam ao homem costurar peles de animais para fazer vestimentas que o protegessem do frio, possibilitando-o a sobreviver perto da linha do gelo. Também fez surgir novos instrumentos que facilitavam a organização e a manutenção dos centros populacionais os quais cresciam cada vez mais: a) o arado puxado a boi aumentava a área de terra trabalhável, contribuindo, assim, para que a agricultura de plantio e colheita freqüentes produzisse safras em seqüências mais rápidas; b) a roda d’água transformava os grãos produzidos em alimentos para o homem; c) o aqueduto, cujo aparecimento ocorreu em 700 a.C, solucionou o abastecimento de água; d) a moeda facilitou o trabalho dos comerciantes e diminuiu os riscos nas transações comerciais, pois as moedas eram feitas de ouro de peso padrão e marcadas com um retrato do monarca, o que dava confiabilidade à peça; e) as casas passaram a ser feitas de tijolos secos a fogo em comunidades protegidas por armas metálicas; f) a invenção da irrigação, no Oriente Médio, fez mudar o caráter da terra, distribuindo as águas dos rios para as terras cultiváveis dos arredores das populações, controlando, assim, a sociedade e seu ambiente e gerando excedente o suficiente para sustentar uma série de ofícios como “pastores, lavradores, boiadeiros, pescadores, açougueiros, cervejeiros, padeiros, barqueiros, agricultores, jardineiros, construtores, carpinteiros, oleiros e tecelões, além de indivíduos dedicados à produção de bens de luxo como jóias e candeias” (BURKE; ORNSTEIN, 1998, p. 65); g) o relógio mecânico movido a peso, criado no século XIII, o qual tornou possível novas formas de disciplinar as forças sociais. Convém ressaltar que a escrita, uma tecnologia simbólica, favoreceu o surgimento de outras tecnologias instrumentais como, por exemplo, os tipos móveis inventados por Gutemberg. Esses tipos móveis eram letras metálicas1 duráveis e intercambiáveis, usadas para imprimir palavras sobre o papel. A escrita também favoreceu a expansão da imprensa por toda a Europa. Segundo Burke; Ornstein (1998, p. 138-139), A imprensa espalhou-se pelo continente numa velocidade extraordinária. Em 1455, não existiam textos impressos na Europa, mas por volta de 1500 vinte milhões de livros haviam sido publicados em 35 mil edições – um livro para cada cinco habitantes. [...] Em um sentido muito especial, o livro foi a primeira mercadoria industrial produzida em massa no sentido moderno. Nenhuma invenção se havia difundido tanto e tão rapidamente na história.

Com o avanço de várias ciências como Física, Química, Biologia, Matemática, dentre outras, o desenvolvimento científico associou-se ao desenvolvimento tecnológico e fez surgir novos instrumentos. Dentre eles, destacamos: o barômetro, aparelho utilizado para observa61

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ção meteorológica, criado por Torricelli; o telescópio, aparelho por meio do qual Galileu descobriu as luas de Júpiter e manchas na superfície do sol; o microscópio, que levou o conhecimento a se diferenciar em um grande número de novas matérias especializadas, como a biologia, a botânica, a anatomia, a embriologia; o anemômetro que media os ventos para ajudar na previsão do tempo; o pirômetro que auxiliava os foguistas; os instrumentos de navegação que tornaram as viagens mais seguras; a lançadeira voadora, que acelerou o trabalho do tecelão, provocando o desenvolvimento de máquinas de fiar; o motor a vapor de James Watt (séc. XVIII), que deu início à Revolução Industrial; a ferrovia e navegação a vapor, que reduziram as viagens intercontinentais ou transcontinentais a uma questão de semanas, em vez de meses; o telégrafo elétrico, utilizado para a transmissão de informações ao redor do mundo em poucas horas. Ressaltamos que, entre as tecnologias instrumentais, encontram-se as tecnologias de informação e de comunicação, representadas pela imprensa (livros, jornais, revistas, dentre outros), rádio, televisão, computador, dentre outras, que disponibilizaram novas formas de o homem agir sobre a realidade, possibilitando, assim, mudanças na maneira como vivemos, como trabalhamos e alterando nossas percepções sobre o mundo, nossas crenças e as próprias instituições. As tecnologias instrumentais consolidaram grandes centros consumidores, com capacidade de absorver a fabricação de produtos em grandes quantidades, o que reduzia os custos e justificava a introdução das inovações, cada vez mais espetaculares como a televisão, os antibióticos, os tecidos sintéticos, os computadores, no quotidiano do homem. Essas tecnologias instrumentais possibilitaram, ainda, o desenvolvimento de pesquisas que conduziram à fabricação de foguetes e satélites, levando o homem à lua e projetando sondas que hoje exploram o Universo celeste. Essas mesmas tecnologias instrumentais também contribuíram para o surgimento de remédios cada vez mais potentes, de implantes artificiais e transplantes de órgãos naturais, de alimentos melhores, mais abundantes e baratos, por meio da engenharia genética. Elas favoreceram, ainda, o surgimento da nanotecnologia, área de conhecimento que permite o controle da estrutura atômica da matéria, possibilitando, assim, que supercomputadores do tamanho de uma caixa de fósforos possam ser construídos e que supercondutores, as nanomáquinas, possam ser injetados no corpo humano para o combate de doenças. Esse tipo de tecnologia instrumental, também, contribui para revolucionar o modo produtivo e, conseqüentemente, a economia de uma nação, o desenvolvimento do homem. Além das tecnologias instrumentais, temos as tecnologias simbólicas, conforme já referido anteriormente. Consideramos que as tecnologias simbólicas2 se configuram, também, como Tecnologias de Comunicação; dizem dizem respeito à linguagem, à língua, aos sistemas de escrita, aos conteúdos curriculares, à internet, dentre outros 62

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sistemas de representação simbólica, cada um com suas peculiaridades. Dentre essas tecnologias simbólicas, fazemos ressalva apenas à linguagem, à língua e à Internet. A linguagem é considerada tanto um meio de comunicação quanto uma aptidão humana. Como meio de comunicação, a linguagem é vista como uma atividade de comunicação presente em qualquer escala da vida animal. Assim, são linguagens os movimentos (dança das abelhas), a reação a cores ou a odores (atração do macho entre as borboletas pelo cheiro), as produções vocais (aves, mamíferos). Esses e outros expedientes também são utilizados pelo homem para entrar em contato com o seu semelhante. Contudo, desde os tempos mais remotos, a linguagem é definida como uma aptidão humana para associar uma cadeia sonora (voz) produzida pelo chamado aparelho fonador a um conteúdo significativo e utilizar o resultado dessa associação para a interação social uma vez que tal aptidão consiste não apenas em produzir e enviar, mas ainda em receber e reagir à comunicação. (BORBA, 2003, p. 9).

Assim compreendida, a linguagem se revela como o mais eficaz instrumento natural de comunicação utilizado pelo homem. Como “um conjunto complexo de processos – resultado de uma certa actividade psíquica profundamente determinada pela vida social – torna possível a aquisição e o emprego concreto de uma língua qualquer” (CUNHA; CINTRA, 1987, p.1). Muitas têm sido as áreas de conhecimento que tomam a linguagem como objeto de estudo. Na filosofia clássica, desde Platão, a linguagem é concebida como a expressão ou tradução do pensamento, ou seja, há uma relação entre as representações mentais e o mundo exterior, mediada pela linguagem. Os filósofos, no entanto, desconfiavam da linguagem como veículo de erro e traição do verdadeiro pensamento. Husserl (apud MERLEAU-PONTY, 1971, p. 319), ao propor uma eidética da linguagem, concebe-a (linguagem) como “um dos objetos que a consciência constitui soberanamente”, exercendo, assim, frente ao pensamento, o papel de “acompanhamento, substituto, lembrete ou meio secundário de comunicação” (SANTOS, 2000, p. 102). Ela era o apresentar-se imediato e espontâneo das representações. Isto porque era na linguagem que as representações recebiam seus primeiros signos, recortavam e reagrupavam seus traços comuns, instauravam relações de identidade ou de atribuições; a linguagem era um conhecimento, e o conhecimento era, de pleno direito, um discurso [...] só se podiam conhecer as coisas do mundo passando por ela. Não porque fizesse parte do mundo numa imbricação ontológica [...], mas porque era o primeiro esboço de uma ordem nas representações do mundo; porque era a maneira inicial, inevitável, de representar as representações. (FOUCAULT, 2002, p. 409).

A linguagem também é concebida como “a casa do ser; nela morando, o homem ex-siste enquanto pertence à verdade do ser, protegendo-a” (HEIDEGGER, 1991, p. 18). Ela (re)vela em palavras a ex63

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sistência do ser do homem, de sua essência, isto é, o modo humano de “ser”. Nesse sentido, a linguagem se constitui advento iluminadorvelador do próprio ser, na sua interação com-o-outro, tornando-se o lugar em que as relações sociais se constituem e os falantes se realizam como sujeitos. Vemos, assim, que o homem se serve da linguagem para estabelecer uma relação viva consigo mesmo, com seus semelhantes e com o mundo que o rodeia. Torna-se, portanto, “uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do laço psíquico que nos une ao mundo e a nossos semelhantes” (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 206). Como uma tecnologia simbólica, a linguagem se constitui, portanto, o elemento estruturador da relação do homem com o real, tornando-os presença. A língua, outra tecnologia simbólica, é, ao mesmo tempo, parte integrante, produto e veículo da cultura, entendida como “um conjunto socialmente herdado de práticas e crenças que determinam a trama das nossas vidas” (SAPIR, 1990, p. 165). Daí por que a língua não possuir existência isolada de uma cultura. O indivíduo, para interagir com o mundo, vale-se do sistema das significações disponíveis, representado pela língua, pelo conjunto dos escritos e da cultura de que é herdeiro. Merleau-Ponty (1971, p. 203) procurou definir a língua como “a tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações”. Ela expressa, não o pensamento fechado sobre si mesmo e consciente da lei, mas o pensamento transformado pela cultura, pela realidade (re)significada, a partir do contexto em que o homem se insere. Podemos, então, afirmar que o indivíduo pensante se fundamenta no indivíduo encarnado. É essa encarnação que a língua revela, através de signos adequados às condições de uma situação concreta de interação homem versus mundo. Houaiss (2001, p. 1762) concebe a língua como um “sistema de representação constituído por palavras e por regras que as combinam” nos enunciados, empregado pelos indivíduos de uma comunidade lingüística para se comunicarem. Esse sistema se constitui o principal meio de comunicação e de expressão, falado ou escrito, na comunidade lingüística. A língua, também, se destaca como um fato de linguagem. Saussure (1970) apresenta-a numa relação dicotômica com a fala: a língua como um sistema constituído que o indivíduo tem que assimilá-lo e a fala como a forma de expressão do indivíduo. Isto porque a língua é “a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude de uma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (SAUSSURE, 1970, p. 22). Para Saussure (1970), a língua é, ao mesmo tempo, uma realidade psíquica e uma instituição social. Como realidade psíquica, é constituída por imagens acústicas e significados. Como instituição so64

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cial, é um conjunto de convenções necessárias, que uma comunidade adota para tornar possível o exercício da faculdade da linguagem no homem. É como instituição social que a língua se impõe ao sujeito, tornando-se um elemento de coesão e organização social. Outros teóricos, como os estruturalistas, além de Saussure, também, concebem a língua como um sistema imutável e estável, constituído de “formas lingüísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e peremptória para esta” (BAKHTIN, 1995, p. 82). Dentre eles, destacamos: Jakobson (1995), Bally (1965), Martinet (1979), Genouvrier e Peytard (s.d), Borba (2003). Uma outra concepção de língua a ser destacada é a proposta por Bakhtin (1995). Para ele, “a língua é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (‘energia’), que se materializa sob forma de atos individuais de fala” (BAKHTIN, 1995, p. 72). Nesse sentido, a língua, por possuir como fundamento o ato de criação individual, revela-se como uma evolução ininterrupta, como uma criação contínua e como um fato social, cuja existência se funda nas necessidades de comunicação. Como um dos integrantes da cultura digital, temos a Internet, que estamos enquadrando-a tanto como uma tecnologia simbólica quanto de comunicação. É uma tecnologia simbólica por estabelecer a mediação entre o homem e o meio em que se insere, através da representação simbólica – o signo. É uma tecnologia de comunicação porque, por meio de uma rede interligada a computadores, possibilita a comunicação entre os homens situados em qualquer parte do planeta. Com a Internet, o globo não mais se constitui apenas uma figura astronômica, porém tornou-se o território no qual todos se encontram relacionados e atrelados, diferenciados e antagônicos. A antiga ordem de representações e dos saberes está cedendo lugar “a imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda pouco estabilizados. [...] A partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é inventado”. (LEVY, 2002, p.17). A Internet possibilitou o desaparecimento do espaço planejado, emancipado das restrições naturais do corpo humano, e fez surgir um espaço cibernético, cujos elementos constitutivos estão inscritos na temporalidade ímpar de uma difusão instantânea. Com isso, “as distinções entre ‘aqui’ e ‘lá’ não significam mais nada”. (VIRILO apud BAUMAN, 1999, p.25). Nesse contexto, a condição do homem também é afetada, alterando-se. Isto porque a anulação tecnológica das distâncias temporais/espaciais, em vez de homogeneizar a condição humana, polarizaa. Alguns indivíduos “podem agora mover-se para fora da localidade – qualquer localidade – quando quiserem. Outros observam, impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sob seus pés”. (BAUMAN, 1999, p.25). Basta dizer que, sem sair de casa, o usuário da Internet viaja o mundo, faz uma série de coisas, ao ganhar uma nova identidade na Rede. Ele se esconde por pseudônimo, usando um apelido ou 65

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nome de fantasia – o Nickname, como forma de manter o anonimato na Rede. Esse recurso possibilita a um mesmo indivíduo entrar, em curto espaço de tempo, com nomes diversos e até personalidades diversas, dando, assim, uma volatilidade às identidades sociais. Assim, o usuário da Internet, sem ter o desafio de olhar nos olhos de seu interlocutor, pode se transformar, passando, inclusive, uma outra imagem de sua pessoa como, por exemplo, ter dez ou vinte quilos a menos, ser dez ou vinte anos mais jovem. Ele pode ser mais simpático, engraçado e até deixar a timidez de lado; pode ser qualquer um que desejar ser, pois o internauta, nome que recebe o usuário da Internet, possui a chance de virar ator comunicante. Como uma tecnologia simbólica e de comunicação, a Internet tem se tornado, podemos assim afirmar, o mais revolucionário meio tecnológico na Era da Informação. Ela (a Internet) tem criado um novo sistema de comunicação que utiliza cada vez mais uma língua universal, “promovendo a integração global da produção e distribuição de palavras, sons e imagens de nossa cultura, [...] personalizando-os ao gosto das identidades e humores dos indivíduos”. (CASTELLS, 2005, p.40). Seu impacto pode ser sentido nas mais diversas áreas da vida contemporânea: da educação à cultura de massa, do entretenimento aos negócios, dos namoros virtuais aos casamentos reais. Essa participação interativa do usuário mediada pela Internet tem possibilitado o surgimento de uma nova linguagem, cuja grafia nos deixa sem saber como proceder: “page” ou “peidge”?, “down” ou “daun”?, “end” ou “ende”? Outras vezes, “por conta da rapidez usa-se apenas a inicial de algumas palavras e a grafia de outras é alterada: ‘que’ se transforma em ‘q’, ‘aqui’ que se transforma em ‘aki’, ‘você’ se transforma em ‘ce’ ou em ‘vc’ (NICOLACI-DA-COSTA, 1998, p.167). Outras vezes, ainda, as palavras são utilizadas na língua de origem, como é o caso do inglês. Nasce, assim, na Internet, uma língua híbrida3, com uma linguagem cifrada, tendo na escrita sua forma de expressão predominante. É uma língua fonética, muito econômica e lacônica. Essa língua híbrida apresenta não só uma alta incidência de neologismos e vocábulos ingleses não traduzidos, como é o caso de setup, web page, home page, link, chat, software, hardware, mouse, e-mail, dentre outras lexias, mas também as abreviações de expressões em inglês, como o caso dos acrônimos btw (by the way ou a propósito), bbs (bulletin board sistem), LOL (laughing out loud ou rindo alto), AFK (away from keyboard ou longe do teclado). Encontramos, ainda, nessa língua híbrida, as abreviações que encurtam a tarefa de digitar, como por exemplo: H/M (você é homem ou mulher), Bjs p vc, blz! (Beijos para você, beleza!), 9vidades (novidades), Que booooooommmmmm!!!!! TCDF (Tô Chorando De Felicidade), 4U (for you/para você). Convém ressaltar que, com a Internet, à escrita foi atribuído um grande desafio: tornar-se tão dinâmica quanto a fala, mostrando-se, assim, capaz de preencher vazios que, na fala, são supridos por recur66

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sos paralingüísticos como os gestos, o tom da voz, a expressão facial, um olhar ou até mesmo o silêncio. É uma escrita “leve, compacta, econômica e cheia de símbolos brincalhões que poupam palavras e toques” (NICOLACI-DA-COSTA, 1998, p.160), como os símbolos usados para expressar emoções, os chamados emoticons ou ícones emocionais, cujo objetivo é representar o estado emocional ou atitude de quem escreve, ou seja, são códigos elaborados a partir de sinais de pontuação, para expressarem sentimentos, emoções. Por exemplo: :-) ou :) feliz; :-D ou :D dando gargalhadas; :-O ou :O espantado; :-P ou :P fazendo careta; ;-) ou ;) piscando; :-( ou :( ou :-> triste ou muito triste; :-S ou :S de boca fechada; :-ê ou :ê indiferente. Esses emoticons são improvisados na hora da conversa na Rede e construídos à base de caracteres do teclado do computador, formatando as diversas expressões de uma face. Há, ainda, os smileys, termo proveniente do inglês significando sorridente, alegre, com traços mais refinados, coloridos, na maioria das vezes, colocados à disposição do internauta pelo próprio provedor da Rede dentro dos chats como forma de tornar a conversa mais divertida, mais criativa. Tanto os emoticons quanto os smileys ganham sentido, à medida em que as mensagens vão sendo construídas, permitindo que a leitura seja efetivada porque se correlacionam com as simbologias e os símbolos, quanto à convencionalidade, não são totalmente arbitrários. Segundo Epstein (1990, p.66), “Os símbolos [...], além de representarem uma idéia abstrata, transcendem a dimensão puramente cognitiva. O ‘significado’ de um símbolo transborda as fronteiras do racional, pois atinge as camadas mais profundas da psique humana”. Nesse sentido, no ambiente virtual, o símbolo é utilizado em substituição a algo, ou seja, é acionado pelo usuário sempre que a palavra possa ser dispensada ou sempre que quiser associar à escrita uma maior expressividade, substituindo, inclusive, a linguagem nãoverbal como os gestos, a expressão facial, entre outros. Um outro tipo de tecnologia que influencia o desenvolvimento do homem diz respeito às tecnologias organizadoras que, conforme já mencionamos anteriormente, referem-se aos procedimentos técnico-científicos de que o homem se vale para organizar a sociedade, criando, assim, condições de sobrevivência no espaço/tempo em que se insere. Dentre as tecnologias organizadoras, destacamos a escola, uma instituição da sociedade responsável por “preparar crianças para a vida em sociedade, em particular, nos domínios que eram outrora da competência da família, da igreja e da colectividade” (ALVES, 1992, p. 34). Ela (a escola) está sujeita a exigências bastante contraditórias: de um lado, deve se mostrar competente em cumprir a missão a que se destina, ou seja, ajudar aos que nela adentram a encontrarem o seu lugar na sociedade e dela participarem de forma atuante; de outro, deve se adaptar ao mundo exterior em constante evolução, fazendo-a perder o espaço que ela desde sempre ocupara. Heidegger (1998, p. 18), referindo-se à Escola Superior, assim se manisfesta: 67

Veraluce Lima dos Santos _________________________________________________________________ Ali defronte, do outro lado da rua, está o prédio da Escola Superior. Algo que é. Por fora podemos examiná-lo de todos os lados, por dentro podemos percorrê-lo todo do portão ao sótão, registrando tudo que se nos apresentar: corredores, escadas, salas e instalações. Por toda parte encontraremos entes e até numa ordem bem determinada. Mas onde está o Ser dessa Escola Superior? Sem dúvida ela é. O prédio é. Se alguma coisa pertence a esse ente será o seu Ser e, não obstante, não o encontramos dentro do ente.

Em sua descrição, ele pergunta pelo Ser da Escola. Isso nos faz afirmar que o Ser do ente Escola está na cultura que se faz presente nela como construção humana, ou seja, ela (escola) deve ser o resultado de uma história que não está circunscrita a suas paredes e muros, ao edifício como um todo, mas, sim, o resultado de uma cultura construída pelo próprio homem, visto como, no dizer de Espósito (1993, p. 27), “um ser de significados, ser histórico, precedido por tradições, portanto, sujeito às facticidades, sejam estas derivadas do mundo em que habita, sejam próprias à sua condição de humano”. Ainda Espósito (1993, p. 30), buscando definir a escola, vai apresentá-la como “uma instituição peculiar que visa à estabilidade, onde se ministra a muitos, metodicamente, um determinado conjunto de doutrinas, leis e princípios que regulam um sistema”. Assim, a escola, a partir das políticas educacionais propostas pelos sistemas nacionais de ensino, põe em prática as reformas e as mudanças no processo ensino/aprendizagem. Cabe, portanto, a ela não só procurar desenvolver a formação de hábitos, atitudes, habilidades, valores, convicções, etc., mas também encarnar os conteúdos culturais, convertê-los em disciplinas escolares ou áreas de conhecimento, transformando-os num tipo peculiar de saber – o saber escolar – capaz de interferir na cultura da sociedade. A escola também é concebida como “um instrumento poderosíssimo para regular e construir a pluralidade cultural e fazer caminho para a unidade da ciência” (NIZA apud PEÇAS, 2005, p. 151). Em tempos de globalização, em que nos deparamos com um desenvolvimento ímpar da informação, quer no que se refere às fontes, quer no que diz respeito à capacidade de difusão, o aluno chega à escola trazendo dentro de si um mundo que ultrapassa em muito os limites da família e da vizinhança, considerados seus primeiros grupos sociais. Os meios de informação e de comunicação entram em concorrência ou, podemos assim dizer, em contradição com o mundo escolar, através de suas mensagens lúdicas, informativas, publicitárias bem criativas, oferecendo às crianças uma gratificação instantânea sem exigir-lhes nenhum esforço, o que não acontece com a escola: para alcançarem sucesso, devem se esforçar o máximo. Essa nova forma de estar no mundo exige da escola um novo papel: possibilitar ao aluno “encontrar, organizar e gerir o saber, guiando mas não modelando os espíritos, e demonstrando grande firmeza quanto aos valores fundamentais que devem orientar toda a vida” (DELORS, 2000, p.155); exige que a escola esteja aberta para o mundo, assimilando e reconstruindo o saber, descortinando outros mundos e abrindo novas janelas do mundo do conhecimento, de forma democrática. 68

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Assim, a escola deve tornar-se um espaço permeável à influência de projetos político-pedagógicos voltados principalmente para a construção de uma ordem social mais igualitária, universalizando a cultura, promovendo o desenvolvimento científico e tecnológico e a cidadania, para ser, de fato, uma instituição humana onde o ser se demora. Isso posto, podemos reafirmar que as tecnologias, tanto instrumentais, quanto simbólicas e organizadoras, têm mantido estreita relação com a evolução humana, em consonância com o desenvolvimento do mundo. Todo esse aparato instrumental tecnológico, simbólico e organizacional proporciona ao homem um maior poder de ditar seu próprio destino e de dominar um mundo cada vez maior. Notas: 1 Esta técnica já havia sido desenvolvida na Coréia (séc. XIV), porém seu uso foi permitido exclusivamente para repor certos textos religiosos que haviam sido destruídos pelo fogo. Após completar o trabalho de reposição, o maquinário foi destruído. (BURKE; ORNSTEIN, 1998, p.138) 2 O termo simbólicas está significando o conjunto de símbolos próprios de um povo, de uma época. 3 Considerando que hibridismo significa um processo de formação de palavras com duas ou mais raízes de línguas diferentes, o termo híbrida está significando a imbricação dos tipos de signos que estão a ser utilizados na comunicação realizada no ciberespaço.

Referências:

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O TRABALHO SOB O SIGNO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO* Ilza Galvão Cutrim**

Resumo: Análise de discursos sobre a noção de trabalho, a partir dos conceitos de Bakhtin sobre dialogismo. Os discursos analisados marcam o início do processo de industrialização no Maranhão. Palavras-chave: Discurso. Trabalho. Dialogismo. Industrialização. Abstract Speeches analysis about the notion of work starting from Bakhtin’s concepts about dialogism. The speeches analyzed set the start of the industrialized process in Maranhão. Keywords: Speech. Work. Dialogism. Industrialization

*Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa-redonda “Tecnologia e desenvolvimento humano”. **Doutora em Lingüística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual PaulistaUNESP/Araraquara. Professora do Departamento Acadêmico de Letras – CEFET/ Maranhão. E-mail: [email protected]

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Nosso trabalho tem por objetivo tecer uma breve discussão sobre a relação entre tecnologia, desenvolvimento humano e trabalho, a partir da análise de discursos que circularam em diferentes épocas, mas que remontam a um mesmo fato histórico: a industrialização no Maranhão – mais especificamente na capital São Luís – com a implementação de um parque fabril, no final do século XIX. Procuraremos identificar na voz do patrão o ideal burguês de desenvolvimento humano, e na voz de uma ex-operária a consolidação desse ideal. Estabelecemos um diálogo com a Análise do Discurso francesa (AD), que entende o discurso enquanto processo enunciativo, em cuja materialidade exibe-se a articulação do lingüístico com a História, e que para analisar o texto em sua totalidade, discute questões tais como interdiscursividade, intertextualidade e heterogeneidade discursiva. Ao analisar as várias vozes que tecem os fios de um texto, a AD problematiza a diversidade de lugares enunciativos em que se apresenta o enunciador. E parte do princípio segundo o qual os sentidos, sob o ponto de vista discursivo, são produzidos pela materialidade da língua, por meio de palavras, mecanismos sintáticos e enunciativos. Fiorin (1997, p. 23), ao diferenciar intertextualidade de interdiscursividade, separa a noção de texto e discurso. Para ele, intertextualidade “é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformálo”, enquanto a interdiscursividade “é o processo em que se incorporam percursos temáticos e ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro”. Vale lembrar que o texto é tão heterogêneo quanto o discurso, pois tanto um quanto outro são constituídos por vozes, que formarão a memória discursiva de uma sociedade. Segundo Brandão (1998, p. 128), A memória discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas reguladas por aparelhos ideológicos: como certos enunciados estão na origem de atos novos, como são retomados ou transformados, qual a força de sua permanência.

Nossa análise tem como foco a construção discursiva do presidente da Companhia de Fiação Rio Anil, Henri Airlie, e de seu secretário, Antônio Cardoso Pereira, na ocasião de inauguração da fábrica, também e de uma tecelã, ex-operária. Seguindo as trilhas da materialidade textual, destacaremos o ideário de desenvolvimento humano, associado à idéia de trabalho, presente no discurso do presidente e seu secretário, e a relação dialógica que se estabelece com o discurso de uma exoperária, e os efeitos de sentidos que resultam desses discursos.

1. SOB O DISCURSO DO NOVO O arroz e o algodão constituíram por um longo período a base da economia maranhense. Nos anos trinta do século XIX registra-se um declínio na lavoura de arroz e uma pausa na de algodão, tendo, dentre outras causas, a queda dos preços e das exportações, assim como a concorrência internacional enfrentada por esses produtos. 72

O trabalho sob o signo do desenvolvimento humano _________________________________________________________________

A implementação da indústria têxtil no Maranhão inicia-se no final do século XIX como decorrência do declínio na economia agrária e como um marco histórico da Revolução Industrial no Estado. O ano de 1886 é marcado como o início da era das fábricas de tecido, e a primeira das nove fábricas que iriam movimentar a economia do estado é inaugurada na cidade de Caxias. Em 1921, operavam nove fábricas no Maranhão. Em menos de uma década, o parque fabril maranhense mobilizava um capital que girava em torno de oito milhões e oitocentos mil réis (ITAPARY, 1998). Os discursos que circulam nos jornais apresentam as fábricas como símbolo de uma era de prosperidade para a Pátria Maranhense que de há certo tempo para cá vai despertando do marasmo, da indiferença em que permaneceu longos anos, da atrofia, com o organismo depauperado pelos vícios da escravidão. As fábricas surgem de toda a parte e com elas o despertar de uma vida nova, cheia de atividade, urgida pelo progresso, prometendonos um futuro bonançoso que compense a esterilidade do passado. (O jornal A Pacotilha, de 23 de agosto de 1891).

Com a inauguração das fábricas instaura-se o discurso do novo, de um futuro promissor, em contraposição a um passado tomado pelo marasmo. Cria-se na burguesia rural uma conotação de burguesia industrial urbana. Para a população carente as fábricas significam geração de empregos. Segundo Itapary (1998), as fábricas geraram em torno de três mil, quinhentos e trinta empregos. É nesse clima de mudança, de grandes expectativas, embalado pelo progresso que se inaugura uma das principais fábricas têxteis de São Luís, a Rio Anil, que nasce sob o discurso de desenvolvimento.

2. NAS VOZES: trabalho e desenvolvimento Em seu discurso de inauguração, o presidente da Companhia Rio Anil, Henry Airlie, dá ênfase ao papel que a fábrica desempenharia como geradora de trabalho: “quem quiser trabalhar, achará o trabalho, ganhará dinheiro, não só para suprir o sustento necessário para o corpo, mas também para comprar coisas para agradar o paladar, para agradar o corpo com ornamentos pessoais ou para as casas, para comprar livros para a educação e adorno dos espíritos.1

A fábrica se apresenta como frente de trabalho, e o trabalho está associado à liberdade – em contraposição ao trabalho escravo explorado até então – ao poder de compra, ao consumo. Prega-se o discurso da oportunidade: “quem quiser trabalhar, achará o trabalho”. O enunciador constrói efeitos de sentido segundo o qual haveria empregos para todos os que quisessem. Existe a reatualização de uma idéia bastante difundida na sociedade de que só fica desempregado quem quer; serviço há para todos. Isso se reflete no enunciatário como um apelo que não considera se há mão de obra especializada. Todos pode73

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riam empregar-se na fábrica, bastaria se apresentar. Destacamos também o discurso da mudança: o trabalho remunerado, em contraposição ao trabalho escravo que até então movimentou a economia maranhense. Daí o operário teria como comprar para comer, vestir; poderia agradar o corpo com ornamentos pessoais. Além disso, poderia investir em educação. Esse enunciado constrói uma identidade de operário a partir do consumo que rege a sociedade capitalista: ele será cidadão no momento em que se tornar um consumidor preocupado não só com o “sustento necessário para o corpo”, como também com o “ornamento para o corpo e para a casa”. Esses são padrões que regem o modo de vida burguês, evidenciando um entrecruzamento de discursos que permeiam uma sociedade movida por bens de consumo. Em São Luís, o modo como a sociedade burguesa encontrou para enfrentar a crise que afetou a lavoura de algodão e açúcar foi a ostentação, imitando os padrões europeus, particularmente o que se consumia na França. Crescia o consumo e com ele o desejo de se manter as aparências. Ressaltamos um outro fragmento do discurso de Henry Airlie, que se fere à inserção da Rio Anil no movimento industrial que se espalhava pelo país: “o nosso querido Maranhão não tem sido dos mais calados; pelo contrário, tem tomado parte muito saliente e distinta neste caso. Há entre nós muitas empresas que nos tornarão mais independentes, abrirão mais portas para o progresso, mais e mais facilidades para a educação industrial e artística do povo do Estado.”

O enunciador assume, discursivamente, uma identidade maranhense ao se referir ao Estado como “o nosso querido Maranhão”. Destaca a iniciativa de empresários maranhenses – incluindo-se também já que ele é um dos pioneiros nessa iniciativa – em busca de uma saída para o problema que vinham enfrentando com o fim da economia de base escravista. A participação de muitas empresas nessa empreitada com o propósito de tornar o Maranhão mais independente economicamente destaca o espírito empreendedor da época, mas vela ser essa a solução encontrada para superar a crise das lavouras de exportação. O discurso do empreendedorismo disfarça o discurso do temor, da insegurança no novo negócio. Ao instalar um nós (“muitas empresas que nos tornarão mais independentes”, o enunciador procura criar um jogo de cumplicidade com o enunciatário: este também se sentirá fazendo parte dos que se beneficiarão, de alguma forma, com o parque fabril. Esse propósito é reforçado com a idéia de que haverá “mais facilidades para a educação industrial e artística do povo”. A referência a povo consiste numa manobra discursiva, cuja intencionalidade é faze-lo acreditar que também teria sua parte no progresso. Vale lembrar, entretanto, que nunca houve um investimento na educação industrial do povo maranhense. Não havia mão de obra especializada, de aprimoramento tecnológico, pois o maquinário comprado na Inglaterra já estava obsoleto para a época. Ao concluir, o presidente da Rio Anil pede a todos: 74

O trabalho sob o signo do desenvolvimento humano _________________________________________________________________ façamos votos para que em nós, os diretores, não falte zelo, diligência, prudência e, COM LICENÇA DO SENHOR CÂMBIO, economia para que o mais rapidamente possível concluamos a tarefa de instalação da indústria, que será um movimento do espírito empreendedor dos maranhenses.

Esse discurso torna evidente a preocupação de inaugurar e manter a fábrica operando. Haveria necessidade de zelo, diligência, prudência e permissão do câmbio. Apesar de representar prosperidade, a Rio Anil operou praticamente no vermelho desde sua inauguração enfrentando grandes dificuldades, quase havendo desistência em sua instalação. A moeda nacional, o réis, desvalorizava diante da libra, o que obrigou os donos a aumentarem o capital da fábrica de 800 para 1.800 contos de réis. Com a eclosão da I Guerra Mundial, o preço do carvão mineral sofreu aumento, o que obrigou a Rio Anil a buscar alternativas de energia. (ITAPARY, 1985). A seguir, transcrevemos partes do discurso do secretário da Rio Anil, Antônio Cardoso Pereira.

Antigamente, isto é, antes de termos a idéia da montagem desta fábrica, talvez aqui não se consumisse um ano o capital que presentemente se depende por semana; e é por isso que o povo tem afluído de todos os lados. Assim, vemos este lugar ir progredindo, enchendo-se da vida satisfeita de uma população alegre e laboriosa que todos os dias aumenta [...]devemos convir que uma nova era de prosperidade e bem-estar se vai implantar entre nós e que não será para admirar ver convertido este aprazível terreno, em pouco tempo, numa risonha e pitoresca vila suburbana.

Antigamente marca uma oposição temporal entre um passado que antecede a fábrica e um presente marcado pela fábrica. O passado simboliza uma época de poucos investimentos, enquanto o presente se destaca pela audácia dos empresários, pela quantidade de capital investido, pelo grande movimento do povo e por tudo o que a fábrica representa: a salvação da economia, a industrialização, o progresso, a esperança, o novo. Há um diálogo com o discurso de progresso e desenvolvimento apregoado pelo presidente. Na voz do secretário esse discurso se repete pela esperança numa “nova era de prosperidade e bem-estar [que] se vai implantar”. Essa “nova era” inaugura a nova fase econômica maranhense . A materialidade discursiva destaca o labor, sinônimo de trabalho. Não só o trabalho dos administradores, mas o trabalho operário de uma “população de vida satisfeita, alegre e laboriosa”. O operário ganha o status de homem realizado, feliz, que trabalha por prazer. Ao contrário da economia de base escravocrata, que via o trabalho como sinônimo de humilhação, na era da indústria o trabalho assume outra concepção. Na “nova era da prosperidade”, o discurso do progresso prever a emancipação das cidades: “e que não será para admirar ver convertido este aprazível terreno, em pouco tempo, numa risonha e pitoresca vila suburbana”. As fábricas, instaladas nos arredores do centro comercial da cidade, pouco a pouco estimularam a criação dos 75

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primeiros bairros proletários, localizados em volta desses núcleos industriais. Em São Luís, destacam-se a criação dos bairros Anil, Camboa, Madre Deus, Fabril. O sonho de criação de uma vila pitoresca oculta o propósito dos empregadores: a construção das casas nas proximidades da fábrica garantia a força de trabalho por um período mais longo e, ao mesmo tempo, assegurava maior assiduidade na produção. Segundo o Relatório da Diretoria da Companhia de Fiação e Tecidos Rio Anil (1894, p. 22 e 37), Não havendo no bairro do Anil casas para alugar, próprias para residências dos empregados e operários da fábrica, reconhecemos a imperiosa necessidade de mandar construí-las por conta da Companhia, pois são intuitivas as vantagens daquele pessoal morar junto à fábrica. Achamos de bom resultado a construção destas casas porquanto podem contribuir para a localização do pessoal e consequentemente para boa marcha dos trabalhos da fábrica.

A instalação das indústrias nos arredores da cidade fazia surgir os subúrbios. Em São Luís, o crescimento do bairro do Anil deu-se graças à circulação de capital e ao comércio resultante da instalação da fábrica. A venda de produtos como gêneros alimentícios, tecidos, ferragens e miudezas em geral elevou o bairro, em 1919, à categoria de Vila. (LIMA, 2002). Ao pensarmos o signo como um embate de idéias, em cujo interior criam-se imagens que representam e produzem efeitos de alteridade, podemos entender que o sujeito se constrói no e pelo discurso e é construído no e pelo discurso alheio. O discurso da ex-operária Celeste Santos, que trabalhou na fábrica Cânhamo2, no início dos anos 40, mantém com os discursos do presidente e do secretário uma relação dialógica, na medida em que a concepção de trabalho mantém a mesma relação: a oportunidade:

[...] Então tinha muito serviço. Tinha a fábrica Cânhamo que levava muitas pessoas, tinha muita gente na fábrica e na São Luís, logo agarrada, no mesmo bairro [...]. E tinha emprego pra todo mundo, que hoje a vida cresceu, porque fechou essa fábrica e ficou esse bando de gente desempregada e cada um tinha suas famílias [...]. Marido e mulher trabalhavam na mesma fábrica, os filhos já foram ficando, o maiorzinho que já dava pra entrar. A mãe já pedia pro chefe, já arrumava pra trabalhar na fábrica. Eu quando entrei de menor, tinha 14 anos. Então era a vida que a gente levava: marido ajudava a mulher, as mulheres ajudando os maridos, as crianças já estavam ficando maiorzinhas, uns estudavam de noite, outros já não estudavam mais porque não tinham possibilidade, já naquela influência de ter a sua vida, de trabalhar, ajudar em casa, ter as suas coisinhas.”3

Em todos os textos analisados há uma regularidade discursiva que associa trabalho a desenvolvimento humano. No discurso da exoperária ele é apresentado como sinônimo de uma vida digna, retomando, discursivamente, o provérbio “O trabalho dignifica o homem”, que também pode ser percebido nos discursos de Airlie e Pereira. O sujeito-operário vê a fábrica como um lugar de emprego para toda a família; um lugar de possibilidades, onde todos tinham oportunidades. Não há uma consciência das condições de exploração do trabalho infantil e do trabalho feminino. No imaginário da ex-operária as 76

O trabalho sob o signo do desenvolvimento humano _________________________________________________________________

fábricas eram uma extensão da casa e um meio de garantir o sustento da família: “Marido e mulher trabalhavam na mesma fábrica, os filhos já foram ficando.” O termo trabalho, nos séculos XIX e XX no Brasil, vincula-se à instalação das relações sociais, ocasião em que o trabalho realizado pelo escravo é substituído paulatinamente pela mão de obra, remunerada, do trabalhador imigrante. “Emprego”, na acepção de cargo, função, ganha maior representatividade com a industrialização. (SARGENTINI, 2003, p. 130) No enunciado da ex-operária destacamse expressões que denominamos de quase sinônimas: “serviço”, “emprego” e “trabalho”. Entendemos “serviço” como oportunidade para todos os que quisessem uma ocupação (Então tinha muito serviço.). Há aqui um entrecruzamento com a voz do presidente da fábrica (“quem quiser trabalhar, achará o trabalho”); “emprego” como função (para os operários haveria a função de operar os teares, as caldeiras) seguindo a acepção de Sargentini, e “trabalho” como um elemento que ressoava na memória discursiva do operário como base de desenvolvimento, mecanismo de mudança da condição de uma vida de miséria para uma vida de estabilidade: “ajudar em casa, ter as suas coisinhas”.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Revolução Industrial promoveu um conjunto de mudanças tecnológicas com impacto no processo produtivo. As máquinas foram substituindo a mão de obra. Mas antes dessa substituição elas precisavam ser operadas e para isso era necessário que houvesse capacitação por parte de quem fosse executar esse serviço. Segundo Grinspun (2001, p. 51), o grande desafio da tecnologia é o desenvolvimento tecnológico e suas repercussões numa sociedade, pois ele vai depender da capacitação científica da sociedade; e para que haja formação científica, é necessária uma educação tecnológica. (GRINSPUN, 2001, p. 51 In Educação tecnológica). Historicamente, a tecnologia está relacionada à evolução e mudanças que ocorreram em nossa sociedade. O ideal de trabalho apregoado pela burguesia fabril4 e assumido pela classe trabalhadora não foi suficiente para possibilitar um desenvolvimento do trabalhador com todos os seus direitos reconhecidos; mas possibilitou o desenvolvimento de um lugar suburbano para a condição de Vila e hoje para a condição de bairro com certa independência. O discurso de inauguração de Henri Airlie e Antônio Cardoso Pereira se presentificam na memória de operários, instaurando sempre um desejo de renovação, tendo o emprego como eixo de desenvolvimento e mudança. A recorrência desse discurso se manifesta na memória discursiva de uma ex-operária, que vê a relação de trabalho como um fio condutor para o desenvolvimento do rendimento familiar, para o sustento da casa, para o consumo.

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Notas: 1 Os fragmentos dos discursos do presidente e do secretário da Fábrica Rio Anil foram retirados de ITAPARY, J. A falência do ilusório. Memória da Companhia de Fiação e Tecidos do Rio Anil. São Luís: ALUMAR, 1998. 2 A fábrica Cânhamo hoje abriga um Centro de Artesanato, o CEPRAMA. 3 In: BARROS, V. Imagens do moderno em São Luís. São Luís: UNIGRAF, 2001. 4 É importante ressaltar que estamos tratando especificamente do bairro do Anil.

Referências: BARROS, V. Imagens do moderno em São Luís. São Luís: UNIGRAF, 2001. BRANDÃO, H. N. Subjetividade, argumentação e polifonia. A propaganda da Petrobrás. São Paulo: Editora da Unesp, 1998. FIORIN, J. L. O romance e a simulação do funcionamento real do discurso. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. GRINSPUN, M. P. S. (Org.) educação tecnológica: desafios e perspectivas. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2001. ITAPARY, J. A falência do ilusório. Memória da Companhia de Fiação e Tecidos do Rio Anil. São Luís: ALUMAR, 1998. JORNAL A PACOTILHA. São Luís, 23 de agosto de 1891. LIMA, N. O. O bairro do Anil: apogeu e decadência. Monografia Curso Geografia. Universidade Estadual do Maranhão, São Luís, 2002. RELATÓRIO DA DIRETORIA DA COMPANHIA DE FIAÇÃO E TECIDOS RIO ANIL, 1894, p. 22 e 37. SARGENTINI, V. O. A teatralidade na geração de empregos: mídia na campanha eleitoral. In: GREGOLIN, M. R. (Org.) Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003.

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REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDE SÃO LUÍS: além da retórica municipalista, o que serve como entrave para sua “efetivação”?* Eduardo Celestino Cordeiro** Juarez Soares Diniz***

Resumo: O estudo inclina-se na questão metropolitana, especificamente na cadeia de conseqüências que perpassam por espaços não metropolitanos. Tais conseqüências têm influenciado articulações peculiares nos atores políticos, dentre elas, há a eminência de um discurso regionalista, muitas vezes, em confronto com a retórica municipalista pós-1988. O caso da Grande São Luís, onde se observa a tentativa da chamada “efetivação da metropolização”, é um palco emblemático desse quadro. Analisou-se o papel da dimensão espacial da Grande São Luís para a construção política dos arranjos gestor desta região, que legalmente é tida como metropolitana. Palavras-chave: Relações intergovernamentais. Regiões metropolitanas. Região Metropolitana da Grande São Luís Abstract: The study tends to the metropolitan subject, specifically in the chain of consequences that pass by non metropolitan spaces. Such consequences have been influencing peculiar articulations in the political actors, among them, there is the prominence of a speech regionalista, a lot of times, in confrontation with the rhetoric municipalista powder-1988. The case of the Larger São Luís, where one observes the attempt of what is called “the metropolitan’s accomplishment” is an emblematic stage of that case. The role of the spatial dimension of the Greater São Luís was analyzed for the political construction of a government of this region that is legally considered as metropolitan. Keywords: Intergovernmental Relationships. Metropolitan areas. Metropolitan area of the Larger São Luís.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa-redonda “Região metropolitana da grande São Luís: além da retórica municipalista, o que serve como entrave para sua ‘formação’?”. **Bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão. Email: [email protected] *** Doutor em Políticas Públicas. Professor Adjunto do Departamento Geociência (UFMA). Coordenador Científico do Núcleo de Estudos Avançados em Geografia Humana (NEAGH/DEGEO/UFMA). Email: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO Como constituição legal, a Região Metropolitana da Grande São Luís (RMGSL) vem sendo discutida no meio político maranhense, instigando em diferentes setores sociais o debate da questão metropolitana. Para a Geografia, as regiões metropolitanas (RMs) são produtos espaciais específicos, sua existência é concreta, desde a materialidade construída, até as relações e processos que a produz e re-produz, portanto, não é produto de um ato legal. Essa espacialidade, devido suas grandes dimensões (irrestritas ao tamanho populacional), apresenta claramente problemas sociais que não se encerram nas fronteiras político-administrativas das cidades que a constitui – são problemas com amplitudes supramunicipais. Assim, são lugares de notória necessidade do exercício das relações intergovernamentais (RIGs), pautadas, principalmente, no paradigma da gestão integrada e compartilhada em escala multiterritorial, base das políticas que almejam ser metropolitanas. Esse paradigma se apresenta promissor aos diferentes centros urbanos, entretanto, é nos centros com caráter metropolitano onde eminentemente ele se coloca como princípio básico das políticas urbanas. Considerar tal proposição, é adicionar uma importante variável para se entender o porquê da não “efetivação da metropolização da Grande São Luís”.

2. “EFETIVAÇÃO DA GRANDE SÃO LUÍS”: o que isso significa? Usado por políticos da RM, o termo aparece, na mídia jornalística e em discursos políticos, relacionado à definição dos limites intermunicipais da RM, seria, segundo esses discursos, o ponto chave para tornar a RMGSL legitima e passível de receber os recursos federais reservados às RMs brasileiras1. O fragmento jornalístico a seguir traz um depoimento típico da concepção do que seria a “efetivação metropolitana” da Grande São Luís, observadas em falas publicas dos políticos que abordam a questão:

A deputada Telma Pinheiro, presidente da Comissão de Assuntos Municipais e de Desenvolvimento Regional, disse que “não há mais como impedir que a metropolização saia do papel para realmente acontecer na prática”. Segundo ela, para atingir este objetivo, o primeiro passo é definir os limites territoriais. (Notícia do site da Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão, http://www.al.ma.gov.br, acessado em 10/02/2007)

É bom ressaltar que a referida fala foi registrada em momento o qual a Assembléia Legislativa do Estado, procurou cooperação técnica com o IBGE, com finalidade de demarcação técnica dos limites intermunicipais da ilha. Mas, se a demarcação dos limites pode ajudar a resolver questões pontuais, ela, todavia, não ultrapassa a visão e retórica municipalista, marcante no segundo momento da trajetória do trato político da questão metropolitana no país (AZEVEDO; GUIA in: RIBEIRO 2004), podendo ser apontada como um dos maiores empecilhos, se não a consolidação, ao menos, à estruturação mais abrangente e efetiva de políticas para região metropolitana. 80

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Se por um lado o discurso político em voga na RMGSL diz que para a efetivação “sair do papel” dever-se-ia primeiro definir os limites intermunicipais da RM, por outro lado, analisando a Lei estadual n.° 69 de 2003, que dá nova redação à Lei de n.° 38/1998, a qual dispõe sobre RMGSL, nota-se que legalmente a RMGSL já existe, ou seja, juridicamente está efetivada. Porém, nesta mesma Lei, existe um conjunto de disposições que norteiam o arranjo institucional de gestão para a RMGSL. Dentre as disposições, está a definição dos limites municipais como uma das treze categorias consideradas de “interesse metropolitano”, verificadas na transcrição abaixo do quarto artigo da Lei: Art. 4º - Considera-se de interesse metropolitano os seguintes serviços comuns aos municípios que integram a Região Metropolitana da Grande São Luís; I – planejamento integrado de desenvolvimento econômico e social; II – saneamento básico, notadamente abastecimento d’água, rede de esgoto sanitário e serviços de limpeza pública; III – uso do solo metropolitano; IV – transporte e sistema viário; V – aproveitamento dos recursos hídricos e controle da poluição ambiental; VI – habitação; VII – saúde e educação; VIII – definição dos limites municipais; IX – regularização fundiária; X – produção e abastecimento; XI – proteção do patrimônio cultural; XII – turismo regional; XIII – distribuição de energia elétrica.

Ainda segundo a Lei, essas categorias, denominadas de “serviços comuns”, representam um conjunto de tópicos a serem tratados pela entidade criada para a gestão metropolitana. Essa entidade é denominada de Conselho de Administração e Desenvolvimento da Grande São Luís - COADGS. Seria um órgão formado por representantes de cada governo municipal da RM e do governo estadual, ficando a participação popular regulamentada no regimento interno. Pelas atribuições do COADGS verifica-se que tal entidade seria a instância básica para a operacionalidade das políticas de corte intermunicipal na RM estudada. Seria então, parte fundamental da constituição de um arranjo gestor para a RMGSL. Por tudo isso, dentro da análise aqui empregada, não se aceita a concepção de que a metropolização da Grande São Luís seja restritamente relacionada à demarcação dos limites intermunicipais, como é posta nos discursos dos políticos que debatem a efetivação da Grande São Luís. Em contrapartida, entende-se, o termo “efetivação da RMGSL”, como a formação do arranjo institucional gestor da região previsto em lei. Todavia, é primordial destacar que o processo de metropolização, dentro das concepções teórico-conceituais mais disseminadas, é a base pela qual um conjunto de cidades se efetiva enquanto classe urbana denominada de região metropolitana. Como não é objetivo des81

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te artigo apresentar o resgate realizado das concepções de metropolização presentes na literatura cientifica, nem verificar se a RMGSL é de fato uma região metropolitana, optou-se por considera a classificação proposta pelo Observatório das Metrópoles (2004), a qual põe a RMGSL como Centro Regional – um nível a menos na hierarquia dos espaços urbanos. Considerando essa classificação, propõe-se adicionar mais um dado na análise da não “efetivação” da Grande São Luís, ou seja, considerar a constituição da aglomeração como elemento influenciador das determinações políticas.

3. RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS NA FORMAÇÃO DA GESTÃO METROPOLITANA NA RMGSL: conflitos-obstáculos. Pela própria constituição pluri-municipal de qualquer RM, a formação do arranjo administrativo da RMGSL, requer articulações políticas entre vários governantes. Assim, será fundamental concentrar esforços nas relações intergovernamentais (RIGs), tanto horizontais, notadamente entre as municipalidades envolvidas, como também nas relações verticais, travadas em conjunto por essas municipalidades e as esferas superiores de governo. Dentro do quadro das RIGs praticadas no âmbito da discussão acerca da RMGSL, observa-se que o ponto de maior polêmica e colocado como pilar para tal efetivação é a definição dos limites municipais. A conurbação está na gênese desta problemática, pois na medida em que o processo de ocupação ali existente ia se intensificando, interesses políticos sobre esse espaço iam sendo reproduzidos e intensificados. Dentro desta questão, São Luís e São José de Ribamar são os municípios com maior impasse relativos a seus limites. A zona limítrofe de São Luís com São José de Ribamar, é com isso palco dos mais variados problemas referentes aos limites intermunicipais. São os dois municípios na ilha com os maiores grau de urbanização (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2004), e onde a mancha urbana fica bastante evidente na carta-imagem SA.23Z-A, encontrada no Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Maranhão (disponível no em http://www.zee.ma.gov.br/). Essa condição reflete uma tendência geral das aglomerações urbanas brasileiras registrada pelo Observatório das Metrópoles (2004), pois São José de Ribamar como cidade mais próxima do pólo (São Luís) tender a urbaniza-se mais rapidamente em comparação aos mais afastados do pólo. Essa urbanização ao estender-se intensificou as transformações no ambiente, o que desconfigurou as características passadas deste meio, desaparecendo, inclusive, antigos marcos delimitadores das fronteiras municipais. Essas alterações no ambiente fazem com que a delimitação legal entre esses municípios fiquem confusas. Há de ressaltar que existe também litígio na zona limítrofe entre São José de Ribamar e Paço do Lumiar, mas de menor embate. Já nos 82

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limites entre Raposa e Paço do Lumiar, não foram encontradas zonas com tal problema, fato explicado, em parte, por tal espaço ser de pouca ocupação urbana. Nas zonas de litígio territorial entre os municípios, é comum, moradores não saberem a qual prefeitura pleitear serviços e equipamentos públicos. Além disso, não é raro nessas localidades, moradores pagarem impostos e tarifas relativas a dois municípios, existindo, inclusive, a possibilidade dos moradores “escolherem” a qual município suas obrigações fiscais deverão ser atreladas. No âmbito das obrigações municipais, o impasse territorial nas zonas limítrofes cria situações agravantes em determinados bairros, onde os serviços e equipamentos públicos deixam de ser oferecidos devido à questão de competência municipal, ou seja, as ações de cada municipalidade são restringidas pelo risco (ou desculpa) de estarem exercendo atividades em território que não lhe compete. Expor a problemática gerada por tal litígio, tem o intuito de definir sua importância perante a efetivação da RMGSL. Ocorre uma disputa municipalista, em que conflitos de interesses locais predominam nas relações intergovernamentais dos atores envolvidos. Percebe-se que tal situação é de se esperar, pois paralelo a uma desatualizada demarcação territorial, a aglomeração apresenta um ritmo acelerado de crescimento, principalmente nos municípios periféricos que, segundo dados do Censo de 2000, obtiveram taxas médias geométricas anuais superiores a do pólo (IBGE, 2007). Soma-se ao embate da efetivação, a tradição municipalista nos discursos políticos, identificada por Azevedo e Guia (in RIBEIRO, 2004), derivada das primeiras décadas pós-Constituição de 1988. Desta forma, ocorre uma influência negativa para a construção de uma gestão intermunicipal, necessária às RMs. Os governantes, sobre a égide da autonomia municipal, acabaram por criar um ambiente político favorável ao isolamento de suas políticas públicas. Contudo, principalmente com o modelo proposto pelos consórcios intermunicipais, novas relações intergovernamentais são traçadas sobre espacialidades intermunicipais integrantes de um arranjo socioeconômico, que deflagra um caráter regional. Essas espacialidades, no geral, são cunhadas de metropolitanas, pois são as regiões metropolitanas (de fato) locais que expressam mais claramente os problemas supramunicipais. Nesse sentido, o entendimento do que seria uma metrópole, ajuda a compreender a inerente necessidade de se trabalhar as RIGs no conjunto da aglomeração, relações essas que teriam a finalidade de produzirem políticas públicas integradas e compartilhadas a níveis intergovernamentais.

4. FENÔMENO METROPOLITANO E SUAS IMPLICAÇÕES NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Objetivando entender o metropolitano, Francisconi e Souza (1976, p.149), consideram que

Hoje, metrópole ou metropolitano significa igualmente a grande cidade, com um significado que independe das funções de cidade-mãe sobre uma

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O metropolitano aparece, assim, ligado os problemas dos maiores centros urbanos. Seria a pior expressão da alta concentração das forças e meios de produção social em pontuais cidades. A cidade metropolitana, quando não é a própria metrópole, integra-se consolidadamente a ela, através de intensas trocas (materiais e imateriais) diárias viabilizada por grande volume de capital envolvido. Todo esse espaço integrado, re-produtor do que se chama urbano, também produção problemas em escalas muito mais amplas, ou seja, atinge boa parcela dessas cidades – um caso mais típico e relacionado ao aumento dos fluxos são os problemas de transportes. Quando os problemas metropolitanos são apreendidos em sua escala intermunicipal pela sociedade, realça-se a dificuldade de serem tratados localmente, o problema local é entendido com parte de um outro maior dentro do conjunto de cidades. Tal fato irá forçar as articulações intergovernamentais, pois é percebido que muitos problemas no âmbito metropolitano só serão passíveis de solução caso haja ações conjuntas entre gestores públicos das cidades envolvidas juntamente com as esferas estadual e federal. Porém, mesmo não tendo a grandeza e a importância das regiões metropolitanas, outras aglomerações apresentam situações-problemas que extrapolam os limites municipais. Em grandes centros urbanos onde existe certa complementaridade entre várias cidades, encontra-se nos estágios iniciais uma boa quantidade de problemas intermunicipais. É, por exemplo, o caso da RMGSL. Por manterem uma complementaridade, os municípios inseridos na RM estudada, passam a ser vistos como um conjunto que se integra gradualmente. Caso essa complementaridade continuar a se reforçar, gradativamente irá dá corpo a uma identidade regional, onde os atores sociais se articularão conforme a apreensão desta realidade. No caso da RMGSL, RM sem caráter metropolitano (OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES, 2004), foi constatado (CORDEIRO, 2007) o baixo número de entidades com denominação e ação metropolitana, situação incomum nas RMs com caráter metropolitano consolidado. Conseqüentemente, observa-se a dificuldade dos atores políticos em mobilizar e articular forças segmentos da sociedade para que a “metropolização saia do papel”2. Em comunicações pessoais não registradas, verificou-se que em segmentos diversos da população da RM não compreendiam significativamente o que eram uma região metropolitana e o que a institucionalização da RMGSL implicaria nas atividades por eles realizadas. Esse desconhecimento, também foi notado 84

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nas falas propaladas em plenárias realizadas no Seminário “Região Metropolitana da Grande São Luís: impasses e implicações para as políticas públicas locais”. No presente evento, realizado nos dias 13 e 14 de março de 2007, foi notória nos discursos dos gestores municipais da RMGSL, o pouco entrosamento na questão metropolitana. Além daqueles, os participantes, em sua maioria, pronunciaram questões de aspecto estritamente municipal, em detrimento do que se deveria discutir, ou seja, a cooperação entre as municipalidades envolvidas. Conforme o exposto, o debate da questão metropolitana na Grande São Luís, mostra-se com pouca participação popular e, até certo ponto, política. Esta situação dificulta o avanço da “efetivação da Grande São Luís”, por não incrementar articulações sociais voltadas a tal objetivo. Uma explicação, para essa dificuldade, pode ser encontrada na instância espacial, pois, considerando que o espaço é produto, processo e manifestação da sociedade (SILVA apud DANTAS, 2003), uma espacialidade não-metropolitana, como a da RMGSL, denota constituição social, também, não-metropolitana, ou seja, uma sociedade fora do contexto metropolitano. Lomar (2001) ressalta que antes da instância jurídica contemplada pela institucionalização, o fenômeno metropolitano se consubstancia numa realidade cultural, econômica, geográfica, urbana e ambiental própria. Essa realidade instiga uma articulação social ampla (principalmente, intermunicipal) nos diferentes setores sociais envolvidos, o que ajudaria a formar o arranjo institucional de gestão para a região.

5.

CONCLUSÃO

Como espacialidade não-metropolitana, a Grande São Luís não apresenta os ditos problemas metropolitanos, os quais, por suas grandes dimensões (transfronteiriça), instigariam articulações intermunicipais voltadas às soluções dos mesmos. Devido à configuração não-metropolitana da RM, a “efetivação da Grande São Luís” não representa uma questão realmente metropolitana; em última análise, seria uma questão de gestão intermunicipal, típica das regiões metropolitanas, e que, com seu paradigma de gestão compartilhada e integrada, traz perspectivas benéficas às grandes aglomerações urbanas, como a da Grande São Luís. Porém, o arranjo institucional de gestão regional para RMGSL, que seria o objetivo maior da “efetivação”, está sendo debatido sobre um enfoque municipalista, o qual coloca a questão da definição dos limites intermunicipais como o grande impasse e entrave da efetivação. Essa postura mostra-se contraditória aos princípios de gestão compartilhada e integrada a nível intergovernamental, colocados como a base e característica típica das políticas que almejam ser metropolitana. 85

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A presença do discurso municipalista no debate da formação institucional da Grande São Luís, reflete também a configuração espacial da RM, pois a maioria dos problemas intra-urbanos podem, mesmo que insatisfatoriamente, ser tratados no âmbito local (municipal). Porém, a proximidade espacial e a complementaridade que apresentam as cidades da RM são fatores facilitadores da manifestação de situaçõesproblemas intermunicipal. Dois casos foram indicados por Cordeiro (2007), a saber: a gestão da bacia do rio Paciência e o transporte intermunicipal da ilha. Com isso, justifica-se a necessidade de pensar em políticas públicas pautadas nos paradigmas da gestão metropolitana. Os arranjos institucionais metropolitanos têm suas bases nas políticas integradas e compartilhadas entre os governos e gestores das municipalidades envolvidas (relações horizontais), bem como estas com as esferas superiores de governo (relações verticais), como preconizou Rezende (1999). Portanto, no caso da chamada “efetivação da Grande São Luís”, construí-la através de discursos municipalistas, é desvirtuar a problemática, restringindo, assim, as possibilidades de “integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum” para a região, oferecida no Artigo 25, parágrafo 3, da Constituição Federal.

Notas: 1 Para traçar a concepção dos agentes públicos dos que seria a efetivação da Grande São Luís, foi analisados discursos presentes em matérias jornalística, nos diários oficiais e falas propaladas no seminário “Região Metropolitana da Grande São Luís: impasses e implicações para as políticas público locais”, realizado em 2007. 2 É usando expressões do tipo “metropolização sair do papel” que alguns políticos referenciaram na mídia o processo que visa criar o arranjo gestor institucional para a RMGSL, algumas vezes como sinônimo de definição dos limites intermunicipais

Referências: AZEVEDO, Sergio de. Os dilemas institucionais da gestão metropolitana. In: Ribeiro, César de Queiroz (org.). Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. Rio de Janeiro; Fundação Perseu Abramo, 2004. ASSEMBLÉIA e IBGE vão assinar convênio para demarcar limites territoriais da Grande São Luís. Agência Assembléia, Maranhão, 01 Jun. 86

Região metropolitana da grande São Luís _________________________________________________________________

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Projeto UFMA São Luís 400 anos* Alexandre Fernandes Corrêa (UFMA)**

Resumo: Um breve texto em que se apresenta o projeto de ação cultural e institucional ‘UFMA São Luís 400 anos’. Trata-se da proposta de uma contribuição das universidades para a qualificação dos eventos comemorativos do Quarto Centenário da capital do Estado do Maranhão. Palavras-chave: Patrimônio. Memória. Universidade. Comemoração Histórica Abstract: A brief text in which presented the draft action cultural and institutional ‘UFMA St. Louis 400 years’. This is the proposal for a contribution of universities for the qualification of events celebrating the fourth centenary of the capital of the state of Maranhao. Keywords: Patrimony. Memory. University. Historic Celebrations

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido peloNúcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa-redonda “Projeto ‘UFMA São Luís 400 anos’.” ** Professor Adjunto em Antropologia do Departamento de Antropologia e Sociologia. Doutor em Ciências Sociais PUC/SP. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Patrimônio & Memória. Email: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO Nesse texto apresentar-se-á o Projeto de criação do GRUPO DE TRABALHO que se propõe a elaborar e organizar os eventos e promoções culturais para as comemorações dos 45 anos da UFMA e dos 400 anos da cidade de São Luís, no âmbito da Universidade Federal do Maranhão1. Trata-se de um GRUPO DE TRABALHO (Comitê), vinculado a Reitoria e a Vice-Reitoria e a Pró-Reitoria de Extensão da UFMA, para a coordenação dos diversos eventos promocionais e festividades que deverão ocorrer antes e durante a importante data histórica dos 400 anos de fundação da cidade de São Luís (2012) e dos 45 anos de fundação da Universidade Federal do Maranhão.

a) 45 anos da UFMA & 400 anos de São Luís

O Grupo de Trabalho pretende articular pessoas e instituições para trabalhar antecipadamente, no sentido de promover uma participação efetiva e organizada nessas comemorações históricas. É um trabalho que se inspira no que está sendo feito na cidade de Quebec (www.quebec400.qc.ca)2, no Canadá – fundada por franceses, em 1608, apenas quatro anos antes da fundação de São Luís Estamos diante de uma oportunidade única para desencadear um processo de revitalização da UFMA e das Instituições Públicas de Ensino Superior no Estado do Maranhão. São Luís é a única cidade brasileira, do período colonial, que “fundada” por franceses e colonizada por portugueses, e povoada por grupos sociais e culturais de diversas origens, possui um acervo arquitetônico civil de extraordinária beleza na América do Sul. Circunstância que faz com que o seu Quarto Centenário seja uma data importante não apenas para os maranhenses, mas também para todo o Brasil e demais países que direta ou indiretamente participaram de sua formação social e cultural. Dessa maneira, temos a oportunidade de realizarmos eventos únicos, originais e de repercussão nacional e internacional. Esses eventos precisam ser preparados com a necessária antecedência, para que sejam viabilizados. O Quarto Centenário de nossa cidade pode entrar para a História, com reflexos para a sua economia, cultura, política, etc., assim como as comemorações dos 45 anos da UFMA. Dependendo do êxito dessa divulgação de São Luís, podemos contar com a participação e o financiamento de empresas nacionais, dos demais países e seus respectivos governos, no processo de revitalização de nossas Universidades Públicas. Esse é o ponto mais importante: através desse processo podemos reverter o quadro precário e desprestigiado que hoje vive as Instituições Públicas de Ensino Superior. Temos uma excelente oportunidade de promover a autoestima e revigorar a participação dessas instituições na sociedade, renovando o espírito universitário e transformando a imagem pública destas importantes e fundamentais instituições sociais e culturais. 90

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2. JUSTIFICATIVA a) Promoção cultural e social das instituições públicas de ensino superior

Vamos oportunizar a aproximação dos 400 anos de São Luís como um catalisador para desencadear um grande e vasto processo de promoção da das Instituições Públicas de Ensino Superior do Maranhão, semelhante ao que ocorreu com as cidades que tornam-se sedes de grandes eventos, como os Jogos Olímpicos - cujo exemplo mais marcante é o da cidade de Barcelona, que estava completamente estagnada até as Olimpíadas de 1992 e que hoje, totalmente revitalizada, é uma das maiores atrações turísticas da Espanha. Lembramos, também, do que está acontecendo atualmente na cidade de Pequim, na China, por conta dos Jogos de 2008, e da ECO-92 no Rio de Janeiro e, igualmente, os recentes Jogos Pan-Americanos, na mesma cidade. Não vamos chegar a tanto, pois não vamos sediar uma Olimpíada, nem uma Copa do Mundo... Mas, podemos considerar a possibilidade de propormos intervenções sociais e urbanísticas em São Luís, através da promoção, divulgação e difusão das pesquisas e invenções científicas produzidas nas IPES, incrementando seu desenvolvimento, e elevando a qualidade de vida na cidade, como, por exemplo, novas soluções para as obras de saneamento básico nos bairros mais necessitados, a restauração do casario colonial que ainda está deteriorado, a instalação de bondes para circularem pelas ruas do seu centro histórico, intervenções paisagísticas, investimentos nos bairros da periferia, etc. Tudo isso pode trazer benefícios extraordinários para a Universidade Federal do Maranhão e as outras instituições de ensino superior (IES) públicas e privadas do Maranhão. Pois, estas instituições poderão oferecer, neste período, idéias criativas e novas soluções estratégicas para a melhoria de vida da maioria da população, evitando a concentração dos esforços e dos investimentos, apenas no cenário turístico e cultural para os visitantes. É preciso que estas instituições garantam que o processo de comemoração dos 400 anos, será de promoção da cidadania geral, do bem estar de todos os cidadãos e não de uma minoria já privilegiada por usos de equipamentos urbanos exclusivos. O processo de promoção cultural e social que esse trabalho desencadeará deve ser obra de autoria coletiva, de caráter democrático e aglutinador da comunidade do Maranhão. Daí a necessidade de criação de um Grupo de Trabalho (Comitê) para coletar e avaliar todas as propostas sobre a questão3. Propostas que não se restrinjam a vida universitária, mas que integre uma preocupação cidadã. Pensa-se aqui nas propostas de criação de Parques Zôo-Botânicos Públicos, Parque da Cidade de São Luís, etc. Chamamos a atenção para a importância do período histórico que já estamos vivendo e para as oportunidades econômicas, turísticas e culturais que ele nos oferece. Temos que ter em vista um Projeto Cultural Universitário Democrático para cidade que São Luís com91

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plete 400 anos renovada e oferecendo mais qualidade de vida para seus habitantes, além dos turistas que a visitam. Mais uma vez, é preciso enfatizar a necessidade de se organizar com antecedência os eventos que acontecerão nesse período. Assim evitamos improvisos e amadorismos, como o ocorrido nas comemorações dos 500 anos do Descobrimento (Achamento) do Brasil. É com esse espírito universitário que o Grupo de Trabalho conclama a todos a participarem desse esforço de aglutinar nossas melhores vocações, no sentido de promover para o país e para o mundo uma imagem dinâmica, plural e democrática da cidade de São Luís.

b) Histórico da criação do “Projeto UFMA São Luís 400 anos”

A idéia de criar um Grupo de Trabalho para organizar a participação da UFMA nas comemorações dos 400 anos de São Luís, nasceu inicialmente nas reuniões do Núcleo Gestor do Centro Histórico, organizadas pela Fundação Municipal do Patrimônio Histórico (FUMPH). O professor e sociólogo Alexandre Fernandes Corrêa participava desse órgão de gestão compartilhada desde 2004, quando desenvolvia e coordenava o Projeto de Pesquisa e Extensão “Teatro das Memórias: entre o passado e o futuro”4 no bairro do Desterro. A idéia de criação do Grupo de Trabalho incrementou-se também a partir das atividades no Laboratório de Ensino de Ciências Sociais (LECSSociologia) da UFMA e da militância na diretoria do Sindicato dos Sociólogos do Maranhão; mas foi na campanha para Vice-Reitoria do Prof. Dr. Antônio Oliveira, articulada pelo sociólogo Raimundo Nonato da Silva na UFMA, que amadureceu e se sedimentou o “Projeto UFMA São Luís 400 anos”. O Professor Dr. Antônio Oliveira prontamente se entusiasmou com a idéia e logo passamos a construir conjuntamente, um perfil mais institucional e orgânico. Esse processo culminou com a apresentação do Projeto ao Prof. Dr. Natalino Salgado, ainda em campanha para a Reitoria da UFMA. No decorrer da campanha eleitoral, novas adesões surgiram, como a do sociólogo Glauber Brito, que passou a articular outras instituições fora da UFMA. O Prof. Dr. Natalino Salgado, hoje eleito Reitor, assumiu com entusiasmo o compromisso de levar a frente a idéia de criação do Grupo de Trabalho para coordenar o “Projeto UFMA São Luís 400 anos”. Passou, então, a defender a idéia de que o Projeto deveria ser encampado como um dos Programas Institucionais prioritários da sua gestão. A expectativa no momento é de que seja instituído o Grupo de Trabalho e que possamos dar continuidade a um trabalho que já apresenta novos direcionamentos. Da idéia original de criar um GT de coordenação da participação da UFMA nas comemorações dos 400 anos de São Luís, hoje ampliamos o escopo de novas ações futuras ao nos integrarmos a um Projeto mais abrangente. Trata-se da criação do Consórcio das Instituições Públicas de Ensino Superior (UEMA, CEFET e UNIVIMA). Esse Consórcio 92

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promoverá a participação não só da UFMA, mas das outras IES do Estado do Maranhão, promovendo um patrimônio público de enorme valor cultural, científico, artístico e humanístico. Esse trabalho coordenado e articulado com a sociedade maranhense pretende difundir e promover, através de diversas modalidades e atividades integradas, acervos culturais, humanísticos, artísticos e científicos de alto valor civilizatório oferecendo à cidade de São Luís instrumentos concretos para seu desenvolvimento na busca por dias melhores para todos os maranhenses. As Universidades e Instituições Públicas de Ensino Superior do Maranhão têm realizado nessas décadas o melhor de seus esforços no sentido de proporcionar a Cidade e ao Estado um futuro de riquezas e de esperanças para todos os cidadãos.

c) As universidades e instituições públicas de ensino superior & São Luís 400 anos

Ainda faltam cinco anos para as comemorações dos 400 anos de fundação do núcleo urbano de São Luís. Não é muito tempo assim para que uma instituição pública já comece a tomar decisões importantes, no sentido de participar e ser protagonista nesse evento marcante e singular. A História urbana de São Luís é relativamente rica e merece que professores e pesquisadores das Universidades Federal e Estadual iniciem logo um trabalho em comum, se antecipando ao acontecimento. O primeiro passo é articular as Instituições Públicas de Ensino Superior num projeto integrado, elaborado e liderado pelas suas reitorias, num Consórcio de participação igualitária. A partir daí seguir com o convite para que as faculdades e centros universitários da cidade se integrem ao projeto. Certamente que o caminho salutar para tal articulação institucional é a proposta de um “Seminário sobre a Fundação da Cidade”, ainda para o ano de 2007. Sabemos que uma polêmica histórica tem alimentado conversas e debates controvertidos sobre as versões diferentes em relação ao papel histórico dos europeus no processo de constituição e fundação do núcleo urbano histórico antigo. Uns defendem, de um lado, o pioneirismo francês, considerando Daniel de La Touche o fundador da cidade. De outro lado, encontram-se os que defendem que Jerônimo de Albuquerque Maranhão foi o verdadeiro agente urbanizador do núcleo primitivo da cidade. De um lado, os que defendem a França Equinocial, com certa francofilia apaixonada e saudosista; de outro, os que defendem a justiça histórica com relação as ações do luso-brasileiro mestiço, que além de restaurar a ordem portuguesa, empregou esforços de engenharia racional e organizada, para alicerçar o futuro urbano na ilha. Outros dados históricos a ser considerados e que não devem ser negligenciados: a integração do país, e de Portugal, à Coroa Espanhola por mais de 60 anos (1580-1654); e, a invasão Holandesa que durou 4 anos (1640-44). Muito se poderia dizer sobre as diferentes versões referentes àqueles tempos primeiros, colorindo de nuances as duas variações 93

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mitológicas da história. Contudo, o espaço dessas linhas é curto e não é esse o propósito do presente texto. Aqui a reflexão encaminha-se para a oportunidade de as Instituições Públicas de Ensino Superior do Estado, ser protagonistas de um projeto esclarecido e cidadão, que promova com ética e lisura uma contribuição autêntica e de valor cultural transcendente. As universidades e centros públicos de ensino e pesquisa têm esse dever para com a sociedade; não podem negligenciar um acontecimento dessa ordem, em que diversos órgãos do poder público municipal, estadual e federal vão concorrer para participar dessas comemorações. Além, disso diversas empresas vão demonstrar interesse em participar e patrocinar eventos de qualidade, que sejam compatíveis com a importância cultural e histórica dessas comemorações. Assim, sugerimos que estas instituições acadêmicas e universitárias promovam e organizem linhas editoriais, calendário de exposições, seminários, projetos educacionais, concursos literários, científicos e artísticos, que tenham como tema os 400 anos da cidade. Para realizar esse trabalho organizado é necessário que estas instituições comecem a articular-se e tomem a iniciativa de levar a frente um empreendimento oportuno que certamente promoverá uma reflexão ampla sobre os destinos que queremos dar a uma cidade bela e plural. É uma oportunidade rara de avançarmos na democratização efetiva de um debate amplo sobre o passado, o presente e o futuro de São Luís. A expressão plural de sua diversidade cultural e ambiental pode contar definitivamente com um momento singular de congraçamento das diferentes vozes e expressões humanas que contribuíram com sua formação histórica. Não podemos deixar passar esse acontecimento sem que São Luís possa revelar suas potencialidades intrínsecas, desenvolvendo democraticamente sua vocação cosmopolita original.

3. OBJETIVOS E FINS a) O consórcio universidades e instiuições públicas de ensino superior

Com o intuito de articular as ações das Universidades Públicas do Estado do Maranhão, elaboramos o Projeto de criação do Consórcio entre a UEMA, CEFET e UNIVIMA, que juntamente com a UFMA, vão promover e integrar um Programa Institucional que organizará e implementará um conjunto de iniciativas inter-institucionais.

b) Ações Institucionais

- Criação do Núcleo de Extensão no Centro Histórico – NUEX/ CICAH (Centro Integrado de Ciências, Artes e Humanidades); - Intercâmbio de experiências entre Pesquisadores, Professores, Estudantes e Comunidades; - Projeto Núcleo de Extensão Consorciado no Centro Histórico; 94

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- Criação do Consórcio Universidades Públicas – São Luís 400 anos – Portal na Internet; - Criação da Sociedade Civil Pró São Luís 2012 – Parceria Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e São Luís Convention Bureau Visitors (SLCBV); - Promoção Cultural e Humanística da Capital e do Estado através das Universidades Públicas do Estado do Maranhão; - Difusão da imagem dinâmica, plural e democrática da cidade de São Luís e da UFMA, para o País e para o Mundo; - Implantação da Academia de Ciências do Maranhão; - Propor a realização da 62ª Reunião Anual da SBPC em São Luís no ano de 2012; - Promover a Memória dos Professores, Pesquisadores e Cientistas Eméritos das Universidades Públicas; - Concurso de Logo-Marca e Selo para a Campanha; - Seminários sobre o tema das Comemorações Históricas – Conferencistas Nacionais e Estrangeiros; - Concurso Literário – UFMA e São Luís 400 anos; - Concurso de Monografias Científicas (mesmo tema); - Criação de Linhas Editorias para Publicação de Monografias, Dissertações e Teses; - Criação de Prêmio Anual Jovem Cientista sobre o Tema: “Contribuição Científica da Universidade para a Cidade” - Prêmio Pesquisador Sênior (mesmo tema); - Jogos Universitários Promocionais: Maratona da Cidade, Rally, Jogos Radicais, etc; - Festival Universitário de Artes: Música, Dança, Artes Plásticas, Fotografia, Cinema e Teatro (sobre o tema); - Selos Comemorativos com nomes dos Pesquisadores, Professores, Intelectuais e Cientistas Eméritos das Universidades Públicas; - Contatos com o Ensino Médio e Fundamental.

c) Linhas de ação cultural

Entre outros produtos e linhas de ação cultural, social, artística, científica, promocional e turística que se pode desenvolver, temos: 1) Criação de linhas editoriais sobre a cidade de São Luís: publicação de teses de doutorado, dissertações de mestrado e monografias de especialização e graduação – além de trabalhos literários e científicos premiados e de grande valor cultural, artístico e científico; 2) Criação de concursos literários e humanísticos vinculados ao tema; 3) Exposições de arte e cultura; 4) Festivais de música, teatro e dança; 5) E ainda diversas manifestações culturais dos diferentes grupos formadores da sociedade maranhense – como os povos 95

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indígenas, os afro-descendentes, os sírios e libaneses, e outros grupos de migrantes que se enraizaram no Estado do Maranhão. Porém, para concretizar esse Projeto Cultural é preciso uma preparação profissional, organizada com muita antecedência. Não consideramos prematuro propor preparativos para um evento que acontecerá apenas em 2012. Como preparação para o ano de 2012, podemos, nesse intervalo de tempo, estabelecer intercâmbios, utilizar idéias e experiências promovidas pelo Comitê Organizador das Comemorações dos 400 anos da cidade de Quebec no Canadá - fundada por franceses, no mesmo contexto histórico que propiciou o estabelecimento da colônia da “França Equinocial” no Maranhão. Quebec completa 400 anos em outubro de 2008. Essa parceria poderá vir a ser um forte atrativo de intercâmbio cultural, econômico e turístico para a cidade de São Luís. Outra idéia importante, entre outras tantas que podemos trabalhar, é a realização de jogos amistosos (torneio universitário) de futebol (ou outro esporte amador) na cidade, entre as seleções do Brasil, França, Canadá, Espanha, África, Holanda e Portugal, no dia do aniversário de São Luís. Além desses países devemos considerar a possibilidade de convidar os representantes de outros povos e culturas que participaram da formação social e histórica da cidade, como os imigrantes sírios-libaneses, e os diferentes povos e nações indígenas do Estado do Maranhão. O Consórcio de IPES, e a Prefeitura de São Luís, poderia elaborar um evento dessa envergadura, com o apoio da Confederação Brasileira de Futebol (ou outra entidade esportiva) e os Governos do Estado e do Município. Não se trata apenas de realizar um espetáculo esportivo para comemorar essa data. A publicidade gratuita em torno desse evento, pela mídia esportiva desses países, serviria também para chamar a atenção dos europeus, e do mundo em geral, sobre a cidade brasileira que está em vias de completar 400 anos de existência – despertando e incrementando o interesse turístico e cultural por São Luís, com reflexos diretos para a economia e a cultura local e a vida acadêmica e científica das Instituições Públicas de Ensino e Pesquisa. Outra idéia considera a possibilidade de no dia 08 de setembro de 2012 realizar uma Maratona Universitária em nossa cidade – proposta que será encaminhada à Prefeitura de São Luís. Maratona que contaria com a participação de atletas das Universidades dos referidos países, como símbolo de amizade entre as nações. Esse evento teria um custo relativamente baixo para a sua realização, mas certamente causaria um grande impacto promocional e social.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Destarte, com certeza estamos diante de uma oportunidade única para desencadear um processo de revitalização da UFMA e das Instituições Públicas de Ensino Superior no Estado do Maranhão. São 96

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Luís é a única cidade brasileira, do período colonial, que “fundada” por franceses e colonizada por portugueses, e povoada por grupos sociais e culturais de diversas origens, possui ainda um acervo arquitetônico civil de extraordinária beleza, na América do Sul e Latina. Aspecto singular que faz com que o seu Quarto Centenário seja uma data importante não apenas para os maranhenses, mas também para todo o Brasil e demais países que, direta ou indiretamente, participaram de sua formação social e cultural. Dessa maneira, temos a oportunidade de realizarmos eventos únicos, originais e de repercussão nacional e internacional. Esses eventos precisam ser preparados com a necessária antecedência, para que sejam viabilizados. O Quarto Centenário de nossa cidade pode entrar para a História, com reflexos para a sua economia, cultura, política, etc., assim como as comemorações dos 45 anos da UFMA. Dependendo do êxito da divulgação da cidade de São Luís, podemos contar com a participação da comunidade local, dos demais países e seus respectivos governos, no processo de revitalização de nossas Universidades Públicas. Esse é o ponto mais importante: através desse processo podemos reverter o quadro precário e desprestigiado que hoje caracteriza as Instituições Públicas de Ensino Superior no Estado do Maranhão. Temos uma excelente oportunidade de promover um patrimônio cultural, artístico, humanístico e científico, de valor incomensurável, além de revigorar a participação e os vínculos dessas instituições na sociedade, renovando o espírito universitário e transformando a imagem pública destas importantes e fundamentais instituições sociais e culturais em nossa sociedade.

Notas: 1 A UFMA tem sua origem na antiga Faculdade de Filosofia de São Luís do Maranhão, fundada em 1953. A Universidade então criada, fundada pela SOMACS em 18/01/ 58 e reconhecida como Universidade livre pela União em 22/06/61, através do Decreto n.º 50.832, denominou-se Universidade do Maranhão, congregando a Faculdade de Filosofia, a Escola de Enfermagem “São Francisco de Assis” (1948), a Escola de Serviço Social (1953) e a Faculdade de Ciências Médicas (1958). Agregou ainda a Faculdade de Direito (1945), a Escola de Farmácia e Odontologia (1945) - instituições isoladas federais e a Faculdade de Ciências Econômicas (1965) - instituição isolada particular. Assim foi instituída, pelo Governo Federal, nos termos da Lei n.º 5.152, de 21/10/66, a Fundação Universidade do Maranhão – FUM, com a finalidade de implantar progressivamente a Universidade do Maranhão. 2 http://www.monquebec2008.com/MonQuebec2008/ 3 Através de enquetes realizadas pelo Portal do Consórcio das IPES, pela Rádio Universidade (UFMA) e demais meios de comunicação de massa. 4 Resolução nº. 463/2006-CONSEPE/UFMA

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PALAVRA-MONUMENTO: a expressão da finitude na poesia de Hölderlin* Ellen Caroline Vieira de Paiva**

Resumo: Análise da expressão da finitude na poesia de Hölderlin a partir da filosofia heideggeriana. Heidegger percebe na figura do poeta o ponto de iminência do falar originário da linguagem. O linguajar cotidiano de um povo histórico nasce da tarefa originária dos poetas de captar o inaudito. A finitude consiste no caráter indizível da linguagem que impõe limites a si própria sempre deixando possibilidades para a sua superação. Eis então o serviço dos poetas. Palavras-chave: Poesia. Ressonância. Tradução. Finitude. Monumento Abstract: Analysis of endness expression in Hölderlin’s Poetry by Heidegger’s Philosophy. Heidegger looks in poet the starting point of first talking of languaje. The everyday talking of a hystoric people borns by poets’s originary work of listening the untold. Endness is into untelling feature of languaje that makes limits by its own always leaving possibilities for its superation. So, there is poets’s working. Keywords: Poetry. Relistening. Translate. Endness. Monument

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa-redonda “Arte e hermenêutica: a poesia e a verdade da palavra” ** Estudante de graduação nos cursos de Filosofia e Direito da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Integrante do Grupo de Pesquisa em Estética e Hermenêutica. Integrante do Grupo de Pesquisa em Nietzsche. Integrante do Grupo de Pesquisa em Schopenhauer. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO E para que poetas em tempos de penúria? Hölderlin

Em Pão e Vinho Hölderlin pergunta o sentido da existência dos poetas no momento da retirada dos deuses. Quando os deuses se afastam aguardam que os homens se encontrem em sua própria condição. E ao serviço dos poetas está a obra de instaurar esse princípio. Ora, de acordo com Hölderlin, quando se retiraram, os deuses deixaram para o homem a linguagem como uma espécie de “clarear do ser”. E é a partir desse clarear que os poetas sentem que algo na existência se auto-consuma. Tem-se, então, uma manifestação do ser que pertence ao destino dele próprio. Assim, para Hölderlin, na confluência entre o destino do ser e do destino do poeta, a poesia se evidencia. Sua grandeza reside, sobretudo, na apreensão de que a poesia não é mera habilidade poética, de que o poeta não é um fazedor de versos, mas, essencialmente, experiência. Experiência significa, para Hölderlin, lançar o homem para o lugar em que ele já sempre se encontra, devolvendo-o à gravidade do seu limite. É que o homem pode apenas ser o que é porque está plantado na finitude, na mortalidade, no tempo. Plantado na sua finitude é que o homem pode tanto encontrar-se com o divino – esse infinitamente outro – como também querer a ele equiparar-se. (Dastur: 1994, p. 02)

Isto então nos faz perguntar: mas qual é o destino do poeta? De acordo com a filosofia heideggeriana, seu destino é captar o que os deuses deixaram no âmbito da linguagem, cuja atividade já se efetiva com uma profunda marca de finitude. Afinal, a retirada dos celestiais é uma condição de fim que determina nos bardos a própria evidentia dessa condição. Logo, o trabalho do poeta é, por excelência, um trabalho finito que tenta tornar permanente o passageiro que se foi com os deuses ou que se vai com o tempo.

Os poetas são aqueles mortais que, cantando com gravidade ao deus do vinho sentem o rastro dos deuses idos, seguem tal rastro e, desta maneira, assinalam a seus irmãos mortais o caminho em direção à mudança. (Heidegger: 1996, p. 07)

A palavra se configura então, como monumento, de modo que ao poeta cabe faze-la suportar a história também se desgastando na existência. Desta forma, a poesia se define como o ocaso da linguagem. Aqui não se trata exatamente de um fim, mas de um findar. O fim em processo é finitude, de modo que, na poesia, se dá a continuidade e renovação da linguagem a partir da fala e da escuta do poeta. A essência da poesia revela a tarefa sempre constante da linguagem de colocar limites a si própria e ultrapassá-los. Seu destino é sempre esconder quando quer mostrar. E é aqui que surgem os poetas: os mortais que criam ressoando o ir-se dos divinos na instância da linguagem que “naufraga no silêncio”1.

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Palavra-monumento: a expressão da finitude na poesia de Hölderlin _________________________________________________________________

2. A EXPRESSÃO DA FINITUDE NA POESIA DE HÖLDERLIN Heidegger apresenta a poesia de Hölderlin como instância de reconhecimento ontológico da linguagem. Em seu ensaio Hölderlin a essência da poesia parte de cinco versos do poeta que servem de palavras-guia para sua análise.

a) Poetizar: a mais inocente de todas as ocupações

De acordo com Heidegger, Hölderlin, numa carta a sua mãe em 1799, trata o poetizar como “a mais inocente de todas as ocupações”. Enquanto poeta, Hölderlin vê na poesia o seu ofício, sua ocupação principal e, por assim o sê-lo, caracteriza um fazer do homem com algo – neste caso, um fazer da escrita com o objeto da palavra. Entre todas as atividades é a mais inocente por se mostrar sob a forma de um jogo,distante das ações que transformam a realidade, operando simplesmente no plano da linguagem, como um jogo.

b) Linguagem: o mais perigoso dos bens dado ao homem

Heidegger encontra num fragmento de 1800 considerações hölderlinianas sobre a linguagem enquanto uma propriedade concedida ao homem pelos deuses. Ei-lo: Mas o homem vive em cabanas recobrindo-se com um vestido recatado, pois apesar de ser mais íntimo, é mais solícito e guarda seu espírito, como a sacerdotisa a flama celeste, que é seu entendimento. E por isso se é dado o alvedrio e um poder superior para ordenar realizar o semelhante aos deuses e se é dado ao homem o mais perigoso dos bens, a linguagem, para que mostre o que é, que tem herdado e aprendido dela o que tem de mais divino, o amor que tudo alcança. (Hölderlin, apud Heidegger: 1992, p. 02, grifos nossos)

A linguagem é um bem dos deuses e herança dos homens. Estes a herdam dos seres divinos juntamente com a terra. Seu caráter de bem – como propriedade – se deve ao fato de permitir um meio de publicidade entre os entes, tornando o homem histórico. Nesta relação de herança, aqueles que herdam também são pertenças de suas respectivas propriedades. Desta forma, o homem sucede os deuses na linguagem e na terra. Eis aqui então o princípio do perigo: o homem é herdeiro de algo que os coloca temporariamente na condição divina. E “só de tempo a tempo o homem suporta a plenitude divina. E a vida depois é sonhar com eles”. (Hölderlin: 1994, p. 186) A semelhança humana ante os deuses confere ao homem a dádiva da linguagem; nela, a condição divina se realiza no homem para mostrar o que é. Nesse sentido, a inocência da poesia acima tratada traz consigo uma ameaça: precisamente por operar no plano da linguagem, a poesia absorve os riscos dessa dimensão. A linguagem é a mais perigosa propriedade porque destrói e funda simultaneamente para a ela própria regressar. Sendo concedida ao homem, que herda a terra dos deuses e a ela 101

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pertence, é o mais perigoso dos bens porque encerra consigo o maior dos perigos: o perigo do perigo porque cria a possibilidade de outros perigos. O perigo de que fala Heidegger é a ameaça do ser pelo ente. Ao “mostrar o que é” o homem engana e desengana. E isto ocorre porque o homem fala. O falar é o primeiro que cria o aberto da ameaça e do erro do ser e da possibilidade de perder o ser.

c) Homem: um diálogo

Canta Hölderlin: “o homem tem experimentado muito; nomeado a muitos celestes, desde que somos um diálogo e podemos ouvir uns aos outros” (Hölderlin apud Heidegger: 1992, p. 05, grifos nossos). O fato de que falamos e ouvimos nos define como um diálogo. O ser do homem se funda, assim, no falar, o qual se realiza essencialmente no diálogo. Este último pressupõe uma escuta – ouvir pressupõe uma condição originária eqüitativa do falar. O diálogo constitui, assim uma unidade de falar e ouvir que se consubstancia na portadora da nossa existência, a pré-sença (Dasein). Enquanto presença nomeadora, o homem tem nomeado muitos deuses. Heidegger então diz: “Até que o falar aconteceu propriamente como diálogo, vieram os deuses a palavra e apareceu um mundo. Mas, importa ver que a atualidade dos deuses e a aparição do mundo não são uma conseqüência do acontecimento do falar, senão que são contemporâneos” (Heidegger: 1992, p. 05). Essa contemporaneidade entre deuses e fala nos revela enquanto ouvintes dos celestes e, enquanto tais, herdeiros da linguagem.

d) Poetas: instauradores do que permanece

No poema Em memória (Andenken), Hölderlin diz: “mas o que permanece, fundam-no os poetas”. O que permanece (o ser) deve pôr-se ao descoberto para que apareça o ente. Ocorre que, precisamente o que permanece se dá de forma passageira e imediata, de modo que a sua captação está a serviço de homens capazes de transcender a dicotomia entre mortais e divinos. Estes são, para Heidegger, os poetas, porque estes nomeiam deuses e coisas. O poeta é aquele que se projeta fora, entre deuses e homens. Ele faz isso falando na linguagem dos deuses, qual seja, em signos (metáforas).

e) Palavra-monumento: a finitude da instauração

Heidegger tem como última palavra-guia deste ensaio o seguinte verso de Hölderlin: “pleno de méritos, mas é poeticamente que o homem habita esta terra”. Aqui se evidencia a existência humana como uma experiência eminentemente poética. Mas, o que há no poético que define nosso existir? A poesia não é um mérito, uma conquista humana. Ao contrário, é uma doação dos deuses. Seu caráter donativo em muito se assemelha ao caráter hereditário da linguagem. Assim, a mais inocente das 102

Palavra-monumento: a expressão da finitude na poesia de Hölderlin _________________________________________________________________

ocupações, por ser um dom divino assume traços decisivos na existência humana, de maneira que, situando-se no reino da linguagem, tem, com esta uma essência comum, qual seja, a instauração do ser como palavra. Com isto, não se trata de um simples jogo inofensivo e caprichoso, mas, ao contrário, aquilo que torna público tudo o quanto depois falamos e tratamos no linguajar cotidiano. O caráter de bem da linguagem na condição donativa da poesia confere publicidade aos entes tornando o homem dotado de historicidade e suportando a própria história. Por isso, a poesia é dotada da contemporaneidade divina, isto é, de uma anterioridade que torna o diálogo o próprio acontecimento da linguagem. Neste sentido, “a poesia é o linguajar primitivo de um povo histórico” (Heidegger: 1992, p. 08) – algo que é completamente diverso da “expressão do espírito de um povo” por transcender à história2. Os poetas são aqueles que falam com os deuses, que conseguem captar o passageiro que permanece escutando a fala dos deuses. Assim, canta Hölderlin: É direito nosso, os poetas, estar em pé ante as tormentas de Deus, com a cabeça desnuda, para apreender com nossas próprias mãos os raios de luz do Pai, a ele mesmo. E fazer chegar ao povo envolto em cantos o dom celeste. (Hölderlin apud Heidegger: 1992, p. 08)

Portanto, na imediatez da captação dos raios de luz do Pai o poeta perde algumas nesgas de luz. Fica com algo, diz algo, mas perde outro tanto do que ouviu. Porque o perigo da linguagem ameaça o ser pelo ente e, com isso, o que se mostra, se esconde. Logo, o poético é eminentemente finito, de maneira que habitar o mundo nessas circunstâncias é existir em termos de finitude. Quando Gianni Vattimo fala da quebra da palavra poética, toca precisamente o ponto onde a palavra revela a finitude. Por isso toma a figura do monumento, aquilo que persiste na existência resguardando o já ido. O monumento é a espacialidade que torna sempre presente o que se foi com o desgastar do seu próprio material constituinte; o bronze ou o calcário que se desgasta com o tempo preserva diante dele as rugas do rosto esculpido. Assim também o faz a palavra em sua constituição no mundo. Enquanto monumento, por um lado, fixa algo a ser dito na individualização da ressonância; por outro, projeta o que há de ser no dito do tempo operando uma revelação de sentido na experiência da tradução. Os deuses soam; o poeta ressoa o dito na existência realizando um pronunciamento. E toda pronúncia, é finitamente, poeticamente, uma renúncia.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A poesia de Hölderlin concede à palavra a condição de monumento, isto é, uma construção que fixa algo a ser dito e o projeta rumo ao tempo. Assim, o princípio da poesia compreende, fundamen103

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talmente, ressonância e tradução. A primeira consiste na capacidade humana de deixar o mundo fazer-se palavra. A segunda, por sua vez, pode ser entendida como a permissão natural ao fundamental mostrarse. A poesia é desenvolvida tanto como apresentação individualizadora quanto como experiência. Nos termos de ressonância e tradução está em jogo o princípio da poesia. Para Hölderlin, o princípio da poesia é escuta. Sendo a escuta a apreensão do tempo das coisas, sendo o ouvido o sentido mesmo do tempo, a palavra poética é em si mesma anúncio do fazer-se das coisas. Na escuta, futuro e passado, possibilidade e concretude, memória e criação concentram-se em cada instante, como um raio. A coisa é o seu devir e somente isso constitui o seu espírito (CAVALCANTE: 1994, p. 13).

O fazer poético vem marcado por uma profunda preocupação com o que seja verdadeiro, com o autêntico, de maneira que a poesia se torna maior quanto mais proporciona uma experiência de verdade. A poesia realiza evidencia no que quer significar. Ocorre que essa evidência do significante trás consigo seu próprio velamento. Nessas circunstâncias a palavra o revela como finito, aproximando-se da própria condição humana. Com efeito, para Hölderlin a finitude (Endlichkeit) é pressuposto da existência humana. O homem “habita a terra poeticamente”, ou seja, lança-se a terra numa expressão de mostrar-se e de resguardarse, afirmando-se e negando-se simultaneamente. A revelação poética se realiza precisamente na simultaneidade entre afirmação e negação, de maneira que tais opostos não se excluem; ao contrário, afirmam-se constantemente a partir de si próprios. Desta forma, o homem existe poeticamente por conquistar à cada dia sua condição de finitude a partir de sua própria condição. A poesia vem ser o horizonte sobre o qual o inaudito soa e, por meio da escuta humana ressoa. A palavra o trás ao mundo onde o sujeita à sua condição monumental.

Notas: 1 VATTIMO, G. Heidegger e a poesia como ocaso da linguagem. Disponível em http://www.heideggeriana.ar Acesso em 15 de dezembro de 2007. 2 “A poesia não é um adorno que acompanha a existência humana, nem somente uma passageira exaltação nem um acaloramento e diversão. A poesia é o fundamento que suporta a história, e por isso não é tampouco uma manifestação da cultura, e menos ainda a mera “expressão” da “alma da cultura”” (Heidegger: 1992, p. 07).

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Referências: ABRANCHES, Antônio (org.). Reflexões / Friedrich Hölderlin; seguido de Hölderlin, tragédia e modernidade de Françoise Dastur; tradução de Márcia de Sá Cavalcante, Antônio Abranches – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. GADAMER, Hans-Georg. Los caminos de Heidegger. 2. ed. Barcelona: Herder, 2003. (tradução nossa) HEIDEGGER, Martin. A linguagem. in: Heidegger: A caminho da linguagem. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback. 2.ed. Bragança Paulista, SP: Vozes, Editora Universitária São Francisco, 2004. _______. A linguagem na poesia. in: Heidegger: A caminho da linguagem. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback. 2.ed. Bragança Paulista, SP: Vozes, Editora Universitária São Francisco, 2004. _______. A essência da linguagem. in: Heidegger: A caminho da linguagem. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback. 2.ed. Bragança Paulista, SP: Vozes, Editora Universitária São Francisco, 2004. ________. A palavra. in: Heidegger: A caminho da linguagem. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback. 2.ed. Bragança Paulista, SP: Vozes, Editora Universitária São Francisco, 2004. ________. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 1977. ________. El Cielo Y La Tierra de Hölderlin. Traducción de José María Valverde, en Interpretaciones de la poesía de Hölderlin, Barcelona, Ariel, 1983. Disponível em http://www.heideggeriana.com.ar Acesso em 17 de outubro de 2006. (tradução nossa) ________. Hölderlin y la esencia de la poesía. Traducción de Samuel Ramos, publicada en: Martin Heidegger, Arte y Poesía, Buenos Aires, F.C.E, 1992. Disponível em http://www.heideggeriana.com.ar Acesso em 17 de outubro de 2006. (tradução nossa) ________. O caminho para a linguagem. in: Heidegger: A caminho da linguagem. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Schuback. 2.ed. Bragança Paulista, SP: Vozes, Editora Universitária São Francisco, 2004. ________. O fim da filosofia. in: Conferências e escritos filosóficos – Coleção Os Pensadores. 1.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. ________. Para que poetas? Traducción de Samuel Ramos, publicada en: Martin Heidegger, Arte y Poesía, Buenos Aires, F.C.E, 1992. Disponível em http://www.heideggeriana.com.ar Acesso em 17 de outubro de 2006. (tradução nossa) ________. Ser e tempo- edição completa. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante Shuback. Petrópolis: Vozes, 2006. ________. Sobre a essência da verdade. in: Conferências e escritos filosóficos – Coleção Os Pensadores. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 1.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de Hollanda. Revisão Técnica: Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. 105

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ROSETE, Isabel. A arte como poesia essencial em que um povo diz o ser. Disponível em http://www.consciência.org Acesso em 23 de setembro de 2006. VATTIMO, Gianni. Heidegger e a poesia como ocaso da linguagem. Disponível em http://www.heideggeriana.ar Acesso em 15 de dezembro de 2007. _______. O fim da modernidade – niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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DANÇA-TEATRO: uma tendência artística transformadora* Leônidas de Souza Santos Portela**

Resumo: O presente artigo expõe análises e reflexões sobre a dançateatro alemã, linguagem artística que vêm sido constantemente discutida na contemporaneidade, gerando inquietações que levam a elaborações de conceitos que não se fixam assim como a própria linguagem. Tema de notável importância na formação acadêmica em artes cênicas. Palavras-Chave: Dança-Teatro. Pina Bausch. Corpo. Contemporaneidade Abstract: The present article displays analyses and reflections on the German dance-theater, language artistic that come been constantly argued in the contemporaneidade, generating fidgets that take the elaborations of concepts that are not fixed as well as the proper language. Subject of notable importance in the academic formation in scenic arts. Keywords: Dance-theater. Pina Bausch. Body. Contemporaney.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - UFMA/CCH, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa-redonda “Dança: ciência e arte do movimento” ** Graduando de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Maranhão, coreógrafo.

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1. INTRODUÇÃO A dança está intimamente relacionada às transformações humanas, através dela é possível perceber as inúmeras mudanças históricas e sociais que o corpo sofre em contextos mundiais. Não se sabe exatamente onde e quando surgiu, registros deixados pelos povos primitivos em cavernas revelam a necessidade que o homem sempre sentiu de expressar seus sentimentos através do corpo, dançavam em círculo para comemorar a vitória, o sacrifício. Sabe-se também que na Grécia, a população já se manifestava em festas dionisíacas sacrificando animais em rituais de honra a Dionísio, o deus do teatro, do vinho, da fertilidade e da dança. Atualmente existem inúmeras técnicas e métodos para trabalhá-la como: a capoeira, o balé, as danças populares, os folclores regionais, a dança de salão, a novadança, a dança contemporânea e educativa, a dança-teatro, única ou qualquer tipo de denominação usada para tentar resumir às manifestações dos sentimentos humanos através do corpo. A dança é uma forma de arte bastante ligada à juventude, através dela é possível humanizar os indivíduos, sensibilizá-los, trabalhar a consciência respiratória e muscular do corpo a organização e o respeito entre corpos que se relacionam num mesmo espaço. É necessário pensarmos cuidadosamente em abordagens que permitam problematizar, articular, criticar e transformar as relações entre a dança, o ensino e a aprendizagem, pois o reconhecimento dessa linguagem artística enquanto área de conhecimento a ser trabalhada nas escolas foi legalmente introduzido pela LDB 9394/96; a partir de 1997 esse processo foi coroado a nível nacional com a inclusão da dança nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Em suma, os conteúdos de dança são: aspectos e estruturas do aprendizado do movimento (aspecto da coreologia, educação somática e técnica); disciplinas que contextualizam a dança (história, estética, apreciação e crítica, sociologia, antropologia, música, assim como saberes de anatomia, fisiologia e cinesiologia) e possibilidades de vivenciar a dança em si (repertórios, improvisação e composição coreográfica).

2. A DANÇA-TEATRO ALEMÃ A dança-teatro alemã – tanztheater - é uma linguagem de notável importância nas artes cênicas da atualidade, vertente da dança contemporânea inicialmente desenvolvida por Rudolf von Laban (Hungria 1879, Inglaterra 1958) nas primeiras décadas do século XX, tendo como principal objetivo o delineamento de uma linguagem apropriada ao movimento corporal, com aplicações teóricas, coreográficas, educativas e terapêuticas. Azevedo afirma que Laban apresenta um método de análise de ações corporais simples para que o aluno desenvolva sua capacidade de observação e realização de ações

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Dança-teatro: uma tendência artística transformadora _________________________________________________________________ as mais diversas; estuda entre outras coisas a direção e planos de gestos, sua extensão e caminho no espaço, a energia muscular usada na resistência ao peso e a acentuação do movimento; emprego do tempo (rápido normal e lento) e fluência que pode se manifestar aos trancos (com interrupções ou quebras entre um e outro movimento) ou a contínua (sem qualquer perda de ligação entre um movimento e aquele que vem a seguir) p.66.

Laban preocupava-se com a função da dança enquanto elemento de educação. Distanciou-se da dança como uma expressão de sentimentos subjetivos, seu interesse agora era exemplificar seu novo conceito de dança que naquele período era mostrada como forma de arte independente, baseada nas leis de harmoniosas formas espaciais. Tornou possível a análise dessas formas de dança de acordo com os ritmos específicos que o corpo em movimento descrevia no espaço. Dirigiu grandes grupos profissionais de onde saíram os mais importantes nomes da dança. Entre eles, destacam-se Mary Wigman e Kurt Jooss. Mary Wigman, discípula deu continuidade ao trabalho de seu mestre (1916-1933) observando delicadamente a habilidade deste para ajudar seus alunos a analisar suas características físicas, penetrando no universo interior em busca de suas próprias raízes. Wigman foi mais específica sobre sua versão de dança-teatro do que seu mentor Laban, elaborando características expressivas, chamando sua arte de dança absoluta. Wigman fundou a Ausdrukstanz (dança da expressão) uma verdadeira rebelião ao balé clássico, buscando uma expressão individual ligada a lutas e necessidades humanas “universais”. Neste momento a preocupação com expressividade corporal ganhava maior ênfase sobre a simples técnica de execução de movimentos. Kurt Jooss, outro discípulo de Laban que também nos apresenta conceitos de dança-teatro. Desenvolveu tremas sociopolíticos por meio da ação dramática de grupo e da precisão da estrutura formal e de proteção fazendo sua declaração em termos de movimento. Jooss construiu métodos baseados nas teorias espaciais e qualitativas de Laban, que conscientemente, combinavam técnicas clássicas com a dança moderna. Os dançarinos sob sua direção combinavam treinamentos de diferentes linguagens artísticas e sua dança na visão do espectador foi tida como uma forma modernizada de balé. Jooss atuou como diretor de dança no teatro de Münster, Alemanha, em 1925 e tornou-se co-fundador da Folkwang ballet, na cidade de Essen, também na Alemanha, onde o auge de seus esforços tornou-se visível em jovens artistas que vieram de seu estúdio. Entre eles Pina Bausch.

“A dança-teatro não me parecia merecer uma definição fechada, ou mesmo uma descrição classificatória. Percebê-la através de alguns princípios gerais e dinâmicos seria mais justo. Inclusive porque seu eixo constantemente sai do eixo, isto é, a dança-teatro desconstrói construções, definições, modos fixos de agir, ser, pensar...”. (FERNANDES, 2006, p.315)

Não há uma definição específica para o termo dança-teatro, sabe-se que ela não está simplesmente ligada à imagem de um dança109

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rino falando ou de um ator dançando, da forma óbvia e imediata que se pensa. A linguagem propõe a ruptura do binário dança/teatro, corpo/ mente, movimento/texto.

a) A dança-teatro de Pina Baush

A coreógrafa alemã Pina Bausch (nascida em 1940) é da primeira geração pós-guerra e expoente mundial da dança-teatro. Desmonta estruturas mecanizadas e cânones corporais impostos no universo da dança e pela sociedade. Os estudos de MACHADO sobre o método bauschiano afirmam: São carícias que se transformam inesperadamente em agressão, tentativas de toque que se partem em recuos e recusas. O ser humano mostra-se em suas aparências e profundezas, seus pólos conflitantes, seu desespero. Seus corpos, densos de energia, tornam-se frágeis e vulneráveis em encontros e desencontros; depois de violentados são acariciados, novamente agredidos, restando imagens solitárias profundamente dilaceradas ou ocultando a dor em máscaras impassíveis.

Em seus trabalhos coreográficos, Bausch incorpora o balé em sua forma e conteúdo, usando movimentos técnicos e cotidianos em busca de seu próprio vocabulário artístico. De certa forma é um trabalho semelhante ao de Mary Wigman em sua utilização das experiências de vida dos bailarinos, mas distingue-se por não recusar a técnica clássica. Essa ligação entre a cena e as experiências de vida de seus dançarinos, é uma tentativa verdadeira na abstração de cotidianos em diferentes realidades culturais em estéticas críticas e sociais. A coreógrafa utiliza-se de vários bailarinos e lota os palcos; suas peças apresentam um caos grupal generalizado, sob certa ordem, favorecendo processo sobre produto e provocando experiências inesperadas em dançarinos e platéia, e para a surpresa desta, as majestosas imagens de repente abrem espaço para cenas quase vazias, silenciosas e com pouca luz. Mas isto acontece com interação entre as artes sem rejeitar a grandiosidade teatral. Na dança-teatro de Pina Bausch, a repetição é um método e tema crucial, aplicada tanto ás palavras quanto aos movimentos a serem feitos, usada para desarranjar as construções gestuais da técnica ou da própria sociedade. Por meio da repetição de gestos e palavras, a dança-teatro de Bausch contém os interesses de Wigman, com a expressão pessoal e psicológica, e de Jooss, com questões sociais e políticas, além de expandir o gesto social de Brecht para uma política corporal e individual. A repetição tem a função de quebrar a imagem popular de dançarinos enquanto “seres espontâneos”, desmontando conceitos de apenas atores serem considerados os intelectuais do palco, revelando suas insatisfações e desejos. Bausch usa a repetição como um instrumento para alcançar estética crítica. Gestos cotidianos são trazidos ao palco de formas abstratas e gestos técnicos são repetidos até alcançar significação social desconstruíndo imagens estereotipadas e estabelecidas. Palavras são 110

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repetidas até que seus significados se dissolvam seus significados literais tornando-se um referente à fisicalidade da dança. Atualmente a repetição é utilizada em aulas de dança enquanto elemento de fixação e aprendizado de coreografias, e percebe-se que têm sido um grande destaque na construção cênica no contexto da dança contemporânea. Como exemplo posso citar o espetáculo “Solo Solidão”, de minha autoria, onde o ator-dançarino interage com alguns elementos cenográficos como o pato de borracha, a caixinha de música, a bola e a gravata que se remetem à memória infantil, insensata e à vida social de um determinado personagem. Este personagem denuncia suas próprias experiências de vida de forma metafórica e abstrata. Modelos de sons de despertadores, campainhas, ônibus e conversas completam esta proposta numa tentativa de aproximar cenicamente o espectador de seu cotidiano, revelando o próprio cotidiano humano em cena. A repetição de modelos de sons e movimentos torna-se um elemento familiar ao espectador. Costumo refletir da seguinte forma: Hoje acordei feliz, escovei os dentes e me achei belo ao olhar o espelho, será possível repetir as mesmas ações com a mesma intensidade acordando triste amanhã? A dança-teatro nos aproxima do cotidiano tornando a atmosfera cênica tão comum quanto a vida. Repetimos inúmeras vezes as mesmas ações no cotidiano o que se transformam são os sentimentos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A dança e suas inúmeras vertentes possui um destaque artístico respeitável. Pode-se afirmar que ela se comunica com diversas áreas do conhecimento e têm se mostrado fundamental no processo de desenvolvendo prático e cognitivo, dentro e fora das universidades. O corpo não é mais um meio para um fim. Ele tornou-se o assunto da apresentação. Algo novo começa na história da dança: o corpo está contando sua própria história, está produzindo seu próprio texto. A função da dança-teatro é orgânica e visceral e sua experimentação torna-se uma constante inquietação cognitiva na preparação do artista para a cena. Estamos num momento em que a arte e suas inúmeras vertentes crescem gradativamente, onde seres considerados “espontâneos” tornam-se únicos e verdadeiros em suas contribuições. A função da dança-teatro é refletir e questionar as relações e transformações culturais do corpo na própria sociedade. Logo, faz-se necessário o seu conhecimento e apreciação.

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Referências: MARQUES, Isabel A. Dançando na Escola – São Paulo: Cortez. 2003 AZEVEDO, Sônia Machado de. O Papel do Corpo no Corpo do Ator São Paulo: Perspectiva, 2004. CYPRIANO, Fabio. Pina Bausch/ Fabio Cypriano – São Paulo: Cosac Naify, 2005. FERNANDES, Ciane. O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. 2ª edição – São Paulo: Annablume, 2006. Cadernos do GIPE – CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade/ Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. Programa de Pós-Graduação em artes Cênicas. Escola de Dança. –n.12, jul.2004.- Salvador: UFBA/ PPGAC,2004. BONFITO, Matteo. O Ator compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba. São Paulo. Ed. Perspectiva. 2006 LABAN, Rudolf. Dança Educativa Moderna. São Paulo. Ed. Ícone. 1990. LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1978.

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AUTISMO: uma discussão sobre conceito, classificação e educação inclusiva* Manoel William Ferreira Gomes**

Resumo: Discute-se a diversidade e potencial de conceito e de categoria de autismo, a partir de um breve histórico desde o termo grego “autos”, até a classificação pelo DSM – IV (Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais). Na educação inclusiva – vincula-se um pouco da parte legal, desde a Constituição Brasileira de 1824 até do Decreto n. 5.296 de 2 de dezembro de 2004 e considerações. Destaca-se também a apresentação da Associação dos Amigos dos Autistas do Maranhão (AMA – MA). Palavras-chaves: Autismo. Síndrome. Invasivo. Educação inclusiva. Escola.

Abstract: This paper deals with the diversity and potentiality of concept and category of autism from a brief historycal sketch using the term “autos”, a greek prefix until the classification by DSM-IV (Manual for diagnosis and static’s - of the mental disturbances). In the inclusive education it is linked, too, the legal portion from the Brazilian Constitution of 1824 until the Decret n.5.296 of the 2n« of December of 2004 and considerations. It is detached, too, the presentation of the AMA-MA, that’s to say the Association of the Friends of the Autists in Maranhão. Keywords: Autism. Syndrome. Invasive. Inclusive Education. School.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidade e o Centro de Ciências Humanas/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa redonda “Trabalho interdisciplinar com indivíduos com diagnóstico de autismo” ** Professor no Departamento de Psicologia da UFMA; Mestre em Psicologia Social pela UERJ. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO Falar ou escrever sobre o autismo tem sido, em todas as épocas, um grande desafio para todos os profissionais envolvidos com o assunto. Apesar de um volume crescente de publicação de livros, artigos e trabalhos sobre esse tema, constata-se nosso desconhecer ou mesmo ignorância - como diz Pierre Ferrari, professor de Psiquiatria para a Infância e a Adolescência da Universidade de Paris - sobre aspectos que continuam sem respostas nos dias atuais. Poderíamos destacar aqui a questão do próprio conceito, das categorias, da etiologia, do diagnóstico, da avaliação, da intervenção e da educação. No entanto, neste trabalho discutir-se-ão apenas os itens conceituação (categorias e classificação); a Educação Inclusiva; e apresentação da Associação dos Amigos do Autista do Maranhão (AMA-MA). A história do autismo começa com a origem do termo; que provém do grego autos, que significa “de si mesmo”, e foi empregado pela primeira vez pelo psiquiatra suíço Bleuler, em 1911, para descrever a fuga da realidade e o retraimento para o mundo interior dos pacientes adultos acometidos de esquizofrenia. A psicanalista inglesa Melanie Klein - assistente de Freud - foi a primeira a aplicar o tratamento psicanalítico em uma criança autista. Ela não empregou o termo “autismo”, mas descreveu “a importância da formação do símbolo no desenvolvimento do eu”, em um artigo publicado em 1930. Cita o caso do menino Dick, de quatro anos, desprovido de afeto, que era indiferente à presença ou à ausência da mãe ou da babá; não se relacionava com as pessoas e não fazia de conta com os brinquedos (FERRARI, 2007). Em 1943, Leo Kanner psiquiatra norte-americano de origem austríaca fez a primeira descrição do autismo em seu artigo “Distúrbios autísticos de contato afetivo” - o autismo infantil precoce. Para Kanner, o autismo consiste na “[...] incapacidade das crianças de estabelecer relações normais com as pessoas e de reagir normalmente às situações, desde o início da vida”. Ele caracterizou clinicamente a afecção, retornando ao termo “autismo”, que o psiquiatra Bleuler havia empregado para descrever a fuga da realidade. Dessa maneira, o autismo infantil foi reconhecido por Kanner como uma afecção autônoma e específica ligada aos primeiros anos da infância – autismo infantil (FERRARI, 2007, p. 9). Em 1944, Hans Asperger, um médico austríaco, escreveu um artigo com o título “Psicopatologia Autística da Infância”, no qual chama atenção para a qualidade do comportamento social do autista que perpassa a simples questão de isolamento físico, timidez ou rejeição do contato humano, mas se caracteriza, sobretudo, pela dificuldade em manter contato afetivo com os outros, de modo espontâneo e recíproco - “psicopatia autística”. Assim, historicamente, constata-se que a inclusão do autismo na categoria de psicose ou de esquizofrenia varia conforme as escolas psiquiátricas. 114

Autismo: uma discussão _________________________________________________________________

Por “psicose” compreende-se, de um modo geral, um distúrbio maciço da realidade, envolvendo uma desorganização (ou a não organização) da personalidade. O termo “esquizofrenia”, inicialmente denominada por Kraepelin, de demência precoce, referia-se a alterações específicas no pensamento, nos sentimentos e nas relações com o mundo externo, cujo curso muitas vezes é crônico ou intermitente Houzel (1991 apud BAPTISTA; BOSA, 2002, p. 27). Verifica-se, assim, grande controvérsia com relação à distinção entre autismo, psicose e esquizofrenia. Por essa razão é que as primeiras edições da Classificação de transtornos mentais e de comportamento CID não fazem qualquer menção ao autismo. Já a oitava edição o traz como uma forma de esquizofrenia, e a nona agrupa-o como psicose infantil. Por sua vez, a partir de 1980, assiste-se a uma verdadeira revolução paradigmática no conceito, sendo o autismo retirado da categoria de psicose do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais DSM-III e do DSM- III-R, bem como na CID-10, passando a fazer parte dos transtornos globais de desenvolvimento – TGD. Daí então o DSM-IV traz o transtorno autista como integrando os transtornos invasivos do desenvolvimento – TID, encontrando-se também na tradução para o português o termo “abrangente” em substituição a “invasivo”, juntamente com os transtornos desintegrativos (BAPTISTA e BOSA, 2002). Tanto o CID-10 quanto o DSM-IV estabelecem como critério para o transtorno autista o comprometimento em três áreas principais: a) Alterações qualitativas das interações sociais recíprocas; b) Modalidades de comunicação e c) Interesses e atividades restritos, estereotipados e repetitivos. A classificação francesa define autismo como psicose, diferenciando o chamado autismo infantil “tipo Kanner” (com aparecimento dos primeiros sintomas dentro do primeiro ano de vida e quadro completo até os três anos) das “outras formas de autismo infantil”, com o aparecimento tardio dos sintomas, após os três anos, incluindo também algumas formas de psicose do tipo simbiótica – condição de mãe e filho na vida extra-uterina -, da deficiência mental, demência e distúrbios complexos da linguagem oral. Em 1990, o Grupo para o Avanço da Psiquiatria – GAP também enquadrou o autismo em transtornos psicóticos, sendo denominado de “autismo infantil precoce”. É bom ressaltar a mudança na forma de conceber o autismo, passando da condição de “doença”, com identidade definida e distinta dos quadros envolvendo problemas orgânicos, para a de “síndrome” – que significa conjunto de sintomas. Assim, quando se fala de transtorno ou síndromes autistas, quer-se designar a “tríade de comprometimentos” independentemente da sua associação com aspectos orgânicos, ou seja, identifica um perfil comportamental com diferentes etiologias. Essas mudanças refletem o acúmulo de conhecimento produzido por 115

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pesquisas no mundo todo, incluindo-se os epidemiológicos, na busca de identificar-se tanto as características clínicas comuns como suas especificidades e delinearem-se aspectos diferenciais de outras condições como deficiência mental, transtornos da linguagem e esquizofrenia. Com referência à identificação do nível de comprometimento autista, Lorna Wing, psiquiatra inglesa, critica a divisão em subgrupos como autismo típico, atípico e não especificado. No entanto, Batista; Bosa (2002), afirmam que, do ponto de vista de investigação científica, é importante a identificação de subgrupos e seus possíveis perfis sociais, cognitivos e outros. No final de 1979, Lorna propôs a noção de “espectro autista”, para designar déficits qualitativos na denominada tríade de comprometimentos (linguagem, comunicação social e imaginação).

2. EDUCAÇÃO INCLUSIVA Para entender a questão da inclusão de pessoas com deficiências, necessário seja feito um esborço histórico da legislação produzida em todo o mundo sobre essa matéria. Na época do Brasil Império, na Constituição de 1824, foi consagrado o direito à educação para todos os brasileiros, tendo esse direito se mantido nas Constituições de 1934, 1937 e 1946. Com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 1948 pela Assembléia Geral das Nações Unidas, afirmou-se o princípio da não discriminação e se proclama o direito de toda pessoa à Educação. Em 1990 aconteceu a Conferência Mundial Sobre Educação Para Todos em Jomtien, na Tailândia, que não apenas firmou a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos, mas também confirmou um Plano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem (CARNEIRO, 2007, p. 33 – 34). Não apenas o tema educação simplesmente mas também educação inclusiva têm sido motivo de vários estudos e encontros. Entre eles destaca-se pela sua importância a Conferência Mundial de Necessidades Educacionais Especiais, na Espanha, em 1994, quando foi aprovada a Declaração de Salamanca, cujos princípios norteadores são: 1. O reconhecimento das diferenças. 2. O atendimento às necessidades de cada um. 3. A promoção de aprendizagem. 4. O reconhecimento da importância da “escola para todos”. 5. A formação de professores. Os aspectos político-ideológicos que estão embutidos nos princípios dessa Declaração levam a pensar num mundo incluso, onde todos têm direito à participação na sociedade, fazendo valer a democracia de forma cada vez mais ampla. No Brasil contemporâneo, a Lei n. 9.394/96 Lei de Diretrizes e Bases da Educação) reserva o capítulo V à Educação Especial, cujos detalhamentos são fundamentais: 116

Autismo: uma discussão _________________________________________________________________

1. Garantia de matrícula para os Portadores de Necessidades Educacionais Especiais, preferencialmente na rede regular de ensino. 2. Criação de apoio especializado, para atender às peculiaridades dos alunos especiais. 3. Oferta de educação especial durante a educação infantil. 4. Especialização de professores. É tarefa dos governos federal, estadual e municipal implementar a Política Pública de Inclusão, visto que na forma federativa cada esfera tem atribuições específicas. Atualmente dispomos da Coordenação Nacional para integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), que pertence à estrutura da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, responsável pela condução da regulamentação das leis federais de acessibilidade, envolvendo treze ministérios e outros órgãos governamentais, consulta pública, consolidação das contribuições da sociedade até a sanção presidencial do Decreto n. 5.296, em 2 de dezembro de 2004 (Manual da mídia legal 4, 2005). Nesse breve histórico, compreende-se que a legislação garante o acesso de qualquer pessoa portadora de deficiência à mesma sala de aula de crianças ou adolescentes não portadoras de deficiência. No entanto, muitas instituições de ensino recusam-se a receber pessoas portadoras de deficiência, inclusive da síndrome de autismo, em seu corpo discente. Feitas as considerações legais sobre a Educação, abordar-se-á o sistema educacional inclusivo. A Globalização implantou em todo o planeta uma enorme velocidade nas mudanças do dia-a-dia das pessoas, principalmente a dos avanços científicos e tecnológicos, disponibilizando, a serviço do homem pós-moderno, recursos e possibilidades antes considerados impossíveis. Essa nova realidade tem provocado mais competição e mais desigualdade principalmente entre os povos de países periféricos ou em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, conduzindo-os a uma convivência com índices inaceitáveis de injustiça social. Nesse contexto, incluí-se a Educação, apesar da maioria dos diversos países estar empenhada em interesses comuns que visam superação do fracasso escolar, consubstanciado em altos índices de evasão, repetência e baixo rendimento. Vive-se um grande desafio: como efetivar, na prática, os direitos assegurados a todos, para que possam se beneficiar da educação de qualidade? (EDLER CARVALHO, 2004). E mais: quanto às pessoas portadoras de deficiência, dos que apresentam condutas típicas de síndromes neurológicas, genéticas, psiquiátricas e psicológicas, como é o caso do autista, como garantir, em escolas inclusivas, o princípio da integração e a elevação dos níveis de qualidade no processo educacional? Percebe-se facilmente que são muitas as providências políticas, administrativas e financeiras a serem tomadas para que as escolas, sem discriminações de qualquer natureza, acolham a todas as crianças, in117

Manoel William Ferreira Gomes _________________________________________________________________

dependentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas e também crianças portadoras de deficiência. Sabe-se que as mudanças na maneira de fazer educação para todos, e principalmente para pessoas portadoras de deficiência não ocorrem pelo tremular de uma varinha do condão. Na verdade, as transformações que todos almejam conduzindo as escolas a oferecer respostas educativas de qualidade – ao mesmo tempo comuns e diversificadas -, não dependem, apenas, das políticas educacionais, mas articuladas com todas as outras políticas públicas, particularmente com aquelas que detêm a distribuição de recursos financeiros. Dessa forma, é necessário que a Educação Especial deixe de ser um subsistema que se ocupa de um determinado tipo de alunos com deficiências, “[...] para converter-se num conjunto de serviços e de recursos de apoio, orientado para a educação regular, em benefício de todos os aprendizes” (DUK, s/d, apud EDLER CARVALHO, 2006, p. 78). Atualmente os sistemas educacionais inclusivos estabelecem programas, projetos e atividades que permitem o desenvolvimento pleno da personalidade dos indivíduos, fortalecendo o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, proclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tendo feito esse percurso sobre a Educação Inclusiva, necessário se faz saber, então, o que é uma Escola Inclusiva? Segundo Carneiro (2007, p. 30), trata-se de uma: Instituição de ensino regular aberta à matrícula de TODOS os alunos indistintamente. Este conceito é a base de sustentação da compreensão de escola que, além de trabalhar o conhecimento universal nas suas manifestações contemporâneas, tem, também, a responsabilidade de objetivar processos de aprendizagem de acordo com as particularidades de cada aluno.

Já Edler Carvalho (2006, p. 29), pesquisadora em Educação Inclusiva, diz que:

Pensar na inclusão dos alunos com deficiência(s) nas classes regulares sem oferecer-lhes a ajuda e apoio de educadores que acumularam conhecimentos e experiências específicas, podendo dar suporte ao trabalho dos professores e aos familiares, parece-me o mesmo que fazê-los constar, seja como número de matrícula, seja como mais uma carteira na sala de aula.

Os estudos demonstram que não há diferença nos objetivos da educação especial e da regular. Ambas têm por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, quando possível. Nesse contexto, então, concluí-se que a inclusão escolar tem sido um equívoco, especialmente quando das mudanças, nas escolas tanto comuns como especiais. Esse é o ponto de maior discussão, visto que, sem essas mudanças as instituições de ensino não terão condições de receber a todos os alunos indistintamente (MANTOAN e PRIETO, 2006).

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AUTISMO: uma discussão _________________________________________________________________

3. ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS DO AUTISTA DO MARANHÃO. Muito antes do ano de sua fundação, um grupo de pais de crianças e adolescentes autistas desta cidade já se reunia, buscando articular a criação de uma associação que pudesse assistir seus filhos e dar apoio as famílias. Desse modo, em 25 de setembro de 2004, esse grupo acrescido de outros pais, e incentivado pela Clínica Neurocenter, criou a Associação de Amigos do Autista do Maranhão (AMA-MA), quando foi eleita uma diretoria provisória com o objetivo de providenciar seu registro, elaborar os estatutos e preparar a eleição de uma diretoria regimental. No dia 30 de dezembro deste ano, a associação dará posse a sua segunda diretoria com mandato para o biênio 2008 – 2009. A AMA – MA é uma entidade civil, com personalidade jurídica de direito privado, de caráter filantrópico, sem fins lucrativos, com duração indeterminada, com autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com sede foro na cidade de São Luís, Capital do Estado do Maranhão. A Associação tem por finalidade: assistir aos portadores de necessidades especiais “autista e suas variantes”, dando-lhe assistência à saúde, à educação bem como realizar sua integração e inclusão ao mercado de trabalho, à cultura, ao esporte e ao laser; oferecer à família uma orientação sistemática, adequada, e socializar conhecimentos relacionados a questão, propiciando-lhe uma melhor qualidade de vida; fomentar amplos debates com os pais sobre as relações da dinâmica familiar destacando-se os aspectos emocionais e comportamentais; fomentar subsídios e promover estudos e discussões com seus associados acerca de assuntos correlatos a síndrome de pessoas autistas e suas variáveis e promover junto à comunidade campanhas de esclarecimento, sobre o autismo, objetivando diminuir os preconceitos ainda existentes. Referências: BATISTA, C. R. e BOSA, C. (Orgs). Autismo e educação: reflexões e propostas de intervenção. Porto Alegre: Artmed, 2002. CARNEIRO, Moaci Alves. O acesso de alunos com deficiência às escolas e classes comuns: possibilidades e limitações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007 EDLER CARVALHO, Rosita. Educação inclusiva: com os pingos nos “is”. 4. ed. Porto Alegre: Mediação, 2006. FERRARI, Pierre. Autismo infantil: o que é e como tratar. Tradução de Marcelo Dias Almada. – São Paulo: Paulinas, 2007. –(Coleção caminhos da psicologia). MANTOAN, Maria, T. E. e PRIETO, Rosângela G. Inclusão escolar: pontos e contrapontos. Valéria Amorim Arantes, organizadora. - São Paulo: Summus, 2006. Manual da mídia legal 4: comunicadores pelas políticas de inclusão. Escola de Gente – Rio de Janeiro: WVA Editora, 2005. 119

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IMITAÇÃO E IMAGINAÇÃO ‘DA MIMESIS ÀS PAIXÕES’: a ilusão do reflexo para Rousseau* Luciano da Silva Façanha**

Resumo: No contexto do iluminismo francês do XVIII, destaca-se a figura do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau que, além de escrever obras de ficção, também pensa sobre a atividade artística em termos de sua conceituação e da função e utilidade que é atribuída pela sociedade setecentista. Elaborando uma das maiores críticas à idéia de Imitação (Mimese), pois, esta colaborou para a degradação dos costumes, observada nos progressos sofridos pelo homem, dentro de uma perspectiva do declínio. Palavras-chave: Imaginação. Rousseau. Ficção. Mimesis. Verdade. Metáfora. Reflexo. Fábula. Abstract: In the context of the French iluminismo of the XVIII, it is distinguished figure of the genevan philosopher Jean-Jacques Rousseau who, beyond writing fiction workmanships, also think on the artistic activity about terms of its conceptualization and the function and utility that is attributed by the setecentista society. Elaborating one of the critical greaters to the idea of Imitation (Mimese), therefore, this collaborated for the degradation of the customs, observed in the progressos suffered for the man, inside of a perspective of the decline. Keywords: Imagination. Rousseau. Fiction. Mimesis. Truth. Metaphor. Consequence. Fábula.

Este texto é uma versão ligeiramente modificada do apresentado durante o VII ENCONTRO HUMANÍSTICO – Centro de Ciências Humanas – UFMA, na Mesa Redonda Progresso e Decadência: arte, história e memória. São Luís / MA, 21.11.2007. ** Doutorando em Filosofia na PUC/SP, Mestre em Filosofia pela PUC/SP e Professor do Departamento de Filosofia da UFMA. E-mail: [email protected] *

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1. INTRODUÇÃO No século XVIII, tempo em que, com quase nenhuma exceção, os filósofos escrevem tratados de filosofia, de política, diálogos, poesia, peças de teatro, romances, contos, fábulas, obra de história, elaboram peças de música. É de se supor que haja unidade nessas obras, apesar de toda a distinção que há na produção desses autores, principalmente do Rousseau. Esses homens se pensam, como Homens de Letras. Essa idéia de uma República das Letras que vem desde o Renascimento até o período da Ilustração, objetiva a reunião dos intelectuais da Europa inteira, independente dos Estados constituídos ou por constituírem, independente das crenças e das particularidades locais. É claro que, essa comunidade representa um modelo ideal, solidamente instalado na memória dos intelectuais até o final do Antigo Regime, mas, também, nos permite compreender as relações que os Homens de Letras estabeleciam com seus pares; além de contribuir para fazer evoluir a noção de autor, em um campo de forças harmoniosas ou conflituosas, pois a República da Letras é o norte do Imaginário, da Imaginação. O Homem de Letras equivale à figura daquele que pratica as Belas Letras, herdeiro de uma cultura e dirigindo-se a uma elite letrada. As belas letras permanecem como uma referência exemplar, que determina uma prática do discurso baseada em uma concepção valorizada da criação literária. Neste momento cabe a distinção entre o que é autêntico e o inautêntico, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o justo e o injusto; ou seja, a crítica, a arte de julgar e, portanto, de distinguir, estaria em relação estreita com uma concepção dualista do mundo. A razão pesava constantemente, ‘contra e a favor’, enfrentando contradições que produziam sempre novas contradições, dissolvendo-se em um trabalho permanente de crítica. Não há mais nada que possa contentar a razão. O progresso passa a ser o guia da crítica, mesmo quando ele não é considerado um movimento ascendente, e sim de destruição, ou decadência, como era para Rousseau1 (FAÇANHA, 2007, p. 93-101). “Da consciência dessa oposição nasceu a síntese intelectual que devia conduzir o século XVIII à fundação da estética teórica. [Ciência para a qual converge todo o esforço por uma visão clara do individual, da coerência e da unificação formal] Mas, antes que essa síntese intelectual tivesse recebido a sua forma definitiva , o pensamento filosófico deveria ainda enfrentar uma série de etapas preliminares com vistas à definição, sob diversos aspectos e várias perspectivas, da unidade que queria estabelecer entre os termos em conflito” (CASSIRER, 369, 1992). Segundo Cassirer, tanto a poética, a retórica, quanto a teoria das artes plásticas, deste período, devem ser consideradas numa perspectiva sintética, pois, “a verdadeira e essencial tarefa da crítica reside, precisamente, em transpor esse limite, em penetrar com seus raios o claro-escuro da ‘sensação’ e do ‘gosto’ que ela deve sem 122

Imitação e Imaginação ‘da mimesis às paixões’ _________________________________________________________________

cometer nenhum atentado à sua natureza, trazer para a luz do conhecimento.” (Id. Ibid., 368, 1992) A partir do século XVIII, julgar é nivelar tudo, é reduzir até mesmo o rei à condição de cidadão. Para os Homens das Letras, o poder é sempre abuso de poder. Assim, um bom monarca é pior do que um mau, porque impede a criatura humilhada de perceber a estupidez do princípio absolutista. Inclusive, no discurso preliminar da Enciclopédia, D’Alembert nos diz que, “o filósofo necessita conquistar sua certeza, abominando as noções abstratas.” (D’ALEMBERT 131, 1964) Então, se neste período, não há possibilidades de resolver as questões metafísicas, deixemo-las de lado e pensemos naquilo que nos diz respeito mais de perto e para o qual, talvez, possamos encontrar alguma resposta. Esclarecemos que a questão trazida aqui é justamente a que remonta algumas das reflexões de Platão sobre os efeitos negativos da mímesis. O termo mímesis, “significa literalmente imitação.” (AUERBACH, 1-20, 2004) Rousseau resolve acompanhar a condenação que Platão faz a mímesis no livro X da República (595 a608 b). Platão designa a semelhança das coisas empíricas com as idéias, de que são as representações, incluindo entre aquelas coisas empíricas também as obras de arte. Portanto, a mímesis torna-se conceito central da estética.

2. O SENTIDO DE MÍMESIS PARA ROUSSEAU

Rousseau não estuda a mímesis em si mesma, mas como parte da linguagem, não como faz um lingüista, mas como uma manifestação de questões e problemas pertinente à sua filosofia. Não se trata, assim, de uma ‘filosofia da linguagem’, mas de ‘problemas da linguagem na filosofia’. Por certo, muitos outros nomes poderiam constar nesse ensaio – Diderot, Voltaire, D’Alembert são apenas exemplos de alguns autores cujas concepções mereceriam nossa atenção. A escolha de limitar nossa pesquisa a esse autor se deve a ênfase que ele dá ao tema da mesa redonda “Progresso e decadência: arte, história e memória”, pois, a problemática da mímesis está intimamente vinculada à saída do estado de natureza e a instauração de uma sociedade degenerada pelo progresso. Primeiramente, se observa alguns argumentos de Rousseau na Carta Sobre os Espetáculos (Carta a D’Alembert), pois, ele apresenta o interesse subsidiário de anunciar a crítica ao efeito de sugestão produzido pelos meios de comunicação, tão atual nos dias de hoje: ‘o fato do prazer do cômico basear-se em um vício do coração humano, terá, como conseqüência, que, quanto mais a comédia for agradável e perfeita, mais o seu efeito será funesto aos costumes’; fala da intenção de Molière, no que se refere a comédia: “Tendo de agradar ao público, ele consultou o gosto mais geral daqueles que o compõem: sobre esse gosto ele formou um modelo, e sobre esse modelo pintou um quadro dos defeitos contrários, do qual tomou seus caracteres cômicos, e cujos diversos traços distribuiu em suas peças.” (ROUSSEAU, Carta a D’Alembert, 55, 1993) 123

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Segundo Rousseau, o teatro reflete, pura e simplesmente, os costumes estabelecidos e deve, portanto, ser condenado pela razão prática, por conduzir inevitavelmente seu público a aprovar o estado presente da sociedade, que é mau. As alegrias que o sujeito encontra na satisfação de suas verdadeiras necessidades, o teatro substitui um prazer sem utilidade. O prazer do espetáculo seduz o espectador, afastao, e essa mesma distância o faz esquecer, na contemplação de um destino imaginário, seus deveres imediatos. Em outros termos, o teatro faz com que o sujeito se identifique com os personagens, com suas paixões, colocando em ação forças subconscientes que minam a sensibilidade moral do receptor por meio da imitação. O horror ao mal, que personagens como Fedra e Medéia inspiram, vai, aos poucos, sendo reduzido e se transformando em simpatia. Do mesmo modo, o espectador da comédia é levado a rir do que há de ridículo na virtude de um misantropo respeitável, por exemplo. Assim, a comédia presta homenagem ao vício secreto que se dissimula atrás do prazer extraído do cômico. Como se disse, há, em Rousseau, uma retomada da questão da mímesis, na recusa à imitação dos costumes da sociedade, necessariamente corrompida, segundo o nosso autor. Contrapondo natureza a cultura, o filósofo genebrino sugere que se consulte a natureza, ou passando a pregar a base da sua proposta ficcional. O conceito de arte estaria, então, de volta a Platão, na sua conceituação de mimesis. Também, no Emílio, livro III, Rousseau põe na boca do preceptor Jean-Jacques, uma afirmação surpreendente: “Detesto livros; só ensinam a falar do que não se sabe.” (ROUSSEAU, Emílio, Livro III, 200, 1995) Esse juízo, pronunciado por um dos mais influentes Homens de Letras de seu século, pode à primeira vista soar como uma banalidade de um autor que se deliciava com os contrastes. Porém, a sustentação dessa questão revela uma implacável coerência: Emílio será cuidadosamente mantido à distância desses perigosos objetos: ele aprenderá a ler tardiamente e apenas para fins estritamente práticos; os livros a que Rousseau se refere são as fábulas, bastante recomendadas para a edificação moral das crianças. Examinar as razões que levaram Rousseau a adotar essa postura é colocar-se de imediato na intersecção de todos os grandes temas que perpassam todo o seu pensamento. A crítica do genebrino se refere à substituição das coisas pelos signos e do que é pelo que parece ser, o resguardo contra a expansão incontrolada da imaginação e, especialmente, da imitação, a norma de adequação à natureza, tanto nos procedimentos de representação artística como no percurso ordenado das etapas que levam da criança ao homem plenamente desenvolvido que pode, enfim, tirar um proveito autêntico e não alienado da leitura das obras literárias. Mas o caminho até essa proveitosa fruição dos livros é árduo e cheio de perigos. O mais característico é o já apontado: “falar do que não se sabe”. Antes de se ter obtido um sólido conhecimento das próprias coisas, a fixação nas palavras, faladas ou escritas, constitui uma 124

Imitação e Imaginação ‘da mimesis às paixões’ _________________________________________________________________

substituição perversa da coisa pelo signo, da matéria da sensação e da experiência pela representação (pela convenção). No caso das crianças, seres eminentemente sensíveis e nada racionais, de que serve “inculcar em suas cabeças um catálogo de signos que nada representam para elas?”. A apreensão das coisas é condição prévia para a apreensão correta dos signos, e inverter essa ordem na educação das crianças não é apenas um exercício inútil, mas positivamente nocivo. Memória, imitação, imaginação e aprendizado devem, portanto, exercer-se inicialmente sobre a massa de sensações e experiências que constituem seu ambiente concreto – tudo o que a criança toca, escuta e se recorda, tanto com relação às coisas, a seus próprios estados internos, e aos comportamentos dos que a circundam. Esse é o livro, diz Rousseau, com o qual ela, sem perceber, enriquece continuamente sua memória enquanto aguarda o momento em que seu julgamento venha a se aproveitar dessa massa acumulada de observações. O contato exclusivo com as coisas tem também o dom de evitar o crescimento desregrado daquela faculdade que – responsável, é certo, pelos cumes do desenvolvimento intelectual, espiritual e artístico da humanidade – é também seu mais implacável algoz: o reflexo da ilusão. Pois é a imaginação que possibilita aos homens descolar-se do mundo real e vislumbrar horizontes que estimulam seus desejos em um grau incompatível com as possibilidades efetivas de sua satisfação, instaurando esse hiato intransponível que está, para Rousseau, na origem das frustrações e sofrimentos que se abatem sobre a humanidade civilizada. A educação de Emílio é, nesse sentido, em grande medida negativa – trata-se principalmente de evitar seu contato com os objetos que ele não deve conhecer, em benefício de um desenvolvimento paulatino e controlado de suas faculdades imitativas. E as palavras (metáforas), que não são as coisas, mas, seus meros representantes, e que gozam por isso mesmo de uma cômoda irresponsabilidade diante das realidades do mundo, devem ser objeto de cautela especial. Observemos como Rousseau desmascara o gênero literário que a sabedoria convencional de sua época havia tomado como a literatura infantil por modelo: as fábulas de La Fontaine. “Ensinam as fábulas de La Fontaine a todas as crianças e nenhuma só as entende. E se as entendesse seria pior ainda, porquanto a moral se apresenta tão confusa e tão desproporcional com sua idade que a levaria mais ao vício do que à virtude.” (ROUSSEAU, Livro II, 104-105, 1995) O próprio encanto e atração que as fábulas apresentam são alcançados por meio de recursos fantasiosos e poéticos que obscurecem o ponto crucial e desviam a atenção para inúmeros outros pontos, levando por vezes a conclusões em franco desacordo com os propósitos edificativos visados. Para fundamentar e desenvolver sua crítica, Rousseau dedica várias páginas do Emílio à discussão de uma das fábulas mais conhecidas e elogiadas de La Fontaine – a fábula do Corvo e a Raposa, submetendo-a, verso a verso, a uma impiedosa dissecação. Vejamos: 125

Luciano da Silva Façanha _________________________________________________________________ Mestre Corvo, em uma árvore empoleirado Tinha no bico um queijo

As objeções de Rousseau dirigem-se tanto ao conteúdo expresso quanto à forma de expressão. “Mestre! Que significa esta palavra em si? Que significa diante de um nome próprio? Que sentido tem nesta oportunidade? Qual a razão para se chamar o corvo de Mestre? A criança que lê a fábula sabe o que é um corvo? Se nunca viu um, que sentido há em falar-lhe deles? Se ela sabe como é um corvo, como poderia razoavelmente conceber que ele estivesse segurando um queijo no bico? Que queijo? Da Suíça, de Brie ou da Holanda? Façamos sempre imagens segundo a natureza.” (ROUSSEAU, Livro II, 105-106, 1995) A forma da linguagem também é objeto de crítica: “que significa numa árvore empoleirado? Não se diz numa árvore empoleirado, diz-se empoleirado numa árvore.”(Id.) Rousseau observa, que será preciso explicar à criança as peculiaridades da linguagem em verso e as razões por que ela é empregada no relato. Faz uma crítica também, à licença poética dos animais falantes: “Mais ou menos assim lhe falou. Falou? Então as raposas falam? E falam a mesma linguagem que os corvos? Prudente preceptor toma cuidado, pesa bem tua resposta antes de dá-la. Tem mais importância do que imaginas.” (Id.) Os comentários aos versos seguintes retomam a crucial questão da mentira. Eh! bom dia, senhor Corvo! Como sois bonito! Como me pareceis belo! Sem mentir, se vosso gorgeio Correspondesse a vossa plumagem, Serieis a fênix dos hóspedes deste bosque (Op. cit., p. 107)

Antes, porém, Rousseau volta a apontar os aspectos indesejáveis do emprego desta linguagem. É claro que o que Rousseau vê como má prática pedagógica é exatamente o recurso do literato, essa redundância, cabe apontar, não é inútil e desprovida de conteúdo, pois tem o papel de realçar o intento do bajulador que, com a multiplicação das palavras, almeja multiplicar os elogios. Nada disso, é claro, passa despercebido ao preceptor Jean-Jacques, a quem de modo algum falta sensibilidade estética. Mas, ele insiste as razões que satisfazem o homem afeito ao mundo, às paixões e à arte não são algo que Emílio possa pelo momento compreender. Mas é o verso seguinte que mais desperta sua indignação. “Sem mentir! Mente-se então às vezes? Em que pé ficará a criança se lhe explicardes que a raposa diz sem mentir exatamente porque mente?” (Id.) Há aqui demasiadas sutilezas e perversidades que a criança merece ser poupada – o abismo entre ser e parecer que governa a conduta da maioria dos homens irá ao fim tornar-se seu conhecido. É importante que ela preserve sua autenticidade e transparência durante esses anos cruciais de sua formação. Ante tais palavras, o corvo não cabe mais em si de alegria. E para mostrar sua bela voz Abre um largo bico e deixa cair sua presa. (Id.)

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Imitação e Imaginação ‘da mimesis às paixões’ _________________________________________________________________

Chega-se a culminação da fábula, o ponto para o qual converge toda a ação: é a queda do queijo, que tem como contrapartida dramática a queda de todos os disfarces e o desvelamento das verdadeiras naturezas do corvo e da raposa, ou antes, dos tipos humanos que esses personagens-animais representam. Antes dessa dissolução de todos os enganos, o verso precedente se referira à “bela voz” do corvo. Esse é um ponto crucial: “Não vos esqueçais de que, para entender este verso e toda a fábula, a criança deve saber o que seja a bela voz do corvo.” (Id.) Mas – justamente – o relato nesse ponto parece cúmplice da ilusão, e cabe fazer a criança entender que a voz é chamada “bela” precisamente porque não é bela. Diferentemente da raposa, porém, o narrador não tem o propósito de fazer alguém crer nessa mentira – mas como poderíamos explicar à criança seu propósito, e, caso o consigamos, em que medida a instrução de uma criança na prática do discurso irônico e da inversão do sentido das palavras pode trazer-lhe algum proveito e edificação? Chega-se à moral da fábula, esses apêndices que são redundantes no caso em que a fábula teve sucesso em sua empreitada, e impotentes quando ela fracassou: Pega-o a raposa e diz: Meu bom senhor Aprendei que todo adulador Vive a expensas de quem o escuta Esta lição vale bem um queijo, sem dúvida. O corvo, envergonhado e confuso, Jurou, um pouco tarde, que noutra não cairia. (Id.)

Rousseau nota inicialmente o uso pejorativo de “bom” em “meu bom senhor”: “Eis aí a bondade já transformada em tolice. Por certo não se perde tempo para instruir as crianças.” – isto é, ao instruí-las quanto ao real valor que a sociedade dá à bondade. E, com essa constatação, podemos passar ao diagnóstico de Rousseau quanto ao fracasso das fábulas em geral, na tarefa de promover a edificação moral a que ostensivamente se propõem. Citando Rousseau: Pergunto se é preciso ensinar a crianças de dez anos que há homens que lisonjeiam em benefício próprio? Poder-se-ia quando muito ensinar-lhes que há zombadores que caçoam das crianças e, em segredo, põem a ridículo sua tola vaidade; mas o queijo estraga tudo; ensinam-lhes menos a não deixarem cair do bico do que a fazerem-no cair no bico de outrem. Eis meu segundo paradoxo e não menos importante. (Id. Ibid., 108)

Rousseau identifica duas empreitadas totalmente paradoxais: ‘ensinar que existem homens que adulam e mentem’; ‘ensinar os meios de realizar esses atos’.

Observai as crianças aprendendo suas fábulas e vereis que, quando em condições de aplicá-las elas o fazem quase sempre ao contrário da intenção do autor e que, ao invés de atentarem para o defeito de que lhes querem curar ou prevenir, elas se inclinam para o vício mediante o qual se tira proveito dos defeitos dos outros.” (Id.)

Pouco sensibilizadas pelas emoções, e menos ainda pelas emoções de outrem, eminentemente práticas e imediatistas em suas aspirações, as crianças tendem naturalmente a identificar-se com quem é 127

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bem-sucedido. Fazem troça do corvo e todas admiram a raposa. A pretensa lição moral se torna uma lição de imoralidade. “Ninguém gosta de se humilhar, e as crianças assumirão sempre o papel do vencedor – é a escolha do amor-próprio”(Id.); é uma escolha muito natural (é a escolha da convenção). Ressalta-se que na Nova Heloísa, Rousseau já havia antecipado essa mesma censura em relação à educação dos filhos de Julie e Wolmar. Na Carta III da Parte V, St. Preux narra as palavras de Julie: Sabeis que nosso filho mais velho já lê passavelmente. Eis como nasceu nele a vontade de aprender a ler. Tinha a intenção de dizer-lhe, de vez em quando, para diverti-lo, alguma fábula de La Fontaine e já começara quando ele me perguntou se os corvos falavam. Vi imediatamente a dificuldade para fazer-lhe sentir bem claramente a diferença entre o apólogo e a mentira; safei-me da dificuldade como pude e, convencida de que as fábulas são feitas para os homens mas que se deve sempre dizer a verdade nua às crianças, suprimi La Fontaine.” (ROUSSEAU, Júlia ou A Nova Heloísa, 502, 5ª. Parte, CartaIII, 1994)

Porém, é importante compreender qual é exatamente a natureza da crítica que Rousseau dirige às fábulas de La Fontaine. Algumas passagens da exposição precedente já deixaram bastante claro, que não se trata de uma insensibilidade de Rousseau para com os méritos artísticos ou mesmo morais dessas obras. Ele mesmo torna isso explícito no parágrafo com qual encerra sua discussão:

Entremos em acordo, senhor de La Fontaine. Prometo ler-vos com cuidado, amar-vos e instruir-me com vossas fábulas, pois espero não me enganar com seu objetivo; mas quanto a meu aluno, permiti que não lhe deixe estudar uma só até que me tenhais provado seriamente que lhe é útil aprender coisas de que não compreende um quarto sequer; que naquelas que poderá compreender nunca se porá do lado errado, que ao invés de se corrigir com a vítima não se forme de acordo com o malandro.” (Id. Ibid., 109)

Se nos é fácil, por um lado, aceitar que a educação de uma criança envolve muitas outras atividades além da leitura, a completa interdição dos livros proposta por Rousseau continua a chocar nossa sensibilidade. Mas essa interdição só pode ser adequadamente compreendida no contexto de todo o projeto educacional que Rousseau delineou no Emílio, e nossa dificuldade é, exatamente, assimilar a radicalidade desse projeto. Rousseau propõe uma educação segundo a natureza, e dentre as muitas implicações dessa caracterização está a idéia de que cada uma das fases do desenvolvimento do ser humano apresenta suas potencialidades e necessidades peculiares.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Rousseau estabelece algumas condições, por meio da representação natural que pudesse reunir todas as lições esparsas em tantos livros, num único objeto: Filósofo ardoroso, (...) Desde que precisamos absolutamente de livros, existe um que fornece, a meu ver, o mais feliz tratado de educação natural.

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Imitação e Imaginação ‘da mimesis às paixões’ _________________________________________________________________ Esse livro será o primeiro que meu Emílio lerá; ele sozinho constituirá durante muito tempo toda a sua biblioteca e sempre terá nela um lugar importante. Será o texto a que todas as nossas conversações acerca das ciências naturais servirão apenas de comentários. Servirá para comprovar os progressos de nossos juízos. E enquanto nosso gosto não se estragar ele nos agradará sempre. Mas qual será esse livro maravilhoso? Aristóteles? Plínio? Buffon? Não: Robinson Crusoé. (ROUSSEAU, Livro III, 200, 1995)

A diferença mais importante é que Robinson Crusoé, em sua ilha, deve enfrentar problemas que não envolvem seres humanos, e não se resolvem, pela influência sobre atos e opiniões maleáveis de outrem, mas apenas pela atuação sobre a natureza inflexível das coisas. Toda a complexa dinâmica das paixões humanas, com as oportunidades corruptoras que abrem à imitação e a imaginação, estão ausentes, não há rigorosamente nada, no livro, que possa ser mal-interpretado, que envolva a imposição ou sujeição da vontade e, portanto, a descoberta e o desejo de explorar as relações de dependência entre as pessoas. O único objeto de identificação é um personagem cujos atos e motivos são perfeitamente compreensíveis, e cujo sentimento é saudável e não aliena Emílio de si próprio. Ora, um mundo sem o Outro? Isto não é uma redoma doentia e solitária, uma perversidade diante da qual parecem desculpáveis todas as supostas más influências que Rousseau denunciou nas fábulas e também, no teatro? Ao que tudo indica, é a própria natureza que, mais uma vez, vai impor seu ritmo e suas necessidades. O período que a natureza aloca ao aprendizado técnico-instrumental, a “pacífica idade da inteligência”, como o denomina Rousseau, é curto demais para aprender tudo que é útil, a época das paixões está chegando, e assim que baterem à porta, [Rousseau nos alerta] Emílio não mais prestará atenção a nada senão a elas. Com o aparecimento do impulso que o impele para o Outro, ele é impelido também para o mundo das comparações, das disputas e da busca da primazia. Ele observará os outros com interesse e apreensão, e passará pela inquietante experiência de se ver observado e avaliado por eles. Seu amor próprio, que nada mais é que a preocupação com a opinião que os outros têm dele, se desenvolve. E ele fica vulnerável, e irá fatalmente experimentar um novo tipo de sofrimento, pois, o mundo dos homens é muito mais complexo e imprevisível do que o mundo das coisas, e, Emílio cometerá erros, com todos os detalhes fantasiosos e imitativos. Portanto, para o filósofo genebrino, o ‘estado de natureza’ tem a função de explicar uma hipotética situação ainda anterior a um estado pré-social no qual os indivíduos pudessem existir de forma isolada. Ainda no prefácio do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens é colocada a necessidade de se começar a conhecer os homens mesmos, em sua constituição original para com isso separar o que pertence à sua própria essência daquilo que as circunstâncias lhes acrescentaram. Assim, a idéia de ‘natureza’ parece estar ligada à ausência de ocasião, não encontrada em tempo cronológico algum, existindo apenas como referencial ontológico do homem 129

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nele mesmo. Dessa forma se observa que, o problema da passagem do ‘estado natural’ para o ‘estado civil’ desemboca em outro problema ainda anterior: para haver passagem de um estado a outro, ambos os lados teriam necessariamente que estar num mesmo plano, o que não acontece. O ‘estado civil’ não se diferencia do ‘estado de natureza’ pelo acréscimo das experiências da complexidade social, se diferencia antes como o existir e a existência, o real e a realidade. Seria necessário que houvesse um estado intermediário, que unisse os outros dois. O próprio Rousseau afirma haver um espaço imenso que os separam e que na lenta sucessão de coisas (experiências) ocorrentes nessa fenda média é que se pode encontrar a solução de uma infinidade de problemas da moral e da política, que os filósofos não podem resolver.2 No Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau parece querer dizer que esse espaço pode ser fornecido pela linguagem, que surge com a vida em sociedade e com ela se aperfeiçoa; a palavra é a primeira “instituição social” (ROUSSEAU, 109, 1998) Porém, nos adverte: “uma língua, seja qual for, jamais poderá expressar por completo os sentimentos que a suscitam: as paixões.” (Id. Ibid., 113) Surge aqui a grande questão da concepção de Rousseau da linguagem: se, de um lado a língua é sempre um veículo para as paixões e, por isso, nunca poderá captá-las por completo, por outro, nada mais existe para ser dito senão as mesmas paixões. Todo meio de expressão é um meio, um intermediário: toda linguagem se mostra insuficiente perante aquilo que pretende dizer. É preciso, então, admitir essa insuficiência que caracteriza as línguas – a linguagem indireta, uma imitação de um original inatingível. “Perguntar pela relação entre interpretação e fantasia é perguntar pela relação entre linguagem e imaginação, ou ainda, pela relação entre sentido e imagem.” (PRADO JUNIOR, 16, 1988) Não existe solução para o problema: as paixões não podem ser ditas com a mesma intensidade com que são sentidas – dizê-las significa perdê-las e, entretanto, são elas que exigem uma voz que as diga. “A letra mata.” A proposta de Rousseau é, então, a de retornar às origens da linguagem. No início, ele nos diz, falar e cantar não eram coisas distintas, as palavras não possuíam um sentido preciso e podiam significar o conteúdo de toda uma frase. Nos primórdios, a linguagem era mais poética e livre, por isso mais próxima das paixões. Rousseau sabe que não se pode mais recuperar inteiramente a pureza e a leveza das primeiras vozes: o estado de corrupção das línguas atuais não mais permite que se funda canto e palavra. No entanto, parece haver uma saída. Como? Buscando encontrar melhores meios para se expressar e maneiras mais eficazes para a imitação das paixões, pois, “se é verdade que um véu esconde as evidências do coração inocente, é preciso fugir, esconder-se sob a máscara do Autor: a escrita é o meio que suprimindo o imediato, torna possível o futuro retorno à imediação.” (PRADO JUNIOR, 20, 1988).

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Imitação e Imaginação ‘da mimesis às paixões’ _________________________________________________________________ Notas: 1 Retoma-se a questão debatida no VI Encontro Humanístico: “O diagnóstico do ‘Declínio do progresso’ no século XVIII a partir da Iluminação de Rousseau.” 2 Essa questão encontra certa semelhança com a crítica aristotélica aos “dois mundos” de Platão e o problema da ligação entre eles nas idéias de imitação e participação como espelho que reflete as idéias, mas não são as idéias mesmas, onde ser não é existir, e que por sua vez cai na problemática do terceiro termo onde os dois mundos participem para se unirem numa espécie de ligação. A necessidade dessa compreensão se dá por esta ser a base de todo pensamento de Rousseau.

Referencias: AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Estudos dirigidos por J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004. CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Tradução: Álvaro Cabral. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992. D’ALEMBERT, J. R. Discours préliminaire de l’Encyclopédie. Oeuvres Completes. Vol. I. Paris, 1964. FAÇANHA, Luciano da Silva. O diagnóstico do ‘Declínio do Progresso’ no século XVIII a partir da Iluminação de Rousseau. São Luís: Ciências Humanas em Revista/UFMA. Número Especial, v. 5. 2007. PRADO JUNIOR, Bento. Imaginação e interpretação: Rousseau entre a imagem e o sentido. 2º Colóquio UERJ/A INTERPRETAÇÃO. Rio de Janeiro: Imago, 1990. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta a D’Alembert. Tradução Roberto Leal Ferreira. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1993. _______. Emílio ou da educação. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. _______. Ensaio sobre a origem das línguas: em que se fala da melodia e da Imitação Musical. Tradução: Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo – Campinas: editora da Unicamp, 1998. _______. Júlia ou A Nova Heloísa. Tradução: Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo – Campinas: Hucitec, 1994.

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TELEOLOGIA E HISTÓRIA EM KANT: da Crítica do Juízo à Idéia de uma História Universal* Zilmara de Jesus Viana de Carvalho**

Resumo: Estudo sobre a doutrina teleológica da natureza desenvolvida na Crítica do Juízo, a partir de um fundamento transcendental como condição para uma melhor compreensão da História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita e elucidação de aparentes contradições no sistema kantiano. Palavras-chave: Teleologia. Natureza. Entendimento. História. Abstract: Study on the teleologic doctrine of the nature developed in the Critical one of the Judgment, from a transcendental bedding as condition for one better understanding of the Universal History of a Point of view Cosmopolita and briefing of apparent contradictions in the kantiano system. Keywords: Teleologia. Nature. Agreement. History.

Este texto é uma versão ligeiramente modificada do apresentado durante o VII ENCONTRO HUMANÍSTICO – Centro de Ciências Humanas – UFMA, na Mesa Redonda Progresso e Decadência: arte, história e memória. São Luís / MA, 21.11.2007. ** Mestre em Filosofia pela UFPB e Professora do Departamento de Filosofia da UFMA. E-mail: [email protected] *

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Em um estudo anterior acerca da doutrina teleológica da natureza apresentada com base no opúsculo “Idéia de Uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”(1784), levantamos, mesmo que sem a pretensão de ali elucidá-lo, o problema que se segue: “como a natureza, cujos conceitos, assim como as leis, são produzidos pelo entendimento, portanto de forma a priori, embora demonstre sua realidade por exemplos da experiência, conforme Crítica da Razão Pura pode, ao mesmo tempo, possuir um plano oculto, como condição de possibilidade para o progresso da humanidade?” (CARVALHO, 2007) É bem verdade, que, se por um lado, esse problema é impossível de ser solucionado à luz do referido opúsculo, por outro esclarecê-lo contribuiria de forma significativa para um melhor entendimento do exposto na História,vez que permitiria situá-la melhor dentro do sistema kantiano. Para tanto, faz-se necessário recorrer a Crítica da Faculdade do Juízo (1790), obra na qual Kant trata com mais acuidade a teleologia. No entanto, familiarizemo-nos um pouco mais com a questão proposta. Na Crítica da Razão Pura (1781), as leis de natureza estão vinculadas à espontaneidade do entendimento. Lembremos quanto a esse ponto, que as intuições sensíveis de espaço e tempo é que determinam à matéria empírica, dando – lhe forma e que cabe ao entendimento ligar as representações fornecidas por tais intuições, ou seja, conceituar. A matéria empírica é, pois, indeterminada, não há uma inteligibilidade inerente a ela e independente do sujeito, daí porque é o sujeito cognoscente, que é o legislador da natureza e não a própria natureza, esta é incapaz de dar leis universais e necessárias a si própria, isto significa, que o sujeito não é simples receptividade, ele é fundamentalmente espontaneidade, ele tem o poder de criar conceitos e, nessa perspectiva fazer ciência, conceito nessa ótica nada tem a ver com contemplação, mas com construção. Por outro lado, o entendimento opera sob a perspectiva da universalidade, fornecendo sempre uma compreensão universal, que obviamente não pode dar conta de leis contingentes e, por assim dizer, das particularidades da natureza e de suas múltiplas possibilidades. Eis aí então um possível caminho em direção à solução, o entendimento possui um alcance limitado, não apenas por não permitir um conhecimento da coisa em si, mas também por não poder fornecer um conhecimento das partes da natureza e das relações destas entre si. A natureza é, num primeiro momento, precisamente naquele em que somos afetados sensivelmente por ela, matéria bruta, como diz o próprio Kant, mas lembremos que isto é afirmado na Crítica da Razão Pura, portanto quando ela é vista sob a lente atenta do sujeito que conhece, isso, por sua vez, não tem como implicação necessária, que a natureza nada tenha a nos oferecer além do seu aparecer, mas somente que este basta para que as condições de possibilidade do conhecimento possam operar. Na obra “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza” (1786), Kant apresenta uma definição detalhada de natureza, para tanto divi134

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de – a em formal e material. Do ponto de vista formal, ela é entendida como uma maneira de ser, “[...] o primeiro princípio interno de tudo o que é inerente à existência de uma coisa” (KANT, 1990, p. 13). Mais adiante, esclarece, que chamam – se leis os “princípios da necessidade do que é inerente à existência de uma coisa” (Id.Ibid., p.15), lembremos que a necessidade é garantida pelo apriorismo, o conceito de natureza, nessa medida, implica ou assimila o de lei. Natureza é aquilo que categorizo, aquilo acerca do qual legislo. Já no que se refere ao sentido material, significa: [...] o complexo de todas as coisas enquanto podem ser objectos de nossos sentidos e, por conseguinte, também objectos da experiência; entende – se, pois, por essa palavra a totalidade de todos os fenômenos, ou seja, o mundo dos sentidos, com exclusão de todos os objetos não sensíveis. (Id.Ibid., p. 13)

No âmbito teórico, pois, há que se notar, por um lado, que a ciência da natureza deve conter uma parte pura, capaz de resguardar a necessidade e a universalidade dos conceitos e que só em virtude desta é que é ciência genuína.

Toda a ciência natural genuína precisa, pois, de uma parte pura, na qual se deve fundar a certeza apodíctica, que a razão nela busca; (...) O puro conhecimento racional por simples conceitos chama – se filosofia pura ou metafísica. (...) Por conseguinte, a genuína ciência natural pressupõe uma metafísica da natureza. Esta deve, pois, conter sempre puros princípios, que não são empíricos (é por isso que leva o nome de metafísica). (Id.Ibid., p. 15)

A ciência que assim não procede deve ser chamada de imprópria, suas leis são contingentes, não são apoditicamente certas, “os princípios são nelas apenas empíricos” (Id.Ibid., p. 14). Por outro, a ciência da natureza não pode aplicar – se senão ao condicionado, ao fenomênico. Examinando agora a Crítica do Juízo, observemos que a faculdade de julgar reflexionante opera de maneira análoga ao entendimento, ou seja, espontaneamente, muito embora seu percurso seja diferente, haja vista ir do particular para o universal (vez que unifica todas as leis particulares, embora sem determiná - las) e sua tarefa não seja a de produzir conhecimento, pois não prescreve nada à natureza, sendo sua função refletir sobre ela. Quanto a isto diz Kant: A faculdade de juízo reflexiva, que tem a obrigação de elevar – se do particular da natureza ao universal, necessita por isso de um princípio que ela não pode retirar da experiência, porque este precisamente deve fundamentar a unidade de todos os princípios empíricos sob princípios igualmente empíricos, mas superiores e por isso fundamentar a possibilidade da subordinação sistemática dos mesmos entre si. (1995, p 24, XXVI)

Observemos, no entanto, que a própria faculdade de juízo reflexiva dá a si mesma, como lei tal princípio, conforme aponta Herrero:

... a faculdade de julgar precisa do princípio de finalidade formal. Desse princípio não se pode deduzir a possibilidade de uma finalidade objetiva real na natureza1, pois o princípio não é determinante da realidade. Mas se a finalidade objetiva se dá na experiência, ela pode tornar – se compreensível com o princípio de realidade formal. (1991, p. 56).

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Com efeito, afirma Kant: [...] o princípio da faculdade do juízo é então, no que respeita à forma das coisas da natureza sob leis empíricas em geral, a conformidade a fins da natureza na sua multiplicidade. O que quer dizer que a natureza é representada por este conceito, como se um entendimento contivesse o fundamento da unidade do múltiplo de suas leis empíricas. (Op.Cit, 1995, p. 25, XXVIII)

É esse princípio de realidade formal que nos habilita a pensar a natureza sob a perspectiva da finalidade, como se um entendimento, que Kant adverte não é o nosso entendimento discursivo, pois tratase de um tipo, um entendimento intuitivo, (arquetípico), que representa a natureza como conformidade a fins, ao intuir o todo, isto é, ao representá-lo, bem como às partes dependendo desse, contivesse o fundamento da unidade do múltiplo . A natureza deixa de ser simplesmente construção de um entendimento sobre algo que antes de ser intuído no tempo e no espaço nada mais era do que simples matéria informe, bruta, para ser pensada como algo que nos autoriza a formular um princípio universal de finalidade. É digna de nota a seguinte passagem da Crítica do Juízo:

... falamos, então, na teleologia da natureza, como se a conformidade a fins nela fosse intencional mas todavia simultaneamente de forma a atribuir também esta intenção à natureza, isto é, à matéria. Através disto pretende-se indicar (porque aqui não há lugar para nenhum mal entendido, na medida em que ninguém pode de certo atribuir intenção no sentido próprio do termo a uma matéria inanimada) que esta palavra aqui somente significa um princípio da faculdade de juízo reflexiva, não da determinante (...). (Id.Ibid., p. 225, B, 308)

Por meio da passagem supracitada é possível concluir, como de fato ocorre na referida Crítica, que a idéia não é fazer da natureza um ser inteligente, detectando uma intenção na matéria, o que feriria gravemente a coerência interna do sistema kantiano. A idéia é mostrar que o olhar sobre a natureza pode ser lançado de várias formas e sem o prejuízo da unidade da razão, por mais multifacetada que esta seja (unidade esta perseguida na Crítica em tela, embora fuja ao nosso propósito aqui detalhar). Note-se, entretanto, que a estrutura do entendimento é paradigmática para as peripécias da razão, que sempre se conduzirá de forma análoga a esse, embora por aventuras que o ultrapassem. Ainda assim é ele que serve como referência para a típica, recorrente em todo o sistema. Baseado neste esclarecimento é possível agora empreender uma leitura mais significativa da célebre passagem da História, na qual Kant afirma:

Não há aqui outra saída para o filósofo, (...) senão inquirir se ele não poderá descobrir uma intenção da natureza no absurdo trajecto das coisas humanas, a partir da qual seja possível uma história de criaturas que procedem sem um plano próprio, mas, no entanto, em conformidade com um determinado plano da natureza. (1995, p. 22, A, 386)

A intenção da natureza, um plano oculto da natureza, não significa propriamente algo que esta, as surdinas, gesta, por si mesma, através de uma inteligibilidade que lhe é peculiar, mas uma forma de 136

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percebê-la, forma para a qual o conhecimento do mecanismo natural se mostra insuficiente. A compreensão acerca da teleologia natural está, pois, interditada à ordem do conhecer. Na Física, como bem lembra Kant, “... abstrai-se da questão de saber se os fins naturais são intencionais ou não intencionais, pois isso seria uma intromissão num assunto que não lhe diz respeito (...).” (Op.Cit.,1995, p. 225, B, 307) Contudo um espaço legítimo para tal se abre pela via do pensamento. A finalidade da natureza e, portanto, a doutrina teleológica, ressurgiria na esfera do pensar, mantendo-se, assim, a recusa à expressão um fim divino (Id.Ibid., p. 224, B, 306), o que implicaria colocar por cima da natureza um ser construtor, pois como adverte Kant: “temos que, de forma cuidadosa e modesta, limitar-nos à expressão que precisamente só afirma tanto quanto sabemos, isto é, à de um fim da natureza” (Id., p.224, B, 306). Sem pretender aqui refazer o percurso da segunda parte da Crítica do Juízo, observemos, entretanto, que o entendimento, como vimos, em seu caráter discursivo unifica a natureza através das leis universais que prescreve, nos dando a conexão das coisas apenas do ponto de vista do gênero e não como seres particulares, ou seja, não podemos conhecer todo o particular que se manifesta na natureza tampouco a unidade dessas leis particulares. Destarte, só a faculdade de julgar pode procurar uma lei para o particular, pois pensar o particular como contido no universal é sua especificidade, utilizando – se para tanto de um princípio de unificação, por meio do qual a natureza é representada como possuindo uma finalidade em sua diversidade, admitindo um entendimento, embora não o nosso, um entendimento intuitivo, que vai do todo para as partes, um fundamento supra – sensível da unidade sistemática, projetado pela faculdade de julgar reflexionante para possibilitar a reflexão sobre a conexão do múltiplo, do contingente, sob a perspectiva de um todo ordenado finalísticamente. Assim, a natureza é vista como final, como possuidora de uma ordem que tem que ser confirmada pelo conhecimento particular da experiência. No entendimento discursivo o todo é apresentado como dependente das partes, o mesmo não ocorre no entendimento intuitivo (arquetípico), neste as partes é que tem que ser representadas como dependentes do todo, de modo que neste último “...a representação de um todo contenha o fundamento da possibilidade da forma da mesma e das conexões das partes que lhe pertencem.” (Id.Ibid., p. 249, B, 350) A representação do todo, ou seja, a idéia dele, como idéia de fim, o precede como causa e é esse principio final formal, que possibilita, que o fim que pode haver na natureza possa ser pensado como necessário. Atentemos para o que afirma Kant: De modo nenhum a razão humana (nem qualquer outra finita, que quanto à qualidade fosse semelhante à nossa, mas que do ponto de vista do grau a ultrapasse em muito) pode esperar compreender a geração, nem mesmo

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Zilmara de Jesus Viana de Carvalho _________________________________________________________________ de uma folhinha de erva a apartir de causas simplesmente mecânicas. Se pois a conexão teleológica das causas e efeitos é para a faculdade do juízo absolutamente imprescindível no que respeita a possibilidade de um tal objeto, mesmo para o estudar segundo o fio condutor da experiência; se não é de modo nenhum possível encontrar um fundamento suficiente e referente a fins para os objetos externos enquanto fenômenos, mas pelo contrário aquele (que se encontra também na natureza) tem que ser procurado somente no substrato supra –sensível da mesma, do qual porém nos está vedada toda perspiciência possível, então nos é completamente impossível retirar da própria natureza princípios de explicação para as ligações finais e é necessário, segundo a constituição da faculdade de conhecimento humana, procurar para isso o fundamento supremo num entendimento originário como causa do mundo. (Id.Ibid., p. 251, B, 353-354)

Uma vez pontuados esses aspectos, passemos agora, ainda que sem a pretensão de um detalhamento exaustivo, ao percurso, que vai em direção ao Soberano Bem, como fim término do homem no mundo. Para tanto, acompanhemos o movimento da finalidade presente nos seres particulares à idéia de fim último. A idéia norteadora para determinar um fim último é considerar que para que uma coisa exista como fim natural, seja reciprocamente causa e efeito de si mesma. Isto só pode ser constatado nos seres orgânicos, visto que não apenas são seres organizados, como também seres que organizam a si mesmos, de modo que neles tudo é fim e meio reciprocamente. Segue – se daí que as partes sejam pensadas uma “[...] em função das outras e por causa do todo” (Id.Ibid.,p. 216, B, 291), que é o fundamento da possibilidade destas. Os seres organizados possuem, segundo Kant, força formadora (bildende), força essa que se propaga a si mesma e que não pode ser explicada apenas pelos mecanismos da natureza, tampouco por uma causa produtora que esteja fora da natureza, como ocorre na arte, nos produtos fabricados por esta, como é o caso dos relógios, onde “(...) uma parte existe na verdade em função de outra, mas não é através ‹durch› dessa outra que ela existe.” (Id., p. 216, B, 292) Além disso, há um empobrecimento da compreensão da natureza quando vista como análoga à arte, vez que se pensaria à luz de uma tal analogia um artífice fora da própria natureza. Em realidade, Kant adverte para o fato de que a perfeição interna que possuem os seres organizados — seres “(...) em que tudo é fim e reciprocamente meio.” (Id.Ibid., p. 218, B, 296) — , não pode ser explicada por analogia a qualquer faculdade natural nem por analogia a arte humana, haja vista que também o homem pertence à natureza. Ora, nos próprios seres da natureza fica evidente, não apenas a organização, mas também a relação com os outros seres. Deste modo, o princípio de finalidade interna remete – nos ao de finalidade externa e tudo “[...] tem que ser considerado como organizado e tudo também, por sua vez, é órgão dentro de uma certa relação com a coisa mesma.” (Id.Ibid., p. 220, B, 298) Visto que esses seres são ao mesmo tempo meio e fim, a natureza revela – se na sua totalidade como dotada de finalidade, embora não de um fim último. A noção de fim 138

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último implicaria na natureza compreendida como sistema (não como agregado) teleológico organizado. A idéia de um fim último exigiria, necessariamente, admitir um ser cujo fim de sua existência estivesse em si mesmo e não fora de si e fosse incondicionado, um ser capaz de “[...] mediante a sua razão realizar um sistema dos fins a apartir de um agregado de coisas formadas de modo conforme a fins.” (Id.Ibid., p.267, B, 383) Somente o homem, ao mesmo tempo, ser racional e natural poderia realizar tais fins, conforme afirma Kant: Esse ser é o homem, mas considerado como númeno; o único ser da natureza, no qual podemos reconhecer, a partir da sua própria constituição, uma faculdade supra-sensível (a liberdade) e até mesmo a lei da causalidade com o objeto da mesma, que ele pode propor a si mesmo como o fim mais elevado (o bem mais elevado no mundo). (Id.Ibid., p. 278, B, 402)

Observemos o que diz a terceira proposição da História:

A natureza quis que o homem tire totalmente de si tudo o que ultrapassa o arranjo mecânico da sua existência animal, e que não participe de nenhuma outra felicidade ou perfeição excepto que ele conseguiu para si mesmo, liberto do instinto através da própria razão. (Op.Cit.,1995, p. 24, A, 389)

Notemos que unicamente no homem a natureza abre mão do instinto em favor da razão, o desenvolvimento de todas as disposições naturais ao qual estão sujeitas todas as criaturas, ganha uma nova tessitura, por um lado, como pondera Giannotti, porque o “indivíduo não está apenas sendo empurrado no sentido de desdobrar totalmente as suas disposições naturais (...) precisa aprender a usar todas elas2 e não tão-somente algumas.”3 (2003, p. 144) Por outro e, como conseqüência, só podem alcançar seu desenvolvimento na espécie, tendo em vista a finitude de sua existência, marcada pela morte. Lembremos, no entanto, com Kant, que se é verdade “que os homens, nos seus esforços, não procedem de modo puramente instintivo, como os animais, (...) também não como racionais cidadãos do mundo”. (Op.Cit., 1995, p. 22, A, 386). Ora, observemos que até aqui a Crítica do Juízo tem respondido afirmativamente as proposições da História, apresentando de forma detalhada não apenas a noção de fim da natureza, no tocante a todos os seres de um modo geral, como também apontando para o homem, de modo mais específico, como fim-término. Acompanhemos, uma vez mais, o itinerário da referida Crítica. Para que algo seja considerado como terminal, tem que ser incondicionado, a natureza não pode ser pensada como sua causa, tal causa só pode ser inteligível. Nessa perspectiva, o ser humano para ser compreendido como fim-término da criação, teria que ser pensado como sujeito moral e não como membro da natureza, somente sua existência, assim pensada, pode ter um valor absoluto, por conseguinte, só no homem considerado como fim-término da criação, podemos encontrar um objetivo final, determinado a priori pela lei moral e para o qual esta nos obriga, a saber: o Soberano Bem. A moralidade reapare139

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ce assim na Crítica da Faculdade do Juízo, mais especificamente, através da problemática união entre moralidade e felicidade, isto é, do Soberano Bem, fim término do homem no mundo. Pelo exposto a partir da Crítica do Juízo a natureza e, por conseguinte, também o homem, tanto do ponto de vista sensível quanto supra-sensível não é vítima de um mecanismo natural cego. Os homens, movem-se, assim, como já afirmava a História, em um plano traçado pela própria natureza, plano a partir do qual a história é tecida e lembremos que é também no jogo das relações humanas que a moralidade das ações são engendradas e, que apenas por meio desta há um sobrepor-se às determinações naturais, uma ultrapassagem do reino da legalidade, pelo da moralidade, da liberdade externa, tão cara ao estado civil, pela liberdade interna, condição para a moral, para o reino dos fins. É possível agora ao final dessa exposição, ajuizar que ocorre algo de atípico na démarche kantiana, uma vez que a fundamentação transcendental, condição de possibilidade para o desenrolar de todas as suas exposições, no tocante à História Universal é desenvolvida posteriormente, para isso é suficiente observar, que na referida obra todo recurso explicativo utilizado para advogar a teleologia natural tem na experiência sua fonte e testemunho. Todavia caberia indagar ainda sobre a pertinência dessa conclusão e sobre se de fato não poderia Kant ter-se dado por satisfeito com os abundantes exemplos oferecidos na História para corroborar suas afirmações. Quanto a isto, basta, no entanto, ao nosso ver, atentar para o que nos diz no parágrafo 66 da Crítica do Juízo, parágrafo intitulado Do princípio do ajuizamento da conformidade a fins interna em seres organizados: Esse princípio, segundo o modo como ocorre, é deduzível da experiência (...). Mas por causa da universalidade e da necessidade que esse princípio afirma de uma tal conformidade a fins, não pode simplesmente assentar na experiência, mas pelo contrário tem como fundamento algum princípio a priori qualquer, ainda que seja meramente regulativo e aqueles fins existissem somente na idéia daquele que ajuíza e em nenhuma outra causa eficiente. (Id.Ibid., p. 219, B, 296) Notas: 1 Grifo nosso. 2 Grifo nosso. 3 Diferentemente dos demais seres da natureza não se trata, no caso do homem de um desdobramento das suas disposições naturais, como se fora um ser meramente instintivo, mas de um aprendizado que irá direcionar sua ação para áreas diversas: ciência, política, moral, estética.

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Teleologia e História em Kant _________________________________________________________________

Referências: CARVALHO, Zilmara de Jesus Viana de. Natureza e Progresso em Kant. São Luís: EDUFMA, Ciências Humanas em Revista, v. 5, número especial, 2007. GIANNOTTI, José Arthur. Kant e o Espaço da História Universal. São Paulo: Martins Fontes, trad. Ricardo Terra, IN.__ Idéia de Uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, 2003. HERRERO,F. J. Religião e História em Kant. São Paulo: Edições Loyola, 1991. KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, trad. Valério Rohden e António Marques, 1995. _______. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, 1994. ________. Idéia de Uma História Universal de Um Ponto de Vista Cosmopolita. Lisboa, Edições 70, trad. Artur Morão, IN.__ A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, 1995. ________. Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza. Lisboa: Edições 70, trad. Artur Morão,

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PARA ALÉM DA PRESERVAÇÃO DA VIDA: a vontade de poder* Ellen Caroline Vieira de Paiva**

Resumo: Análise do conceito de Nietzsche de vontade de poder em alternativa ao de vontade de vida de Schopenhauer. Desenvolve-se a compreensão de intensificação da vida a partir de sua própria condição e natureza em oposição ao ascetismo filosófico que apenas objetiva uma preservação da vida. A moral ascética é, para Nietzsche, um ciclo “doentio” de contra-vontade que se arvora no intuito de simples conservação. É, contudo, necessário, intensificar a vida, aproximar-se do eminentemente natural afirmando a vontade criadora. Palavras-chave: Vontade de poder. Natureza. Preservação da vida. Intensificação da vida Abstract: Analysis about Nietzsche’s “desire of power” concept as an alternative to Shopenhauer’s “life desire). It manages comprehension of improving live by its own condition and nature in oposition to philosophic ascethism wich only makes life preservation. Ascethic moral is, to Nietzsche, a sick circle of no-desire that lays in simple conservation. However, it’s necessary improving life, coming next to actually natural according creating desire. Keywords: Desire of power. Nature. Life preservation. Improving life

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidade e o Centro de Ciências Humanas/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa redonda “Schopenhauer, Nietzsce e as filosofias da vontade” ** Estudante de graduação nos cursos de Filosofia e Direito da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Integrante do Grupo de Pesquisa em Nietzsche. Integrante do Grupo de Pesquisa em Schopenhauer. Integrante do Grupo de Pesquisa em Estética e Hermenêutica. E-mail: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO As filosofias da vontade de Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche assinalam um momento fundamental na filosofia do século XIX, qual seja a figuração do corpo como base para o desenvolvimento de uma compreensão moral. O conceito de vontade, ainda que eminentemente metafísico, evidencia-se em todos os entes vivos enquanto corpos. De fato, essa evidentia em tudo aquilo que é vivo destitui o homem de uma condição superior em relação aos outros viventes (animais, plantas etc.) e o lança em um plano moral diverso daquele iniciado por Platão e continuado por toda a medievalidade e modernidade. A dimensão moral nascida com o conceito de vontade é instância da vida, princípio que pressupõe o movimento inicial de todo querer. Neste ponto se irmanam tanto a filosofia de Schopenhauer quanto a de Nietzsche. A divergência entre ambos surgirá precisamente no trato com esse conceito, de modo que a vontade para o primeiro deve ser negada e, para o segundo, afirmada. Schopenhauer reconhece na vontade de vida um âmbito de jogo (Spiel) entre natureza e sofrimento, de maneira que o querer natural possibilita ou a possibilidade de tédio, quando da sua saciedade, ou a de dor, quando do contrário. Isto se dá pela própria condição desprovida de sentido da vontade, a qual, cega e irresoluta, lança-se a tudo o que é vivo sem a definição de qualquer telos além do próprio desejo. A proposta então é a fuga do ângulo infinito de incidência da vontade de vida por meio da arte, da compaixão ou do ascetismo, de maneira a garantir a preservação da vida até que esta chegue ao fim. Desta forma, a negação consiste em uma diminuição do sofrimento próprio da condição vivente. Nietzsche, por outro lado, verifica na negação da vontade a própria origem (Ursprung) da decadência moral do Ocidente. O filósofo de Röcken percebe na compaixão e no ascetismo um movimento de oposição à própria vida, à própria condição corporal do que é vivo. Ora, um corpo doente é um corpo fraco para os prazeres e vicissitudes da vida – e aqui se evidencia sua metáfora de chamar a civilização ocidental de doente, decadente. É necessário, ao contrário, tornar-se forte e cada vez mais vivo. Na mesma perspectiva, a arte deve atuar não como fuga da vontade, mas da sua afirmação, a fim de promover a intensificação da vida. Neste sentido, a vontade adquire uma linha diretriz para seu ângulo de incidência, qual seja, o poder. A proposta deste trabalho é analisar a vontade de poder (Wille zur Macht) nietzscheana em termos alternativos à filosofia da vontade schopenhaueriana com vistas a promover uma discussão desconstrutiva da perspectiva moral moderna da virtude, cujos objetivos se resumem a conservar a vida. Assim, para além da preservação, aqui examinaremos a pulsão orientada para o que a torna mais real, mais viva, mais intensa. 144

Para além da preservação da vida _________________________________________________________________

2. VONTADE DE PODER: pulsão orientada para a intensificação da vida Nietzsche inicia a terceira dissertação da Genealogia da Moral questionando a origem dos ideais ascéticos, analisando o fato de os filósofos e eruditos objetivarem sempre a elevada espiritualidade, o ideal de perfeição que os torne superiores à condição animal que suspira vontade. O que autor intenta com tais questionamentos iniciais é sob o olhar genealógico já iniciado nas dissertações anteriores1 encontrar nas origens deste problema o paradoxo da manutenção da vontade. (...) no fato de o ideal ascético haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana, o seu horror vacui (horror ao vácuo): ele precisa de um objetivo – e preferirá ainda querer o nada a nada querer. (Nietzsche: 2004, pp. 87-88)

O querer tem na filosofia nietzscheana uma força fundamental na medida em que está associado aos pressupostos fundamentais da vida animal, quais sejam, os instintos. Em O Mundo como Vontade e Representação, de Arthur Schopenhauer, Nietzsche encontrou exatamente essa relação entre vontade e natureza.

“A vontade deve alimentar-se dela mesma, visto que, fora dela não existe nada, ela é uma vontade esfomeada. Daí essa caça (chass/Jagd), essa angústia (anxiété/Angst), esse sofrimento (souffrance/Leiden) que a caracteriza.” (SCHOPENHAUER: 2001, 28)

Ocorre que em Schopenhauer esta vontade deve ser negada, uma vez que ao afirmá-la estamos sempre indo de encontro ao sonho e ao engano sensível. Para ele, é o ideal incorpóreo o real objetivo do homem sábio. O filósofo deve ter no corpo – e na arte – o instrumental necessário para viver, mas, diante do sofrimento do mundo, deve resistir a ele a fim de que sua vida se conserve até a chegada da morte. Diante da certeza do sofrimento, a única liberdade que possuímos é a de diminuí-lo, por meio da negação do desejo. Desta forma, a filosofia de Schopenhauer – assim como toda a modernidade e medievalidade herdeira de Platão – se sustenta em ideais ascéticos Nietzsche enxerga na tríade vontade-natureza-sofrimento algo muito interessante na filosofia de Schopenhauer. Contudo, irrompe intempestivamente contra a forma com que seu antecessor trata essa questão. Negar essa tríade é negar a vida em seus princípios fundamentais. Diz ele em fragmentos póstumos: “Como se comportou todo o processo orgânico em relação ao resto da natureza? É nisso que se descobre sua vontade fundamental.” (Nietzsche: 2005, afor. 2 [99], p. 222) Essa vontade caracteriza-se como força propulsora da vida em todas as suas manifestações e encontra-se orientada para a dominação, para o poder. Temos assim, em Nietzsche, uma vontade de poder (Wille zur Macht). Os ideais ascéticos funcionam no sentido de preservação da vida, na medida em que revelam a luta da vida contra a morte. Contudo, trazem consigo o germe da própria degeneração, uma vez que, ao negarem a vontade de vida se colocam contra a própria vida. 145

Ellen Caroline Vieira de Paiva _________________________________________________________________ Está claro que uma contradição como a que se manifesta no asceta, “vida contra vida”, é, considerada fisiologicamente, não mais psicologicamente, simplesmente um absurdo. (...) o ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência. (Nietzsche: 2004, p. 109)

Para Nietzsche, todavia, não basta conservar a vida, mas aumentá-la, intensificá-la, a fim de que se esteja de encontro com o efetivamente real. Por isso, ele percebe na moral cristã dominante na Europa dos seus dias um grande equívoco. Filósofos como Kant e Schopenhauer2 assemelham-se aos sacerdotes cristãos, que devem negar a fama, o poder e a sensualidade. O ressentimento cristão ante as condições dos valores nobres, como já tratado anteriormente, se reflete no filósofo-sacerdote no âmbito da intelectualidade, cuja contingência no nobre se opõe à toda a sua razão de ser. É o sacerdote o primeiro ressentido de um rebanho. São eles os primeiros a realizarem uma violência contra si, posto que inicialmente combatem a si mesmos para garantir o poder. Assenhoreiam-se, assim, da força da sua própria vida, tendo nesta uma ponte para outra existência. E é aí, então, que Nietzsche identifica o problema: há um paradoxo aparente na existência diversa da ambiência celeste e divina, dada a “terrestridade” da vontade de poder. É por meio do triunfo da agonia derradeira que o mártir alça os mais altos vôos. “O triunfo na agonia derradeira”: sob este signo superlativo lutou desde sempre o ideal ascético; neste enigma de sedução, nesta imagem de êxtase e tormento ele reconheceu sua luz mais intensa, sua salvação, sua vitória final. Crux, nux, lux [ cruz, noz, luz] – para ele são só uma coisa. (Nietzsche: idem, p. 107)

No afã insaciável do desejo de ser outro o sacerdote encontra a prisão do seguinte esquema de reprodução: ao estabelecer um reino sobre os que sofrem, o sacerdote encontra-se imbricado por uma ordem de discurso de identidade. Ele próprio deve sentir as dores de suas ovelhas para poder entendê-las. É isto que sustenta e imprime a representação dos ideais ascéticos nos fracos. Temos assim a seguinte fórmula: nojo do homem + compaixão pelo homem = vontade de nada (niilismo). Quanta resignação humilde, viscosa, açucarada, flutua em seus olhos! Que desejam realmente? Ao menos representar o amor, a justiça, a superioridade, a sabedoria – eis a ambição desses “ínfimos”, desses enfermos! E como esta ambição torna hábil! (Nietzsche: ibidem, p. 112)

Os enfermos, para Nietzsche são todos os fracos inseridos nessa condição de negação da vida, de maneira que os sãos encontram-se exatamente entre os afirmadores da vida. Diante dessa oposição, o sacerdote se torna o pastor, o protetor do rebanho contra o mundo e contra o próprio rebanho. Evita-se, assim, a anarquia e auto-dissolução. O sacerdote realiza esta “defesa” por meio da mudança de direção alternada do ressentimento, de maneira que o instituto da culpa funciona como mecanismo fundamental. A certeza de haver um culpado para o sofrimento entorpece a dor das ovelhas. Os sacerdotes, então, através do afeto, se convertem nas tarântulas no discurso de Zaratustra. 146

Para além da preservação da vida _________________________________________________________________ Seja o homem salvo da vingança; é esta para mim a ponte da esperança superior, e um arco-íris anuncia grandes tormentas. As tarântulas, todavia, compreendem doutra forma. “Justamente quando as tempestades da nossa vingança enchem o mundo, é quando nós dizemos que haja justiça”. Assim falam elas entre si. “Queremos exercer nossa vingança e lançar nossos ultrajes sobre todos os que são semelhantes a nós”. Isso juram a si mesmas as tarântulas. (...) Sacerdotes da igualdade: a tirânica loucura da vossa impotência reclama em brados a “igualdade”, por detrás das palavras de virtudes esconde-se a vossa mais secreta concupiscência de tiranos! (Nietzsche: 2003, p. 86, grifos nossos)

A virtude serve no esquema de reprodução de identidade como transposição do ideal incorpóreo na vida humana, como meio de se ascender à condição dos valores supremos. Isto foi absorvido pelos filósofos de maneira que à sua imagem atrelou-se a figura do homem virtuoso, que se opõe à natureza pecaminosa do homem comum. Mas Nietzsche compreende isso apenas como uma interpretação de um fato, o que diverge, completamente do fato mesmo. O homem virtuoso apenas trás consigo a transfiguração da vontade de poder, uma vez que apenas garante o ponto optimum em tal poder se consubstancia. Zaratustra a coloca como algo que transforma o portador do dom da virtude no próprio dom. Assim:

A vossa ambição é querer converter-vos, vós mesmos, em oferendas e presentes. Por isso desejais acumular todas as riquezas em vossas almas. (...) Quando vos elevais acima do louvor e da censura, e quando a vossa vontade, como vontade de um homem que ama e quer mandar em todas as coisas, então assistis à origem da vossa virtude. (...) Essa nova virtude é poder; um pensamento reinante e em torno desse pensamento uma alma sagaz: um sol dourado, e em torno dele a serpente do conhecimento. (Nietzsche: idem, pp. 69-70)

Em oposição à mendacidade de se esconder essa condição sob o véu da humildade, Nietzsche oferece a afirmação do poder em termos de não só de conservação, mas de aumento, intensificação da vida. Isto fundamenta sua crítica ao último Wagner e à estética schopenhauriana. Ressalte-se que a discussão estética empreendida por Nietzsche nesta situação não está desgarrada da temática de uma crítica dos valores morais. Isto porque para o filósofo de Zaratustra são os valores estéticos aqueles necessários a uma transvaloração de todos os valores. A sustentação de tal inferência encontra-se na proximidade da arte com a vida. A arte fomenta a criação de possibilidades da vontade em perspectiva de liberdade, o que provoca em si, uma excitação da vontade de poder – esta, entendida como condição peremptória para a conservação e intensificação da vida. Assim sendo, a reivindicação da pulsão dionisíaca ante a dominação apolínea ocorre no sentido de manter um combate intermitente entre ambas na perspectiva da contradição dos atributos, na guerra. Tal contradição só pode ser entendida em termos de pleno movimento, isto é, de devir. Desta forma, Apolo conserva a vida, Dionísio a intensifica. Por isso, diz Nietzsche em seus fragmentos póstumos: 147

Ellen Caroline Vieira de Paiva _________________________________________________________________ O engano de Apolo: a eternidade da forma bela; a legislação aristocrática “assim deve ser sempre!”. Dioniso: sensualidade e crueldade. A efemeridade poderia ser interpretada como o prazer da força criadora e destruidora, como a criação constante. (Nietzsche: 2005, afor. 2 [106], p. 223)

A crítica a Schopenhauer toca exatamente nesta questão, uma vez que o Belo, para ele, libera uma força de reflexão contemplativa do em si. Temos neste filósofo, como em outros ascetas, o intuito orientado para a mais elevada espiritualidade do homem, o que revela a dimensão sacerdotal do filósofo. Além disso, o Belo, em Schopenhauer tem o interesse de libertação da “tortura da vontade”, conferindo à experiência da arte o caráter instrumental de alcance com o eterno fundamental. Afinal, a moral ascética sustenta-se por uma atividade maquinal de alívio da existência sofredora por meio do desvio do sofrimento. Isto se dá em duas frentes: a primeira, tocante ao amor ao próximo, enquanto estímulo à vontade de poder, a segunda, tocante à formação do rebanho. A vontade poder é estimulada pela sensação de superioridade promovida pelo altruísmo. O aumento do rebanho, por sua vez, entorpece a dor por meio do aumento do rebanho. O sofredor ressentido encontra a liberdade da segregação no rebanho, uma vez que “os fracos buscam associar-se”. (Nietzsche: 2004, p. 125) Diante dessa condição de fraqueza, Nietzsche apresenta a condição dos fortes de, ao contrário, buscar a dissociação. Enquanto discurso de libertação da alma humana, o ideal ascético põe em fuga a dor humana ao liberar, aos poucos, alternadamente, os ressentimentos humanos transpondo no sentimento de culpa a consolidação do reino do sacerdote ascético. O pecado, assim, caracterizase, como a interpretação sacerdotal da má consciência animal. O ideal ascético é o único sentido encontrado para o homem para seu sofrimento, é a sua salvação. Mas apesar de tudo - o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo – não importando no momento para que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estava salva. (Nietzsche: 2004, p. 149)

Desta forma, ainda que seja uma negação à vida e com tudo o que ela tem a oferecer, o ideal ascético ainda é, em si, uma vontade, uma vontade de nada. Eis então paradoxo dessa questão. Afinal, “quem não tem nada para fazer, um nada já lhe dá o que fazer”. (Nietzsche: 2005, p. 159)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Quem sente dor quer viver. Nietzsche

Em termos ontológicos a vontade é a iminência de movimento entre o silêncio do não ser e o som do ser. É ela que promove o acontecimento das coisas nos horizontes de vida; cria contextos, abre condições e perspectivas. Se as conseqüências destas forem de dor ou prazer 148

Para além da preservação da vida _________________________________________________________________

ambos serão reais e aqueles que os terão de viver estão sujeitos às duas possibilidades, pois o prazer quer a si mesmo. “Amor-fati” significa uma entrega à facticidade no eterno presente. Esta entrega é conseqüência da própria perspectiva de afirmação nietzscheana: afirmar a vontade é afirmar a vida – posto que aquela seja o princípio fundamental desta. A convocação do Dionisíaco se dá em termos de uma renúncia ascética (Entsagung), isto é, como aniquilação da realidade-vontade. É somente a partir dessa compreensão que se pode pensar em “tratar a doença” ascética – oriunda do platonismo – a partir de suas próprias forças. Precisamos desaprender a consciência como a aprendemos. No geral, a grande força conservadora, que afirmava a preponderância em relação à moral, era aquilo que chamavam de mal, a tendência do indivíduo a se afirmar sem considerar as doutrinas, a sentir-se bem, a buscar seu prazer, a subordinar suas necessidades mais próximas às mais distantes, enquanto a moral não apenas as divide em necessidades superiores e inferiores, mas também ensina a desprezar e, muitas vezes, a condenar estas últimas (as chamadas alegrias sensuais). (Nietzsche: 2005, p. 87, grifos nossos)

É este “tratamento” que requer a criação de novos valores que tenham na vida o seu o princípio fundamental, de maneira a não simplesmente conservá-la, mas aumentá-la; intensificá-la. Se essencialmente o valor funciona como parâmetro para tal princípio, a vida, por sua vez, se fundamenta no devir como “vontade de poder”, ponto fluido de ação do trans-homem (Übermensch), criador de outras dinâmicas, de outras instâncias no eterno retorno do tempo da vida. Notas: 1 A Genealogia da Moral se subdivide em três tratados: 1°) “Bem e Mal” – “Bom e Mau”; 2°) “Falta”, “Má Consciência” e Fenômenos Coligados e 3°) Que significam Ideais Ascéticos? 2 “As morais de Kant e de Schopenhauer já partem, inadvertidamente, de um cânone moral: a igualdade dos homens e a idéia de que o que é moral para um deve ser moral para outro. Porém, isso já é conseqüência de uma moral, talvez de uma moral muito questionável. (...) – E o fato de se querer uma moral já pressupõe um cânone moral! Seria necessário respeitar essa moral incorporada da autoconservação! Ela é, de longe, o sistema mais sutil da moral!” (Nietzsche: 2005, p. 177)

Referências: DELACAMPAGNE, Christian. História da Filosofia no século XX; trad. Lucy Magalhães; consultoria, Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder; trad. Roberto Machado. 11. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1993.

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HEIDEGGER, Martin. La frase de Nietzsche “dios ha muerto”; traducción de Helena Cortés y Arturo Leyte en HEIDEGGER, M., Caminos de bosque, Madrid, 1996; trad. nossa. Disponível em http: //www.heideggeriana.ar. Acesso em 25/01/2007. LEFRANC. Jean. Compreender Nietzsche; trad. Lúcia M. Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência; trad. Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2004. _______. Além do Bem e do Mal: prelúdio de uma filosofia do futuro; trad. Antônio Carlos Braga. São Paulo: Escala, 2004. _______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém; trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2003. _______. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais; trad. Paulo César de Souza. 1. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _______. De El Caminante Y Su Sombra; trad. nossa. Disponível em http: //www.nietzscheana. ar. Acesso em 25/01/2007. _______. Ecce homo: como alguém se torna o que é; trad. Paulo César de Souza. 2.ed. 4. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _______. Fatum e Historia: vacaciones de pascua 1862; traducción de Luis Fernando Moreno Claros, en NIETZSCHE, F., De mi vida. Escritos autobiográficos de juventud (1856-1869), Valdemar, Madrid, 1997; trad. nossa. Disponível em http: //www.nietzscheana. ar. Acesso em 25/01/ 2007. _______. Genealogia da Moral: uma polêmica; trad. Paulo César de Souza. 7. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _______. Sabedoria para Depois de Amanhã – seleção dos fragmentos póstumos por Heinz Friedrich; trad. Karina Jannini. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação; trad. M. S. Sá Correia. 1.ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade – niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna; trad. Eduardo Brandão. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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A PRÁTICA COMO CENÁRIO DE APRENDIZAGEM* Arão Paranaguá de Santana**

RESUMO: A mesa-redonda objetivou a ampliação do debate acadêmico em torno da relação entre extensão e ensino do teatro, considerando o papel social da universidade pública na formação do arte-educador em um contexto específico. A partir da visão de três especialistas, debateu-se a articulação conceitual e histórica entre extensão, pesquisa e ensino; as políticas públicas relativas ao apoio a programas e projetos; análise do projeto “O Extensionista”, ressaltando, ainda, a necessidade da prática de extensão como comunicação, processo e compromisso, e a importância de projetos na área de arte e cultura. ABSTRACT: The Round Table discussion aimed to widen the Academic Discussion around the relation between Extension and Drama Teaching, considering the social role of the Public University in the Art Teacher’s training process into a specific context. From the three expert’s point of view, the conceptual and historical articulation among extension, research and teaching was discussed; and also public policies related to programs’ and projects’ supporting as well as analysis of the “The Extensionist” project, emphasizing the necessity of extensive practice as communication, process and commitment, and the importance of projects in the area of Art and Culture.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidade e o Centro de Ciências Humanas/UFMA, realizado de 19 a 23 de novembro de 2007, durante a mesa redonda “A extensão, o papel social da universidade pública no Maranhão e a formação do arte-educador”. **

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Arão Paranaguá de Santana _________________________________________________________________

O Departamento de Artes (DEART) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) possui uma história vinculada à prática extensionista, seja por iniciativa de professores como de estudantes, no passado como no presente. O propósito de estabelecer elos entre o ensino e a extensão foi se cristalizando através de ações concretas, por exemplo, com a participação de uma grande equipe junto ao projeto Democratizando a ciência, levado a cabo durante a 47ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, ocorrida na UFMA em 1995, assunto que foi alvo de discussão neste Encontro Humanístico Segundo dados da Pró-Reitoria de Extensão (PROEXT), o DEART é o departamento acadêmico que tem mais projetos catalogados em toda a UFMA, e atualmente esse perfil congrega ações relevantes, a saber: A Encenação em Movimento: O Imperador Jones, do grupo Cena Aberta, com recursos do Prêmio Jovem Artista, destinado a montagem cênica de espetáculo e trabalho de formação estética de produtores e receptores; Oficinas de Arte no Interior Maranhense, vinculado à pedagogia e ao aprendizado do teatro e das artes que lhe são complementares; Casemiro Coco, projeto voltado para a pesquisa sobre a linguagem do teatro de animação e sua relação com a cultura popular; Projeto Quinta de Arte, destinado ao público universitário, seja com espetáculos, mostras de experiências e oficinas; Grupo Universitário de Teatro, projeto que enfatiza a formação de repertório, dando base à iniciação na linguagem cênica; Arte-Educação na Vida da Criança e do Adolescente, desenvolvido há mais de uma década em bairros de periferia, com ênfase em jogos teatrais; Escola Extensionista de Canto e Coral, projeto voltado para a musicalização de jovens e adultos; Coreografando o Cotidiano, cujo propósito é o de indicar a dança como caminho para a construção da cidadania das mães e adolescentes da Vila Embratel; Pólo UFMA de Arte na Escola, que traduz-se na política de formação continuada do DEART para estagiários dos cursos de Licenciatura em Educação Artística e Teatro, professores licenciados e atuantes nas redes pública e privada de educação básica, artistas e agentes sociais que atuam no ensino da Arte. Considerando que o projeto político-pedagógico do Curso de Licenciatura em Teatro da UFMA, em vigor, define que a prática como componente curricular é uma das vertentes essenciais para desenvolvimento da formação discente, ao lado dos conteúdos de natureza científico-cultural e das atividades complementares, há de se estabelecer propostas concretas para o fortalecimento dessa base instrumental voltada para a implementação do currículo na dimensão do cotidiano.1 Em decorrência desses fatos e evidências, sobressai-se a necessidade de encetar uma discussão sobre a temática da formação de professores relacionada à prática da extensão, articulando as ações do cotidiano aos anseios da sociedade, ou seja, à razão fundante da

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A prática como cenário de aprendizagem _________________________________________________________________

universidade contemporânea. Por sinal, a luta pela indissociabilidade entre os três pilares da esfera de ação universitária – ensino, pesquisa e extensão – que geralmente se ouve falar sem que se fixe uma imagem real a lhe projetar um sentido pleno, possui, no caso específico das artes, uma característica situada no âmago estético-pedagógico, entranhada ao fazer teórico e prático que é inerente ao percurso da graduação, seguindo vida afora através da formação continuada. Nessa reinvenção da universidade, cabe ao aluno vivenciar o acontecimento como fenômeno contextualizado, buscando explicações singulares, às vezes unicamente aplicáveis para aquele determinado caso, adotando também uma perspectiva analítica de natureza ontológica, na qual a forma de ver o problema compreende a análise das suas particularidades frente à visão conjuntural observada pelos sujeitos participantes. Ciente de que os conceitos tratados nos parágrafos precedentes implicam em atitudes afirmativas por parte dos sujeitos que constroem a vida acadêmica, há um projeto em curso, iniciado em 2007 e com muitas ações previstas para ocorrerem em 2008, cuja perspectiva aponta para a trajetória formativa dos estudantes em termos de panorama social e cultural. Denominado Ação Cultural em Teatro, este projeto integra o desenvolvimento curricular do Curso de Licenciatura em Teatro, através das disciplinas Prática de Extensão I e Prática de Extensão II, respectivamente no quinto e sétimo períodos letivos. A atividade vem sendo desenvolvida em diversos bairros de São Luís (MA), em 2007, com ações previstas para garantir sua permanência na trajetória curricular e na experiência institucional da Universidade Federal do Maranhão / UFMA, envolvendo a parceria entre sujeitos – estudantes, professores, jovens e adultos provenientes de comunidades culturais e grupos artísticos –, instituições escolares, entidades informais e outras que se propõem à lida com a arte e a cultura.2 Como há necessidade de se estabelecer uma rede de relações entre o planejamento, a execução e a avaliação para o projeto em tela, a mesa-redonda A extensão, o papel social da universidade pública no Maranhão e a formação do arte-educador integrou o X Encontro Humanístico, com o propósito de ampliar a base discussão em torno do assunto. Três especialistas deram contribuições relevantes, reafirmando a certeza de que o saldo da ação extensionista é bastante favorável. O Prof. Dr. Roberto Mauro Gurgel Rocha, coordenador do projeto Democratizando a ciência (SBPC-UFMA, 1995), discorreu sobre o tema da articulação conceitual e histórica entre extensão, pesquisa e ensino, reivindicando uma postura mais conseqüente, agressiva e comprometida, por parte da UFMA, embora apontando saldos favoráveis em algumas ações pontuais, no passado como atualmente.3 Demonstrou que a relação entre teatro e extensão é tão velha como a própria universidade, pois os estudantes de Bolonha (séc. XI) tinham como

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atributo visitar as comunidades e representar teatralmente o resultado de seus estudos. Na América Latina, berço da extensão entre nós, como no Brasil dos anos 1960, os movimentos populares e os artistas protagonizaram a construção de uma universidade ativa, lembrando os capítulos da história cultural brasileira que se reportam à União Nacional dos Estudantes, aos Centros Populares de Cultura e aos grupos de teatro Arena, Oficina e Opinião. A contribuição da Prof. Dra. Maria Teresa Seabra Soares de Britto e Alves, do Departamento de Saúde Pública da UFMA, externou a preocupação com a política de extensão das universidades brasileiras quanto ao apoio a programas e projetos, ressaltando que há necessidade de uma reinvenção do papel da universidade em resposta aos desígnios e exigências sociais da atualidade. Discutindo as políticas esboçadas no âmbito do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas (FOR-PROEXT), a palestrante enfatizou a importância da flexibilização curricular no decorrer da graduação, a necessidade de construção de um caminho do estudante rumo à validação social de seus estudos e pesquisas, bem como a institucionalização de projetos pautados no projeto político-pedagógico do curso e no perfil do alunado. A terceira fala, da Profa. Esp. Célida Maria Lima Braga, tratou de um projeto desenvolvido pelo DEART, em 1995, como parte das atividades de Democratizando a ciência, enfatizando a tentativa de superação dos entraves epistemológicos subjacentes ao currículo do curso velho (Educação Artística, com habilitação em artes cênicas), que até então não havia alimentado a prática extensionista junto à formação de professores numa perspectiva estética e comunitária. Ao refletir sobre o processo de montagem da peça O extensionista, que contou com a coordenação acadêmica e direção artística do Prof. MSc. Luiz Roberto de Souza, montagem essa que foi desenvolvida junto à disciplina Interpretação II, Braga apontou alguns aspectos considerados essenciais para a saudável vivência universitária, tais como: (i) superação do tempo reservado para os créditos curriculares da disciplina; (ii) motivação dos participantes para vivenciar a experiência do palco; (iii) colaboração de estudantes e professores no processo de trabalho, afora os inscritos na disciplina Interpretação II; (iv) contribuição do crítico Fernando Peixoto, que ministrou palestra e teceu considerações sobre o ensaio geral da peça; (v) apresentação da peça em esquema de temporada com quatro sessões, uma delas com platéia de cerca de mil pessoas, contando ainda com a presença de dirigentes da SBPC.4 A mesa-redonda destacou, finalmente, a necessidade da prática de extensão numa visão freireana, como comunicação, processo e compromisso, superando a noção a ela atribuída enquanto função, meramente burocrática e de aparição esporádica.5 Neste sentido, foram discutidas algumas questões que devem balisar a reflexão dos

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A prática como cenário de aprendizagem

_________________________________________________________________ nossos extensionistas, a saber: a UFMA está comprometida com as necessidades do povo maranhense? Quais são essas necessidades? Como enfrentá-las? Quais contribuições a área de teatro poderia dar? Questionamentos como esses não podem calar, mas sim ressoar nas das vozes ativas dos sujeitos que se propõem ao desenvolvimento de projetos de extensão, sobretudo aqueles vinculados ao ensino e pesquisa, como é o caso de Ação Cultural em Teatro. Equaciona-las, redimensiona-las, opera-las junto às parcerias institucionais e aos sujeitos das comunidades, compreende-las com todos os desafios internos e externos, torna-se, então, ao mesmo tempo a tarefa acadêmica e o valor ético-social da iniciativa. Resta, então, traçar bons indicadores e conseguir fontes de informação confiáveis para realizar a avaliação em vários níveis – diagnóstica, político-institucional, pedagógica e de impacto do projeto em si – para que se possa verificar, com clareza, a concepção de extensão praticada e sua função junto ao currículo pleno do Curso de Licenciatura em Teatro.

Notas: 1 Cf. Resolução CONSUN-UFMA n. 75, de 28-09-2004, alterada pela Resolução CONSEPE-UFMA n. 523, de 15-03-2007. 2 Em 2008 o projeto Ação Cultural em Teatro contará com recursos obtidos com premiação no Edital PROEXT 2007 (MEC-SESu-DEPEM). 3 Sobre isso, ressalte-se a contribuição da Profa. MSc. Marisa Marçalina, do Departamento de Educação II, quanto ao impacto de um projeto desenvolvido no âmbito do curso de Pedagogia, com estudantes das séries iniciais da educação básica que moram nas adjacências do Campus do Bacanga. 4 A esse respeito, recomenda-se a consulta à monografia de conclusão de curso de Célida Maria Lima Braga, que narra e analisa o procedimento estético e pedagógico da montagem da peça O extensionista, de Felipe Santander. 5 O debate em torno dessas questões motivou a participação do público, ressaltando-se a contribuição do Prof. Dr. Sávio Araújo (UFRN), sobre as relações entre as políticas públicas do Estado e da universidade, e do estudante Abimaelson Santos (UFMA) quanto à ampliação do universo cultural do alunado, além dos ganhos para as comunidades envolvidas em projetos dessa natureza.

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O PROJETO “O EXTENSIONISTA” E A PREPARAÇÃO DE PROFESSORES DE TEATRO* Célida Braga**

Resumo: Procuramos neste estudo, mostrar a importância do projeto O Extensionista, enquanto proposta de experimento teórico-prático para formação do professor de Teatro. Este experimento cênico foi desenvolvido na disciplina Interpretação II, do Curso de Licenciatura em EDA, HAC da UFMA. Apresentamos “O Extensionista” como instrumento capaz de propiciar alternativas para interferir na crise de paradigmas em que a Licenciatura em Teatro na UFMA se defrontava e se defronta ainda hoje. Dessa forma, ressaltamos as possibilidades de diferentes disciplinas se relacionarem em uma perspectiva metodológica interdisciplinar. Tentamos mostrar através desta análise a importância deste projeto de pesquisa para a formação tanto em nível pedagógico, quanto em nível cênico do professor de Teatro. Palavras-Chave: Projeto “O Extensionista”. Formação de Professor de Teatro. Experimento Cênico. Abstract: We sought in this study, to show the importance of the project Extensionista, while proposal of theoretical-practical experiment for the teacher’s of Theater formation. This scenic experiment was developed in the discipline Interpretação II, of the Course of Licenciatura in EDA, HAC of UFMA. We presented Extensionista to the future teacher of Theater in the sense of contributing so much for the formation in pedagogic level, as in scenic level. It is like this, that everybody notices the Project “ Extensionista “ as instrument capable to propitiate alternatives to interfere in the crisis of paradigms in that Licenciaturas was confronted and they are still confronted today; and that they are many, the possibilities of different disciplines if they relate in a perspective methodological interdisciplinar. Keywords: Project “ Extensionista “. Formation of Teacher of Theater. I try Scenic. Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda “A extensão, o papel da universidade pública no Maranhão e a formação do arteeducador”. ** Professora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Maranhão do Curso de Educação Artística e do Curso de Licenciatura de Teatro, especialista em Metodologia da Educação Superior pela Universidade Estadual do Maranhão e participa da coordenação Pedagógica, do projeto “Ação Cultural em Teatro” de coordenação Geral do Prof. Dr. Arão Paranaguá de Santana (DEARTE-UFMA). Email: [email protected] *

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O surgimento do Projeto “O Extensionista1” está pautado em dois propósitos. O primeiro diz respeito à estrutura do Currículo do Curso de Licenciatura em Educação Artística no que se refere: à fragmentação dos conteúdos nas habilitações e a dicotomia entre competências técnicas e pedagógicas. O segundo, à necessidade de clareza sobre a identidade do curso: Licenciatura ou Bacharelado. Ao construir esta análise, busca-se de forma contundente compreender a estrutura curricular e metodológica do Curso de Educação Artística a partir da relevância, em termos de teorias e práticas adotadas, para a construção de um saber científico, artístico e educacional. E assim, entender “O Extensionista” como possibilidade de integração do ensino, da pesquisa e da extensão como alternativa de superação do problema fragmentador no ensino de teatro. Na década de 902, alguns professores e alunos da Habilitação em Artes Cênicas, em busca de novas possibilidades para trabalhar os conteúdos de disciplinas específicas da habilitação, que se apresentavam estandardizados nos programas, encontram possibilidades metodológicas para interferir no contexto da disciplina Interpretação II a partir do Projeto de Montagem – “O Extensionista”, demonstrando assim, uma preocupação com ensino pela pesquisa; revelando a importância de se trabalhar conteúdo mais dinâmico a partir dos eixos de análise e uso e estimulando alunos e outros professores a investigarem outras formas de abordagens de conteúdos, didáticas e práticas de ensino. Na busca de dinamizar a formação de professores de teatro para torná-la mais viva e significativa no contexto da Educação Básica e contextualizar o fazer pedagógico e artístico com a realidade maranhense, ao contrário de metodologias e conceitos presos a hipóteses. Esses anseios nascem num período em que a Universidade brasileira vem caminhando para a aceleração do processo de privatização; empresariamento do ensino e para uma crescente desobrigação do Governo Federal, no que diz respeito ao financiamento da universidade pública. Poucos projetos sendo desenvolvidos no sentido de oportunizar professores e alunos na busca da superação da dicotomia teoria-prática, diante das dificuldades de relacionar ensino, pesquisa, extensão. Sendo assim, o ensino científico necessita redefinir uma política nacional que assegure condições reais de ensino e pesquisa na produção acadêmica. Nessa perspectiva, não se pode desvincular a Educação Superior do modo capitalista e da produção da existência humana. Por isso, acredita-se que o ensino superior deva exprimir a própria contradição do desenvolvimento do sistema capitalista e recriar novos paradigmas na tentativa de construção de um projeto humanizador de universidade. Partindo dessa concepção, procuramos compreender a relação entre universidade e sociedade. À Universidade, tornaram-se comuns às inúmeras críticas e afirmações sobre a desvinculação desta com a realidade brasileira. Trabalhos de extensão, serviços que se predispõem interferir na sociedade, mas, raramente articulados com o ensi158

O projeto “O extensionista” e a preparação... _________________________________________________________________

no, com as pesquisas realizadas e com os problemas sociais. Constata-se na prática acadêmica, a distância entre o trabalho científico e as atividades que contribuem com os movimentos sociais. No que diz respeito à Universidade Federal do Maranhão, essas questões são perceptíveis. De acordo com Gurgel (1995), “(...) o que fazemos é tão pouco dentro dos problemas que a sociedade apresenta”3. Este recorte representa um restrito vínculo entre ensino, pesquisa e extensão no processo de formação de professores e cria possibilidades de discurssão sobre o papel da extensão universitária a partir da representatividade do Setor de Extensão da UFMA. No tocante à quantidade de produção acadêmica da universidade maranhense, na visão de Duarte (1997), “(...) está ainda longe do que poderíamos medianamente almejar4”. Nesse sentido pode-se destacar, a situação das licenciaturas. Observa-se um quadro em que ainda é relevante professores que se ressentem da qualificação de mestrado e doutorado. Vários questionamentos nos perseguem na busca de dar conta de tal complexidade que envolve as ações da Universidade, para percebê-la sob um outro viés, ou seja, vê-la potente e articuladora de conhecimentos sobre diferentes operações técnicas, estéticas, críticas, históricas e sociais. Sendo assim: o que seria Universidade? Como é produzida? A quem se destina? Nesse sentido, o desenho de universidade que se busca representar aqui é o que está em busca de identidade própria e de uma adequação à realidade social e com ampla autonomia para cumprir suas finalidades, garantindo pluralismo de idéias e liberdade de pensamento. Se a proposta é sair do tecnicismo5 cedendo lugar ao conteúdo propriamente didático-pedagógico e cientificamente elaborado, as universidades precisam encarar as licenciaturas a partir da importância que possuem no contexto acadêmico, não como de “segunda opção”.(?) explicar No que concerne aos cursos de licenciaturas da UFMA, são cursos pequenos a nível quantitativo (essa situação muda um pouco na década de 90) e a nível qualitativo, quanto aos que se formam. Não se percebe uma política na universidade preocupada com essa situação, mas, sim, uma postura acomodada. Conforme Duarte (1995), a universidade sabe de suas precariedades, mas vem tornando-se omissa na busca de um projeto revitalizador dessa precariedade. É importante destacar que, as Licenciaturas curtas passam a existir em 1974, com o objetivo de formar professores polivalentes6. Nesse contexto a noção de polivalência na Educação Artística é de: valorizar a prática artística; particularizar o ensino de arte em habilitações; reforçar a dicotomia teoria-prática, ensino-pesquisa-extensão; valoriza-se o adestramento e o treinamento profissional. A universidade como centro de educação, precisa reconhecer a prioridade dos cursos de licenciaturas e contribuir com o ensino formal e informal, por intermédio de futuros professores da Educação Básica. Mas para maior entendimento sobre o trabalho aqui estruturado, ne159

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cessita-se de uma análise sobre o referencial histórico do Ensino da Arte no Brasil a partir da noção de polivalência. A partir da Lei 5692/71, principalmente depois da resolução nº 23 de outubro de 1973, que regulamenta de forma obrigatória a disciplina Educação Artística no ensino brasileiro. Conforme Cunha (1989), o Art. 7 da LDB, “(...) veio contribuir para reforçar e aumentar um quadro já confuso, conturbado e sem clareza de objetivos e finalidades, tanto para a formação e o papel político-educacional do professor, quanto para a disciplina. 7” Dessa forma o curso de Licenciatura em Educação Artística, passa a ser compreendido na perspectiva de formar profissionais que ao mesmo tempo desenvolvam práticas a partir do conteúdo de várias linguagens artísticas: artes plásticas, artes cênicas, desenho e música, com carga horária de 30 horas/ano. Com essas novas idéias, cabiam ao professor desta disciplina dominar o conhecimento de todas as linguagens artísticas. E ao aluno da Educação Básica, a compreensão dos diversos saberes artísticos materializados na sala de aula. Segundo Santana (1995): “(...) que em nível de Brasil traz muitas diferenças, talvez nas particularidades regionais, mas não traz as diferenças no que diz respeito às matérias de ensino e a compreensão da formação desse educador. Quem é esse educador que vai formar?”8 Na década de 80, surgem movimentos de professores de Artes que discutem um novo rumo para a Educação Artística. Nestes debates o paradigma interdisciplinar se apresenta como tentativa de superação da fragmentação dos conteúdos artísticos. Mas será na década de 90 (final do século XX), que emerge uma necessidade de (novos) paradigmas. E assim, professores de Artes, ainda enfrentam barreiras de diante das novas propostas de mudanças no contexto da escola pública até os dias atuais. O currículo fragmentador entre o conhecimento artístico e pedagógico na maioria das vezes, valorizando o conteúdo em si mesmo, permanece sendo reforçando. Essa problemática evidencia: a produção de modo fragmentado; a dissociação dessa produção com o conhecimento científico (contexto de onde emerge). E apresenta a polivalência como conhecimento limitado. Lück (1994), ao conceituar polivalência, coloca que: “Ao mesmo tempo em que produz (a polivalência) um mosaico de informações de conhecimentos paralelos desagregados uns dos outros. Às vezes antagônicos e ainda considerados como legítimas representações da realidade9”. Dentro dessa perspectiva, a interdisciplinaridade possibilita uma significativa experiência na superação da fragmentação que vinha enfrentando a Licenciatura em Educação Artística, Habilitação em Artes Cênicas, notadamente na UFMA. De acordo com Lück (1994): O início da década de 90 caracteriza-se pela idéia de interdisciplinaridade, tema-chave dos mais representativos eventos sobre formação de educadores, tais como as últimas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação em educação (Anped), nos Encontros Bienais de

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O projeto “O extensionista” e a preparação... _________________________________________________________________ Professores de Educação (CBE). Esquecida em décadas passadas, volta agora como palavra de ordem das propostas educacionais não só no Brasil, mas em outros países.10

A interdisciplinaridade surge como paradigma emergente na educação. No campo das Artes, se apresenta como possibilidades de aberturas, facilitadora de trocas por meio de intercâmbios das disciplinas específicas da HAC. Nessa perspectiva a linguagem teatral, abre diversas possibilidades de sugestões, buscas e discussões e como agente facilitador dessa experiência. Mas o que caracteriza uma atitude interdisciplinar? Fazenda (1993), acrescenta que:

É a atitude da busca, da pesquisa. É a transformação da insegurança num exercício do pensar num contribuir. A solidão dessa insegurança individual que vinca o pensar interdisciplinar, pode transmutar-se na troca, no diálogo, no aceitar o pensamento do outro. Exige a passagem da subjetividade para a intersubjetividade11.

Na discussão acima se analisa o caminho percorrido pelo projeto para facilitar o entendimento da forma de relação das parcerias com “O Extensionista”, posto que se acredita que esta tenha nascido a partir da idéia de integração. Disciplinas afins: Interpretação II, Expressão Corporal II, Teatro de Animação, Caracterização. Outra análise está enfocada na parceria complementar: Núcleo de Estudos da América Latina (NEAL), vinculado a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, criado no ano de 1994, quando quebra a rigidez da estrutura institucional que reforçava o paradigma fragmentador e a inclusão do projeto na 47ª SBPC – na abertura das conferências das Comissões Democratizando a Ciência, nos bairros de São Luís. A proposta das Comissões Democratizando a Ciência era ampliar o espaço de debates sobre a relação da pesquisa científica entre universidade e comunidade na democratização da ciência e da arte na periferia; divulgando os conhecimentos produzidos pela UFMA no sentido de intercambiar saberes científicos e populares; abertura para a participação dos movimentos populares nas discussões com o mundo da ciência. Dessa forma o papel do NEAL no Projeto “O Extensionista” era de divulgação, de organização dos seminários como parte da programação artístico-acadêmica. Trabalhando em conjunto com o CA de Artes, APRUMA, Departamento de Comunicação Social, as temáticas de discussões no projeto foram: Extensão Universitária e Interdisciplinaridade; Reforma Agrária e Latifúndio; e As Influências brechtianas na América Latina e no Brasil. A importância do Extensionista é observada em vários aspectos. Uma, porque mobilizou segmentos da comunidade; possibilitou mostrar o teatro como viés para democratizar o saber científico e popular; também, contribuiu para a tomada de atitudes dos problemas presentes nas comunidades. Outra, porque buscou a unidade entre alunos, professores e instituições, uma forma de aventuras. O futuro professor de Teatro, envolvido no experimento teve oportunidades de aprofundar saberes brechtianos buscando procedi161

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mentos para a organização e a ampliação do ensino e da pesquisa e assim, sujeitos ativos da relação professor-aluno. A partir das parcerias estabelecidas, buscou-se entender, se, na proposta do Projeto houve concepção interdisciplinar. Analisa-se que as parcerias se deram por junção de disciplinas, interação de conceitos, de métodos e de conteúdos? Então esta análise na perspectiva interdisciplinar surge a partir das inquietações com o currículo da HAC; tentativa de superação da fragmentação do conteúdo nas disciplinas; interação das diversas áreas do conhecimento com a produção do conhecimento do Projeto. Assim como outras disciplinas não conseguiram se envolver: ruim para os alunos que ficaram com excesso de tarefas, ou seja, pesquisa do projeto O Extensionista, mais outras atividades das outras disciplinas que poderiam está juntas. A partir da “Avaliação Escrita da Prática da Montagem” realizada pelos alunos, na questão sobre a perspectiva interdisciplinar, destacam os seguintes aspectos: (...) este é assunto que ainda não ocupa espaço devido em nosso curso. Muitos professores se sentem coadjuvantes e pensam que estão trabalhando para uma disciplina. (...) Os professores querem cada um mostrar o resultado de suas disciplinas. (...) Infelizmente (a interdisciplinaridade) não aconteceu, houve apenas uma tentativa.

De acordo com Fazenda (1993): “certas disciplinas aparecem sob os mesmos domínios materiais, juntam-se parcialmente, criando assim relações complementares entre seus respectivos domínios de estudo”. Dessa forma, afirmamos que “O Extensionista” estabeleceu uma relação dialógica com os participantes na própria ação do pensarfazer, uma proposta de cunho científico. Acredita-se que o Ensino Superior: deva criar oportunidades de interação entre ensino-pesquisa-extensão; buscar a unidade teoriaprática para formar profissionais capazes de interferir com autonomia no contexto social, e, a partir daí redimensionar o processo educativo, na recuperação da dinâmica das relações, do homem consigo, com o outro e com ambiente em que está inserido. Cremos que essas mudanças são prioritárias, tanto para a Licenciatura de Teatro, quanto para educação escolar e que, seu maior reflexo será na sociedade de forma geral. Nesse sentido é que apontamos traços importantes d’O Extensionista como contribuições para a formação de professores de Teatro na UFMA: · Primeira tentativa de estabelecer de forma sistemática a relação de aprendizagem entre teoria e a prática dos alunos da HAC, a partir das metodologias utilizadas, buscando unir o ensino artístico e pedagógico; construir um saber interdisciplinar através do teatro. E assim, unir os pilares básicos no campo do saber científico, ou seja: ensino – por meio das disciplinas Interpretação II e Expressão Corporal II; pesquisa – por meio do desenvolvimento do Projeto e extensão – por meio das parcerias com o NEAL e com as Comissões Democratizando a Ciência na 47ª SBPC. 162

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· A montagem da peça teatral “O Extensionista” de Felipe Santander, apresenta dois eixos de discussão: O primeiro em nível temático, sobre extensão universitária e seu distanciamento da realidade social; a questão agrária a partir da reforma e latifúndio, problemas enfrentados pelos países da América latina (específico do México e Brasil). O segundo, em nível dramatúrgico, a escrita da peça é realista, mas possui características brechtianas, por usufruir bastante da narrativa. O texto de Santander dá possibilidades de narrarse, distanciadamente, o que no passado ocorreu na cidade mexicana Techtnotlén das Flores, (a revolta dos camponeses e o impasse de rodear a prefeitura municipal e exigir que entregue seus companheiros presos). Esse fato é narrado pelo Cancioneiro, como fato acontecido (passado) e não acontecendo, pois o tempo presente é a narração feita pelo personagem Cancioneiro. Típica da dramaturgia moderna da América Latina em que se mostra nitidamente uma influência brechtiana. · O objetivo não era de envolver palco-platéia em uma grande ação dramática, mas permitir ao espectador que, mesmo se divertindo, consiga entender as dimensões sociais, políticas e culturais da sua própria realidade. De acordo com Peixoto (1995): “nasce de uma proposta que nasceu de Brecht, mas é uma proposta brasileira. A regra de Boal, que Felipe Santander utiliza é o teatro foro”. · O processo de encenação envolveu 19 alunos; 06 professores; 01 monitor; 03 músicos da comunidade. Os Departamentos de Artes, Comunicação Social e Departamento de Desenho Tecnológico sob a coordenação do professor mestre Luiz Roberto de Souza. · Na perspectiva de fundamentação teórica das disciplinas envolvidas, trabalhou-se o seguinte conteúdo: teorias do teatro dialético brechtiano na visão de Rosenfeld (1993), Boal (1982), Bornheim (1992), Koudela (1994); jogos teatrais e exercícios de alongamento corporal, exercícios vocais; criação da trilha sonora; construção de cenários e máscaras; seminários extra-sala de aula. · O entendimento dos alunos sobre uma proposta de encenação criada a partir da idéia de todos, de forma que fosse viável na proposta de montagem da peça teatral. E assim, contribuir para formar profissionais de Teatro, conscientes da importância social do ensino de teatro para a humanização do indivíduo no reencantamento do mundo. · “O Extensionista”, abriu espaço dentro do Curso de Educação Artística, até então não explorado: para projetos que objetivam o ensino pela pesquisa, possibilidades aos futuros educadores de Teatro se engajarem em projetos de extensão. 163

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O projeto “O Extensionista”, deixou marcas de sua ação. Principalmente porque na história da Habilitação de Artes Cênicas na UFMA, foi a primeira vez que recebemos a presença de grande intelectual do teatro, Fernando Peixoto, que ministrou palestra sobre “O Teatro latino-americano e as influências de Brecht no Brasil. Ao acreditar-se que o homem é produto histórico em constante transformação, enquanto educadores, não podemos fazer exigências que desrespeite o próprio processo evolutivo intelectual do educando. O desafio constante é a unidade na diversidade. Os estímulos serão sempre necessários e diferenciados para que o educando tenha autonomia e assim, se posicione sobre a qualidade de sua formação, valorizando-se, como intelectual que busca a sua superação. Diante do exposto, salienta-se a importância de projetos que: objetivam o ensino pela pesquisa e criam possibilidades à futuros professores de teatro, se envolverem com a extensão universitária; reconstroem metodologias que primem pela dialética inerente à práxis criadora. Portanto, ao refletir sobre O Projeto “O Extensionista” e a Preparação de Professores de Teatro não se busca desvendar soluções esquemáticas para repetir desafios estéticos. A atitude de espanto (característica do teatro didático de Brecht) é necessária. O desafio maior diz respeito ao significado do experimento e sua contribuição na formação de professores de teatro. Entrementes, precisamos ampliar este pensar, fazer teatro numa metodologia sempre em reconstrução, um saber a várias mãos, no contexto em que estivermos inseridos e até mesmo quando surgirem problemas curriculares. A grande idéia básica de que o mundo não deve ser visto como um complexo de objetos completamente acabados, mas sim como um complexo de processos, no qual objetos aparentemente estáveis, nada menos do que suas imagens em nossas cabeças (nossos conceitos), estão em incessante processo de transformação. (Friedrich Engels).

Notas: 1 Projeto de montagem – “O Extensionista” – peça do dramaturgo mexicano Felipe Santander sob coordenação do prof. Ms. Luiz Roberto de Souza (Luiz Pazzini), insere-se dentro da disciplina Interpretação II, do Curso de Licenciatura de Educação Artística, que tem por objetivo a aplicação de técnicas brechtianas do teatro didático, um dos principais caminhos de estudo no teatro-educação. Ano de execução: 1995. 2 In: TIRAMONTI (1995, p.35): “Cenário dos anos 90, apresenta três características básicas que geram condições diferentes para a construção das políticas públicas: instalação de um novo paradigma educacional; recuperação de um espaço de legitimidade para o estado; definitiva descentralização do sistema”. 3 GURGEL, Roberto Mauro. Trabalho apresentado no I Seminário do Projeto “O

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O projeto “O extensionista” e a preparação... _________________________________________________________________ Extensionista”: Extensão Universitária e Interdisciplinaridade, 1995. 4 DUARTE (apud BRAGA, 1997, P.78). 5 In: FUSARI & FERRAZ, (1993, p.32): “A ‘Pedagogia Tecnicista’, presente ainda hoje, teve suas origens a partir da segunda metade do século XX, no mundo, e a partir de 1960/1970, no Brasil. (...) o aluno e o professor ocupam uma posição secundária, porque o elemento principal é o sistema técnico de organização da aula e do curso. Devido à ausência de bases teóricas mais fundamentadas, muitos valorizam propostas e atividades dos livros didáticos que, nos anos 70/80, estão em pleno auge mercadológico, apesar de sua discutível qualidade enquanto recurso para o aprimoramento dos conceitos de arte”. 6 In: SANTANA, (2000, p.44): “(...) a figura do professor polivalente, ou seja, aquele profissional que circula facilmente do 1º ao 2º grau e, ao mesmo tempo, da atividade à disciplina, passando pela área de estudo”. 7 CUNHA (1989. p.64), 8 SANTANA, Arão P. Trabalho apresentado no I Seminário do Projeto “O Extensionista”: Extensão Universitária e Interdisciplinaridade, 1995. 9 LÜCK, (1994 p.21) 10 LÜCK, (1994, p.27). 11 FAZENDA (1993, p.18)

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A NOSTALGIA PÓS-MODERNA: o Complexo de Dédalo em perspectiva.* Alexandre Fernandes Corrêa**

Resumo: Breve artigo analisando o ‘complexo de Dédalo’, num paralelo com a mitologia Grega, para se interpretar as ‘encruzilhadas do labirinto’ das políticas do patrimônio e da memória na atualidade. O foco da análise recai especialmente para as recentes dinâmicas de aceleração dos processos de ‘turistificação’ e ‘gentrificação’ da paisagem urbana dos Centros Antigos das metrópoles brasileiras. Palavras-chave: Patrimônio. Memória. Paisagem. Urbanismo. Turismo Abstract: Brief article analyzing the ‘complex Dédalo’, in a parallel with the Greek mythology, to interpret the ‘crossroads of the maze’ of the policies of the heritage and memory in actuality. The focus of the analysis lies especially for the recent dynamics of acceleration of the processes of ‘turistification’ and ‘gentrification’ of the urban landscape of the Historic Centers Brazilian cities. Keywords: Patrimony. Memory. Landscape. Urbanism. Tourism

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCh/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda “Novas Sociabilidades e Urbanidades Contemporâneas”. ** Professor Adjunto em Antropologia do Departamento de Antropologia e Sociologia. Doutor em Ciências Sociais PUC/SP. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Patrimonio & Memória. Email: [email protected]

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1. INTRODUÇÃO Vou apresentar nessa Mesa-Redonda algumas idéias heterodoxas que tenho elaborado a partir de minhas experiências com pesquisa-ação e ação cultural nos bairros que compõem o Centro Antigo de São Luís, desde o final da década de 1990. Nestas experiências em pesquisa e extensão universitária tenho observado processos metamórficos que oferecem sinais significativos dos processos profundos de mudança que ocorrem atualmente no imaginário social brasileiro, em relação a gestão das paisagens culturais urbanas e das memórias sociais. Apoiado nas intervenções críticas de C. Castoriadis, especialmente na série de textos designados Encruzilhadas do Labirinto, vou trabalhar provisoriamente com a expressão ‘Complexo de Dédalo’, para tentar interpretar o conjunto de fenômenos que observo se sedimentar no quadro empírico referido acima. Trata-se de um estudo sobre os processos sócio-culturais que identifico desenvolverem-se, através de vultosos investimentos coletivos, nos centros urbanos antigos e nos diversos acervos patrimoniais e museológicos contemporâneos. Nestes cenários privilegiados vemos encenarem-se forças poderosas que agenciam todo um conjunto de equipamentos que compõem as paisagens culturais urbanas dos Centros Antigos das metrópoles brasileiras. São novos agenciamentos coletivos, manifestos cenograficamente, e que surgem como um novo ‘brinquedo’ nas mãos de arquitetos e engenheiros: combinando novos e velhos tecnocratas especialistas do patrimônio histórico e cultural. Trata-se de uma construção histórica cada vez mais sofisticada. Mas também é uma construção política que tem nos conduzido ao mais fantasmagórico dos labirintos da modernidade. Labirinto urbano, que atravessou o milênio, deixando como herança à sociedade cada vez atônita, uma fantasmagoria certamente desconcertante. A natureza dessa fantasmagoria se funda no desenraizamento evidente que se manifesta na engenhosidade estetizada, nas artificialidades fabricadas (ou autenticidades encenadas1) pelos projetos arquitetônicos, e de engenharia cultural, que se distanciaram e romperam os laços da sociabilidade básica e fundamental, ainda resistentes nesses Centros Urbanos Antigos. São ‘Projetos de Intervenção Tecnocrática’ que se distanciam cada vez mais do cotidiano e da vivência social mais concreta. Mas, é preciso que se descreva particularidades de uma ‘outra realidade’ virtual, para que se possa fazer toda justiça. Os arquitetos, engenheiros e tecnocratas do patrimônio surgem como sintomas tardios numa sociedade em crise, crise da sociabilidade artificializada num complexo sócio-cultural que se impõem de modo inédito e sem precedentes. O “fim do social”, enfocado por vários sociólogos contemporâneos, entre os quais cito Jean Baudrillard (1994), se cristaliza nessas “memórias do social” que vemos engendrarem-se como paródias, sinais de uma irrisão tardia. Ironicamente, é no momento que se tenta salvaguardar, com esforços concentrados com apelos sentimentais 168

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apoiados uma retórica romântica e nostálgica, muito sedutora e superelitizada, que vemos manifestar-se o sintoma de uma falência, a falência da sociabilidade numa sociedade cada vez mais individualista e anti-social2. Esse processo se encaixa como uma luva, especialmente no nosso contexto sul-americano. Contexto sócio-cultural em que a sociabilidade mais cotidiana, a sociabilidade da cultura popular resistente e viva, sempre foi um grande estorvo para os arquitetos, engenheiros e tecnocratas da elite. Estorvo, pois, esses vestígios e traços da vivência cultural popular atrapalhavam, e ainda atrapalham, o jogo de ‘faz de conta’ e da ‘memória’ (em que se busca as imagens replicadas) seus projetos ‘fetichizados’ de intervenção, no que poderíamos chamar aqui novos parques do ‘admirável mundo novo’ do passado tornado mercadoria turística. Os processos de ‘gentrification’ que se observam desenvolver pelo país a fora, replicando aqui o que ocorre em vários países ocidentais, é reflexo desse processo de intensificação da ‘marginalização’, sem precedentes, dos grupos dos imigrantes, desempregados, excluídos e de todas as minorias que ainda ocupam os Centros Antigos das grandes cidades brasileiras. Isso se faz hoje com o acordo unânime de todos, acadêmicos e cidadãos, que chancelam a ‘ideologia’ da ‘turistificação’3, com a esperança de que haverá enfim a redenção econômica do país, com as promessas de desenvolvimento capitaneado pela chamada ‘indústria limpa e sanitária do turismo sustentável’ – ideologia poderosa que merece ser analisada criticamente, superando este estado hipnótico em que nos encontramos aprisionados: políticos, comunidades, especialistas, profissionais, professores, universitários, etc. De tal sorte que criticar essa ‘ideologia’ é ser considerado um tipo de ‘pessimista’ incurável, um derrotista, um ‘idiota’ crítico, que não admira as maravilhas que o turismo pode oferecer para o país e, especialmente, para as regiões mais pobres da nação que possuem acervos paisagísticos bioculturais com ‘grande potencial’ turístico... Contudo, é evidente que mesmo gozando de forte apelo comercial e empresarial, esse modelo está em crise, esgota-se a passos largos, pois as contradições são cada vez mais presentes, assim como densas, tensas e eloqüentes. Mas, o esforço para encobrir estas arestas e incongruências é gigantesco. É certo também que assistimos e testemunhamos metamorfoses e avatares de um modelo já bastante conhecido, que se reconhece apenas na sua atual fase como uma momentânea e passageira ‘teatralização’4 sanitária e higienizadora, que aglomera e condensa como uma onda, uma moda fugaz de consumo passadista chique, em templos consumistas simulados e com referências e citações refinadas e estetizadas do ‘passado’. Mas, essa onda modista nostálgica, tem deixado um rastro fantasmagórico cada vez mais curioso. Antes de se esgotar totalmente, pretende deixar seus ‘fósseis’ tombados e inscritos nas paisagens urbanas das cidades, aspirando uma ‘eternidade’ sacralizada, como prenún169

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cio de um fim heróico e glorioso, mas profundamente decadente. É sim, uma inscrição do imaginário de uma classe social que se vê desmoronando junto com o modelo e uma visão de mundo específica, em que seu predomínio, em mais de um século de intervenções arbitrárias e autoritárias, nas cidades brasileiras, finalmente parece anunciar seu fim. É preciso contextualizar esse processo, pois isso não se dá fragmentariamente, como preconizam os profetas e poetas do fragmento, trata-se de uma ‘imaginação de classe’, uma cenologia-declasse5 imposta por um tipo de subjetividade de classe particular. As classes médias e altas estão sempre ávidas por novos espaços nas cidades, querem novos símbolos descartáveis para consumir, e para aplacar o vazio de um consumismo passivo e alienante. Mas logo desaparecem do cenário criado para eles, e volta a ser encenada a decadência e a desvalorização imobiliária do lugar, e de novo voltam os grupos sociais e culturais expulsos do lugar, recolhendo os pedaços do que sobrou do consumo passivo e passageiro. Esse processo é desencantador, crítico e preocupante. Poucas vozes se levantam contra esse estado de coisas, poucos hoje ousam apontar para os vícios desse ciclo. Como decifrou N.Canclini, reflexão inserida aqui numa longa citação: Precisamente porque o patrimônio cultural se apresenta alheio aos debates sobre a modernidade ele constitui o recurso menos suspeito para garantir a cumplicidade social. Esse conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam como nação ou como povo é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestígio simbólico que não cabe discuti-lo. As únicas operações possíveis – preserva-lo, restaura-lo difundilo – são a base mais secreta da simulação social que nos mantém juntos. Frente à magnificência de uma pirâmide maia ou inca, de palácios coloniais, cerâmicas indígenas de três séculos atrás ou à obra de um pintor nacional reconhecido internacionalmente, não ocorre a quase ninguém pensar nas contradições sociais que expressam. A perenidade desses bens leva a imaginar que seu valor é inquestionável e torna-os fontes de consenso coletivo, para além das divisões de classe, etnias e grupos que cindem a sociedade e diferenciam os modos de apropriar-se do patrimônio. Por isso mesmo, o patrimônio é o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos setores oligárquicos, quer dizer, o “tradicionalismo substancialista” (Canclini, 2003, p. 160).

Destaco da citação as expressões: ‘cumplicidade social’, ‘manter juntos’, ‘fontes de consenso coletivo’, etc. É exatamente o que estamos vendo acontecer em relação a ideologia de que o turismo trará o desenvolvimento para as regiões subdesenvolvidas do país: todo mundo concorda com esse novo axioma. Nesse trajeto repetitivo e labiríntico, os tecnocratas, os arquitetos e os engenheiros, com fobia do social e do que eles chamam de ‘intelectualismo inútil’, continuam a não dar ouvidos à crítica. Todavia, sempre chega a hora de se assumir as responsabilidades sociais e políticas pelas escolhas mal sucedidas. Destarte, é preciso mudar essa matriz de atuação alienante, reducionista, classista e anti-democrática. Os Centros Urbanos Antigos devem ser para todos os cidadãos, não só para 170

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turistas, nem só para as pessoas das classes médias e altas, devem manter-se espaços de encontro dos diferentes segmentos culturais e econômicos da sociedade. Evitando assim a expressão neurótica de um falso amor pelo passado, apontado por Lévi-Strauss na obra Antropologia Estrutural II: “ (...) que o amor pelo passado é uma mentira nas cidades que, para satisfazer a sua necessidade de crescer, massacram todos os vestígios do que foram e do que as fez (...)” (1976, p. 291). Em traços largos esse é o escopo do campo de problematizações que esse artigo tenta contemplar. Vamos introduzir alguns temas teóricos para balizar a reflexão crítica e por fim, sugerir algumas saídas para esse labirinto de Dédalo.

2. O TEMPO DA LONGA DURAÇÃO: tempo para refletir Esta breve incursão reflexiva no campo epistemológico, em que vemos desenhar-se uma unidade quanto a percepção dos processos de transformação que acontecem na atualidade – e que se manifestam na área da cultura, da natureza e da tecnologia – ajuda-nos a atingirmos enfim o ponto central desta fala. Creio que pelo espaço dessa intervenção esse talvez seja o ponto que merece ser destacado aqui. Assim, o foco da análise recairá agora sobre o que chamarei de ‘conflito antitético’ entre o ‘tempo da longa duração para a reflexão’ e as exigências contemporâneas da pressa e ansiedade em dar respostas rápidas a problemas novos. Pois é preciso colocar em questão a sócio-técnica, isto é, colocá-la sob o crivo da perspectiva sócioantropológica. Sigo nesse sentido o questionamento colocado por Laymnert: “com base em que critérios podemos julgar o atual processo do capitalismo global?” Há um descompasso intrínseco entre a percepção da singularidade dos novos enfrentamentos políticos e sociais, que a questão do patrimônio e da memória sucita, e uma demanda cada vez mais ávida por respostas utilitárias e não-reflexivas. Chamaria de ‘síndrome fóbica’, contra o ‘tempo da reflexão’, essa resistência dura em se refletir com profundidade os processos que estão transtornando os quadros de referência tradicionais da ética e da política na atualidade. As novas dinâmicas dos enfrentamentos culturais e políticos do presente, que exigem uma reflexão acurada e sensível as especificidades dessas novas configurações, se debate com a demanda por simplificações utilitárias e instrumentais cada vez mais agudas. Contudo, é certo que a atualidade nos lança em um mundo admiravelmente novo, para o qual não temos respostas prontas, pois o fato destes novos enfrentamentos não terem antecedentes na história humana, não é possível encontrar na nossa ‘caixa de utilidades e ferramentas tradicionais e clássicas’, isto é canônicas, respostas para esses novos problemas. Como sugere C. Geertz, cabe então trabalhar com as ‘perguntas’ adequadas: “Si no conoces la respuesta, discute la pregunta”6. 171

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A ciência é invocada a dar respostas rápidas e técnicas para problemas que mal começam a delinear-se – sabemos que elaborar uma inquieteção, ou problematização, isto é, conseguir elaborar um problema científico, já é um passo importante na resolução do problema. Portanto, nas dinâmicas do patrimônio e da memória na atualidade, o que parece ser urgente é que talvez seja mais importante preparar nossas mentes para novas exigências da atualidade. Sabemos, desde já, que o momento é de ‘refletir e pensar’ e de saber construir os problemas verdadeiramente cruciais, relacionados a conservação, preservação e promoção dos acervos naturais e culturais em risco de desaparecimento. Esse é um ponto importante, o tempo da reflexão e da elaboração de novos quadros de referência políticos e éticos tornou-se essencial para que possamos dar os passos menos dúbios nesses novos domínios. Talvez neste II Fórum possamos vislumbrar a criação de um Laboratório, ou Observatório, das políticas do Patrimônio Cultural na atualidade, que possa nos oferecer condições de ir além das demandas por Oficinas e Mini-Cursos, excessivamente repetitivos, multiplicadores e facilitadores de praticas a-críticas sem profundidade e sem consciência reflexiva apurada. A tecno-ciência e as sócio-técnicas têm oferecido respostas pontuais e provisórias, como frutos de uma demanda açodada, que leva ao solapamento das verdadeiras questões epistemológicas de fundo. Pois, é preciso saber esquadrinhar as linhas de força dos atuais e novos enfrentamentos civilizacionais que estão na cena preservacionista. Tanto na área da natureza quanto na área da cultura, assistimos aos novos investimentos avassaladores do capital, que tem dado saltos vertiginosos, em poucas décadas. Da referida ‘virada cultural’, passamos rapidamente para a ‘virada cibernética’ – e a biotecnologia, que inaugura em passos largos a ‘engenharia genética’, tem servido de modelo para as novas ‘engenharias culturais’ em processo de difusão. Não é a toa que ouvimos, com cada vez mais freqüência, terminologias análogas nesses dois domínios da natureza. Homologias analisadas num artigo recente que escrevi e que trata especificamente do que designo de ‘simultaneidades epistemológicas’ que parecem estar ocorrendo nos domínios da natureza e da cultura. Trata-se do texto Patrimônios Bioculturais na Hipermodernidade: a crise dos critérios de autenticidade (Corrêa, 2007).

3. ‘ENCRUZILHADAS DO LABIRINTO’ DO PATRIMÔNIO E DA MEMÓRIA Após seguirmos esse trajeto elíptico pelo pensamento crítico acerca dos processos de transformação recentes do imaginário social contemporâneo, podemos retomar a metáfora do ‘labirinto’ e reintroduzir a reflexão no eixo da argumentação apresentada por Castoriadis7. Parece agora que podemos fazer com mais propriedade a analogia com o que designei inicialmente de ‘Complexo de Dédalo’ – que simbolizaria esse processo de uma crescente demanda por uma sóciotécnica do patrimônio histórico e cultural. 172

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Vejamos o significado da metáfora do Labirinto, ligado ao personagem mítico Dédalo: “Dédalo, na mitologia grega antiga, elabora os aspectos mais técnicos, simbolizando a ‘engenhosidade’. Tanto constrói o labirinto, onde o homem se perde, quanto as asas artificiais de Ícaro, que contribuem para a escapada e o vôo, e provocam, finalmente, a perda. Construtor do labirinto, símbolo do subconsciente, ele representaria muito bem, em estilo moderno, o tecnocrata abusivo, do”: (...) Intelecto pervertido, de pensamento cego pelo afeto, que, perdendo a lucidez, faz-se imaginação exaltada e fica prisioneiro da sua própria construção, o subconsciente (DIEL, 1966, p. 47).

Mas, a construção pode ser, também, consciente, e elevar-se sobre as asas da ambição, a qual, uma vez desmesurada, leva à catástrofe – no nosso caso, ‘a museificação e petrificação dos Centros Urbanos Antigos’8. O personagem lendário de Dédalo é o símbolo do tecnocrata, do aprendiz de feiticeiro fantasiado de engenheiro, que não conhece os limites do seu poder, se bem que seja representativo da inteligência prática e da habilidade de execução e o tipo do artista universal, sucessivamente arquiteto, escultor, inventor de meios mecânicos. Com as estátuas animadas que lhe foram atribuídas, ele faz lembrar Leonardo da Vinci e seus automata. Mas, Dédalo não teve mais sorte do que Leonardo com os diferentes príncipes a que serviu (Chevalier, 1991, p. 327). Esse parece ser o ‘complexo arquitetural’ que hoje domina a cena da cultura – a engenhosidade técnica a serviço do capital que pretende investir e lucrar com aquilo que, até então, se considerava intocável e carregado de uma aura autêntica e romântica, e que se acreditava até a pouco tempo que não despertaria jamais a ganância dos mercadores e capitalistas de plantão. Todavia, o significado da palavra ‘labirinto’ não é unívoco, apresenta sentidos aparentemente paradoxais. Comumente se considera uma “construção arquitetônica, sem finalidade aparente, de estrutura complicada e da qual, uma vez em seu interior, é impossível ou muito difícil encontrar a saída” (Cirlot, 1984, p. 329). Dessa forma, se configura um labirinto como algo extremamente complexo, no qual devemos saber caminhar com lucidez. É sabido que a “origem do labirinto é o palácio cretense de Minos, onde estava encerrado o Minotauro e de onde Teseu só conseguiu sair com a ajuda do fio de Ariadne”. Percebemos ai que se conservam, pois a “complicação de seu plano [arquitetônico] e a dificuldade de seu percurso” (Chevalier, 1991, p. 530). Destarte, o labirinto atravessa o tempo como um desafio à imaginação e ao pensamento. Sua imagem arquitetônica nos atravessa desde a mitologia Grega, até a contemporaneidade tardia. Desde o labirinto de Creta, construído por Dédalo, para encerrar o Minotauro – criatura metade touro, metade homem – numa arquitetura repleta de encruzilhadas e dificuldades; vivemos o jogo fascinante de suas variações caleidoscópicas na atualidade vertiginosa. Funda-se, então, como 173

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um arquétipo trans-histórico a noção do labirinto como uma construção tortuosa que se destina a desorientar os indivíduos que se atrevem a desafiá-lo, aceitando “perder-se nas galerias que cavamos, andando em círculos, ...até que essa rotação inexplicavelmente abra fendas por onde se possa passar”9. “Um labirinto é uma casa edificada para confundir os homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a esse fim” (Borges, 1998, v. 1, p. 598).

Mas, se o labirinto é lugar do perder-se nas suas encruzilhadas, é também lugar próprio de exploração, de investigação e de pesquisa. A sua imagem e representação é mais mental do que arquitetônica. Por isso, parece fecundo nos associarmos aos que pensam no labirinto como uma ‘metáfora do conhecimento’. Explorar, investigar e pesquisar as bifurcações, as encruzilhadas e os caminhos tortuosos dessa metáfora torna-se simultaneamente um convite para a investigação e um desafio para a criação de possíveis saídas. A metáfora do ‘labirinto’ parece encaixar-se como uma luva no contexto cultural que estamos analisando. Com Castoriadis encontramos uma refinada e sofisticada reflexão sobre a ‘ascensão da insignificância’ numa ‘sociedade à deriva’, num ‘mundo fragmentado’ que pretende, sob múltiplos avatares do conformismo triunfante, permanecer fossilizado, e se eternizando através da estética fetichizada pela ‘turistificação’ de todos os bens culturais; criando ‘parques temáticos’ em que se enclausura o passado como mercadoria fetichizada. A metáfora do labirinto dá sentido a essa experiência como ‘perda num mundo que é equivalente ao caos’ (Cirlot, 1984, p. 330). As ‘encruzilhadas’ desse ‘labirinto’ construído pelos arquitetos e engenheiros, os novos ‘dédalos’ da engenhosidade tecnocrata contemporânea, merecem uma análise crítica rigorosa e contextualizadora, que possa servir de resistência para o exercício de uma ‘política da paisagem’ que respeite a polifonia da cidade e garanta a voz e a expressão democrática das memórias sociais marginalizadas nesse contexto de intensificação, sem precedentes, da ‘gentrificação’ globalizada10. Desafortunadamente, a referida ‘gentrificação’, associada a ‘turistificação’, tenderá a se acelerar nestes próximos anos, com o anúncio recente da realização da Copa do Mundo de Futebol em 2014, em solo brasileiro. Esse evento incrementará ainda mais a voracidade dos agentes públicos que irão reproduzir ad infinitun a fórmula da ilusão, já decifrada mais acima, qual seja: turismo igual a mais desenvolvimento. Axioma questionável e altamente perverso. Para não alongar-me nessas reflexões, em respeito ao tempo necessário para o debate, lembro, a título de desfecho, um pensamento de C. Castotiadis:

Pensar é entrar no labirinto, mais precisamente é fazer existir e aparecer um labirinto, quando se poderia ter ficado estendido entre as flores, a olhar o céu (1987, p. 252).

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Notas: 1 Noção utilizada por MacCannel e referida por Silvana Araújo no texto Artifício e Autenticidade (Banducci Jr,, 2001). 2 Este artigo poderia ter ainda um outro subtítulo: “A Nostalgia dos Zumbis PósModernos”. Reflexos de um cenário civilizacional caracterizado pelo filósofo Slavoj Zizek (1996), que afirmou: “nos arrastamos como zumbis pósmodernos”. Esse traço também é descrito por Gilles Lipovetsky, na obra A Era do Vazio (1983). Mas, encontramos também uma excelente descrição desse quadro societário contemporâneo em Georges Balandier, na obra A Desordem: o elogio do movimento (1997). 3 Termo utilizado no sentido empregado por Cláudio Jorge Moura de Castilho (1999): “O Uso do Turismo na Formação de Representações Sócio Espaciais do Desenvolvimento em Recife/PE”. 4 Ver A Teatralização do Poder e A Encenação do Popular de Nestor Canclini, na obra Culturas Hibridas (2003). 5 Usado como paródia ao termo forjado por Patrice Pavis: etnocenologia: “o estudo, nas diferentes culturas, das práticas e dos comportamentos humanos espetaculares e organizados” (PAVIS, 2003, p. 272). 6 Nesse particular, merece dispor a lembrança as palavras sutis de MerleauPonty: “La vida personal, la expressión, el conocimiento y la historia avanzan oblicuamente, y no directamente, hacia fines o hacia conceptos. Lo que se busca demasiado deliberadamente, no se consigue”. 7 Em Castoriades, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto, vol. I. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; temos uma análise, a partir do conceito de labirinto, de toda tomada de consciência social. Ver também, Rosenstiehl, P. “Labirinto”; in: Enciclopédia Einaudi, v.13, Lógica Combinatória. Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1988a., pp. 228-46. 8 Sobre este ponto ver a crítica de Henri-Pierre Jeudy, elaborada desde o livro Memórias do Social (1990), até a obra mais recente Espelho das Cidades (2005), em que faz uma contundente crítica da estética urbana contemporânea. 9 Castoriadis, As Encruzilhadas do Labirinto, (vol.1). Paz e Terra, 1987. 10 Como exemplo gritante da dificuldade dos atuais especialistas do patrimônio, os novos Dédalos tecnocratas da contemporaneidade, em compreender as dinâmicas do patrimônio e da memória está na questão da cidadania da acessibilidade dos portadores de necessidades especiais aos Centros Urbanos Antigos. Como estes sítios-parques foram tombados na segunda metade do século XX, foram congelados sem que se possa vislumbrar o direito de acesso dos que não podem se locomover em ruas com paralelepípedos e escadarias íngremes. Esquecem-se estes tecnocratas daquilo que Paul Ricoeur chamava a atenção, o ‘passado tinha um futuro’ (Morin, 2001, p. 369-378). É preciso que o patrimônio seja efetivamente de todos e não dos que se apropriam dele ‘primeiro’.

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O ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL E AS AÇÕES AFIRMATIVAS. Cotas de negros para a universidade: a “quem” e a “quê” se destinam?* Cícero Hermes Batista Lobo** Sergio Costa*** Juarez Soares Diniz**** RESUMO: O projeto de Lei:”Estatuto da Igualdade Racial” aprovado no Senado em novembro de 2005, atualmente tramita na Câmara dos Deputados Federais e tem sido nesta jornada parlamentar, alvo de manifestações contra e a favor à sua aprovação. Tal polemica traduz a complexidade, que é em meio a uma sociedade levada a crer que vive sob a convivência da democracia racial. O estatuto prevê a criação de cotas para negros nas universidades públicas, encontrando fortes argumentos na realidade histórica do preconceito racial. Em contrapartida, as ações afirmativas encontram sérios empecilhos, ao tentar delimitar quem é ou deixa de ser negro na sociedade brasileira. Inevitavelmente elas fomentam o debate sobre o campo das injustiças sociais, historicamente reproduzidas pelo Estado Brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Ações Afirmativas. Cotas. Desigualdade étnico racial. Desigualdade socioeconômica. Critérios. Raças e classe. ABSTRACT: The Law project “State of racial equality” approved in November 2005, actually, moves camera of members in federal and has been in this day parliamentary, target in manifesto against and favor to your approve, this polemical traduced the complexity, what is on means to a society leaded to believe that live under a convivial democracy racial. Prevue the creating the statute of quota for rules on public universities, fortes arguments to meet in reality historical process of racial. Departure in against, the actions affirmatives are serious barriers, the who’s try delimit let to be black or in brazilian society. Impossible to prevent, they fomenter the debate for the field of social injustices, historically state Brazilian. Keywords: Affirmative action. Quotas. Racial inequality ethnic. Socioeconomic inequality. Criteria. Race and class. * Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda “O estatuto da igualdade racial e as ações afirmativas: cotas de negros para a universidade ‘a quem e a que se destinam?’’”. ** Especialista em Docência do Ensino Superior. Prof. Substituto do Departamento de Geociências (UFMA) *** Especialista em Docência do Ensino Superior. **** Doutor em Políticas Públicas. Prof. Adjunto do Departamento de Geociências (UFMA). Coordenador Cientifico do Núcleo de Estudos Avançados em Geografia Humana (NEAGH/DEGEO/UFMA).

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1. INTRODUÇÃO Historicamente, verifica-se no Brasil a existência de duas cidadanias: a cidadania da população branca, com expectativa de vida de 70 anos e com um índice de desenvolvimento humano que colocaria o país entre as cinqüenta nações mais desenvolvidas, e a cidadania da população negra, com expectativa de vida inferior a 64 anos, índice de desenvolvimento igual ao de países como Gana e com ganhos líquidos cinco vezes menores ao da população de etnia branca. Percebe-se que o abismo entre brancos e negros é marcado não só pelas diferenças de cor da pele ou de origem étnica, mas pelas distâncias socioeconômicas entre os diferentes grupos e que, nem mesmo, a propagada ideologia da democracia racial conseguiu esconder esta realidade. Para tanto, mesmo creditando avanços aos esforços, almejando tanto a melhoria de vida da população negra quanto o empenho da sociedade na denúncia e superação da desigualdade étnico-racial e socioeconômica brasileira, as conquistas neste campo resultam mais da atuação de comunidades e de instituições particulares e não governamentais do que de políticas de não-discriminação ativa por parte do poder público. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2005, p. 11), definem Ações Afirmativas para negros, como políticas de reparações, reconhecimento e valorização voltados para a sua história. As referidas ações devem oferecer garantias a esta população visando o acesso, permanência e sucesso no histórico escolar de cada indivíduo em questão, além da aquisição de competências e conhecimentos tidos como indispensáveis para a continuidade dos estudos, resguardando estes atuarem como cidadãos responsáveis e participantes, além de desempenharem com qualificação uma profissão. Em contrapartida, reconhecimento implica justiça e igualdade de direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como a valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem a sociedade brasileira. O sistema de cotas para negros, nas universidades públicas, clama pela voz dos que o defendem e o combatem, ambos munidos de fundamentadas razões. Os primeiros argumentam, almejando garantia de melhores chances, visando a inserção de negros tanto no poder público quanto nos mercado e campo de trabalhos; enquanto o segundo grupo denuncia a inconstitucionalidade da política afirmativa e a deficiente atuação do Estado na promoção da melhoria do ensino público. Neste território de debates e conflitos, questões como desigualdade étnico-racial, socioeconômica e estrutural, bem como a adoção de critérios de pertencimento racial e de classe vem à tona. O referido artigo, diante de complexa realidade, antes de se posicionar com posturas a favor ou contra o sistema de cotas, preo178

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cupa-se em identificar as razões do passado e do presente histórico, que implicam no atual quadro de conflito relacionando tais fatos com a carga de simbolismo e representatividade inerente nas relações sociais brasileiras no trato com as questões materiais, indispensáveis a digna qualidade de vida. As projeções advindas destes levantamentos históricos e relações, impetradas entre si, em suma, suscitou uma série de verificações baseadas sob o critério da coerência dos argumentos tanto contra quanto a favor em relação a importância concreta das políticas de cotas para negros, o que, inevitavelmente, levou-se a considerações quanto as conseqüências das ações afirmativas para o futuro da sociedade brasileira. Embora o tema se constitua em objeto de estudo nas mais diversificadas áreas de pesquisa e debates do atual cenário brasileiro, as informações e estudos ainda carecem de amadurecimento discursivo e metodológico no que diz respeito à pesquisa científica. O material existente, a maioria provido de sites da internet requer um cuidadoso trato de escolha devido ao fato de que este se constitui em redações extremamente tendenciosas. Ressalta-se, porém, que, apesar da dificuldade na coleta de dados, o grupo de pesquisa, de característica multi e transdiciplinar, inevitavelmente, muniuse da literatura prévia adquirida na prática em distintas áreas. A fase de levantamento, análise e relações entre fatos históricos, impreterivelmente, caminhou ao lado da organização das idéias a partir de dados e postos à prova em grupo de estudo e seminários. Tais exposições, sistematizadas, seguidas de debates visando a organização de pontos em comum e divergentes entre o grupo, gerou a estrutura do artigo que aqui se apresenta. Por fim, destaca-se que as limitações do artigo margeiam o processo de critérios adotados e suas implicâncias étnicas e socioeconômicas no bojo das classificações visando selecionar os beneficiados pelo sistema de cotas, tomando por base as experiências da UERJ e UNB.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA Devido a um passado brasileiro de escravidão, o que levou a população de origem africana a níveis de renda e condições de vida precárias, constatou-se a extrema exclusão de jovens negros das universidades brasileiras. Em decorrência disso, houve uma necessidade de políticas sociais de reconhecimento aos que foram prejudicados e, consequentemente, de reparação para com os afrodescendentes abrangendo a exclusão socioeconômica, o preconceito e discriminação raciais. Este cenário impulsionou a atual luta nacional pelas cotas para afrodescendentes, cujo marco foi a Marcha Zumbi dos Palmares pela Vida, em 20 de novembro de 1995, encampada por ampla frente de solidariedade entre acadêmicos negros e brancos, cursinhos pré-ves179

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tibular para afrodescendentes pobres e movimentos negros da sociedade civil, além de outros setores solidários, como jornalistas, líderes religiosos e referências políticas. A política brasileira de ações afirmativas nasceu deste processo histórico. Baseada em dados estatísticos, tais como as projeções do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada) ao enfatizar “[...] que serão necessários 30 anos para que a população negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhuma política específica de promoção da igualdade racial na educação seja adotada” (Manifesto a favor do Estatuto da desigualdade Racial e da Lei de Cotas, jul. 2006). O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNDU), ao divulgar, no ano de 2004, o Atlas Racial do Brasil, apresentou dados revelando que os negros são sessenta e cinco por cento dos pobres e setenta por cento da população indigente. [...] o projeto de lei que institui o Estatuto da Igualdade Racial traz uma série de ações afirmativas, com o objetivo de inserir a população negra na sociedade [...] trata de políticas públicas de combate ao racismo e suas manifestações: o preconceito racial e a descriminação racial [...] são propostas para a educação, saúde, trabalho, mídia, terra, moradia e cotas. (Jesus, 2005, p.01)

A lei de cotas para negros no ensino superior, antes de tudo, reivindica do poder público, uma ação de caráter imediato e por tempo determinado, diante da imobilização do Estado para com a grande maioria dos autodeclarados negros, em território brasileiro, o que se traduz em torno de 45 por cento – cinco por cento pretos e quarenta por cento pardos - segundo dados do último censo de IBGE. Deste percentual, segundo Jesus (idem), “o número de negros nas universidades é de apenas dois por cento”.

3. IMPORTÂNCIA DO DEBATE Ao remeter para a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro ALERJ - em caráter de urgência, o Projeto de Lei 1653/2000, tratando da medida de reserva de vagas pelas universidades estaduais em torno de cinqüenta por cento para estudantes das escolas públicas daquele Estado (UERJ, 2006, p. 01), o então governo implantou muitas interrogações na comunidade acadêmica carioca. Consequentemente a UERJ, sob pedido da Comissão de Educação da ALERJ, defrontou-se com a função de elaborar um parecer sobre o projeto, o que, em decorrência das referidas dúvidas, como os métodos de acesso às universidades, os processos de exclusão e a validade do combate desta com a reserva de vagas, bem como a necessidade de implantação de políticas públicas que garantam o acesso e a permanência dos estudantes de escolas públicas no ensino superior, originou naquele mesmo mês - agosto de 2000 – o seminário “Democratização, acesso de Ensino à Universidade Pública”. 180

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As políticas de ações afirmativas têm uma básica característica. Em torno delas há uma série de opiniões advindas das mais diversas identidades físicas e jurídicas que se agrupam nos que são contra, a favor, indecisos e os que não dão importância. Baseado nesta premissa que cedo se formulou no Estado do Rio de Janeiro, um dos pontos centrais do parecer ressaltou a importância do projeto ser discutido pela sociedade antes de ser apresentado a ALERJ. O tema passou a integrar intensamente a pauta das questões nacionais, assim que o Projeto de Lei 3198/00, do então senador Paulo Paim – PT/RS – começou a tramitar no Congresso Nacional, instituindo no Capítulo VI o “Sistema de Cotas” no bojo das ações afirmativas visando garantir maior acesso dos negros no ensino superior, aos cargos públicos, empresas privadas e candidaturas por partidos políticos (Brasil, 2000). Os debates, mesmo que timidamente e com forte inclinação da mídia para os que são contra, envolvem professores de diversas áreas, alunos, instituições de ensino por todo o país, sociedade civil, ONG’s e partidos políticos. Para tanto, reconhece-se que o lugar central dos debates é a universidade. Levando-se em conta que esta representa um espaço de reprodução e legitimação da ascensão social das elites no Brasil e, consequentemente, tornando-se território de contradições, o espaço universitário cumpre sua função, ao *se transformar em importante via no empenho pela democratização da sociedade brasileira. Nesse espaço, os debates possibilitam o fomento aos mais diversos posicionamentos sobre o tema. Maggie e Fry (2004) assim se manifestam, em relação ao Rio de Janeiro: [...] a repentina adoção de cotas como política de Estado nos surpreendeu, e muito [...] não imaginávamos que as cotas seriam virtualmente decretadas, e mesmo se tivéssemos imaginado que isso pudesse acontecer, provavelmente não teríamos antecipado o extraordinário poder das decisões “de cima para baixo” nesse país que queríamos democrático [...] (p. 68) [...] Não houve debate público nem entre os representantes dos eleitores antes dos decretos ministeriais e da promulgação da lei de cotas do Rio de janeiro [...] (p.69). Ainda que se identifiquem diferentes pareceres quanto à adoção de medidas de redução das desigualdades estruturais no acesso aos cursos das universidades, a intensificação dos debates possibilita a formação de opiniões diante de escorregadio e pouco conhecido campo de deliberações que é o Estatuto da Igualdade Racial, mais especificamente o Sistema de Cotas para negros.

O escritor Abdias do Nascimento em artigo à seção “Opinião” da Folha de São Paulo (jul. 2006), e, um dos favoráveis ao sistema de cotas afirma que os dois manifestos1, um contra e outro a favor do Estatuto, entregues na Câmara dos Deputados revelam que “há vida inteligente dos dois lados do debate” e que este último “em uma sociedade que antes se refugia nas fantasias da ‘democracia racial’, é o melhor produto da ação afirmativa até o momento”. 181

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4. QUEM SÃO OS NEGROS BENEFICIADOS? O QUE SÃO COTAS? O critério básico adotado pela maioria das universidades públicas, para garantir o direito de negros a concorrer em vestibulares no sistema de cotas, baseia-se na autodeclaração. A diretriz, acima citada, justifica-se na premissa de que em relação a pertencimento étnico racial, o Estado e suas instituições, no caso as universidades não devem impor, sejam respaldados pela ciência ou políticas educacionais via governantes e gestores públicos, as procedências ancestrais da população brasileira. Em suma, a questão além de implicar origens suscita também consciência política. Mas é aqui que as generalizações do sistema de cotas emperram quando saltam do projeto para execução. A dificuldade maior na implementação dos critérios de reservas de vagas baseia-se no pressuposto de que a cor não é critério suficiente para a identificação de uma raça. De acordo com Pena e Bortoloni (2006, p. 02), para a genética moderna “raças humanas não existem do ponto de vista biológico”. Apontam que, na sociedade brasileira, impera uma desigualdade conjuntural. Em outras palavras, afirmam que tais desigualdades sociais se manifestam por meio da exclusão econômica de determinados grupos, entre eles o dos negros. Ressaltam que, aproximadamente, oitenta e seis por cento da população apresenta mais de dez por cento de contribuição africana em seu genoma. Quais seriam os parâmetros de identificação da desigualdade conjuntural? Maggie e Fry (idem, p.73) acirram a discussão entre defensores e contrários ao sistema de cotas, ressaltando o problema da precipitação em se confundir exclusão social com racismo. Os autores expõem que existem duas correntes básicas para a explicação da desigualdade étnico-racial: [...] Há quem atribua a desigualdade entre “negros” e “brancos” ao passado escravista e às poucas oportunidades educacionais de qualidade oferecidas para os pobres em geral, entre os quais estão tantos “negros”. Quem se opõe a essa opinião diz que é o preconceito estabelecido após a abolição que é responsável pela reprodução das desigualdades entre “negros” e “brancos” [...].

Contrária a esta dualidade, Jesus (idem, p.05) observa que a discriminação deve ter um tratamento diferenciado. Encontra-se diante de duas fontes de desigualdades: a exploração capitalista e a discriminação racial e que não se supera uma em detrimento da outra, mas que a desigualdade advinda do racismo tem relativa autonomia em relação à exploração de classe e que “muito embora brancos pobres possam sofrer violência policial, o negro ou a negra pobre sofrem maior perseguição da polícia, maus-tratos em lojas, discriminação no trabalho e na escola bem como xingamentos racistas [...] o racismo atinge negros/as pobres e os que se julgam em outra classe social”. 182

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O documento Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana (idem, p 15) ressalta que é importante tomar-se conhecimento do que envolve o processo de construção da identidade negra no país, um caminho marcado pela discriminação que engloba tanto a desvalorização da cultura de matriz africana quanto dos aspectos herdados pelos descendentes de africanos. Lembram que o termo “negro” começou a ser usado pelos senhores para designar pejorativamente os escravizados e este sentido negativo da palavra ainda perdura, mas que coube ao Movimento Negro ressignificar tal terminologia, dando-lhe um sentido político e positivo. De acordo com o documento em questão, termos como “raça” e “étnico-racial”, antes de serem considerados classificações humanas, melhor se encaixam como categorias de discursos, pois denunciam conflitos forjados, historicamente, nas tensas relações entre brancos e negros, “muitas vezes simuladas como harmoniosas”. O documento aponta, ainda, que esta “harmonia” inter-racial se representa na forma do mito da democracia racial difundindo “[...] a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de interesse [...] (idem, p.12). É notório observar que o sistema de cotas suscita aquilo que Maggie e Fry (idem, p. 70), denominaram de “discriminação positiva”. Apesar dos problemas que esta ação afirmativa possa vir a causar, tais como a exclusão de brancos pobres e quiçá a de negros em pródiga situação socioeconômica, a adesão favorável a esta política é grande. Evidencia-se desta forma, um evento crítico estabelecido entre as desigualdades estruturais e as desigualdades sociais. A primeira está a cargo de resoluções do Estado, previstas na Constituição brasileira e, que, de acordo com os que são contrários ao sistema de cotas, este se limita a compensá-las através de ações afirmativas. A segunda se revela no agravante quadro de desigualdades étnico-racial e socioeconômica, requerendo, segundo os que são a favor, a intervenção das referidas ações. Neste sentido, a defesa da democracia, baseada em valores como a igualdade, inclusão e justiça, deveria referir-se às formas concretas de inclusão [...] em algumas circunstâncias, igualdade significa tratamento diferenciado; em outras, significa tratamento igual [...] em nome do mérito individual ou da livre competição entre iguais em abstrato, alguns indivíduos e grupos são mantidos fora dos espaços que lhes permitiram ter uma maior influência sobre os rumos da sociedade [...] (Biroli, s/d,)

A questão das cotas sociais e raciais - escolher talvez seja redundante, o contrário pode se evidenciar negligência – traduz-se em instrumentos capazes de dar acesso à posições de poder aos estruturalmente excluídos. Implica na participação do processo de transformação das desigualdades estruturais, ou o seu contrário, cooptando os excluídos beneficiados como aliados na preservação hegemônica do poder vigente. 183

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5. CRITÉRIOS: os casos da UERJ e UNB Percebe-se o quanto é difícil analisar o Sistema de Cotas sem problematizar identidades sociais com recorte racial. O referido sistema em essência é discriminatório porque se sustenta numa política de reparação histórica. Baseado neste enfoque, a UERJ, primeira universidade brasileira a adotar o sistema de cotas para estudantes de escola pública em todo o território fluminense, ao optar também pela reserva de vagas para negros, instituiu, em setembro de 2003, uma política afirmativa beneficiando “alunos carentes”. Evitou-se desta forma, que alunos de escolas particulares migrassem para o sistema público no terceiro ano do ensino médio o que originaria, como conseqüência, uma situação de subtração nas chances de concorrências para os excluídos sócio-economicamente do mercado de trabalho com formação superior. Quanto aos negros, além do critério da comprovação de carência, a UERJ adotou o da autodeclaração de pertencimento racial por parte de todos os estudantes beneficiados por esta ação afirmativa (UERJ, 2006, p. 02). Ao reconhecer o problema pela ótica da exclusão socioeconômica, que envolve negros, brancos e índios, bem como deficiências no ensino público da educação básica, a UERJ destinou quarenta e cinco por cento de seu total de vagas para o sistema de cotas, sendo vinte por cento para estudantes de escola pública, vinte por cento para negros e cinco por cento para deficientes e índios. Para evitar fraudes, o candidato só poderá se autodeclarar negro, sendo que a cor parda está excluída da classificação. A UNB, através do Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial na Universidade, tornou-se a primeira universidade federal a implantar a política de cotas para negros. Visando frear a ação dos, que a mesma denominou, “burladores raciais” (Maio e Santos, 2004), optou por polêmica via, despertando severas críticas em contrário, principalmente de antropólogos afeitos a negação do uso da antropologia – diga-se ciência - como justificativa para uma ação que deve ser tratada e avaliada no plano político. Discorda-se de Maio e Santos (idem), quando estes afirmam que a UNB tange importância secundária a autodeclaração. Segundo Fry (apud Maio e Santos, 2004), em sua crítica contrária ao sistema de cotas, o caminho da autoproclamação por si só é obsoleto como critério, requerendo para sua eficiência fronteiras étnico-sócio-raciais complementares. Em contrapartida, concorda-se com a crítica dos autores (idem) que, a UNB ao recorrer ao uso do sistema baseado nas análises morfológica – cor da pele, textura do cabelo, lábios grossos e formato do nariz – e psicológica – tais como, engajamento político em movimentos negros e relações amorosas inter-étnicas -, muniu-se de práticas conhecidas em antropologia como “peritagem e pedagogia racial”. Tais ações foram consideradas imprescindíveis para a intervenção eugênica do cenário social brasileiro em fins do século XIX e início do XX. Em outras palavras, tal instituição, considerada referência no ensino superior, adotou, movida pela ciência, paradigmas que a mesma condena. 184

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Adotar critérios visando classificações étnico-raciais no sistema de cotas requer definição a quem(?) esta política realmente deve favorecer. Neste caso, os beneficiados, não devem ser classificados no que tange somente a definições étnicas, mas também de classe. Consequentemente, o sistema de cotas fomenta a discussão no que diz respeito aos problemas que envolvem a exclusão sócio-econômica, o preconceito étnico racial e as estratificações sociais, indicando que a política de ações afirmativas aqui em questão, ao que suscita levanta uma polêmica socialmente inconfessável: dentre os pobres, os negros são os mais pobres.

6. A CONSTITUIÇÃO E AS AÇÕES AFIRMATIVAS A discussão em torno da exclusão social e Ações Afirmativas no contexto atual é resultado “III Reunião Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul”. Os representantes do Brasil, despertando para a realidade social de sua população, comprometeram-se formal e publicamente com a erradicação da discriminação contra negros. A emissão de opiniões diante de polêmico assunto é quase impossível, contrapõe interesses étnicos raciais e de classe e ainda enfoca atenção aos direitos individuais e coletivos prescritos constitucionalmente. Tecnicamente, as cotas agridem o princípio da igualdade, segundo o 5º artigo da Constituição Federal, que diz “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza”. Entretanto tais políticas são amparadas pela mesma Carta que, no artigo 3º, “garante a igualdade de oportunidades para todos”. Em decorrência disso as cotas se constituem numa das ações que podem reparar um erro cometido para com aqueles que descendem de negros africanos que vieram para o nosso país, a revelia, e que com o esforço de seu trabalho e elementos culturais contribuíram para a formação de nossa história política e social. Segundo pesquisas feitas pelo IBGE E IPEA, o cidadão negro brasileiro encontra-se em condição desigual. Constata-se ainda que a questão da discriminação racial - embora cada brasileiro venha afirmar “não ser racista” – tem sido a causa principal desta desigualdade, o que resulta em exclusão. Nesse contexto, as políticas de ações afirmativas vêm sendo pensadas, debatidas e implantadas em universidades brasileiras - como a UNB e UERJ - no intuito de corrigir erros de um passado marcado pela injustiça e crueldade. Por outro lado, há, ainda, aqueles que vão de encontro com o sistema de cotas para negros. No manifesto “contra” às referidas políticas (mai. 2006), intelectuais, artistas e líderes de movimento se baseiam em idéias tais como “a nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da pele”. E, ainda, que este tipo de política poderá “semear um tipo de racismo e bloquear o caminho para resolução real dos problemas de desigualdade” 185

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É importante ressaltar que de acordo com os que a defendem, a política de ações afirmativas não é a solução para corrigir a situação do cidadão negro brasileiro, tanto que todos são unânimes em reconhecer que tais intervenções possuem caráter provisório, mas poderá ser um dos inúmeros passos que o Brasil ministrará em direção a uma política de justiça, moral e respeito e equidade nas chances de colocação nos mercado e campo de trabalho.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS A política brasileira de ações afirmativas, dentre elas o Estatuto da Igualdade Racial e o Sistema de Cotas para negros nas universidades, vêm deslocando a questão das implicâncias entre as desigualdades étnico-racial e sócio econômica, do campo das discussões isoladas para o debate mais amplo em todo o território nacional. Classificadas como “discriminação positiva”, as cotas refletem um processo histórico de denuncia contra o racismo étnico-racial sofrido pelos afrobrasileiros, mais especificamente os negros. Resultam de pressões que as organizações da sociedade civil vêm ministrando ao poder público, o que, em primazia, culminou com a legalização do racismo como crime inafiançável. Porém, as penas previstas por lei não garantem a ascensão social dos negros aos cargos públicos, acesso e permanência nas universidades e a preparação teórico-instrumental para a inserção nos mercado e campo de trabalhos. Ao contrário, o contingente de favelados, presidiários, indigentes, desempregados e sub-empregados, revela-se em sua maioria representados por negros. Ressalta-se que, nesta análise interpretativa, não se ignora a gigantesca parcela da população branca submetida a precárias condições de vida. É aqui que o problema do racismo imbrica-se com o da desigualdade sócio-econômica, desvendando que, entre os excluídos, os negros sofrem o processo da exclusão com mais contundência. Isto não implica em afirmar que, os afrodescendentes, com favorável situação socioeconômica, estejam isentos do preconceito étnico-racial, assim como, de maneira geral, negros pobres e ricos não exerçam práticas racistas de forma contrária. Os argumentos que justificam a miscigenação e a democracia racial brasileiras, perdem força quando analisados sob o prisma da ascensão socioeconômica. Nas classes média e alta, a miscigenação não se mostra tão evidente. Quanto aos cargos públicos, a presença de negros no poder chega a ser legada para o campo do exótico e do diferenciado, ou seja, não é normal. Estes contra-argumentos abalam os alicerces do mito da democracia racial, porque a atinge no seu principal ponto, o da igualdade dos direitos. Em contrapartida, a implantação das ações afirmativas não garante a mudança do quadro social acima traçado. O sistema capitalista vigente possui duas principais características, fomenta a desigualdade de direitos, a competição exacerbada e como conseqüência o individualismo. Nesta ordem socioeconômica, tais ações não têm se 186

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posicionado com veemência, apenas postulam que, a garantia do acesso ao poder e ao consumo, pode mudar os cenários de desigualdade expostos. Permanece a dúvida, em relação a questão da cooptação ideológica pelo sistema, ou seja, se as consciências de raça e classe, sustentam-se diante da ascensão social. Quanto ao Estado, a indagação persiste, pois, as ações afirmativas, denunciam a ineficiência deste em relação a igualdade de direitos previstos na Constituição. Tal falha vem se intensificando, desde a primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso, ao constatar-se que as Medidas Provisórias, nos últimos doze anos, atuam como instrumento de governabilidade do Estado brasileiro. Em suma, isto revela que a Constituição vem sofrendo negligências de toda ordem. Lembremonos do IPMF, que era MP e atualmente, sob o argumento da legalidade constitucional, imergiu no senso comum dos impostos a pagar. O sistema de cotas para negros nas universidades públicas, tem um tempo curto de sobrevida; aproximadamente dez anos. Oxalá assim seja estabelecido! De outra forma, não se pode negar que, esta ação afirmativa, minimiza os gastos dos governos com educação pública de qualidade, e ainda presta-se como instrumento de divulgação política de partidos e candidatos nas eleições. Num país em que medidas provisórias adquirem caráter permanente, tais ações podem seguir na mesma ordem administrativa. Paira outra dúvida. Em relação aos debates, a população como um todo, timidamente opina quanto a questão das cotas para negros. A causa maior da abstinência é a falta de informação, aliada a manipulação dos grandes veiculadores de mídia, notadamente afeitos aos que são contra, sob o citado argumento da miscigenação e democracia raciais. Os critérios de seleção para as cotas, fomentam à população refletir sobre origens e consciência política no que diz respeito a terminologia “negro”. O critério da autoproclamação segue por duas vias, uma que força o debate em torno da consciência negra – e que envolve negros e não negros -, ou seja, colocam em pauta nacional, as tensas relações étnico-raciais, a diversidade cultural, bem como derrubam o discurso ideológico do Estado brasileiro que propaga constituir-se numa “única nação”. Consequentemente, as identidades e consciências étnico-raciais brasileiras chamam atenção para “as diversas nações” que compõem nosso país. Por outra via, este critério dá margens à quem não precisa beneficiar-se das cotas, tornando a autoproclamação insuficiente para tal, o que requer a adoção de parâmetros adicionais na questão racial, fatalmente implicando, de acordo com o estudo, na situação socioeconômica dos candidatos. Fica a dúvida, se cabe ao Estado, oficialmente, impor quem deve ou não deve optar, nesta escorregadia questão de pertencimento racial. No que diz respeito à universidade, em especial, a pública, compete-lhe provocar debates almejando consciente tomada de decisões por parte de todos os interessados. É de seu papel elaborar propostas, pareceres e pesquisas que melhor conduzam o caminho na implantação das cotas. Em contrapartida, outra dúvida permanece imersa nas dis187

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cussões em relação ao papel da universidade: Notadamente estruturada curricularmente em referenciais eurocêntricos, a Universidade está aberta a adotar outras instâncias étnico-raciais de conhecimentos? O Sistema de Cotas para negros nas universidades públicas, como ação afirmativa de caráter necessário e imediato, encontra pela frente, duas básicas questões a responder: A “quem” e a “quê” se destina. Notas: 1 Em maio de 2006 foi entregue aos deputados federais o “Manifesto contrário ao Estatuto da Desigualdade Racial e à Lei das Cotas”. Em junho deste mesmo ano, como resposta ao documento anterior, os deputados receberam o “Manifesto a favor do Estatuto da Desigualdade Racial e da Lei de Cotas”. Em novembro de 2005 o Estatuto foi aprovado pelo Senado.

Referências: A POLÍTICA DE COTAS E A EDUCAÇÃO. 13 de maio de 2005. Palestra proferida pela Professora Mestra Ilma de Fátima de Jesus na Câmara Municipal de São Luís por iniciativa do Vereador Batista Botelho. BRASIL. Projeto de Lei N° 3198, de 2000. Institui o Estatuto da Igualdade em defesa dos que sofrem preconceito e discriminação em função de sua raça e/ou cor, e dá outras providências. Poder Legislativo, Brasília, DF, 07 de junho de 2000. DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNIO-RAIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA A CULTURA AFRO-BRASILERIA E AFRICANA. Ministério da Educação. Brasília, DF, junho de 2005. MAGGIE, Yvonne; FRY, Peter. A reserva de vagas para negros nas universidades brasileiras. Estudos Avançados. 18 (50), p. 67- 80, 2004. MANIFESTO CONTRÁRIO AO ESTATUTO DA DESIGUALDADE RACIAL E À LEI DAS COTAS. Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006. MANIFESTO A FAVOR DO ESTATUTO DA DESIGUALDADE RACIAL E DA LEI DE COTAS. Brasília, DF, 03 de julho de 2006. NASCIMENTO, Abdias. Ação afirmativa: o debate como vitória. Folha de São Paulo. São Paulo, 07 de julho de 2006. Opinião. UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO. Apresenta informações sobre o processo de implantação do sistema de cotas e pesquisas quantitativas, almejando acompanhar o rendimento e o percentual de permanência dos alunos cotistas da universidade. Disponível em: http:/ /www2.uerj.br. Acesso em: 16 de ago. de 2003. SCIELO. Sérgio D.J. Pena; Maria Cática Bortolini. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em: 19 de jul. de 2006. MAIO, Marco Chor; SANTOS, Ricardo Ventura. Política de cotas, os “olhos da sociedade” e os usos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília (UNB). In: XXVIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS, Caxambu. Anais...Caxambu, MG: ANPOCS, out. 2004. BIROLI. Flávia. Cotas: afinal, do que é que se está falando? Doutora em história pela UNICAMP, é Professora Adjunta do Instituto de Ciência Política da UNB. 188

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UM OLHAR SOBRE MOÇAMBIQUE: a percepção da paisagem na literatura africana. O romance Terra sonâmbula, de Mia Couto* Márcia Manir Miguel Feitosa**

Resumo: Aborda-se o processo de percepção da paisagem à luz do romance Terra sonâmbula, do moçambicano Mia Couto, com ênfase sobre o espaço da narrativa em que se desencadeiam as ações vividas pelos personagens numa Moçambique arrasada pela guerra pós-independência. Palavras-chaves: Percepção. Paisagem. Moçambique. Tradição oral e escrita Abstract: This work approaches the process of the landscape perception in order to develop the analysis of the novel Terra sonâmbula, by Mia Couto, with empahsys in the space of the narrative where the lived action are developed by the characters, in Moçambique, destroyed by the pósindependence war. Keywords: Perception. Landscape. Moçambique. Oral and written tradition.

* Trabalho apresentado no VII Encontro Humanístico, promovido pelo Núcleo de Humanidades - CCH/UFMA, realizado de 19 a 23 de 2007, durante a mesa redonda “Um olhar sobre Moçambique: a percepçãoda paisagem na literatura africana” ** Profa. Dra. em Literatura Portuguesa pela USP e Profa. Associada Nível I do Departamento de Letras da UFMA. Coordenadora do Projeto de Pesquisa (PIBIC – CNPq) “Literatura e paisagem: um estudo do romance moderno e contemporâneo de língua portuguesa à luz da percepção ambiental”.

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1. INTRODUÇÃO O conceito de paisagem está diretamente associado ao processo de percepção, sendo escorregadio, na maioria das vezes; poético, em quase todas as vezes em que é empregado, sobretudo no campo dos estudos literários. Para alguns de seus teóricos, em que pese a ciência geográfica, “paisagem” é um conceito em que reina a imprecisão e assim deve continuar sendo; para outros, como Simon Shama, no livro Paisagem e memória, “antes de ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente.” (SHAMA, 1996, p. 17), configurando-se “nem sempre [em] ‘local de prazer’ – o cenário com função de sedativo, a topografia arranjada de tal modo que regala os olhos.” (SHAMA, 1996, p.28) A geógrafa Solange de Lima Guimarães, no artigo “Filigranas de uma paisagem: um estudo sobre a percepção de lugares de medo”, avança a análise desse conceito ao filiar o qualificativo “vivida” à idéia então tradicional de paisagem. De acordo com a autora: “A paisagem vivida preserva e transmite, ao longo da história de vida de cada um de nós, os valores e percepções de nossos grupos culturais...” (GUIMARÃES, 2001, p. 03), constituindo um território de imagens que, mesmo fragmentadas, servem de pólo de resistência no campo da memória e da evocação das lembranças. Romance da desolação da paisagem natural e humana, Terra sonâmbula, do moçambicano Mia Couto, envereda pela paisagem da memória, em busca da identidade perdida nos cadernos de Kindzu e no sonho de transpor a dura realidade da guerra pós-independência. A paisagem vivida por Muidinga, em sua travessia pelas narrativas de Kindzu, não constitui o caminhar por espaços alienados, destituídos de sentido. Não. Antes está investido de afetividade, de construção de um mundo de paz e abundância, ainda que vivido sob a atmosfera do sonambulismo.

2. A PAISAGEM DA ORALIDADE E DA ESCRITA Traduzido em mais de 20 línguas, esse romance de Mia Couto teve como primeira edição o ano de 1995, tendo sido amplamente laureado pela crítica. Conquistou prêmios na África e na Dinamarca, consagrando a produção literária do escritor moçambicano, autor ainda de Estórias abensonhadas (1994), Mar me quer (1998), Vinte e zinco (1999), O último vôo do flamingo (2000), Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), dentre outros. Preocupado com o resgate de lendas e narrativas orais de seu povo, Mia Couto, desde a década de 80 do século XX, tem renovado a literatura moçambicana, constituindo um ourives da palavra, à semelhança de Guimarães Rosa, dado o fino trato que confere à linguagem. Curioso é destacar que até há pouco tempo a cultura africana desconhecia a escrita. Como ressalta Vera Maquêa (2005, p. 170): “... encontramos em Mia Couto o caráter transnacional da literatura, que 190

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consegue ao mesmo tempo expressar problemas humanos fundamentais e trabalhar com a massa de sentidos específicos das circunstâncias históricas de Moçambique.” No livro, identificamos onze capítulos, narrados em terceira pessoa, sobre a tentativa de sobrevivência durante a guerra civil pósindependência entre o jovem Muidinga e o velho Tuahir, e onze cadernos, narrados em primeira pessoa, por um tal de Kindzu, acerca da memória de tempos passados. Na reflexão de Vera Maquêa (2005, p. 174), não se verifica o dualismo na obra, na medida em que tanto a tradição oral quanto a escrita estabelecem entre si um diálogo, “pois que ambas se confundem”. Mergulhados no universo cultural de suas raízes, somos apresentados ao “machimbombo” (“autocarro”, traduzido à página 10), espaço importante em que se imiscuem o presente da narrativa, vivenciado pelo jovem Muidinga e o velho Tuahir, e a história póstuma de Kindzu; ao “congolote” (bicho de mil patas), à “sura” (aguardente produzida dos rebentos de palmeira), inspiração para o nome de Kindzu, atribuído por seu pai, Taímo. Outros elementos inerentes à tradição moçambicana se apresentam, como forma de enriquecer o legado cultural de seu povo, a exemplo de “concho” (pequena embarcação, uma canoa, que, no contexto da narrativa, constitui o espaço para o qual o pai de Kindzu retornaria, morto, do mar, à semelhança do que ocorre no conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa; “machamba” (terreno agrícola, encontrado por Muidinga e Tuahir quando resolvem deixar o machimbombo à procura de comida) e “machongo” (terra fértil de solos argilosos, presente nos cadernos de Kindzu). Duas estradas são percorridas por Muidinga e Tuahir: a real, transcorrida no machimbombo queimado, espaço de terror de corpos carbonizados, e a imaginária, espaço da utopia vivenciada nas linhas escritas por Kindzu: “A lua parece ter sido chamada pela voz de Muidinga. A noite toda se vai enluarando. Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos cadernos: ‘Quero pôr os tempos...’” (COUTO, 2006, p. 14). Rejane Vecchia afirma que “Muidinga se apropria do passado de Kindzu, o que lhe dá algum conforto na identificação que aos poucos vai nascendo. O sonho é o espaço em que o lugar ideal se apresenta, assim como o homem que deve habitá-lo.” (VECCHIA, 2002, p. 493). Bachelard, em A poética do espaço, reforça a promessa da idealização do espaço no plano onírico, ao ressaltar que: Mesmo quando esses espaços estão para sempre riscados do presente, estranhos a todas as promessas de futuro, (...). Voltamos a esses lugares nos sonhos noturnos. E esses redutos têm valor de concha. E, quando vamos ao fundo dos labirintos do sono, quando tocamos nas regiões de sono profundo, conhecemos talvez uma tranqüilidade ante-humana. O antehumano atinge nesse ponto o imemorial. (BACHELARD, 1978, p. 203)

As estórias escritas por Kindzu, que objetivam preservar a memória moçambicana e a tradição oral do contador de estórias, revelam uma Moçambique dialética, em conflito entre a opulência e a miséria, entre a 191

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ambição e o desprendimento, entre a vida e a morte, enfim. Ao morrer, Kindzu avista Gaspar, o rapaz, filho de Farida, procurado insistentemente por Kindzu ao longo de sua odisséia pela Moçambique arrasada pela guerra e pela destruição de seu povo. Depara então com seus cadernos nas mãos de um miúdo, que nada é mais do que o próprio Muidinga/ Gaspar, fruto novo de uma terra marcada pela infertilidade. Depositário da esperança de sonhar um mundo melhor e, ao mesmo tempo, substituto de Kindzu na tradição oral das histórias de seu país, Muidinga tem a missão de servir de nova semente para o futuro, agora consciente de sua identidade e da transformação de seu meio.

Mais adiante segue um miúdo com passo lento. Nas suas mãos estão papéis que me parecem familiares. Me aproximo e, com sobressalto, confirmo: são os meus cadernos. Então, com o peito sufocado, chamo: Gaspar! E o menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra. (COUTO, 2006, p. 218)

Mais extensos que os capítulos em que se narra a história de Muidinga acompanhada do velho Tuahir, os capítulos narrados por Kindzu surpreendem quando no final o próprio Kindzu aparece narrando sua morte e seu desaparecimento, o que comprova que a história feita pelos homens sobrevive para além da sua matéria A passagem da não-percepção da paisagem para a percepção lúcida e transformadora se dá de forma gradativa, como a acompanhar a transposição da estrada morta em estrada viva. No primeiro capítulo que antecede o primeiro caderno de Kindzu, o narrador, que narra da perspectiva de uma testemunha, abre o romance com a descrição de uma paisagem horrenda porque produto de uma terra seca, morta, sem estrada.

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte. (COUTO, 2006, p. 09)

À medida que os escritos de Kindzu começam a ocupar a mente e as fantasias de Muidinga, descortina-se a mudança da paisagem, ainda que seca e povoada pela miséria: “Muidinga repara que a paisagem, em redor, está mudando suas feições. A terra continua seca mas já existem nos ralos capins sobras de cacimbo. Aquelas gotinhas são, para Muidinga, um quase prenúncio de verdes.” (COUTO, 2006, p. 53) Mais adiante, já na página 69, o narrador salienta que apenas a Muidinga é dada a condição de acompanhar as transformações da paisagem, eleito no mar das miragens do desejo:

...a única coisa que acontece é a consecutiva mudança da paisagem. Mas só Muidinga vê essas mudanças. Tuahir diz que são miragens, fruto do desejo de seu companheiro. Quem sabe essas visões eram resultado de tanto se confinarem ao mesmo refúgio. Por isso ele queria uma vez mais partir, tentar descobrir nem sabia o quê, uma réstia de esperança, uma saída daquele cerco. (COUTO, 2006, p. 69)

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Gradativamente, a paisagem adquire novas cores e a presença da vida já se faz notar, com nuances de alegria. A saída do refúgio, representado pelo machimbombo, espaço vívido da guerra, parece abrir novos horizontes do olhar: Um vento soprava e os frutos se embatiam, em múltiplos batuques. Uma vez mais, a paisagem mudara seus tons e tamanhos. O arvoredo era mais baixo embora mais cheio. A humidade crescia, devia haver uma aguinha a correr perto. Tinham saído do autocarro na madrugada desse dia mas andaram apenas em círculos para não se afastarem muito da sua moradia. (COUTO, 2006, p. 93)

No sexto capítulo, Muidinga toma de fato consciência de que são os cadernos de Kindzu os responsáveis pela percepção simbólica da paisagem que se opera em sua mente. Ao lê-los, novas fantasias e fatos fantásticos se desvelam, a beirar o plano do maravilhoso:

A paisagem prossegue suas infatigáveis mudanças. Será que a terra, ela sozinha, deambula em errâncias? De uma coisa Muidinga está certo: não é o arruinado autocarro que se desloca. Outra certeza ele tem: nem sempre a estrada se movimenta. Apenas de cada vez que ele lê os cadernos de Kindzu. No dia seguinte à leitura, seus olhos desembocam em outras visões. (COUTO, 2006, p. 109)

Uma das epígrafes que abrem o livro sintetiza, poeticamente, a passagem da não-percepção da paisagem para a percepção utópica, conquistada durante o sono, em pleno estado de sonambulismo. Fruto de uma crença dos habitantes de Matimati, a terra da água, faz parte do imaginário cultural legado pela tradição oral e que é resgatado por Mia Couto, ao lado de um pensamento de Platão, representando a cultura grega ocidental, e a fala do personagem Tuahir, criação romanesca e porta-voz do futuro de redenção de Moçambique. Logo, num mesmo espaço de construção da página da terra, a ser semeada pelas palavras, convivem harmoniosamente a tradição oral, a ficção literária e a filosofia clássica, o que consolida mais uma vez o amálgama criado por Mia Couto nessa obra: a Moçambique ancestral e o país construído segundo o modelo do Estado ocidental.

Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho.(Crença dos habitantes de Matimati) (COUTO, 2006, p. 07) O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.(Fala de Tuahir) (COUTO, 2006, p. 07) Há três espécies de homens: os vivos, os mortos e os que andam no mar. (Platão (COUTO, 2006, p. 07)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Dos onze capítulos que constituem a via crucis de Muidinga e Tuahir de uma paisagem inóspita e horripilante de um machimbombo quei193

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mado para o mar aberto, símbolo da dinâmica da vida, em que se fecha o ciclo do nascimento, transformação e renascimento, somos levados, quase que simultaneamente, aos outros onze capítulos, em formato de cadernos, de um personagem de nome Kindzu, que, como o nome sugere, nos embriaga com a narração de sua vida desde a infância, marcada pela fuga da guerra, pela procura de Gaspar, pelo desejo heróico de se tornar um guerrilheiro naparama, nos moldes de um soldado da justiça. Como num jogo de espelhos, Muidinga e Kindzu encontram-se em suas próprias memórias. Ambos lutam por atingir o amor, a bondade, a amizade e a felicidade a partir da percepção acurada do que deve constituir o corpo social, cultural, histórico e político da sonhada Moçambique. Neste contexto, a paisagem vivida, “em suas múltiplas faces, vai mesclando os movimentos da vida, sonhos e expectativas, a memória, os desejos de cada grupo cultural como um único corpo” (GUIMARÃES, 2001, p. 04). Yi-Fu Tuan, o renomado filósofo e geógrafo chinês, sustenta que “experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. O dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é um constructo da experiência, uma criação de sentimento e pensamento.” (TUAN, 1983, p. 10). Muidinga e Tuahir aprenderam com a experiência fantástica dos cadernos de Kindzu a sonhar com a sobrevivência da cultura africana, ainda que, muitas vezes, suplantada pelo poder do colonizador e com a esperança de que será possível nascer das cinzas o presente caótico, sufocado pelo terror. Num misto de doçura e selvageria, constroem a história de suas vidas na paisagem da memória. Referências:

BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Traduções de Joaquim José Moura Ramos et al. São Paulo: Abril Cultural, 1978. COUTO, Mia. Terra sonâmbula. Maputo: Ed. Ndjira, 2006. GUIMARÃES, Solange T. de Lima. Filigranas de uma paisagem: um estudo sobre a percepção de lugares do medo. In: Revista Olam – Ciência e Tecnologia. Rio Claro. V. 1, no 2, novembro de 2001. LARANJEIRA, José Pires. Mia Couto e as literaturas africanas de língua portuguesa. In: Revista de Filologia Românica. Disponível em:
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