A construção do tráfico de seres humanos (TSH) como problema de segurança: o caso da TSH na Estratégia Europeia de Segurança

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4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais De 22 a 26 de julho de 2013.

A CONSTRUÇÃO DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS (TSH) COMO PROBLEMA DE SEGURANÇA: O CASO DA TSH NA ESTRATÉGIA EUROPEIA DE SEGURANÇA

Segurança Internacional Trabalho avulso|Painel

Ileana Ioana Ionescu INEST/UFF Prof. Dr. Thiago Moreira De Souza Rodrigues INEST/UFF

Belo Horizonte 2013

Ileana Ioana Ionescu Prof. Dr. Thiago Moreira De Souza Rodrigues

A construção do tráfico de seres humanos (TSH) como problema de segurança: o caso da TSH na Estratégia Europeia de Segurança

Trabalho submetido e apresentado no 4º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais – ABRI.

Belo Horizonte 2013 2

Resumo

Alvo de mobilizações humanitaristas e de pressões diplomático-econômicas, a escravidão moderna foi gradualmente abolida por meio de uma série de tratados internacionais celebrados desde o século XIX. Apesar da abolição formal, ela seguiu existindo na exploração do trabalho, em conflitos armados e no comércio ilegal de pessoas. No final do século XX, houve o reconhecimento pela comunidade internacional da permanência da escravidão, redimensionada em novas modalidades como o tráfico humano, o tráfico de órgãos, o tráfico para exploração sexual entre outros. Nesse contexto, cunhou-se no âmbito da ONU o termo “tráfico de seres humanos” (TSH) como a nova e ampla categoria jurídica destinada a reunir as contemporâneas formas de escravidão. Essa comunição propõe apresentar uma breve história da produção do conceito de TSH no pós-Guerra Fria e de sua securitização no plano internacional, com especial atenção ao caso europeu.

Palavras – Chave: tráfico de seres humanos, securitização, novos conflitos, governança global.

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Introdução

Alvo de mobilizações humanitaristas e de pressões diplomático-econômicas, a escravidão moderna foi gradualmente abolida por meio de uma série de tratados internacionais celebrados desde o século XIX. Apesar da abolição formal, ela seguiu existindo na exploração do trabalho, em conflitos armados e no comércio ilegal de pessoas. No final do século XX, houve o reconhecimento pela comunidade internacional da permanência da escravidão, redimensionada em novas modalidades como o tráfico humano, o tráfico de órgãos, o tráfico para exploração sexual entre outros. Nesse contexto, cunhou-se no âmbito da ONU o termo “tráfico de seres humanos” (TSH) como a nova e ampla categoria jurídica destinada a reunir as contemporâneas formas de escravidão. O Protocolo de Palermo sobre Criminalidade Organizada Transnacional, de 2000, deu especial atenção ao TSH, associando-o a outros ilegalismos transterritoriais. Em 2010, o Conselho de Segurança da ONU indicou o TSH como uma nova ameaça à segurança internacional, devido à sua associação a demais ilegalismos, ajudando a constituir redes de trânsito e financiamento de grupos não-estatais tido como perturbadores da ordem mundial (S/PRST/2010/18). Antes disso, no entanto, a União Europeia incluiu o TSH em sua Estratégia de Segurança de 2003, considerando-o uma ameaça à estabilidade e segurança do bloco. Essa inclusão acionou programas comunitários de combate ao TSH que se articularam aos projetos de enfrentamento de outras modalidades de tráfico e do terrorismo. Essa comunição propõe apresentar uma breve história da produção do conceito de TSH no pós-Guerra Fria e de sua securitização no plano internacional, com especial atenção ao caso europeu. Procurar-se-á mostrar como o TSH se agrega ao conjunto de novos problemas de segurança que passam a ser incluídos no rol das ameaças identificadas pela UE e pela comunidade internacional, acionando medidas legais, repressivas e de defesa delineadas a fim de combatê-las. Definição do termo Com o advento do crime organizado transnacional, “antigas modalidades de contrabando e tráfico são revitalizadas e toda uma linha de negócios está surgindo. Formas de comércio ilícito das quais acreditávamos ter nos livrado para sempre, assim

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como a medicina erradicou a malária, estão novamente em ação” (Naím, 2006, p. 18). Seria isso, também, o que aconteceu no caso da escravidão que “supostamente, estava morta. No entanto, prospera, na forma de coerção sexual e no trabalho doméstico e rural feito por imigrantes ilegais que trabalham para pagar dívidas intermináveis que os prendem aos traficantes” (idem). No começo do século XXI, “a degradante instituição da escravatura continua através do mundo. O tráfico de pessoas é uma forma moderna de escravidão, e é a maior manifestação da escravidão hoje” (TVPA 2000, Sec 102. b1). Segundo Dodge, “estas modalidades não caracterizam escravidão por equiparação, nem são formas assemelhadas à escravidão. São, na realidade, formas contemporâneas” (2002, p. 10), e o TSH representa o redimensionamento de um antigo conceito com a intenção de abranger a totalidade das várias formas de exploração não-consensual que se praticam no mundo hoje (Koettl, 2009, p. 2). O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, também conhecido como Protocolo Palermo, define o tráfico de seres humanos como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração” (Art. 3º a). Continua a mesma alínea definindo que “a exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”. A alínea (c) complementa que “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados "tráfico de pessoas" mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea (a) do presente Artigo” (ONU, 2000ª, Art. 3). Uma exemplificação não exaustiva das formas contemporâneas de exploração não-consensual inclui: ● Trabalho infantil. Em 2002, a OIT estimou em 8,4 milhões o número das crianças sendo exploradas nas “piores formas da exploração infantil”. A maioria delas era explorada através de trabalho forçado e servidão por dívida (5,7 milhões), prostituição

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e pornografia (1,8 milhões), e atividades ilícitas, particularmente produção e tráfico de drogas (0,6 milhões). Estima-se que as indústrias de travesseiros no Paquistão e na Índia usam 500.000 e respectivamente 300.000 crianças em trabalho frequente, de até 18 horas por dia, os sete dias da semana. Muitos teriam consentido trabalhar nessas condições depois de suas famílias receberem promessas de bons salários para trabalhar, enquanto outros foram raptados (idem). ● Crianças em conflitos armados: “Existem indícios da incorporação forçada de crianças nas forças armadas em muitas partes do mundo. As consequências são devastadoras. Muitas morrem ou ficam mutiladas nas operações militares, ao passo que outras são interrogadas, torturadas, espancadas ou detidas como prisioneiras de guerra” (ONU, 1991, p. 6). ● Servidão por dívida seria “a mais comum forma de escravidão moderna” (Bales, Trodd e Williamson, 2009, p. 33). Ela “dificilmente se distingue da escravatura tradicional uma vez que impede a vítima de deixar o seu trabalho ou a terra até que a dívida seja paga. Apesar de, teoricamente, a dívida poder ser reembolsada num determinado período de tempo, a situação de servidão constitui-se quando, apesar de todos os esforços, o devedor não consegue pagá-la” (ONU, 1991, p. 6). ● Exploração sexual forçada. Castilho aponta que “inicialmente”, ou seja, nos primeiros tratados internacionais proibindo esta prática no começo do século XX, “a prostituição era mencionada como uma categoria única. Hoje” – sob a vigência do Protocolo Palermo – “o gênero é a exploração sexual, sendo espécies dela turismo sexual, prostituição infantil, pornografia infantil, prostituição forçada, escravidão sexual, casamento forçado” (2008, p. 5). ●Trabalho forçado. Segundo estimativas da OIT, em 2005 havia 12.5 milhões pessoas prestando trabalho forçado. Destes, 9.8 milhões seriam explorados por agente privados, e 2.5 milhões por agentes de Estado ou Forças Armadas. ● Escravidão tradicional (“chattel slavery”). De acordo com Bales, Trodd e Williamson, a maioria dos escravos entram à escravatura durante sua vida, através de vários métodos que incluem o rapto e falsas promessas para um posto de trabalho lícito (2009, p. 92). No entanto, através do mundo há milhões de escravos que nascem em escravidão, especialmente em países africanos como Níger, Mauritânia, Mali ou Chade.

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● Apartheid e colonialismo. Segundo ONU, “o apartheid não é simplesmente um problema de discriminação racial a resolver através da educação e de reformas políticas. No essencial, o apartheid destituiu de direitos a população negra da África do Sul, impondo um sistema quase colonial. Através de medidas coercivas, o trabalho dos povos indígenas foi explorado para benefício dos investidores brancos” (1991, p. 7). ● Remoção de órgãos. Voinic aponta que em uma aldeia da República Moldova, de um total de 40 homens, 14 teriam “vendido” seus órgãos em condições fora da lei, empurrados pela pobreza (2009, p. 140). Países como Brasil, Rússia, China, Romênia, Estônia, Turquia, Iraque, África do Sul, Índia são notáveis polos de recrutamento para a remoção de órgãos. Os que recebem transplantes ilícitos são em grande medida cidadãos dos EUA, Irã e particularmente do Israel (idem). A dimensão do TSH na União Europeia No que tange à União Europeia, Bales, Trodd e Williamson afirmam que as estimativas do número de pessoas traficadas anualmente varia entre 100.000 e 500.000 (2009, p. 67). Os autores sublinham que o tráfico humano é, nesse continente, a atividade ilícita que apresenta a maior taxa de aumento (idem). Conforme os dados apresentados pela ONUDC, uma variedade maior de nacionalidades foi encontrada entre as vítimas do tráfico de pessoas na Europa Ocidental e Central, do que em qualquer outra parte do mundo (2010, p. 44). Estes países registraram a maior variedade de origens e as maiores distâncias atravessadas pelos fluxos de tráfico. Durante o período em análise que se extende entre 2007 e 2010, as vítimas detectadas nestas duas sub-regiões foram provenientes de 112 diferentes nacionalidades, de todas as regiões do mundo (UNODC, 2012, p. 12). A origem mais comum das vítimas de tráfico transfronteiriço que tem como destino países da Europa Ocidental e Central são os Balcãs: 30 por cento das vítimas de tráfico transfronteiriço são nacionais daquela área. Outras origens significativas para o tráfico nas mencionadas sub-regiões são a África Ocidental (14 por cento de vítimas totais), Ásia Oriental (7 por cento), as Américas (7 por cento), Europa Central (7 por cento) e Europa Oriental e Ásia Central (5 por cento). Ao mesmo tempo, o tráfico domestico na região da Europa Ocidental e Central mostra-se responsável por cerca de um quarto das vítimas detectadas (idem, p. 13).

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Para o Serviço Europeu de Polícia (EUROPOL), “os mais ameaçadores grupos do crime organizado são aqueles capazes de controlar o inteiro processo de tráfico, desde o recrutamento até o trabalho forçado ou prostituição, incluindo o transporte, o fornecimento de documentos, a execução de corrupção de alto nível e lavagem de dinheiro” (idem). Esses grupos teriam a capacidade de lidar com um grande número de vítimas, depois de ter estabelecido bases logísticas e contatos em países de recrutamento, trânsito e destino. Altamente flexíveis em sua natureza, eles conduzem operações através de células ativas em vários Estados-Membros, facilmente operando a transferência de vítimas de um país para outro. Em alguns casos, vítimas são utilizadas para controlar outras vítimas, o que indica uma distribuição altamente complexa de funções dentro das redes criminosas (idem). A construção do TSH como questão de segurança internacional Pode-se dizer que no mundo, a securitização do TSH desenvolveu-se em grande medida no contexto da ampliação do conceito de segurança no pós-Guerra Fria e no século XXI. “Foi preciso a combinação entre o final da Guerra Fria – com sua lógica da segurança associada ao equilíbrio e à política de dissuasão nuclear – e a eclosão da violência extremada em genocídios e guerras civis – como as que irromperam na primeira metade dos anos 1990 na ex-Iugoslávia e em Ruanda – para que pequenas fissuras no monolítico bloco teórico dos estudos de segurança permitissem o despontar de propostas conceituais distintas que deslocassem o foco do problema da segurança do seu vínculo exclusivo com o Estado para associá-lo a questões para além, para aquém e através do Estado” (Rodrigues, 2012, p. 8).

A partir dos anos 1990, desenvolveu-se uma ampla revisão pela ONU “do princípio da inviolabilidade absoluta da soberania estatal quando a integridade e bemestar dos indivíduos estivessem sob ataque” (idem, p. 17). Notadamente, “esse processo de revisão do valor absoluto da soberania estatal terminou com a produção do princípio da responsabilidade de proteger (R2P) que definiu uma boa prática da soberania – quando os Estados zelam e fomentam os direitos de seus cidadãos – e uma má prática da soberania – quando forças do Estado violam os direitos de seus cidadãos” (idem). Assim, “a partir do trabalho de readaptação empreendido pela ONU no pós-Guerra Fria, houve um condicionamento do valor da soberania ao dos direitos do Homem que, portanto, não descartou o Estado como unidade política referencial, mas que balizou uma conduta estatal correta e outra recriminável parametradas pela adesão ao conceito da segurança humana” (idem).

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Neste sentido, a Teoria das “Novas Guerras” proposta pela pesquisadora Mary Kaldor apresenta-se de profunda relevância para os esforços de entender as transformações dos conflitos no meio internacional de segurança na época pós-bipolar e no presente. “As novas guerras, na concepção de Mary Kaldor, são conflitos onde não se podem delimitar muito bem as fronteiras entre guerra, crime organizado, e violação em larga escala de direitos humanos” (Reis, 2005, p. 3). Elas poderiam ser entendidas, até certo ponto, como “falências de proteção” (Jones, 1999; Kaldor, 2000). Essas guerras aconteceriam em um contexto de profunda erosão da autonomia do Estado, e em casos extremos de desintegração do Estado e de suas estruturas. Particularmente, elas ocorreriam no contexto da erosão do monopólio da violência legítima e organizada. Embora muitos desses conflitos sejam localizados, eles envolveriam uma miríade de conexões transnacionais que acabariam fazendo com que a distinção entre interno e externo, entre agressão e repressão, ou mesmo entre o local e o global, dificilmente pudessem ser mantidas (Kaldor, 2000). “A combinação entre privatização e globalização poderia contribuir para gerar um processo que levaria, praticamente, a inverter o processo através do qual os Estados modernos foram construídos”1, afirma Mary Kaldor (idem). Os Estados reagiriam frente a essas mudanças, reavaliando os temas de segurança que passariam a incluir novos itens. Na perspectiva da teoria da securitização, um processo se securitização ocorre quando uma temática é definida por um agente securitizador – primordialmente o Estado – como uma ameaça existencial a esse agente e que, por essa razão, deveria ser enfrentada com todos os meios disponíveis no campo das medidas de defesa (Buzan, Wæver, De Wilde, 1998) Nesse contexto, TSH e os outros ilegalismos que alimentam a expansão do COT, segundo apresentado no Protocolo Palermo e na Estratégia Europeia de Segurança, poderiam ter profundos efeitos sobre a estabilidade e segurança internacional, constituindo-se, portanto, como problemas de segurança e, consequentemente, demandando respostas nesse sentido. No caso do Protocolo de Palermo, a comunidade de Estados, e na da EES, a União Europeia, atuaram como agentes securitizadores definindo alguns fluxos conflituosos como problemas de segurança. Dentre esses fluxos, há destaque para os do chamado COT e, neles, figura o TSH. Um dos elementos interessantes a se notar é que, nesses casos, os agentes 1 “The combination of privatisation and globalisation can give rise to a process, which is almost the reverse of the process through which modern states were constructed”.

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securitizadores e os alvos securitizados não são tradicionais: quem securitiza são consórcios de Estados e o que é securitizado são fluxos transterritoriais e não Estados nacionais. Naím afirma que “para os criminosos, as fronteiras criam oportunidades de negócios e escudos convenientes; no entanto, para os funcionários do governo que os caçam, as fronteiras são frequentemente obstáculos intransponíveis. Os privilégios da soberania nacional transformaram-se em fardos e limitações para os governos” (2006, p. 18). Esta seria uma questão que “diz respeito a uma nova forma de política no século XXI e às novas realidades econômicas que trouxeram para a frente do palco todo um novo grupo de atores políticos” (idem, p. 14). Como resposta, iniciou-se um processo através do qual Estados e organizações internacionais promoveram a ampliação do conceito de segurança para poder lidar com este “novo grupo de atores políticos”. A União Europeia incluiu o tráfico de seres humanos em sua Estratégia de Segurança de 2003, considerando-o uma ameaça à estabilidade e segurança do bloco. Essa inclusão acionou programas comunitários de combate ao TSH que se articularam aos projetos de enfrentamento de outras modalidades de tráfico, do terrorismo, e de outras questões que fazem parte do conjunto de novos riscos e ameaças à segurança internacional, no contexto da ordem de segurança pós-Guerra Fria. Analisando os principais documentos de segurança da União Europeia, podese observar que eles definem cada assunto que constitui um risco ou ameaça para a organização, tratando também das associações que podem surgir entre estes. Seria, sobretudo, o conjunto dessas conexões que poderia colocar as sociedades europeias perante a uma ameaça mais difícil de ser contida. Desde suas primeiras páginas, a Estratégia Europeia de Segurança descreve como conexões entre fluxos de tráficos em várias partes do mundo transportando drogas, pedras preciosas, armas leves e seres humanos, gerariam profundas consequências negativas, impactando sobre a segurança e estabilidade da União Europeia. “Os proventos da droga têm contribuído para o enfraquecimento das estruturas do Estado em diversos países produtores de droga. Os lucros obtidos com o comércio de pedras preciosas, madeira e armas ligeiras servem para alimentar conflitos noutras partes do mundo. Todas estas actividades abalam o primado do Direito e a própria ordem social. Em casos extremos, a criminalidade organizada pode mesmo passar a dominar o Estado. 90% da heroína presente na Europa provém do cultivo de papoula no Afeganistão – país onde o tráfico de droga subsidia exércitos privados. Na sua maior parte, a

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heroína é distribuída através das redes criminosas dos Balcãs, as quais são igualmente responsáveis por cerca de 200 000 dos 700 000 casos de tráfico sexual de mulheres em todo o mundo” (Estratégia Europeia de Segurança, 2003, p. 5).

A conexão entre ilegalismos mostra-se, conforme EES, altamente preocupante, podendo ter desdobramentos radicais para a segurança europeia: “O conjunto de todos estes elementos – terrorismo determinado a fazer uso da máxima violência, disponibilidade

de

armas

de

destruição

maciça,

criminalidade

organizada,

enfraquecimento do sistema estatal e privatização da força – poderão colocar-nos perante uma ameaça verdadeiramente radical” (idem). Cabe destacar que uma das principais ameaça à segurança europeia, cuja confluência com o crime organizado transnacional (COT) mostra-se particularmente preocupante, seria o terrorismo. Este “põe vidas em risco, implica custos avultados [...] e representa uma crescente ameaça estratégica para toda a Europa”, aponta a EES (idem, p. 3), sublinhando que “os terroristas e os criminosos são hoje capazes de actuar no mundo inteiro” (idem, p. 7). A conexão entre o terrorismo e o tráfico de seres humanos poderia ser altamente lucrativa para os ambos. Lanzante mostra que a relação entre grupos de crime organizado implicados em TSH e grupos terroristas não precisa ser uma relação de longa duração ou ideológica; os laços sustendo esta relação seriam baseados em incentivos financeiros, visando o lucro (2009, p. 2). Uma conexão particularmente desestabilizadora para a UE se formaria entre COT, Estados enfraquecidos e conflitos regionais. Para a União Europeia, “a degenerescência de alguns Estados põe em causa a nossa segurança, ao alimentar a criminalidade, a imigração ilegal e, mais recentemente, a pirataria” (Relatório sobre a Execução da Estratégia Europeia de Segurança, 2008, p. 1). TSH, como uma das atividades principais do crime organizado transnacional, poderia aumentar em regiões onde conflitos violentos e a fragilidade das instituições estatais deixariam populações inteiras mais vulneráveis frente à exploração não-consensual. A expansão dos ilegalismos e das práticas de “má governação” em tais regiões poderiam ter profundos efeitos negativos sobre a estabilidade e governança a escala mundial, conforme aponta a Estratégia Europeia de Segurança. “A má governação – corrupção, abuso de poder, debilidade das instituições e ausência de responsabilização – e as guerras civis constituem factores que corroem os Estados por dentro. Nalguns casos, esta situação levou praticamente ao colapso das instituições estatais. [...] O colapso do Estado pode estar relacionado com ameaças óbvias, tais como a criminalidade organizada ou o terrorismo. O fracasso dos Estados é um fenómeno alarmante

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que mina a governação à escala global e contribui para a instabilidade regional” (Estratégia Europeia de Segurança, 2003, p. 4, grifos nossos)”.

Cabe destacar o fato de que para a Estratégia Europeia de Segurança entende-se que “mesmo na era da globalização, a geografia continua a ser importante” (2003, p. 7). Assim, seria do interesse da organização que os países situados junto às suas fronteiras fossem bem governados, constituindo um problema para Europa “ter na sua vizinhança países envolvidos em conflitos violentos, Estados enfraquecidos em que floresce a criminalidade organizada, sociedades disfuncionais ou um crescimento descontrolado da população” (idem). Assim, os chamados “conflitos latentes junto às nossas fronteiras orientais vieram recentemente suscitar novas preocupações”, escreveu em 2008 o Relatório sobre a Execução da Estratégia Europeia de Segurança (p.6). A escalada de tensões em Geórgia sofreu alterações dramáticas naquele ano. A situação do país, “no que se refere à Abcásia e à Ossécia do Sul, agravou-se, tendo dado origem a um conflito armado entre a Rússia e a Geórgia em Agosto de 2008” (idem). Em face deste conflito, “a UE liderou a reacção internacional” (idem), e haveria de manter no futuro o seu empenhamento, liderando o Processo de Genebra, afirma o documento. Ao mesmo tempo, a Geórgia não representaria uma única presença de conflito latente junto às fronteiras da União Europeia. “A possibilidade de se alcançar uma solução para o conflito na Transnístria ganhou alguma dinâmica com a participação da UE nas negociações 5+2 e a Missão de Assistência Fronteiriça que destacou” (idem). No entanto, até avance seja alcançado, a região permanece o que Moisés Naím denomina como um “buraco negro geopolítico”, uma região “„sem leis‟ – o que quer dizer anárquica – dentro de um país” (2006, p. 248), onde os ilegalismos e particularmente o tráfico humano, prosperam. Cabe destacar o fato de que em 2010, a Estratégia de Segurança Interna da UE ressalta que “foi concebida para prevenir a criminalidade” (idem, p. 3) e reforçar a capacidade da União para dar resposta a uma situação que descreve nos seguintes termos: “Os principais riscos ligados à criminalidade e as ameaças com que se confronta a Europa hoje em dia, tais como o terrorismo, as graves formas de criminalidade organizada, o tráfico de droga, a cibercriminalidade, o tráfico de seres humanos, a exploração sexual de menores e a pornografia infantil, a criminalidade económica e a corrupção, o tráfico de armas e a criminalidade transfronteiras adaptam-se de forma extremamente rápida à evolução da ciência e da tecnologia, na tentativa de se aproveitar ilegalmente e de pôr em

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causa os valores e a prosperidade das nossas sociedades abertas” (Estratégia de Segurança Interna da União Europeia, 2010, p. 2, grifos nossos).

A postura que a organização adota frente às mencionadas ameaças estaria ligada, em grande medida, à necessidade de apoiar o fortalecimento das práticas de boa governança. Nesse sentido, as melhores formas de reforçar a ordem internacional seriam “a disseminação dos princípios da boa governação, o apoio às reformas sociais e políticas, a luta contra a corrupção e os abusos de poder, o estabelecimento do primado do direito e a protecção dos direitos humanos” (idem). Notadamente, “a prevenção da criminalidade implica abordar as suas causas profundas e não apenas os actos criminosos e suas consequências” (idem). UE propõe-se apoiar os esforços de elaboração de um modelo global de intercâmbio de informações, de modo a habilitar uma abordagem realmente global em face aos desafios e ameaças de segurança que atravessam todos os continentes, e avançar no desenvolvimento de um quadro de cooperação comum. Nesse sentido, deposita-se uma importância essencial à atuação da ONU e à parceria da UE com ONU. “As Nações Unidas ocupam a posição cimeira do sistema internacional. Tudo o que a UE tem feito no domínio da segurança tem estado associado aos objectivos da ONU” (idem, p. 11). Num contexto em qual “o mundo à nossa volta está a mudar muito rapidamente, com novas ameaças e um equilíbrio de forças em transformação” (idem, p. 12), a cooperação internacional em torno das Nações Unidas mostra-se essencial. Considerações finais Criado em 2000 e em vigor desde 2003, o Protocolo Palermo “introduziu no direito internacional uma noção quase sem precedente jurídico: o conceito de tráfico com fins de exploração” (OIT, 2009, iii), e a nova categoria jurídica chamada TSH passou a incluir todas as formas de exploração não-consensual existentes apontando que, em oposição aos valores da Carta das Nações Unidas, a escravidão nunca deixou de se manifestar e ela continua nos dias de hoje. No presente, ela sustenta o aumento do COT e, em conjunto com outros ilegalismos e novas ameaças – tais como o narcotráfico, terrorismo, Estados enfraquecidos e conflitos regionais – contribui num processo que corrói o controle e a autoridade do Estado. Na opinião de Mary Kaldor (2000), esse processo poderia levar a inverter o processo através do qual os Estados modernos foram construídos.

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Em concordância com seu compromisso para com as Nações Unidas, a União Europeia desenvolveu seus instrumentos internacionais e incluiu em sua Estratégia de Segurança, em 2003, o TSH como ameaça à paz e estabilidade do organismo. O mais recente documento de segurança da UE, a Estratégia de Segurança Interna (2010) continua ser consistente com os achados da ONU, ambos apontando para o aumento do TSH e do COT e da pressão que esses exercitam contra o Estado moderno. Nesse contexto, a cooperação internacional num sistema multilateral regido pela ONU mostra-se essencial. “Juntos somos mais eficazes e estamos mais bem preparados para enfrentar as ameaças” afirma o ESI (p. 4), apontando que a cooperação no cenário político internacional de hoje é uma necessidade.

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