A CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA EM KANT_ Dissertação de mestrado

October 4, 2017 | Autor: V. Bagiotto Botton | Categoria: Kant, Philosophy Of Mathematics, Epistemología
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CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA EM KANT ______________

por Viviane Bagiotto Botton

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Área de concentração em Filosofia Transcendental, sub-área teoria do conhecimento, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia.

PPGF

Santa Maria, RS, Brasil 2004

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Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Filosofia A Comissão Examinadora, abaixo assinada aprova esta Dissertação de Mestrado CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA EM KANT elaborada por Viviane Bagiotto Botton como requisito para obtenção do grau de Mestre em Filosofia COMISSÃO EXAMINADORA:

________________________ Abel Lassalle Casanave – UFSM (Presidente/Orientador)

________________________ Oscar Miguel Esquisabel – UNLP (examinador)

_______________________ Dirk Greimann – UFSM (examinador)

_______________________ Frank Thomas Sautter - UFSM (suplente)

Santa Maria, 05 de março de 2004

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A matemática desde os tempos mais remotos alcançados pela história da razão humana, já com o admirável povo grego, encetou o caminho seguro de uma ciência. Só não se deve pensar que lhe tenha sido tão fácil como à lógica na qual a razão só se ocupa consigo mesma, encontrar esse caminho imperial ou, mais ainda, traçá-lo para si mesma; muito antes, creio que tenha permanecido por longo tempo (sobretudo entre os egípcios) no tatear, e que essa transformação se deva atribuir a uma revolução, que o lampejo feliz de um único homem realizou, numa tentativa a partir da qual não se podia mais errar a trilha que se tinha de seguir, e assim o caminho seguro de uma ciência estava encetado e traçado para todos os tempos e distâncias infinitas. A história desta revolução na maneira de pensar, aliás muito mais importante do que a descoberta do caminho do famoso Cabo [da Boa Esperança], bem como a da feliz pessoa que a levou a efeito, não chegou até nós. Não obstante, a lenda transmitida por Diógenes Laércio – que nomeia o suposto inventor dos elementos mínimos das demonstrações geométricas, os quais não precisam de nenhuma prova segundo o juízo comum – prova que a lembrança da transformação produzida pelo primeiro passo no descobrimento deste novo caminho tenha parecido extremamente importante aos matemáticos e se tenha por isso tornado inesquecível. Ao primeiro a demonstrar o triângulo eqüilátero (tenha se chamado Tales ou como se queira) acendeu-se uma luz, pois achou que não tinha de rastrear o que via na figura ou o simples conceito da mesma e como que aprender disso suas propriedades, mas que tinha de produzir (por construção) o que segundo conceitos ele mesmo introduziu pensando e se apresentou a priori e que, para saber de modo seguro algo a priori, não precisava acrescentar nada à coisa a não ser o que ressaltava necessariamente daquilo que ele mesmo havia posto nela conforme o seu conceito. (Kant, CRP, B XI-XII)

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Dr. Abel Lassalle Casanave pela orientação e paciência desde o período da iniciação científica. Aos professores e colegas integrantes do Grupo Permanente de Estudos em Filosofia das Ciências Formais e do grupo PROCAD-“Verdade e Demonstração”, pelas discussões pertinentes e esclarecedoras. Dentre eles destaco os professores: Dr. Oswaldo Chateaubriand Filho e Dr. Luiz Carlos Pereira pela co-orientação durante o período de intercâmbio na PUC-Rio. Agradeço à UFSM pelos seis anos de formação que nela obtive Agradeço, finalmente, à CAPES pela bolsa de mestrado.

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RESUMO Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA EM KANT AUTORA : Viviane Bagiotto Botton ORIENTADOR: Dr. Abel Lassalle Casanave Data e local da Defesa: Santa Maria, 05 de março de 2004.

Esta dissertação apresenta uma reconstrução do problema em torno da noção de construção simbólica apresentada por Kant na Critica da Razão Pura; também relaciona essa noção com as teses kantianas da Investigação e da Carta a Rehberg. No primeiro capítulo da dissertação vê-se que Kant propõe uma nova maneira de conceber o conhecimento em matemática, a saber, por construção de conceitos. Para Kant, construir um conceito é apresentar a priori a intuição que lhe corresponde. A geometria constrói ostensivamente (com as figuras, por exemplo); e a álgebra constrói simbolicamente. O conhecimento por manipulação simbólica configura-se problemático, dado que envolve signos ou caracteres que não são correlatos intuitivos de conceitos, como o são as figuras da geometria. A concepção kantiana de construção, desse modo, parece não contemplar a álgebra. No contexto dessa discussão alguns comentadores de Kant oferecem sugestões de como compreender a concepção kantiana de álgebra e de “construção simbólica”, conforme se apresenta no segundo capítulo desta dissertação. Dentre as sugestões dos comentadores, uma delas propõe que Kant concebe a álgebra como método de resolução de problemas aritméticos e geométricos e não como uma disciplina autônoma. Esta interpretação pode ser ligada com as concepções pré-criticas de Kant, cuja inspiração é leibniziana, e com a referida carta, como veremos no terceiro capítulo. Essas ligações mostram a interpretação de álgebra como um método bastante plausível no contexto kantiano. Na Investigação Kant concebia parte do conhecimento matemático como decorrente de manipulação com signos. Na Carta a Rehberg a concepção kantiana de álgebra como um método mostra-se mais claramente, pois considera a enquanto um conceito algébrico que sempre pode ser construído em geometria, mas nem sempre em aritmética. A partir disso, conclui-se que por “construção simbólica” entende-se um procedimento demonstrativo que opera mecanicamente com signos, mas se refere a um correlato intuitivo, na medida em que pressupõe construções ostensivas subjacentes.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO

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1. A NOÇÃO DE CONSTRUÇÃO NA FILOSOFIA DE KANT

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1.1 A concepção standard de construção na CRP

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1.2. Construção simbólica ou característica na CRP

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2. A CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA EM POLÊMICA

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2.1 As interpretações da noção kantiana de construção simbólica

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2.2 A concepção kantiana de álgebra

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3. CONHECIMENTO SIMBÓLICO, CONHECIMENTO POR CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA E ÁLGEBRA

62

3.1. A concepção leibniziana de conhecimento simbólico e as teses da Investigação

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3.2. A construção simbólica e a álgebra na Carta a Rehberg

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO

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INTRODUÇÃO A preocupação em fundamentar os procedimentos matemáticos e legitimar o seu caráter de conhecimentos necessários forma parte do pensamento filosófico praticamente desde suas origens. Com o surgimento da noção de ciência demonstrativa aristotélica, cujo paradigma parece a primeira vista ser a geometria, e segundo a qual os conhecimentos são fundamentados por princípios e raciocínios bem encadeados, aparece a sugestão de que haja um modelo metodológico para o desenvolvimento e a fundamentação de todos os saberes, excluído o filosófico. A ciência demonstrativa aristotélica se caracteriza pela pretensão de garantir que suas conclusões sejam sempre verdadeiras e necessariamente verdadeiras, obtidas via formas de inferência denominadas por Aristóteles “silogismos”, a partir de princípios. A conclusão, a qual chega um raciocínio demonstrativo, deve ser impossível de ser negada, ou seja, negar a sua conclusão deve nos levar necessariamente a uma contradição. Porém, não basta uma cadeia de silogismos para que haja demonstração, precisa-se de princípios que são anteriores, ou seja, princípios que não são provados via demonstrações, mas sim que sejam “evidentes por si mesmos” sem precisarem ser demonstrados. Haverá algumas premissas que serão o ponto de partida da cadeia silogística, que são os chamados “princípios”, previamente estabelecidos e indubitáveis. Esses princípios são, segundo Aristóteles de duas classes: comuns ou próprios. Os comuns são os axiomas; os próprios as definições e as suposições de existência. Conforme a terminologia utilizada pelos matemáticos posteriores, e que será utilizada por Kant, esses princípios aristotélicos são assimilados a: axiomas, postulados e definições.

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Como vimos, Aristóteles fornece uma definição de “demonstração”, a qual deve atender alguns critérios para ser assim considerada. A demonstração aristotélica consiste numa seqüência silogística que se funda em princípios auto-evidentes: axiomas, postulados e definições. Assim, o método “axiomático-demonstrativo” passa a ser considerado “o método” pelo qual se deve realizar as demonstrações e sob o qual todas as ciências demonstrativas devem se sujeitar. A geometria euclidiana parece, a primeira vista, atender esse modelo demonstrativo. Porém, essa geometria, a qual era concebida como o principal ramo da matemática na época, não atende plenamente ao modelo. Apesar de ter seus axiomas, postulados e definições fixos e suas demonstrações decorrerem deles e de outras demonstrações já realizadas, seus raciocínios não são seqüências de silogismos. Porém, além de não ser constituída por seqüências silogísticas, a geometria utiliza um outro recurso, a saber, o recurso intuitivo. As demonstrações da geometria lançam mão de recursos intuitivos, além dos formais. Isso ocorre quando Euclides, ao demonstrar seus teoremas, traça retas, compara ângulos, sobrepõe figuras e etc.. Assim, ao se tratar do modelo demonstrativo passa-se também a considerar, além dos princípios e dos silogismos, um outro componente: o recurso a figuras. Isso torna problemática a fundamentação da geometria a partir do modelo axiomático, tal como fora descrito por Aristóteles; a formalização, poderíamos dizer, é incompleta. Pelo menos duas posições contrastantes ocuparam os discursos sobre a fundamentação da matemática neste aspecto. Uma delas defende que a matemática tem seu fundamento no modelo axiomático e utiliza apenas recursos lógicos e formais, como o princípio de não contradição,

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silogismos e cadeias de silogismos, para chegar às suas provas. Desta perspectiva, os passos intuitivos devem ser, de alguma forma, formalizados e fundamentados axiomaticamente para que possam ser considerados válidos. A outra opinião é de que a matemática procede por princípios e segue o modelo axiomático, porém, o recurso às figuras e os procedimentos a partir delas não podem ser eliminados. Entre os filósofos modernos, o ideal de elaborar um método único para descobrir verdades e obter todos os conhecimentos se acentua. Nesta época encontramos autores que, em certa medida, remontam os ideais de unificação dos saberes, principalmente baseados no modelo axiomático geométrico-matemático. Por outro lado, acreditam que é preciso buscar uma fundamentação mais adequada à matemática, para que ela, vista como um sistema completo e certo, possa ser compreendida e seguida. O intento de fazer da matemática o espelho para as demais ciências, portanto, tornase mais forte, juntamente com o intuito de fundamentá-la mais adequadamente. Leibniz é uma figura marcante neste cenário, pois, em certa medida, retoma o ideal aristotélico de um método que proceda unicamente por princípios e que as provas, em qualquer ciência, sejam decorrentes de seqüências de silogismos e princípios auto-evidentes (identidades). Ele acredita que a matemática é uma ciência que pode ser fundamentada a partir de alguns poucos princípios e inferências formalmente válidas. Além disso, tenta mostrar que toda a matemática pode ser concebida como manipulação de símbolos e combinações entre eles. Segundo Leibniz, o procedimento simbólico, além de fazer as provas “visíveis”, permite o cálculo segundos regras fixas e, desse modo, a formalização de toda a matemática.

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Assim concebido, o modelo axiomático é o almejado método único, pelo qual se tem acesso às verdades e se detectam as falsidades. Com estes ideais, Leibniz retoma o que fora proposto por Aristóteles, mas amplia tal proposta. Esta ampliação se caracteriza pela relevância dada ao papel do simbolismo neste contexto, que não foi considerado por Aristóteles. Como conseqüência disso, Leibniz tenta criar a ars combinatoria que consiste num método de combinações simbólicas, cuja aplicação seria possível a qualquer área, dado que consiste num sistema de fórmulas que permite “calcular” em qualquer domínio. No contexto da fundamentação da matemática dos teóricos modernos, também encontramos filósofos que defendem que a matemática não procede por meros princípios lógicos e inferências silogísticas. Ao contrário de Leibniz, Descartes rejeita o modelo da ciência demonstrativa aristotélica em prol de seu próprio método, fundado na intuição. Ele acreditava que a geometria devia ser o ideal científico, enquanto se baseia em princípios intuídos clara e distintamente. Segundo Descartes, não é necessário que todas as definições envolvidas numa demonstração sejam consideradas, pois há algumas idéias claras e distintas que não precisam ser definidas. Além disso a geometria não precisa ter todos os seus passos fundamentados por axiomas, já que basta que seus pontos de partida sejam intuitivos (clara e distintamente intuídos). Mas ainda que não a conceba como puramente lógica, para Descartes, a matemática constitui um modelo a ser seguido. Em meio a este contexto da modernidade encontramos Kant, que além de discordar da idéia de que a matemática tenha fundamento puramente lógico, rejeita a ampliação do método matemático a outras áreas do saber, especialmente à filosofia. A Kant, já nos seus escritos pré-críticos, não

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parecia adequado que outros domínios de conhecimento, especialmente a investigação filosófica, se baseasse na matemática, pois a formação de seus conceitos e proposições fundamentais é diferente. Na CRP a rejeição a respeito da identificação entre a matemática e a filosofia permanece, embora mude sua concepção da natureza da matemática em relação aos escritos pré-críticos. Segundo ele, a diferença entre os métodos de formação, de conceitos e princípios, de cada área não permite que sejam tratadas da mesma perspectiva. A matemática, para Kant, tem caráter axiomático mas isso não significa que ela seja fundada meramente em procedimentos formais e axiomas. Para ele, a síntese, entre os conceitos e as intuições (puras), envolvida nos juízos matemáticos é que permitirá o conhecimento nesse domínio. Os princípios matemáticos (axiomas, postulados e definições) não são justificados por mera lógica, mas sim porque realizam uma síntese imediata na intuição. Do mesmo modo, as demonstrações não são meras cadeias de silogismos, mas demonstra. A visão kantiana da CRP é de que a matemática gera conhecimento por “construção de conceitos”, enquanto a filosofia gera por “meros conceitos”. Considerando estes ideais e visualizando Kant neste cenário, o que pretendemos nesta dissertação é examinar suas principais idéias a respeito da noção de “construção”, a qual ele insere no contexto da fundamentação do conhecimento matemático. Nos ateremos, mais especificamente, à construção envolvida nos procedimentos da álgebra, a chamada “construção simbólica”. Tal noção, apesar das inúmeras diferenças, parece nos remeter aos procedimentos simbólicos defendidos por alguns matemáticos, em especial Leibniz e sua noção de “conhecimento simbólico”.

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Consideraremos também algumas das interpretações clássicas em torno da noção de construção e das concepções acerca da matemática de Kant. Comentadores como Hintikka, Parsons, Young e outros, apresentam sugestões de como compreender Kant à luz das suas próprias idéias e como compreender a matemática atual segundo essas idéias. Um aspecto relevante, neste ponto, será a consideração da noção kantiana de álgebra em relação com a noção contemporânea de álgebra. A análise em torno da temática da noção de construção, mais especificamente da concepção de “construção simbólica”, presente na CRP, assim como a análise da literatura relevante, nos remeterá a algumas relações com a filosofia kantiana anterior. A fim de esclarecer as idéias kantianas acerca da matemática, em especial da álgebra, verificaremos as relações que podem ser feitas com as idéias do período pré-crítico de sua filosofia. Trataremos, mais especificamente, das noções contidas na obra Investigação acerca da evidência dos princípios da teologia natural e da moral, de 1764, na qual expõe teses sobre a diferença entre filosofia e matemática. Estas teses são bastante diferentes das apresentadas na sua filosofia posterior, porém, segundo entendemos, há pontos de contato. Acreditamos que, em última instância, a noção de construção simbólica pode ter conservado algo das idéias pré-criticas kantianas, como sugerem alguns comentadores. Porém, preferimos a abordagem de que essa conservação tenha ocorrido devido à concepção de álgebra vigente em sua época e não por supostas antecipações de teses críticas. Além disso, também consideraremos a semelhança de suas concepções pré-criticas com as concepções leibnizianas, que tomam os procedimentos matemáticos como assentados em cálculo com signos, e a possível permanência dessa semelhança na fase crítica.

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Com base no exame das teses kantianas acerca da matemática das fases crítica e pré-crítica, também apresentaremos algumas questões presentes na Carta a Rehberg, de 1790, que acreditamos servir para melhor delinear o problema da construção simbólica e da natureza da álgebra. Nessa carta, ele discute procedimentos de cálculo e construção de raízes relacionados com a noção de construção. A partir desse último tópico, portanto, poderemos apresentar a nossa hipótese (baseada nas discussões entre alguns comentadores a respeito do tema) de que a noção de construção simbólica poderia ser inspirada nas suas concepções anteriores, porém com um diferencial: que as construções simbólicas deveriam estar respaldadas por construções ostensivas prévias (ou subjacentes) às simbólicas.

No primeiro capítulo desta dissertação, apresentaremos a definição e as considerações kantianas acerca da construção de conceitos. A construção de um conceito é a exibição a priori da intuição que corresponde a tal conceito. As construções da geometria (euclidiana) são as chamadas construções

ostensivas

ou

esquemáticas,

enquanto

consistem

na

apresentação das figuras, que são concebidas como intuições que produzimos a priori na forma pura do espaço. Os procedimentos algébricos também ocorrem por construção, sendo essa chamada de simbólica ou característica. Trataremos mais especificamente, na primeira seção, da concepção standard de construção de conceitos, apresentada na CRP; e na segunda seção trataremos detalhadamente dos problemas surgidos em torno da noção de construção simbólica. As várias interpretações dadas à filosofia da matemática de Kant, especialmente as relacionadas à noção de construção simbólica, será o tema

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do nosso segundo capítulo. A partir da consideração de comentadores poderemos perceber que a falta de especificidade de Kant resultou em várias interpretações conflitantes e, algumas vezes, incoerentes com o próprio sistema de Kant. Segundo o nosso modo de ver o problema, a maioria dos estudiosos não levou em conta o contexto no qual Kant se encontrava, o qual consideraremos aqui. Este capítulo também é dividido em duas seções, nas quais trataremos, na primeira delas, as interpretações mais conhecidas da noção de construção simbólica kantiana, especialmente a controvérsia entre Hintikka e Parsons; e na segunda seção, a interpretação de Lisa Shabel, que se diferencia das demais na medida em que situa historicamente o que se entende por álgebra na época de Kant. No terceiro capítulo consideraremos as concepções kantianas anteriores à CRP, as quais podem ser ligadas às teses de Leibniz sobre a matemática. Desse modo, abordaremos, na primeira seção, as concepções leibnizianas a respeito da matemática e de seus métodos, especialmente o tópico sobre o uso de símbolos e o procedimento que ele chama “conhecimento simbólico”. A propósito dessa relação com Leibniz, nos remeteremos às idéias kantianas contidas na Investigação, as quais acreditamos ter sido inspiradas nas teses leibnizianas. A partir disso, poderemos observar os elementos que se ligam à noção de “conhecimento simbólico” em conexão com a noção de “construção simbólica” da CRP. A busca por detalhes sobre como Kant concebia a álgebra e, mais especificamente, o processo de construção simbólica, próprio dela, será a investigação que nos dedicaremos na segunda seção do referido capítulo. Nos centraremos na Carta a Rehberg, que Kant escreve em 1790, na qual encontramos uma discussão a respeito de procedimentos de cálculo,

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construção de raízes e a impossibilidade da construção aritmética de problema com relação a

2.O

2 é que na geometria sua construção ostensiva é

possível, mas se pensada em termos numéricos não haverá construção ostensiva para tal conceito. Nas considerações finais, nos limitaremos a sintetizar os resultados alcançados.

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1. A NOÇÃO DE CONSTRUÇÃO NA FILOSOFIA DE KANT Kant, na CRP, apresenta uma concepção a respeito do modo de conhecer em matemática: o conhecimento por construção de conceitos. Assim, as figuras da geometria são vistas como intuições puras, que apresentam os conceitos, no decorrer do processo demonstrativo. Nos procedimentos que fazem uso do método algébrico, diferentemente dos da geometria, utiliza-se símbolos e realizase combinações entre eles. Isso acaba caracterizando um problema, pois os sinais utilizados no processo que recorre à álgebra não são intuições de conceitos e sim signos que, de alguma forma, “estão por” os conceitos numa cadeia de raciocínios com pretensão de prova. Todavia, Kant também atribui o caráter de “construção” aos procedimentos efetuados com signos. A obscuridade das idéias kantianas, neste ponto, se mostra notória; no entanto, tem havido algumas tentativas de solução ao problema. Construção e conhecimento matemático em Kant, portanto, caracterizam o objeto da investigação desenvolvida neste capítulo. Na primeira seção trataremos de construção em geral; e na segunda seção consideraremos as explícitas referências de Kant a “construção simbólica”.

1.1 A concepção standard de construção na CRP Costuma-se dizer que a CRP foi um marco na história da teoria do conhecimento e que, com ela, Kant realizou uma “revolução copernicana” na concepção de conhecimento. A partir desta obra, é inaugurada a idéia de que também se deve considerar as condições de possibilidade do conhecimento humano. Com relação ao conhecimento matemático tal revolução é bastante notável. Em meio a muitas controvérsias sobre a natureza do conhecimento em matemática, na tradição que Kant estava inserido, salvo exceções, costumava haver um acordo: tal conhecimento é a priori e necessário, ocorre independente de qualquer experiência empírica e decorre de uma cadeia de raciocínios a partir de alguns axiomas, tendo seu fundamento último no princípio de não contradição. Isso significa que a tendência era conceber a matemática como atendendo aos passos exigidos pelo modelo da ciência demonstrativa-axiomática, inaugurada por

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Aristóteles, que na versão de Leibniz passa a implicar uma “redução” da matemática à lógica. Kant não discorda totalmente dessa visão; os conhecimentos matemáticos, para ele, são concebidos como necessários, universais e, por isso, a priori1: “Antes de tudo, precisa-se observar que proposições matemáticas em sentido próprio são sempre juízos a priori e não empíricos porque trazem consigo necessidade, que não pode ser tirada da experiência”. (CRP, B.14). Porém, não são as definições e o princípio de não-contradição o que os legitima como necessários. Do fato dos conhecimentos serem não contraditórios não se segue que eles possam ser fundamentados apenas no princípio de não-contradição e que seu fundamento seja puramente lógico2. Conforme a teoria do conhecimento kantiana,

os conhecimentos devem atender certas condições de

possibilidade, ou seja, devem ser considerados “conhecimentos possíveis”. Essas condições de possibilidade dependerão do nosso “acesso” aos

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Necessário e universal aqui são tomados como a condição para que os conhecimentos sejam a priori, independente da experiência, mas muitas vezes também são concebidos como sinônimos de “a priori”. Segundo Caygill, “A distinção entre a priori e a posteriori no século anterior a Kant era usada para distinguir modos de demonstração lógica: ‘Quando a mente raciocina de causas para efeitos, a demonstração é chamada a priori, quando de efeitos para causas, a demonstração é chamada a posteriori’ (Arnauld, 1662, p.301). De modo geral, ainda era usada nesse sentido por Wolff e Baumgarten em meados do século XVIII, e foi esse o uso criticado por Hume no Tratado da Natureza Humana (1739). Kant ampliou consideravelmente a distinção na CRP, onde a noção de a priori desempenha um papel fundamental. Ao passo que os dois termos se referiam tradicionalmente a formas de demonstração e, de maneira adicional, na escola wolffiana, às espécies de conhecimento, passam a incluir também, primeiro, os juízos e depois, de um modo mais significativo, os próprios elementos do conhecimento (intuições e conceitos)”. In.: CAYGILL (1995) p.35. 2

In.::: “La Filosofía matemática de Kant”, Raggio escreve: “Para Kant, la aritmética y la geometría tienen el mismo carácter de perfección que le reconocía a la lógica de Aristóteles. El razonamiento las constituye confiriendo a todas las partes de la teoría un valor indiscutible de necesidad y de universalidad; y el razonamiento está en ellas, tanto más seguro de sí mismo, cuando que tiene, al igual que en el silogismo de Aristóteles, la certeza de encontrar en la experiencia la representación de cada uno de sus elementos, la configuración de cada una de sus articulaciones”. (In.: RAGGIO (1978) p. 287). A visão que Raggio apresenta, a respeito da necessidade dos juízos matemáticos é que a lógica os pode fundamentar formalmente com seus princípios, mas não será suficiente para a matemática se sustentar como ciência, pois será preciso uma síntese a priori para isso.

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conceitos e aos objetos que estão subsumidos a tais conceitos. Segundo Kant, para que seja possível o conhecimento de algo é preciso que haja uma síntese entre os conceitos e as intuições que caem sob esses conceitos, ou seja, é necessário que os conceitos tenham realidade objetiva3. O conhecimento matemático, especificamente, será possível na medida em que tivermos a síntese 4 necessária entre os conceitos e os objetos matemáticos que correspondem a tais conceitos. O que fundamenta a necessidade dos conhecimentos matemáticos, contudo, não são os princípios formais da lógica. Os conhecimentos matemáticos não podem ser considerados necessários apenas por não serem contraditórios, mas sim por seus conceitos poderem ser definidos e “mostrados”, de modo a priori, na intuição. “Na verdade, a matemática se ocupa com objetos e conhecimentos apenas na medida em que se deixam apresentar na intuição” (CRP, B 9). Esse “apresentar” ou “mostrar” dos conceitos na intuição, juntamente com a síntese a priori realizada nos juízos matemáticos, é o que justifica a possibilidade de conhecimento em matemática, assim como confere a tal conhecimento o caráter de necessário. Nisso reside a idéia de construção por Kant: “Construir um

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O conceito de realidade objetiva é desenvolvido por Kant no seu texto “Porque não é Inútil uma Nova Crítica da Razão” ou Resposta a Eberhard: “...e este conceito, dado na intuição a priori (neste caso uma parábola) é portanto demonstrado e conseqüentemente também o é a sua realidade objetiva, em outras palavras, a possibilidade da existência de uma coisa com as propriedades descritas, como também é subjacente ao conceito uma intuição correspondente.” Também na CRP “Se um conhecimento deve ter realidade objetiva, isto é, referir-se a um objeto e ter significação e sentido nele, então o objeto tem que poder ser dado de algum modo. Sem isso os conceitos são vazios; na verdade pensou-se através deles, mas sem ter de fato conhecido algo através desse pensamento, mas apenas jogando com representações” (CRP, B 194). 4

Síntese é entendida por Kant como uma junção “por síntese entendo, no sentido mais amplo, a ação de acrescentar diversas representações umas às outras e de conceber a sua multiplicidade num [ato de] conhecimento. Tal síntese é pura se o múltiplo não é dado empiricamente, mas a priori (como o múltiplo no espaço e no tempo)”. (CRP, B 103).

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conceito é apresentar a priori a intuição que lhe corresponde” (CRP, B741). Como vimos, os conhecimentos matemáticos são, para Kant, a priori e necessários. Mas diferentemente do que pensavam a maioria de seus antecessores, ele defende que para haver conhecimento em matemática não basta que tenhamos conteúdos (conceitos, juízos e proposições) nãocontraditórios e formalmente “provados”, por meio de cadeias de silogismos a partir de axiomas ou de definições de conceitos simplesmente não-contraditórias, pois nesse caso as proposições matemáticas seriam analíticas. Para Kant os juízos da matemática serão um tipo muito particular de juízos de conhecimento, cujo fundamento não é puramente lógico, senão intuitivo. Estes juízos serão sintéticos, conforme veremos 5. Os juízos, para Kant, de um modo geral, se distinguem em dois tipos: os analíticos e os sintéticos, dentre os quais, os primeiros são sempre a priori e não constituem conhecimento no sentido forte da palavra, enquanto os segundos podem ser a priori ou a posteriori e constituem conhecimento. Kant define: Ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está contido (ocultamente) nesse conceito A, ou B jaz completamente fora do conceito A, embora esteja em conexão com o mesmo. No primeiro caso denomino o juízo analítico, no outro sintético. Juízos analíticos (os afirmativos) são, portanto, aqueles em que a 5

Aparece aqui a questão em torno de porquê os juízos matemáticos são necessários, já que seu fundamento não está mais no princípio de não-contradição O caráter de necessidade da matemática, conforme veremos no decorrer desta dissertação, está baseada, em última instância, na síntese que realizamos durante as construções matemáticas, a saber, síntese na imaginação transcendental entre intuições puras e conceitos. Porém, tal síntese na intuição não parece assegurar a sinteticidade a priori de tais conhecimentos. As intuições ligadas aos conceitos garantem que eles não são vazios, mas os conhecimentos obtidos a partir deles não podem ser considerados sinteticamente a priori unicamente por tratarem de conceitos não vazios. Essa questão permeia toda a epistemologia kantiana, na medida em que se pergunta: “como são possíveis juízos sintéticos a priori?”, e estará presente no decorrer desta dissertação, na medida em que nos perguntamos: como são possíveis juízos sintéticos a priori na álgebra?

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conexão do predicado com o sujeito for pensada por identidade; aqueles, porém, em que essa conexão for pensada sem identidade, devem denominar-se juízos sintéticos. Os primeiros poderiam também se denominar juízos de elucidação e os outros juízos de ampliação. Com efeito, por meio do predicado aqueles nada acrescentam ao conceito do sujeito, mas somente o dividem por desmembramento em seus conceitos parciais que já eram (embora confusamente) pensados nele, enquanto que os últimos ao contrário acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que de modo algum era pensado nele nem poderia ter sido extraído dele por desmembramento algum. (CRP, B 10/ 11). É importante salientar que os juízos, para Kant, são de estrutura sujeito e predicado ou compostos de juízos de tal estrutura. Com base nisso, a classificação dos juízos dirá respeito aos modos como o conceito que é sujeito e o que é predicado se relacionam. Os juízos analíticos, segundo ele, têm o sujeito e o predicado relacionados por inclusão, ou seja, o conceito que aparece no predicado já estaria englobado, contido, no conceito do sujeito. Esses juízos são todos verdadeiros e necessários dado a relação de identidade encontrada neles, donde se segue que negá-los seria incorrer em contradição6. Tais juízos, contudo não ampliam o nosso conhecimento, já que são meras tautologias e podem ser verdadeiros somente em função de sua forma lógica. Os juízos de conhecimento não podem

ser

analíticos,

dado

que

estes

apenas

podem

elucidar

conhecimentos.

6

Na citação que usamos, Kant ainda não faz referência a não contradição como critério para determinar que os juízos são analíticos. Segundo Allisson, há duas formulações de analítico na CRP. A formulação da introdução, onde esses juízos são tomados “aqueles em que o predicado B está contido no sujeito A”, e a da analítica transcendental, na qual “o princípio de não contradição vale como princípio universal e inteiramente suficiente a todo o conhecimento analítico” (CRP, B 191). Esta última formulação também é encontrada nos Prolegômenos: “Todos os juízos analíticos repousam fundamentalmente sobre o princípio de contradição e são por sua natureza conhecimentos a priori, sejam os conceitos que lhe servem de matéria empíricos ou não.” (Prolegômenos, §2, p. 15).

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Kant, ao conceber os juízos analíticos como não ampliando conhecimentos, ainda que sejam necessariamente verdadeiros, não poderá aceitar que os juízos de conhecimento da matemática sejam desse tipo. Os juízos matemáticos, então, serão sintéticos. Segundo ele, esses juízos são aqueles nos quais o conceito que está pelo predicado acrescenta algo ao conceito que está pelo sujeito e, por isso, produz conhecimento. Nos juízos sintéticos, como o nome já sugere, há uma síntese entre o conceito do sujeito e o conceito do predicado. A verdade desses juízos, no entanto, não pode ser constatada unicamente pela sua forma ou pelo princípio de não contradição, como acontece com os juízos analíticos. Para Kant, cada conceito presente num juízo de conhecimento precisa ter uma intuição que lhe corresponda7. A conexão dos conceitos de sujeito e predicado, pensadas num juízo sintético, poderá ser válida, ou seja, verificada como verdadeira, somente se ambos os conceitos estiverem referidos a uma intuição. A possibilidade dos juízos sintéticos será concedida a partir da relação de um conceito dado com a intuição que lhe corresponde. “Há, porém, duas condições unicamente sob as quais o conhecimento de um objeto é possível: primeiro a intuição, pela qual é dado o objeto, mas só como fenômeno; segundo o conceito, pelo qual é pensado um objeto correspondente a essa intuição”. (CRP, B 125). Em outra passagem, a respeito destas representações, intuição e conceito, enquanto condição de possibilidade do conhecimento, Kant explica:

7

Não explicitaremos em detalhes aqui como acontece essa correspondência intuitiva em cada tipo de conhecimento, nos limitaremos a expor, apenas alguns elementos da epistemologia de Kant para localizar nesse sistema os conhecimentos da matemática e, mais especificamente, os conhecimentos algébricos.

21

Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento de tal modo que nem conceitos sem uma intuição de certa maneira correspondente a eles, nem intuição sem conceitos, podem fornecer conhecimento. Ambos são puros ou empíricos. Empíricos se contêm sensação (que supõe a presença real dos objetos); puros, se à apresentação não se mescla nenhuma sensação. A última pode ser denominada matéria do conhecimento sensível. Portanto, a intuição pura contém unicamente a forma sob a qual algo é intuído, e o conceito puro unicamente a forma do pensamento de um objeto em geral. Somente intuições ou conceitos puros são possíveis a priori, intuições ou conceitos empíricos só a posteriori. (CRP, B 74/75)

Através dessas representações, intuição e conceito, um conhecimento pode se referir a objetos. As intuições são singulares e imediatas. Em contraste, os conceitos são gerais e mediatos, referem-se mediatamente aos objetos através de suas notas8. Ambos podem ser puros ou empíricos. Os conceitos puros do entendimento são as categorias. As formas puras da intuição, também chamadas intuições puras, são o espaço e o tempo, que configuram o nosso sentido externo e interno, respectivamente 9. Os juízos são sintéticos a posteriori quando a intuição correspondente aos seus conceitos for empírica, isto é, quando são provenientes de nossa

8

“O conhecimento é ou intuição ou conceito (intuitus vel conceptus). A primeira refere-se imediatamente ao objeto e é singular; o segundo refere-se mediatamente a ele, por meio de um traço que pode ser comum a várias coisas. O conceito é ou empírico ou puro, e enquanto tem sua origem unicamente no entendimento (não na imagem pura da sensibilidade) denomina-se noção (notio)” (CRP, B 377). 9

Na CRP, Kant escreve: “Tempo e espaço são, portanto, duas fontes de conhecimento das quais se pode tirar a priori diferentes conhecimentos sintéticos; sobretudo a Matemática pura fornece um esplendido no que concerne aos conhecimentos do espaço e das suas relações. Tomados conjuntamente, tempo e espaço são formas puras de toda intuição sensível, e desse modo, tornam possíveis proposições sintéticas a priori”. (CRP, B 55-56).

22

experiência10. A verdade dos juízos sintéticos a posteriori será verificada pela relação entre o juízo e as intuições dos objetos, aos quais os conceitos do juízo se referem. Os juízos de conhecimento das ciências, seguindo essa divisão, são do tipo sintéticos. Os conhecimentos das ciências empíricas em geral se dão por meio de uma síntese entre seus conceitos e as intuições empíricas que lhes correspondem, por isso, são designados sintéticos a posteriori. Os conhecimentos da matemática também são considerados sintéticos, mas não como os conhecimentos empíricos, dado que são necessários e universais, eles são classificados como sintéticos a priori. Os juízos sintéticos a priori simbolizam a inovação de Kant neste contexto, assim como configuram a revolução copernicana que lhe é atribuída no âmbito da epistemologia. Mas “Como são possíveis juízos sintéticos a priori?” (CRP, B.19) é a pergunta que o próprio Kant se coloca já na introdução da CRP e que passamos agora a examinar, somente no âmbito da matemática, para então passarmos à discussão de como são possíveis, especificamente, no domínio da álgebra. No capítulo da CRP que tem o título A Disciplina da Razão Pura no seu Uso Dogmático, Kant apresenta como acontece o conhecimento matemático e contrasta com o filosófico. Segundo ele, os conhecimentos da matemática, diferentemente dos da filosofia, são por “construção de conceitos”: “O conhecimento filosófico é o conhecimento racional a partir de conceitos, o conhecimento matemático é o conhecimento a partir da construção de conceitos. Construir um conceito significa apresentar a 10

Entendamos experiência aqui como a nossa percepção dos objetos a partir de intuições, puras ou empíricas. Nos Prolegômenos define experiência como “a conexão sintática de aparências (percepções) na consciência, na mediada em que essa conexão é necessária”. (Prolegômenos, §22).

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priori a intuição que lhe corresponde.” (CRP, B 741). Esta construção, ou seja, a apresentação das intuições que corresponde aos conceitos, ocorre independentemente da experiência empírica, de modo a priori. A “apresentação” das intuições é um produto da imaginação “sob” as formas puras da intuição que são o espaço e o tempo, podendo ser expressas empiricamente (no papel, na areia, etc). A construção dos conceitos é a apresentação de intuições puras, enquanto produzidas a priori no espaço e no tempo. Isso pode ser exemplificado pela geometria, pois quando suas figuras são desenhadas ocorre a construção, a apresentação das intuições, e a partir dessa construção realiza suas demonstrações. As figuras da geometria são recortes de espaço, apresentados seqüencialmente no tempo, de modo completamente a priori. No caso da aritmética, Kant não deixa claro quê intuições são as produzidas pela construção. Há sugestões de que as intuições da aritmética seriam puras seqüências temporais 11. Também há a possibilidade de que haja elementos espaciais na aritmética 12. O problema, contudo, se torna maior no caso da álgebra, a qual Kant não indica nem mesmo a que objetos ela se refere e sequer com que intuições constrói. Esse problema começa a configurar-se neste momento, mas o trataremos mais especificamente na seção seguinte desta dissertação. A possibilidade de juízos sintéticos a priori se mostra na matemática a partir da construção de conceitos, a qual está envolvida no processo de formação

dos

princípios-base

dos

raciocínios

matemática, ou seja, os axiomas e as definições.

11 12

Cf. Ferrarin (1995). Cf. Couturat (1979), e Martin,G. (1985)

demonstrativos

da

24

Com relação aos axiomas, Kant os concebe, tal como a tradição, como princípios evidentes e certos que não precisam de demonstração. Porém, segundo ele, a conexão entre o sujeito e o predicado dos juízos que se constituem como axiomas ocorre de modo imediato sem recurso a empiria. A síntese dos juízos que são axiomas é a priori e ocorre imediatamente a partir da construção de conceitos. Nas palavras de Kant: “Na medida em que são imediatamente certos os axiomas são sintéticos a priori” (B 760). Sendo sintéticos a priori e produzidos pela síntese imediata na intuição, os axiomas são princípios específicos da matemática, enquanto os princípios da álgebra que são designados por “axiomas” consistem apenas em princípios discursivos, em contraste com os intuitivos da matemática. “Princípios discursivos, pois, diferem totalmente de princípios intuitivos, ou seja, de axiomas; aqueles exigem sempre uma dedução, ao passo que os últimos podem perfeitamente dispensa-las.” (CRP, B 761) Assim como os axiomas, segundo Kant, as definições dos conceitos matemáticos dependem da construção. Conforme sua concepção, os conceitos matemáticos, diferentemente dos filosóficos, são conceitos que são “gerados” a partir de sua definição. A definição dos conceitos acontece por “uma síntese arbitrária que pode ser construída a priori” (CRP, B 757). Essa definição, contudo, não ocorre de maneira mediata através de outros conceitos, mas de modo completamente a priori a partir da construção. A noção de definição kantiana requer que ao definirmos um conceito apresentemos todas as notas que o constituem, sendo que a falta de uma nota ou a explicitação de alguma, que não lhe pertence, acarreta em erro na definição. Com base nisso, a formulação de definições em matemática se

25

faz possível na medida em que o ato de definir é o próprio ato de “gerar” os conceitos. Isso permite que a definição seja completa, sem que faltem ou sobrem notas ao conceito a ser definido. Kant escreve: “Como indica a própria palavra, definir só deve propriamente significar tanto quanto apresentar originariamente, dentro de seus limites, o conceito minucioso de uma coisa” (CRP, B 755)13. A partir dessa noção de definição, tal como ocorreu com os axiomas, somente a matemática poderá formulá-las. Com relação às próprias demonstrações, estas ocorrem a partir de uma cadeia de raciocínios, cuja correspondência intuitiva é mostrada pela construção e, de certa maneira, consiste na própria construção. Desse modo, também elas ficam restritas apenas à matemática. Kant escreve: “Portanto só a matemática contém demonstrações, pois deriva seu conhecimento não de conceitos, mas de construção dos mesmos, isto é, da intuição a qual pode ser dada a priori e correspondente aos conceitos” (CRP, B 762). Inspirado na geometria euclidiana, que era a geometria conhecida em sua época, Kant considera a apresentação das figuras e as provas sobre elas, pelo traçado de retas, comparação de ângulos e etc., como demonstrar em matemática (pelo menos em geometria). Na geometria euclidiana podemos constatar alguns passos do “ato” de apresentar as figuras, relacionado à construção kantiana. A relação entre construção de conceitos de Kant e os passos exigidos por Euclides às provas na sua geometria já foram indicados por Hintikka, o qual apresenta tal relação para fundamentar a sua tese de 13

Nesta citação Kant coloca uma nota que esclarece essa declaração e que acreditamos ser importante citá-la: “Minuciosidade significa clareza e suficiência de notas; limites à precisão, de modo que não haja outras notas além das pertencentes ao conceito detalhado; originário, porém, que essa determinação de limites não foi derivada de alguma outra coisa e não precisa ainda de uma prova, o que incapacitaria a pretensa explicação de estar à testa de todos os juízos sobre um objeto”. (CRP, B 755).

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que intuições seriam apenas representantes particulares que estão pelos indivíduos. Algumas dessas idéias de Hintikka, relevantes a discussão a respeito da construção simbólica, serão apresentadas por nós no segundo capítulo, mas agora apenas seguiremos a sua exposição acerca dos passos de prova da geometria euclidiana e a sua relação com a construção14. Cada prova de uma proposição apresentada por Euclides nos Elementos consiste em cinco (ou seis) passos: Primeiro temos a enunciação que é geral, como por exemplo: “Em todo triângulo dois lados quaisquer tomados juntos são maiores que o restante” (proposição.20). Depois da enunciação, aplica-se seu conteúdo a uma figura particular que se supõe delineável. No caso do exemplo anterior, Euclides continua: “Pois, seja ABC um triângulo, digo que os lados tomados juntos, de qualquer modo, são maiores que o restante. Os lados BA/AC (maiores) que BC; os lados AB/BC (maiores) que AC; e os lados BC/CA (maiores) que AB”. Essa parte da proposição chama-se ‘exposição’ ou ‘ecthesis’. A parte que se segue e que está relacionada à ecthesis é a ‘construção auxiliar’, que consiste em termos uma figura desenhada e, nela, traçarmos algumas linhas, pontos e círculos adicionais. No caso do nosso exemplo, a construção auxiliar determina: “prolongue-se uma reta do ponto BA a um ponto Z e faça AZ igual a CA e trace AC”. O quarto passo é a ‘apodeixis’ ou prova propriamente dita. Nessa prova, não se realizam mais construções, mas somente uma série de inferências concernentes à figura que fora introduzida na ecthesis e completada na construção anterior. Estas inferências utilizam-se de axiomas, proposições anteriores e propriedades das figuras, que se seguem da construção das mesmas. Depois de ter 14

Cf: HINTIKKA (1992) p.167. e HEATH, no comentário preliminar aos Elementos de Euclides.

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alcançado a conclusão desejada, por essa “prova” particular, Euclides volta ao enunciado geral e diz: “Portanto, todo o triângulo...” Seguindo esses passos da “demonstração” euclidiana, podemos relacionar com a concepção de construção de Kant, especialmente o segundo passo, a saber, a ecthesis. Quando ele concebe a demonstração matemática por construção e esta consistindo na exibição a priori das intuições envolvidas na prova, está concebendo a ecthesis e junto com ela, eventualmente, o passo seguinte, a construção auxiliar. Do mesmo modo que Euclides, Kant aceitará que em matemática se proceda sobre um particular, que exemplifique um conceito concretamente, e a conclusão obtida a partir desse se amplie a todos indivíduos subsumidos sob o conceito. Sobre isso, em contraposição ao conhecimento filosófico, Kant esclarece: Assim, o conhecimento filosófico considera o particular somente no universal, ao passo que o conhecimento matemático considera o universal no particular e até mesmo no singular, e não obstante a priori e mediante a razão. Isso ocorre de tal forma que, assim como esse singular está determinado por certas condições universais de construção, assim também o objeto do conceito, ao qual este singular corresponde somente como seu esquema, tem que ser pensado como universalmente determinado (CRP, B 742)

A identificação da ecthesis euclidiana com a construção de conceitos kantiana parece ser consistente a partir desta citação. Mas, em contrapartida, não se resume a ela. A exposição geométrica kantiana supõe a apresentação particular de uma intuição, que esteja pelo geral (conceito), mas não somente como um exemplo desse, e sim, enquanto uma intuição pura, produzida a priori na forma pura do espaço, pelo próprio processo de

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construção. Não basta que o conceito seja representado por um objeto particular, como uma palavra ou um símbolo qualquer, por exemplo, mas é preciso que lhe corresponda uma intuição pura, produzida pela construção. A identificação da maneira como Kant concebe as demonstrações da matemática com os passos euclidianos da prova pode ser percebida, contudo, Kant fornece uma justificativa filosófica a tais passos, que Euclides não faz. O problema não é que as concepções de Kant concordem ou não com as de Euclides, porém, se as noções kantianas justificam tais procedimentos. As questões com as quais Kant está envolvido dizem respeito à justificação dos passos demonstrativos, a quê os fundamenta. Ao justificar as demonstrações matemáticas pela construção de conceitos Kant garante realidade objetiva aos conceitos, ou seja, mostra que estes conceitos não são vazios. Mas além de mostrar a realidade objetiva dos conceitos, as intuições também são consideradas parte constituinte da demonstração, tal como na geometria euclidiana. Kant acreditava que prolongar linhas, comparar ângulos, etc., de modo sistemático, é demonstrar, mesmo sem apresentar seqüências formais paralelas aos desenhos. As demonstrações da matemática supõem a construção dos conceitos envolvidos. Se a construção não é possível, não será possível a demonstração, nem mesmo em geometria15. No caso da geometria, ao apresentar as figuras, conforme vimos anteriormente, realizamos a construção. As demonstrações que realizamos sobre as figuras (intuições), 15

Isso pode ser percebido no exemplo do conceito de “biângulo”, enquanto figura plana encerrada por dois lados. Se não precisássemos apresentar intuições correspondentes aos conceitos, esse conceito seria perfeitamente possível, dado que não é contraditório. Mas, como precisamos construir os conceitos, então não podemos aceitar o conceito de biângulo, já que não tem intuição que lhe corresponda. O conceito de biângulo é um exemplo de conceito vazio.

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são provas realizadas sobre intuições individuais e particulares, porém sua validade é universal. As demonstrações ocorrem sobre particulares, mas são estendidas como válidas universalmente para todos os casos, sob os quais tais particulares são subsumidos. Nas palavras de Kant:

Para a construção de um conceito requer-se, pois, uma intuição não empírica; conseqüentemente enquanto intuição esta última é um objeto singular, mas enquanto construção de um conceito (uma representação universal) nem por isso deve deixar de expressar, na representação, uma validade universal para todas as intuições possíveis que se subsumem no mesmo conceito. (CRP, B 741)

Como as figuras são concebidas como intuições, que podem ser desenhadas no papel e mostradas empiricamente, parece ser complicado falar em conhecimento universalmente válido a partir de provas sobre “desenhos” particulares. No entanto, essas figuras são representações intuitivas puras que são produzidas pela imaginação, porém representadas empiricamente através dos desenhos. As intuições puras da geometria, enquanto recortes particulares do espaço, podem valer universalmente para todas as figuras que caem sob o conceito que designa tal recorte. No caso de construir um triângulo, o desenhamos, a partir do recorte que produzimos a priori pela imaginação. Mesmo que a figura desenhada do triângulo seja irregular e particular, ela estará “no lugar” de todo

30

“triângulo” 16. As

intuições

da

geometria

são

consideradas,

por

alguns

comentadores17, como intuições que instanciam os conceitos, enquanto conseguem expressar intuitivamente todas as notas contidas no conceito. As figuras são instâncias de conceitos, na medida em que constituem exemplos desses conceitos. Desse modo, um círculo desenhado no papel é uma instância do conceito de círculo. Igualmente, uma coleção de objetos (de dedos, por exemplo), pode ser considerada uma instância de um dado número, que determina essa coleção. Diferentemente das intuições da geometria que instanciam os conceitos, os conceitos da álgebra não parecem ser instanciados. Conforme veremos, os conceitos da álgebra são representados por “sinais”18, os quais, de algum modo, permitirão a construção nesta área do conhecimento matemático. A distinção entre as construções da geometria (e supostamente da aritmética) com as construções da álgebra inicia quando Kant distingue construções ostensivas ou esquemáticas, para o caso da geometria, e construções simbólicas ou características, para o caso da álgebra. Essa será o objeto de estudo, do qual nos ocuparemos a partir de agora.

16

Apesar da construção acontecer de maneira completamente a priori, é necessário que as intuições construídas sejam expressas empiricamente, pois assim as provas realizadas com elas podem ser válidas objetivamente. Na “Resposta a Eberhard” Kant considera essa questão, numa nota: “Intentando empecer o mau emprego da expressão “construção dos conceitos”, tratada amplamente na “Crítica da razão pura”, onde se distingue antes domais nada, de modo suficiente, a forma distinta do procedimento da razão na matemática e na filosofia, espero que encontre serventia o que digo a seguir: em geral pode-se chamar construção a toda representação de um conceito que é feita pela produção espontânea de uma intuição que lhe corresponda. Quando é feita pela imaginação simplesmente, segundo um conceito a priori, chama-se pura (o matemático começa pelas demonstrações e para demonstrar as propriedades do círculo serve-se do mesmo modo do círculo que desenha na areia com o uso de uma vara, por irregular que redunde, como daquele desenhado pelo melhor dos calcografistas).” (Nota 3, p.24). 17 18

Cf: POSSY (1992).

Salientamos, neste ponto, que os termos “sinal”, “signo” e “caractere” serão utilizados como sinônimos. Por vezes, utilizaremos o termo “símbolo” como sinônimo desses também.

31

1.2. Construção simbólica ou característica na CRP

As construções realizadas na álgebra, segundo Kant, são diferentes das realizadas na geometria. O caso da álgebra mostra-se problemático, pois nela não temos nem intuições como as da geometria (figuras), nem temos uma seqüência temporal e de barras como parece ocorrer na aritmética19. No âmbito da álgebra temos uma espécie de nível mais geral, mais abstrato que o da geometria e o da aritmética, pois manipulamos sinais (signos). Cabe perguntar, então, como seriam as construções em álgebra? Como seria apresentar a priori intuições para a álgebra? Como seriam possíveis juízos sintéticos a priori na álgebra? Na CRP encontramos duas passagens (B 745 e B 762), nas quais Kant se refere a álgebra e da construção simbólica20. Vejamos essas passagens:

19

Com relação à aritmética a questão também é delicada, pois não temos as intuições produzidas a priori do mesmo modo que temos as figuras, mas podemos pensar nas intuições para os conceitos da aritmética (números e suas relações), como seqüências temporais ou de dedos e/ou barras, o que consistiria numa construção ostensiva. Com relação aos cálculos mais extensos, onde procedemos por algoritmos, poderíamos dizer, conforme a interpretação de Michael Young (1982), que estes estariam baseados em construções mais básicas que são as seqüências de barras e etc. Conforme nos sugere Lassalle Casanave (2001), essa interpretação pode ser problemática, dado que usar barras e/ou contar nos dedos poderia ser interpretada como uma outra maneira de usar uma notação e assim não haveria nada de intuitivo. Não exporemos tal problema, no entanto, por não se tratar do foco de nossa pesquisa, contudo a visão de Young com relação à aritmética poderá ser estendida também para a álgebra, como veremos no decorrer deste. 20

Essas passagens da CRP, tal como as demais citações dessa obra nesta dissertação foram feitas a partir da tradução brasileira do Professor Dr. Valério Rodhem de 1978, por tratar-se de uma das traduções mais indicadas da CRP para a língua portuguesa (por ser bem elaborada e bastante literal). Contudo, há diferenças bastante relevantes com a tradução portuguesa de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, editada pela fundação Calouste Gulbenkian. As palavras que aqui são usadas como “quantidades” são traduzidas por “grandezas”. Neste mesmo ponto, a tradução inglesa de Guyer também utiliza o termo “magnitude”. A palavra original no alemão é “Größe”. Na frase: “mas também a pura quantidade (quantitatem), como na álgebra;” a palavra do alemão, a qual é traduzida por álgebra é “Buchstabenrechnung”, que traduzida literalmente seria: “contagem com letras” ou “cálculo com letras”. Sabe-se, todavia, que essa palavra era utilizada na Alemanha, entre os matemáticos do século XVII, para indicar a álgebra, contudo poderia haver dúvida sobre se Kant teria realmente falado em “álgebra” ou se compreendia essa apenas como um procedimento e não como uma disciplina separada, conforme trataremos mais adiante.

32

Todavia, a matemática não constrói só quantidades (quanta), como na geometria, mas também a pura quantidade (quantitatem), como na álgebra; neste caso, abstrai completamente da natureza do objeto que deve ser pensado segundo um tal conceito de quantidade. Então escolhe uma certa notação para todas as construções de quantidades em geral (números, tais como adição, subtração, etc.) extração de raízes, e após também ter adotado uma notação para o conceito geral das quantidades segundo relações diversas das mesmas, segundo certas regras universais apresenta na intuição todas as operações produzidas e modificadas pela quantidade. Onde uma quantidade deve ser dividida por outra, a matemática compõe os caracteres referentes a ambas segundo a forma designadora de divisão, e assim por diante. Assim como a geometria o consegue por intermédio de uma construção ostensiva ou geométrica (dos próprios objetos), através de uma construção simbólica a matemática atinge paragens jamais acessíveis ao conhecimento discursivo mediante simples conceitos. (CRP, B 745)

Mesmo o procedimento da álgebra com suas equações, a partir das quais a verdade é produzida juntamente com a sua prova mediante uma redução, não chega a ser geométrico; trata-se, contudo de uma construção característica na qual se apresenta na intuição os conceitos inerentes aos sinais, principalmente aqueles que se referem à relação das quantidades - e que, sem nos determos em suas vantagens heurísticas, assegura todas as inferências contra erros pelo simples fato de pô-los à nossa vista. (CRP B 762). “Construir” em álgebra não pode significar o mesmo que em geometria, pois apresentar diretamente as intuições que correspondem aos conceitos nessa não pode acorrer da mesma forma que na geometria. No domínio da álgebra se procede por meio de caracteres e por isso a construção é simbólica. Mas não sabemos de que maneira os símbolos

33

permitiriam que pudéssemos construir os conceitos, seja no papel ou na imaginação. Os signos, cuja mediação é indicada nas citações, não podem ser considerados intuições correlativas aos conceitos como as figuras da geometria, eles são representantes lingüísticos dos conceitos e não nos parece que possam ser qualquer tipo de intuição, exceto em sentido indireto. Se pensarmos na exigência de que as intuições sejam puras (produzidas a priori) o problema parece ficar ainda maior. Pois os signos são elementos que estão “no lugar” dos conceitos nos cálculos e não instâncias dos conceitos, como é o caso dos desenhos da geometria. Podemos compreender que os sinais “representam” os conceitos, cujos cálculos envolvem, porém não compreendemos como podem ser “intuitivas” tais representações. Se pensarmos na sugestão kantiana, que já citamos acima, de que a matemática chega aos seus conhecimentos in concreto, por meio de representantes particulares de conceitos gerais, poderíamos compreender os signos algébricos como esses representantes particulares. Porém, o que não parece compreensível é em que medida tais signos seriam intuitivos e, ainda mais, a priori. Não podemos conceber que os signos sejam produzidos a priori nas formas puras da intuição (espaço e tempo). Os signos são “marcas” que, por uma convenção, são colocados no lugar dos conceitos. Se nos forçássemos a conceber os signos como intuições, então, o máximo que chegaríamos seria concebê-los como intuições empíricas, mas que, certamente, não correspondem a conceitos algébricos. Kant não explicita quê intuições corresponderiam aos conceitos da álgebra, nem como ocorre a construção nela. Ele apenas sugere que há construção de

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conceitos também na álgebra e que tal construção ocorre por meio de sinais, os quais estão inerentes aos conceitos. Porem não deixa claro o que considera por construção simbólica. Quando Kant se refere à escolha de uma notação e à fixação de regras para a manipulação dos signos, não nos parece que se faça presente qualquer elemento intuitivo a priori, mas sim apenas um sistema notacional, o qual não seria muito diferente do sistema da lógica, com os seus princípios e regras fixas 21. Na citação (B 745) em que fala sobre a escolha da notação, Kant explica que se escolhe um grupo de caracteres para as “quantidades em geral” e a partir disso se fixa um sistema de signos e regras, depois de fixados os parâmetros, para tratar dos conceitos através dos signos, e feitas as combinações, conforme este parâmetro, apresenta-se na intuição a conclusão a qual chegamos “...e após também ter adotado uma notação para o conceito geral das quantidades segundo relações diversas das mesmas, segundo certas regras universais apresenta na intuição

todas

as

operações

produzidas

e

modificadas

pela

quantidade.”(CRP, B 745). Em que consiste a apresentação na intuição das operações, que são produzidas por meio do sistema fixo de regras, fica obscuro. Poderíamos interpretar isso como se manipular simbolicamente fosse esquecer por quais conceitos estão os signos e combinar esses, até chegarmos a uma conclusão, que seria justificada pelo sistema de regras e dos caracteres previamente estabelecidos22. Isso é o que fazemos quando procedemos por algoritmos em cálculos aritméticos, por exemplo. Porém, se precisamos

21

Essa conclusão é alcança por Young (1982), objetado por Brittain (1992).

22

Tal como o pensamento simbólico de Leibniz, como no capítulo seguinte.

35

apresentar na intuição esse procedimento, não poderemos fazer algo mais que apresentar os próprios signos no papel. Acontece que essa apresentação seria empírica, o que não justificaria que seja efetivamente uma construção, no sentido de Kant, dado que para sê-lo é preciso que apresentemos a priori, as intuições correspondentes aos conceitos. Ao diferenciar o conhecimento matemático do filosófico, no inicio da Doutrina Transcendental do Método, Kant enfatiza o fato da matemática conhecer de modo sintético e completamente a priori, por meio da construção. Ao considerar que a filosofia conhece por meros conceitos, em contraposição à matemática, que conhece por construção de conceitos e ao declarar que “mesmo os procedimentos da álgebra com suas equações” (CRP, B745) chegam ao conhecimento por construção, Kant parece estar considerando algo de intuitivo acerca da álgebra. Se considerasse os procedimentos algébricos como uma maneira de conhecermos apenas via conceitos e signos, então não poderia afirmar que “através de uma construção simbólica a matemática atinge paragens jamais acessíveis ao conhecimento discursivo mediante simples conceitos”(CRP, B 745) . Se a álgebra não produzir intuições de modo a priori como a geometria, seu conhecimento será por “simples conceitos”, que não é o que afirma Kant. As palavras, que utilizamos na linguagem comum e em quase todos os outros campos do conhecimento, dentre eles o filosófico, também são signos. Porém, os signos usados na construção simbólica devem poder garantir aos conhecimentos obtidos através deles uma certeza maior que os conhecimentos por meras palavras,

visto que os conhecimentos

matemáticos são necessários, universais e a priori. Além disso, a manipulação com sinais da álgebra precisa, de algum modo, implicar

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aprioridade, pois, caso contrário, não seria construção. Mas, o que faz o conhecimento algébrico, onde operamos com signos no lugar dos conceitos, ser tão legítimo quanto os construídos ostensivamente pela geometria? Ou ainda, que diferença teria tal manipulação das manipulações tautológicas da lógica? O que garantiria que os conhecimentos da álgebra não fossem fundados unicamente no princípio de não-contradição e em alguns axiomas formais? O que garantiria que esses conceitos têm intuições a priori correspondentes e que é possível realizar construção a partir delas, ainda que por meio de sinais? Mesmo se fossemos conceber os próprios sinais, que Kant indica na citação, como as intuições que são exigidas pela construção, não resolveríamos o problema. A própria apresentação simbólica dos conceitos não pode ser a “apresentação” deles na intuição, pois se assim fosse, as intuições seriam empíricas e a matemática, para Kant, não está fundada nas mesmas. Os signos não podem ser as intuições (correspondentes aos conceitos) exigidas pela construção, pois além de serem empíricos, poderiam estar referidos a objetos puramente imaginários, ou inacessíveis à razão humana, conforme a terminologia de Kant.

Há, contudo, algumas indicações, por parte de comentadores de Kant, de como compreender o problema. Uma delas é que poderíamos tentar encontrar intuições puras para os conceitos da álgebra e aceitar que os signos estariam representando essas intuições, como um recurso metodológico. Essa interpretação será a interpretação sugerida por Shabel (1998), conforme veremos no próximo capítulo. Mas mesmo assim o problema não se solucionará completamente, pois não sabemos a que

37

intuições poderiam se referir os signos e as expressões algébricas. Além disso, Kant deixa claro que os sinais são inerentes aos conceitos, e não se refere, neste ponto, a intuições. A seguir examinaremos a literatura acerca da construção simbólica.

38

2. A CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA EM POLÊMICA Diante dos problemas gerados pela introdução da noção de construção na CRP muitos estudiosos de Kant tentaram elucidar e apresentar interpretações em relação à álgebra. A construção simbólica kantiana, em geral, foi tangenciada por muitos comentadores, sendo que poucos dedicaram maior atenção ao tema. A visão de Broad é de que Kant teria estendido a sua teoria da geometria à álgebra, de modo que não se deteve nas diferenças entre essas. Young apresenta uma interpretação para a construção simbólica em alguns casos da aritmética, as quais poderiam valer também para os casos da álgebra, principalmente se essa for concebida como uma generalização daquela. Lisa Shabel, de uma perspectiva diferente destes comentadores, com base em evidências históricas, propõe que tomemos as concepções kantianas de acordo com as concepções de matemática de sua época. Segundo ela, a partir de avaliações históricas é possível afirmar que, para Kant, a álgebra não era uma aritmética generalizada, senão um método para resolver os problemas matemáticos da geometria e da aritmética. Sendo assim, as construções simbólicas seriam intuitiva na medida em que nos remetessem a tais áreas. Essas tentativas e propostas de interpretação e reconstrução da noção kantiana de construção simbólica, assim como as de compreender a própria concepção de álgebra kantiana, serão considerados neste capítulo, no qual trataremos na primeira seção, das interpretações mais relevantes com relação à construção simbólica; e na segunda seção, da interpretação que enfatiza a concepção kantiana de álgebra.

2.1 As interpretações da noção kantiana de construção simbólica

Ao considerar a matemática e os seus métodos de conhecimento, Kant inaugura um modo próprio de conceber a matemática. Esse modo, porém, não foi muito aceito em sua época e ainda agora encontra controvérsias. Contudo, não são as oposições a suas teses que serão consideradas aqui, mas sim as tentativas de interpretação que foram oferecidas por alguns de seus comentadores. Broad é considerado um dos primeiros comentadores kantianos a reelaborar suas teorias acerca da matemática e apresentar uma leitura da noção de construção simbólica. Segundo ele, ao considerar a matemática, Kant pensou apenas nos procedimentos da geometria e os estendeu de

39

maneira forçada à aritmética e à álgebra. Assim, Kant não teria formulado uma teoria sobre a álgebra, mas apenas estendido sua visão sobre geometria a esse âmbito. Broad enfatiza que quando Kant se refere à álgebra parece estar mudando completamente o sentido do termo “construir na intuição”, pois ao tratar desta área não está se referindo ao mesmo tipo de procedimento que se realiza na geometria. Diferentemente das construções da geometria, Kant assume construções simbólicas para a álgebra e para os cálculos mais extensos da aritmética 23, pois nestes casos não há instâncias dos conceitos, mas apenas representantes indiretos: símbolos. Para Broad, Kant concebe as variáveis algébricas (“x”, “y”, ...) como signos puramente arbitrários para números quaisquer, sendo que cada signo é construído na medida em que é produzido pela imaginação conforme uma regra. Assim, Kant poderia ter pensado que a construção não precisava acontecer na intuição pura (pela imaginação transcendental), mas bastaria uma regra que permitisse a apresentação do conceito, ainda que simbolicamente, para que a construção fosse feita 24. A construção ocorreria pelo ato de apresentar o símbolo (signo), enquanto esse fosse pensado, mesmo que esse não fosse uma instância do conceito como são as figuras da geometria. Como todos os pensamentos estão submetidos à nossa estrutura espacial e temporal, isto é, às nossas formas puras da

23

A visão de que os procedimentos aritméticos realizados com números extensos são uma construção simbólica e não ostensiva também é defendida por Parsons (1992) e por Young (1992). 24

Essa consideração de Broad, de que basta a regra de construção para que a construção seja tida como realizada também foi observada por Winterbourne (em: Construction and the Role of Schematism in Kant’s Philosophy of Mathematics, 1990). Isso nos remete ao problema de que não podemos garantir que os juízos algébricos sejam sintéticos a priori. Usando uma palavra de Winterbourne, podemos dizer que a regra apenas mostra a “concreção” (concretion) dos conceitos que estão envolvidos na demonstração. Este tema não será considerado detalhadamente neste momento, mas voltaremos a ele no terceiro capítulo desta dissertação, quando avaliaremos escritos do próprio Kant, onde considera a possibilidade de forneceremos regras de construção a alguns conceitos matemáticos.

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sensibilidade, conforme os conceitos algébricos forem pensados já estarão subordinados à intuição, o que torna a construção possível. Broad acreditava que a álgebra para Kant era como uma aritmética mais geral e, com base nisso, assume que a construção simbólica é uma construção “de” ou “sobre” símbolos, da mesma maneira que é a construção de (ou sobre) um triângulo, por exemplo. A construção simbólica consistiria na apresentação de uma quantidade numérica qualquer, do mesmo modo que a construção ostensiva seria a apresentação de uma figura geométrica. No entanto, esta apresentação não garante a sinteticidade dos juízos algébricos, pois pode ser apenas uma mera manipulação simbólica. É importante ressaltar também, que Broad realizou comparações entre os escritos prévios de Kant e a CRP. Porém, deixa de considerar algumas mudanças da concepção e acaba gerando uma espécie de mescla entre as suas teorias criticas e pré-criticas25. Esta mescla, contudo, é decorrente de uma tentativa que é comum entre os comentadores deste tema em Kant, a saber, tentar adequar as teorias kantianas às matemáticas posteriores a ele, como as geometrias não-euclidianas, por exemplo. Hintikka não compartilha da tese de Broad de que não há teoria algébrica na filosofia de Kant da CRP. Hintikka apresenta a sua 25

A tese de Broad estaria mesclando teses críticas e pré-criticas nas suas interpretações de Kant é de Lisa Shabel (1998) e nos parece adequada. Para Broad, Kant estaria usando os termos “quantidade” (quanta) e “pura quantidade” (quantitas), como as áreas da matemática que tratam, no caso da aritmética, das “quantidades numéricas determinadas” e, no caso da álgebra, como tratando “das quantidades numéricas indeterminadas” , conforme os termos usados na Investigação. Mas interpreta que a aritmética constrói conceitos, conforme indicado na CRP, e não que manipula signos, como no texto de 1764. O problema é que: se Kant tivesse permanecido com a mesma concepção de álgebra e aritmética da fase anterior à CRP, então ele também deveria ter permanecido com a concepção acerca dos métodos destas. O que ocorre é que, se ele continua concebendo essas disciplinas como concebia anteriormente, então o correlato intuitivo exigido pela construção continua a não ser atendido e o problema em torno da construção simbólica apenas se amplia para além da álgebra, atingindo, agora, também a aritmética. Nós nos remeteremos a essas passagens do texto de 1764 no próximo capítulo desta dissertação.

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interpretação da filosofia da matemática de Kant partindo do pressuposto de que ele teria assumido a construção de conceitos como o modo próprio da matemática proceder, visto que a geometria euclidiana era tomada como o paradigma das demonstrações matemáticas. Segundo Hintikka, é muito natural que Kant assuma como método para a matemática a construção, dado que a geometria euclidiana não se fundamenta apenas em deduções lógicas e princípios, mas precisa traçar diagramas e figuras. Desenhar as figuras, como se faz na geometria euclidiana, corresponderia à apresentação das intuições exigidas pela construção de conceitos kantiana. A construção de conceitos é interpretada por Hintikka como a apresentação de representantes particulares os quais estão por conceitos que são gerais. As figuras são representações particulares dos conceitos, as quais produzimos independentemente da experiência. Hintikka escreve: “Construção, em outras palavras, equivale à transição de um conceito geral a uma intuição, que representa o conceito, contanto que isso se efetue sem recurso à experiência” 26. Segundo sua concepção, as intuições, que são apresentadas na construção, não têm como sua característica principal o fato de serem espacio-temporais e sim que são representações particulares que correspondem aos conceitos usados nas demonstrações. Hintikka escreve27:

26

Cf. Hintikka (1992) p.21. “Construction, in others words, is tantamount to the transition from a general concept to an intuition which represents the concept, provided that this is done without recourse to experience.” 27 “

Intuition is something you can put before your mind’s eye, something you can visualise, something you can represent to your imagination. This is not at all basic meaning Kant himself wanted to give to the word, however. According to his definition, presented in the first paragraph of his lecture on logic, every particular idea as distinguished from general concepts is an intuition. Everything, in other words, which in the human mind represents an individual is an intuition. There is, we may say, nothing “intuitive” about intuition so defined. Intuitivity means individuality”. (Cf. Hintikka 1992, p.23)

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Intuição é algo que se pode por diante dos olhos da mente, algo que se pode visualizar, algo que se pode apresentar na imaginação. De acordo com essa definição, apresentada no primeiro parágrafo das suas lições de lógica, toda idéia particular enquanto se distingue de conceitos gerais é uma intuição. Em outras palavras, tudo aquilo que na mente humana representa um indivíduo é uma intuição. Podemos dizer que não há nada “intuitivo” a respeito das intuições assim definidas. Intuitividade significa individualidade.

Hintikka também considera a idéia de que Kant já concebia o uso de intuições nas demonstrações da matemática na sua filosofia pré-crítica, ainda que não tivesse usado este termo. O elemento intuitivo, no sentido de individualidade, já presente nas teses kantianas anteriores seria o que justifica suas teses críticas em torno da matemática. Ele escreve 28: Kant acreditava que uma das principais peculiaridades do método matemático era a consideração de representantes particulares de conceitos gerais. Essa concepção foi apresentada ensaio précrítico do prêmio de 1764. Sua interpretação é totalmente independente da interpretação dos escritos críticos de Kant. Em particular, a formulação desta teoria kantiana pré-crítica não depende da noção de intuição. Segue-se, portanto, que a idéia de que o método matemático se baseia no uso de conceitos gerais in concreto, i.e., na forma de instâncias individuais, foi o ponto de partida das concepções kantianas mais elaboradas. (Hintikka, 1992, p.25)

28

“Kant did believe that one of the main peculiarities of the mathematical method is to consider particular representatives of general concepts. This view was presented in the precritical prize essays of the year 1764. Its interpretation is quit independent of the interpretation of Kant’s critical writings. In particular, the formulation of this precritical theory of Kant’s does not turn on the notion of intuition at all. Its follow, therefore, that the idea of the mathematical method as being based on the use of general concepts in concret, i.e., in the form of individual instances, was the starting-point of Kant’s more elaborate view on mathematics”. (Cf. Hintikka, 1992, p.25)

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O que Hintikka nos apresenta é uma espécie de outra concepção kantiana de “intuição”, a qual já estaria presente em seus escritos anteriores e ainda está presente na Doutrina Transcendental do Método. Esta parte da CRP, ainda que colocada após a Estética Transcendental, seria logicamente anterior a ela. Isso justificaria o recurso intuitivo das construções, porém intuição seria concebida apenas com a nota da individualidade e não mais com a da imediatez, a intuitividade perderia a conexão com a sensibilidade. Assim, no final da CRP encontra-se “intuição” no sentido pré-crítico e, por isso, a construção é justificada, seja usando figuras geométricas, seja usando signos, como é o caso da álgebra. A noção enunciada pré-criticamente, segundo Hintikka, é mais adequada com a intuição exigida à matemática na construção de conceitos, além de não trazer o problema do correlato intuitivo (sensível) aos procedimentos que utilizam signos. A construção por meio de sinais da álgebra passa a ser entendida como uma apresentação de caracteres, enquanto representantes particulares dos conceitos. A demonstração é realizada sobre estes caracteres e depois estendida como regra universal a todos os representantes daquela classe. Desse modo, se pudermos assumir que os signos que usamos na álgebra estão por números individuais, então poderemos assumir (trivialmente) que o conhecimento algébrico está fundado em intuições. Em outras palavras, o uso de diferentes representações individuais de conceitos gerais fundamentaria as verdades da álgebra. Ele escreve 29: 29 “

On other hand, if we assume that by ‘intuition’ Kant only meant any representative of an individual when he commented on arithmetic and algebra, a number of things, although not necessarily everything, become natural. If we can assume that the symbols we use in algebra stand for individual numbers, then it becomes trivially true to say that algebra is based on the use of intuitions, i.e., on the use of representatives of individuals as distinguished from general concepts”. (Cf. Hintikka, 1992, p.27).

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Por outro lado, se assumimos que por “intuição” Kant somente quis referir-se a qualquer representante de um indivíduo, ao fazer essas observações sobre a aritmética e a álgebra, algumas coisas se tornam naturais, ainda que não necessariamente todas. Se pudermos assumir que os símbolos que usamos em álgebra estão por números individuais, então se torna trivialmente verdadeiro dizer que a álgebra se baseia no uso de intuições, i.e., no uso de representantes de indivíduos enquanto distintos de conceitos gerais. (Hintikka, 1992, p.27) Hintikka acredita que quando combinamos símbolos algébricos, que estão por objetos numéricos (“a” e “b” por exemplo), com um símbolo funcional, (como o da soma “+”), criamos novos símbolos, os quais estão por outros objetos numéricos (“a+b” nesse caso) e essa formação de novos números consiste numa construção simbólica30. Em termos técnicos, Hintikka concebe que o intuitivo é o recurso a parâmetros. A interpretação de Hintikka parece resolver o problema em torno de como se constrói com sinais em álgebra. Porém, tal interpretação reconstrói a teoria kantiana de uma maneira que o próprio Kant não fez, pois não usou a noção de “intuição” na fase pré-crítica. Mas o problema maior não é apresentar Kant de maneira que não fora e sim que esta interpretação não resolve o problema principal: como são possíveis juízos sintéticos a priori em álgebra? em particular, não há garantia de que os conceitos da álgebra tenham realidade objetiva, ou seja, não há garantia de que não são vazios.

30 “

Then we can understand what Kant had in mind when he called algebraic operations, such as addition, multiplication, and division, constructions. (…) Theses expressions, obviously, stand for individual numbers or, more generally, for individual magnitudes, usually for individuals different from those for which a and b stood for. What has happened, therefore, is that we have introduced a representative for a new individual. And such an introduction of representatives for new individuals, i.e., new intuitions, was just what according to Kant’s definition happens when we construct something. The new individuals my bee said to represent the concepts ‘the sum of a and b’, ‘the product of a and b’, etc.” (Cf. Hintikka, 1992, p.27).

45

Também Parsons, tal como Hintikka, ainda que por argumentação diferente, levanta dúvidas a respeito de como entender a noção de “intuição” kantiana. Porém, se mostra contra a posição de Hintikka, porque ela não garante que os juízos da matemática sejam sintéticos a priori. Para Parsons, a imediatez e a sensibilidade das intuições não podem ser desconsideradas nas provas matemáticas. Na CRP, quando Kant sugere a construção simbólica para a álgebra, segundo Parsons, está considerando algumas intuições “análogas” aos conceitos utilizados nas demonstrações. A construção simbólica, desse modo, é concebida como uma construção com caracteres que são, de algum modo, análogos aos conceitos. Tal como Hintikka, Parsons parte da distinção entre intuições e conceitos. Os conceitos são gerais e subsumem intuições, que são particulares e sensíveis31. Para que os juízos matemáticos sejam sintéticos a priori, os conceitos precisam ser construídos a priori na intuição. Tal produção deve respeitar o critério de singularidade (enfatizado por Hintikka) e também o critério de “imediaticidade” ou “imediatez” (immediacy criterion)32, o qual garantirá o caráter sensível das intuições. Parsons lembra que na matemática, contudo, não somos afetados pelos objetos, mas os produzimos como uma espécie de “insight” na intuição pura. A produção destes objetos acontece na medida em que as intuições são produzidas, que ocorrem os insights. Na geometria a produção das figuras dá-se de modo a priori nas formas puras do espaço, o que caracteriza a construção ostensiva. Mas na álgebra, onde a construção é 31

Ele afirma que esta distinção kantiana entre intuição e conceito traz alguns problemas, devido a sua tradição lógica de não conhecer as noções de “termo geral” e “termo singular”. 32

“Another seems to be the absence of the immediacy criterion in the Logic and the fact that Kant makes remarks on concepts which seem to exclude essentially singular concepts and thus to imply that all singular representations are intuitions.” (Parsons, 1992, p.45)

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simbólica, não se sabe o quê são tais insights. É importante ressaltar que Parsons não faz muitas referências a álgebra, mas parece concebê-la aos moldes de Hintikka, como uma aritmética generalizada (mais abstrata). Por isso, suas considerações dizem respeito aos procedimentos da aritmética, mas admitem uma ampliação à álgebra. Para Parsons, os cálculos mais extensos da aritmética se dão por construção simbólica e não por construção ostensiva. Na aritmética encontramos sistemas simbólicos (de numerais

arábicos,

romanos,

com

letras,

etc.),

que

apresentam

individualmente os conceitos, o que respeita o critério da singularidade exigido às construções, mas não lhes assegura a aprioridade. Segundo Parsons, a exigência kantiana da construção (exibição a priori das intuições correspondentes aos conceitos) mostra a individualidade dos conceitos mas também a existência dos mesmos. Ele escreve 33: A visão de Kant era de que é pela construção que os conceitos envolvidos são desenvolvidos e a existência dos objetos matemáticos que caem sob eles é mostrada. Embora nós não precisemos considerar este teorema como implicando ou pressupondo que há triângulos, Kant considera uma proposição geral como vazia, como conhecimento não genuíno, caso não houver nenhum objeto para o qual ela se aplica. Neste exemplo, só a construção de um triângulo pode nos assegurar isto. Aparte disso, suposições de existência adicionais são usadas no curso da prova, no exemplo de A 716/ B 744, de extensões de linhas e de paralelas. (Parsons, 1992, p.60)

33 “

Kant's view was that is by this construction that the concept involved are developed and the existence of mathematical objects falling under them is shown. Although we need not regard this theorem as implying or presupposing that there are triangles, Kant regarded a general proposition as empty, as not genuine knowledge, if there are no objects to which it applies. In this instance only the construction of a triangle can assure us of this. Apart from that, further existence assumptions are used in the course of the proof, in the example of extensions of lines and of parallels” (Parssons, 1992, p.60).

47

Para Parsons, uma maneira razoável de entender a exibição intuitiva a priori, que Kant sugere às provas matemáticas, é concebê-la como uma pressuposição de existência dos objetos que são subsumidos pelos conceitos34. “A reconstrução mais plausível de Kant seria, em minha visão, tomar a construtibilidade de um conceito como um tipo de existência possível de um objeto (não-abstrato) que cai sob o conceito” (Parsons, 1992, p.74). Desse modo, construir um triângulo, por exemplo, é mostrar que existe um objeto que é subsumido pelo conceito de triângulo, é mostrar que tal conceito não é vazio (em termos kantianos). Com relação à álgebra, porém, isso fica mais complicado. Para garantir a existência dos objetos algébricos

é

preciso

mostrá-los

(construí-los)

individualmente

e

sensivelmente na intuição. Por isso, Parsons sugere o que chama de “critério da imediaticidade”35, “entendendo imediaticidade como algum tipo de presença direta” (Parsons 1992, p.71). Conforme Parsons, haveria uma síntese imediata segundo certas regras entre os conceitos envolvidos pela álgebra. A imediatez desta síntese mostraria a presença real (existência) das intuições que caem sob os conceitos. Assim, o critério de imediaticidade assegura que as intuições matemáticas são sensíveis, dado que a imediatez as faz presentes

34

“The most plausible reconstruction of Kant would be, in my view, to take constructibility of a concepts to be a kind of possible existence of a (nonabstract) object falling under the concept” (Parsons, 1992, p.74) 35

O critério de imediaticidade pode ser encontrado na CRP, quando Kant considera os axiomas matemáticos, os quais são definidos na Doutrina Transcendental do Método (CRP, B 760) como imediatamente certos porque são gerados sem precisar de mediação alguma. Parsons escreve: “I was treating the concept of intuition as from the beginning epistemic. Even if Howell is right about the strict definition of the immediacy of intuition, there is underdoubtedly an epistemic sense of immediacy in Kant’s writings, at stake when he says that mathematical axioms are immediately certain (A 732 = B 760). I doe not see how to get around regarding some link between the immediacy of intuition and this epistemic sense as an assumption of Kant’s, whether or not it was directly embodied in the way he understood the word “immediate” in the definition of intuition.” (Parsons 1992, p.71)

48

(embodied)36. Tal critério também garante a sinteticidade da álgebra e a liberta da possível identificação com a lógica, já que a lógica também é evidente segundo suas regras, mas não realiza síntese e, por isso, é analítica. A imediaticidade diferencia a álgebra da lógica e garante a construção naquela. Parsons também considera o ensaio de 1764 em comparação com a CRP. No referido ensaio já estaria presente a concepção de sensibilidade para os procedimentos matemáticos, mas não haveria a presença de intuições, como sugerira Hintikka. O que estava presente nas concepções kantianas preliminares à CRP, segundo Parsons, era a conexão com a sensibilidade (espaço-tempo), pois quando Kant concebeu as figuras e as notações como signos estava exigindo uma espécie de representação sensível dos conceitos. O algebrista, ao manipular com caracteres de acordo com algumas regras, estava atuando de acordo com alguma representação sensível. Parsons escreve 37: “Estas passagens mostram que existia na concepção de Kant uma conexão entre sensibilidade e o caráter intuitivo da matemática antes que ele desenvolvesse a teoria de espaço e do tempo na Estética. Porém, diferentemente do trabalho posterior, nenhuma inferência é tirada desta conexão, para uma limitação da aplicação da matemática a objetos sensíveis, nesta fase”. (Parsons, 1992, p. 65) Ainda que muito diferentes, contudo, acreditamos que ambas essas interpretações, de Hintikka e de Parsons, têm um intuito em comum: 36 37

Com a ressalva de Parsons de que seja apenas do ponto de vista epistemológico kantiano.

“These passages show that a connection between sensibility and the intuitive character of mathematics existed in Kant`s mind before he developed the theory of space and time of the Aesthetic. However, unlike in the later word, no inference is drawn at this stage from this connection to a limitation of the application of mathematics to sensible objects”. (p.65)

49

explicar a construção simbólica kantiana com argumentos que o próprio Kant não usou, e assim, torná-la compreensível e plausível no contexto da epistemologia matemática atual. O problema é que atribuem a Kant concepções que ele ainda não tinha antes da CRP e mantêm concepções que ele já não faz mais referência nesta obra. Um outro comentador que tenta adequar a concepção kantiana de matemática com a matemática atual, especialmente com relação à álgebra é Brittain38 (1992). Para ele, Kant se referiu à distinção entre geometria e álgebra porque distingue os objetos destas áreas. Brittain realiza uma espécie de análise da matemática tal como a conhecemos hoje e tenta detectar o que ainda há de intuitivo e o que é meramente “calculo” (calculation). A sua conclusão é que mesmo a álgebra é intuitiva, dado que a intuitividade é assegurada pela possibilidade da determinação completa do objeto. Quando Kant requer a construção a partir da exibição das intuições está exigindo que os objetos da matemática sejam “determinados completamente”. Contudo, não são os objetos individuais que permitem a determinação completa nos raciocínios algébricos (não são os objetos matemáticos que são determinados completamente pela álgebra), mas sim as propriedades das estruturas relacionais dos objetos. Assim, o raciocínio algébrico pode ser tão sintético e intuitivo quanto o da geometria, dado que pode fornecer a determinação completa dos objetos, desde que tal determinação não seja apenas por uma análise conceitual, mas na intuição espaço-temporal. Na mesma linha destas discussões, que se referem muito mais à aritmética do que à álgebra, ainda encontramos Michael Young (1982), 38

Cf. Brittain, 1992, p. 315-339,

50

que realiza uma leitura bastante original com relação à construção simbólica. Assim como os comentadores que acabamos de considerar, Young acredita que a álgebra é uma aritmética geral e que a construção simbólica aplica-se tanto a essa, quanto àquela. Mas, diferentemente do que vimos até agora, Young irá sugerir que na aritmética podemos encontrar os dois tipos de construção, as simbólicas e as ostensivas. A interpretação de Young sobre a concepção de matemática de Kant, especialmente a de construção simbólica, é de que nos casos mais simples da aritmética realizamos construções ostensivas e nos casos mais complexos construções simbólicas. Os numerais são uma espécie de símbolos para os conceitos dos números, porém estes números têm correspondência intuitiva (a priori). Construimos os conceitos da aritmética (exibimos suas intuições) a partir da apresentação das seqüências numéricas, com barras ou dedos conforme o próprio Kant sugere39. A apresentação das seqüências numéricas (assim como a operação de soma, enquanto a justaposição de barras) é a construção ostensiva nos procedimentos aritméticos mais simples. Essa acontece pela atividade que Young chama de “enumeração”, que é um “ato de contar” seqüencialmente as quantidades numéricas (como a contagem com dedos, por exemplo). Nos casos de cálculos aritméticos mais complexos a atividade não é mais de enumeração, mas de cálculo. Quando operamos com quantidades muito grandes, quando procedemos por algoritmos, calculamos com signos e a atividade então é simbólica. Os vários sistemas de numerais, arábicos, binários e os cálculos com letras da álgebra, são sistemas que nos permitem realizar o “ato de calcular” que caracteriza a construção simbólica. O 39

Cf. CRP, B15-16.

51

cálculo da construção simbólica, contudo, acontece a partir de regras fixas e operações com os próprios signos 40. Todavia, a visão de que a construção simbólica consiste num cálculo com signos segundo certas regras, não garante nem a sinteticidade nem a intuitividade dos juízos provenientes de tais construções. Por isso, Young propõe uma alternativa: os cálculos meramente simbólicos, dos casos mais complexos da aritmética, devem ser embasados em procedimentos mais simples da aritmética, a saber, em enumerações. As construções simbólicas são respaldadas por construções ostensivas que lhes são preliminares e subjacentes. Desse modo, a construção simbólica é justificada pela construção

ostensiva,

os

cálculos

simbólicos

são

fundados

na

enumeração41. Assim, a interpretação de Young respeita o fundamento ostensivo da aritmética (já sugerido por Kant) e justifica os procedimentos simbólicos da mesma. Porém, não é claro como é possível embasar cálculos complexos, realizados simbolicamente, em enumerações42. Do mesmo modo, há dúvidas quanto às demonstrações por construção simbólica na álgebra. 40

Cf. Young (1992), p.31: “I ground the arithmetical judgment on the noted outcome of this procedure. It would be a mistake, however, to say that I base my judgment merely on an observation –the observation, say, that I find myself saying ‘twelve’ as I finish. For the situation here is analogous to that in calculation. In both cases we have activities which are governed by rules, so that what I do on a particular occasion counts as a performance of activity in question insofar as it accords with the relevant rules. In neither case, accordingly, do we merely observe that a certain outcome has eventuated. Rather, we observe that this outcome has eventuated from a proper performance, and thus that it is the outcome of the activity in question –the calculation in one case, the enumeration in the other”. 41 42

Cf. Young (1982), p 36.

In Lassalle Casanave, aparece a indicação de um problema específico da aritmética com relação a essa interpretação de Young. Segundo ele, a própria enumeração poderia ser concebida como mais um sistema simbólico, dentre os sistemas de numerais arábicos, binários, etc. Ele escreve: “Pero en relación con este punto tenemos una reserva: las secuencias de barras bien pueden ser concebidas como otra notación para los conceptos numéricos; el enumerar no sería más que otro cálculo. Luego, la atribución de carácter ostensivo, i.e., intuitivo, a las últimas, no pasaría de explotar, en principio de manera inaceptable, una ambigüedad, a saber, que en tal caso los signos también serían instancias de los conceptos numéricos correspondientes” (Lassalle Casanave, 2002, p.5)

52

Além de não parecer claro que a concepção kantiana de álgebra é realmente a de uma aritmética mais geral, o cálculo com signos por regras fixas não garante a sinteticidade dos juízos envolvidos nele. As interpretações aqui apresentadas como estas tentativas de explicar a construção simbólica têm um problema em comum: não concebem a álgebra segundo a concepção vigente na época de Kant. Conforme veremos na seção que segue, a álgebra até o século XIX não é concebida como uma aritmética geral, nem como uma ciência autônoma. Além disso, conceber que a construção simbólica é a própria apresentação dos símbolos, enquanto as intuições que a construção requer, parece ser inconsistente com a visão kantiana de conhecimento matemático. Enquanto as figuras da geometria exibem as intuições nas provas geométricas, os signos são arbitrários e, diferentemente das figuras, não instanciam os conceitos. Além disso, não há como estabelecer que os raciocínios via símbolos são intuitivos, dado que não se diferenciam de outros signos, como as palavras, por exemplo. Em linhas gerais, cabe perguntar se a manipulação simbólica garante a sinteticidade dos juízos de conhecimento da álgebra, assim como se garante a intuitividade do procedimento. Se a construção simbólica for concebida estritamente pela definição kantiana: “apresentação a priori das intuições que correspondem aos conceitos”, então ela não pode realizar mera manipulação por meio de signos e assegurar juízos sintéticos a priori em álgebra. Contudo, elaborar outra concepção de “construção” ou de “intuição” não parece muito coerente com as concepções de Kant. Estas leituras, portanto, não parecem satisfatórias com a noção de conhecimento matemático introduzida por Kant na CRP. Porém, a interpretação de Lisa

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Shabel (1998), que veremos agora, parece mais coerente com as teses kantianas. Tal interpretação, por ser mais detalhada e consistir numa opinião que nos parece condizente a postura deste trabalho passa a ser avaliada separadamente.

2.2 A concepção kantiana de álgebra Lisa Shabel nos fornece uma leitura das referências de Kant à álgebra e avalia os seus comentadores que consideram tal tema. Para ela, o maior problema que há nas interpretações dos comentadores é que concebem a álgebra diferentemente do que Kant a concebeu. Shabel explica que os métodos da aritmética e da álgebra do século XVIII não eram únicos e unificados, como são atualmente, e cabe a nós descobrir qual método Kant utilizava em suas aulas e estudos. No seu artigo “Kant on the ‘Symbolic Construction’ of Mathematical Concepts” (1998), Shabel se dispõe a realizar uma apresentação de Kant, onde avalia a sua visão sob o prisma das práticas matemáticas do século XVIII. Ela conta que três anos antes da publicação da segunda edição da CRP Kant ministrou um curso (de nível colegial) de matemática e física. Neste curso eram utilizados três conhecidos manuais de matemática da época, escritos por Christian Wolff43. Nos referidos manuais a álgebra era concebida como um método para auxiliar as outras áreas da matemática e não uma disciplina autônoma. A fim de realizar uma investigação acerca do que Kant realmente concebera por álgebra, Shabel investiga as teorias matemáticas seguidas por ele e as apresenta juntamente com considerações próprias. No referido 43

Estes manuais são: “Anfangs-Gründe aller Mathematischem Wissenschaften” (Wolff, 1773); “Auszug aus den anfangs-gründen aller Mathematischen Wissenschaften” (Wolff, 1772); “Elementa Matheseos Universae” (Wolff, 1968).

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artigo, Shabel apresenta, em cinco seções, a sua visão de como Kant entendia a construção simbólica e o que concebia por álgebra 44. Não reconstruiremos passo a passo o artigo de Shabel, porém enfatizaremos os aspectos que se fazem relevantes aos nossos objetivos. Segundo ela, a construção de conceitos deve ser concebida tal como fora enunciada por Kant, isto é, como exigindo exibição a priori das intuições que correspondem aos conceitos. As interpretações de que a construção simbólica deve ser concebida como apresentações dos próprios símbolos, ou de que devemos reinterpretar o termo “intuição” não devem ser consideradas, dado que apresentam Kant inadequadamente. As considerações de Shabel sobre os comentadores mais conhecidos de Kant, dentre eles, Hintikka, Parsons e Broad, que apresentamos anteriormente, é de que para eles Kant faria uma distinção precisa entre construção ostensiva, própria da geometria e construção simbólica, própria da álgebra e da aritmética (dado que essas seriam a mesma em graus de abstração diferentes). Ela explica que se formos considerar os textos de Kant não encontramos nenhum exemplo onde ele indique que a álgebra poderia ser um tipo de aritmética. Porém, muito pelo contrário, Kant afirme que as construções da aritmética são ostensivas, na medida em que podem 44

De maneira resumida, as cinco seção apresentadas por Shabel são: Primeiramente, são introduzidas passagens nas quais Kant se refere à álgebra, expondo o contraste de métodos entre os conhecimentos da filosofia e da matemática, que já citamos no primeiro capítulo. Enfatiza o fato de Kant ter criticado a tendência dos matemáticos a assumir a matemática como modelo para as outras ciências. Em segundo lugar, Shabel examina as leituras de alguns comentadores kantianos com relação às referencias à álgebra e mostra os equívocos destas reconstruções. Segundo ela, tais comentadores, além de não respeitarem a teoria kantiana do conhecimento matemático, fazem observações sobre o texto de Kant fundamentados numa concepção de álgebra que lhe é posterior. Na terceira parte do artigo, encontramos as principais teses presentes nos manuais de Wolff. Também encontramos considerações sobre uma área da matemática chamada “a aplicação de álgebra para a geometria”, cuja inspiração é cartesiana. Neste domínio, segundo Shabel, é possível mostrar e aplicar “o método de construir equações”. No quarto tópico Shabel reapresenta as passagens da CRP referentes à álgebra e as re-interpreta segundo a nova visão de álgebra, que apresenta na seção anterior. Na conclusão do artigo mostra a importância da concepção de álgebra kantiana para a sua noção de construção simbólica e para a coerência de todo o sistema kantiano.

55

enumerar (contar) com barras e/ou dedos, e etc45. Além disso, como já enfatizamos, os métodos da aritmética e da álgebra do século XVIII não são únicos, como atualmente. Por outro lado, Shabel considera que as tentativas de reconstruções das teses kantianas, por parte dos já referidos comentadores, são deficientes com relação à sugestão de que a própria exibição dos signos seja a construção simbólica, pois esta postura é completamente inconsistente com a visão kantiana de conhecimento matemático. Essas leituras, portanto, são insatisfatórias para a exigência da construção kantiana e não asseguram que os juízos da matemática sejam sintéticos a priori, já que as “exibições” poderiam ser meras manipulações simbólicas segundo regras. Em contraposição a estas “re-construções”,

Shabel

sugere,

como já

salientamos, que é mais satisfatório avaliar a concepção de álgebra do século XVIII, passa assim, a considerar o pano de fundo da matemática e das práticas dos matemáticos do referido século 46. Resumidamente, segundo Shabel, para Wolff a álgebra é um método de resolução de problemas matemáticos mais básicos, a saber, de geometria e aritmética. Sua concepção de número é determinada por comprimento de linhas, comensurabilidade e incomensurabilidade. A matemática é a ciência que tudo pode medir; a aritmética a ciência do número, ou do contar; o número se refere à unidade. Números assentam sobre alguns grupos de coisas individuais, de tipo particular, com respeito a unidades préselecionadas. Os números são melhores expressos por linhas retas, na medida em que se dá uma unidade u (de valor 1) a uma reta qualquer e, por 45 Cf. CRP B15-16 46

Apresentaremos resumidamente as considerações de Shabel acerca destes manuais por se tratar de um tema extremamente técnico, cuja relevância é mínima para que se examine em detalhe.

56

justaposição de retas se constitui mais de uma unidade. Deste modo, Wolff define número racional como aquele que é medível e irracional como o que não é medível. No plano da geometria, a ciência das magnitudes extensas, as regras são provadas por procedimentos de medição, comparação de segmentos de linhas, construção de objetos com um compasso, etc. Os objetos da geometria podem ser quantitativamente comparáveis (como iguais ou desiguais) e qualitativamente comparáveis (como similares ou não-similares). Além disso, Wolff assume que a geometria euclidiana apresenta como os teoremas são fundados em axiomas, definições, postulados e outras proposições previamente provadas. Para Wolff a “arte analítica” ou “análise” é, em geral, um método para resolver certos tipos de problemas matemáticos 47, podendo ser finita ou infinita. A álgebra é considerada um tipo de análise finita, e, dessa maneira, um método para resolver problemas de geometria e aritmética, como já dissemos. Essa concepção de álgebra, contudo, não é uma tese particular de Wolff, mas provém das práticas dos matemáticos do século em que viveu Kant. Shabel explica que tais práticas eram concebidas com o título de “aplicação de álgebra para a geometria”48. Tais práticas, em certo sentido, expressam o programa cartesiano de geometria, o qual propõe a expressão de problemas geométricos em equações algébricas. Para Wolff bastava o esquema geométrico da figura para a construção ostensiva

47 48

Essa noção, ressalta Shabel, não tem a ver com a noção atual de geometria analítica.

Com relação a tal tópico, Shabel se refere a um livro do século XVIII de um matemático francês chamado Guisnée, o qual aplica o método cartesiano primeiro para a geometria, mas também usa conceitos da aritmética. De modo bastante resumido, Shabel apresenta uma construção de um triângulo retângulo segundo os moldes de Wolff, conforme a construção de equações quadráticas, que não apresentaremos aqui.

57

coexistir com a construção simbólica 49. Porém, ele não considera a equação como “solução” do problema, pois somente a construção geométrica poderia ser assim considerada50. A pergunta que se segue disso, conforme Shabel, é por que Wolff não considera a equação algébrica como a solução do problema? A resposta que encontra é a de que a simbolização das quantidades é apenas um passo heurístico para a solução de um problema particular. A simbolização, enquanto tal, não é parte do problema dado, mas se segue do problema particular. O problema particular traz (provê) uma regra geral para uma determinada construção. Nesta construção, cada regra é inferida por analogia de uma solução de um problema particular. Assim, não há uma forma (ou fórmula) geral para uma equação, o que há é uma regra que mostra como uma construção geométrica acontece, dados apenas alguns segmentos de linha. Com base neste panorama geral da matemática segundo Wolff, Shabel considera a terminologia kantiana, na qual cada objeto particular e individual pode exibir o conceito, via intuição, e expressar uma validade universal para toda a intuição possível que cai sob o conceito dado. Seguese a avaliação das duas passagens da CRP que se referem à álgebra, apresentadas no primeiro capítulo, sob o prisma da matemática dos manuais de Wolff. Conforme Shabel, há dois usos por parte de Kant do conceito de quantidade (ou magnitude), a saber “quanta” e “quantitas”, as quais Kant se refere em B 745, que citamos anteriormente. O termo “quantitas” é 49

Neste ponto Shabel faz uma observação, de que é importante deixar claro que Wolff ainda não concebia uma correspondência necessária entre equações aritméticas e constantes geométricas como se concebe hoje. Para ele, a álgebra era um método (heurística) para resolver geométricos e aritméticos. 50

Shabel explica que no caso da aritmética, do mesmo modo que em geometria , onde se supõe um segmento de linha como a unidade, se supõe um tipo de objeto particular sob o qual todos os outros podem ser contados.

58

utilizado para caracterizar a ciência que trata da pura quantidade, a saber, a álgebra. “Quantitas” designa “quantidades que têm quantidades”, ou seja, é a atribuição de tamanho a um objeto que tem um determinado tamanho. Tal termo também se refere ao puro conceito de quantidade na medida em que aplica a categoria de quantidade a um objeto particular. O termo “quanta” que é atribuído à “ciência das quantidades determinadas” designa “um objeto de um determinado tamanho” (que no contexto wolffiano pode referir-se tanto à aritmética quanto à geometria). A partir disso, se considerarmos a possibilidade de construirmos um quantitas, ou seja, de construirmos em álgebra, devemos conceber esta construção como realizada somente quantitativamente (sem o qualitativo), sem determinações de tamanho, ou seja, sem forma (sem figura). Por outro lado, construir um quanta é apresentar as intuições quantitativa e qualitativamente, ou seja, com tamanho determinado e com forma (com figura). Sendo assim, a construção de um quanta seria a construção geométrica ou ostensiva; enquanto a construção de um quantitas seria a construção simbólica. Todavia, não sabemos como estas “quantidades” se relacionam e como Kant concebe a álgebra. A sugestão de Shabel é de que, se tratarmos de modo indeterminado as quantidades que são determinadas, ou seja, se atribuirmos tamanho a um objeto que já tem um certo tamanho (quantitas a um quanta), então estaremos operando sobre intuições que já foram produzidas na intuição e agora estão sendo consideradas algebricamente. Estaríamos nos referindo algebricamente a problemas aritméticos e/ou geométricos. Assim, a tese de Shabel, de que Kant concebia a álgebra, apoiado nos manuais de Wolff, como uma heurística para resolver problemas

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aritméticos e geométricos, se evidencia.. Ela escreve 51: “Eu mostro que a álgebra não foi uma disciplina separada, com seus próprios objetos de investigação. Antes, foi concebida como um método de raciocinar (razoning) sobre os objetos da aritmética e da geometria, e foi assim usada como um instrumento para resolver problemas da aritmética e da geometria”. (Shabel,1998, p. 590) Seguindo a interpretação de Shabel, a segunda passagem da CRP sobre a álgebra (B 762): “mesmo o procedimento da álgebra com suas equações, a partir das quais a verdade é produzida...” pode se fazer bastante compreensível. Quando Kant se refere ao “procedimento” da álgebra poderíamos conceber que é uma indicação de que pensa as construções simbólicas como construções realizadas por um método (procedimento) que é simbólico, mas não que a exibição a priori das intuições seja simbólica. A álgebra poderia ser concebida como um método que expõe, através de símbolos (signos), as construções ostensivas da geometria e da aritmética. Assim, segundo a visão de Shabel, a construção simbólica passa a ser uma representação simbólica de um raciocínio geométrico ou aritmético, cujos conceitos são construtíveis. Além disso, a construção simbólica, enquanto uma heurística para resolver problemas geométricos e aritméticos elementares, teria uma vantagem: ser mais clara e menos extensa que a construção puramente geométrica. (ostensiva) 52. A conclusão que Shabel 51

“I show that algebra was not conceived as a separate mathematical discipline with its own object of investigation. Rather, algebra was conceived as a method of reasoning about the objects of arithmetic and geometry, and was thus used as a tool for solving arithmetic and geometric problems”. (Shabel, 1998, p.590) 52

Essa opinião de Shabel parece não poder ser evidenciada no texto da CRP, pois Kant não faz referência alguma de que esse uso de símbolos, enquanto troca dos conceitos por eles, fosse vantajosa com relação às construções ostensivas, apenas declara que ainda é vantajoso com relação ao conhecimento com meros conceitos, que é o caso do conhecimento filosófico. Porém, no texto pré-crítico que apresentaremos no

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chega e que se configura como uma postura forte e inovadora com relação ao tema, é a de que a distinção kantiana entre construção simbólica e construção ostensiva não se refere a tipos distintos de construções, mas sim que a construção simbólica é uma simbolização das construções ostensivas. Shabel escreve53: “Eu concluo que Kant não pretende extrair uma distinção rígida entre construção simbólica, por um lado, e construção ostensiva ou geométrica, por outro. Antes, uma construção “simbólica” é, para Kant, aquela que simboliza uma construção ostensiva”. (Shabel, 1998, p591) Acreditamos que a interpretação de Shabel, de conceber a filosofia da matemática de Kant sob o prisma do contexto de sua época, permite que as construções algébricas justifiquem juízos sintéticos a priori, assim como os distinga dos de conhecimento filosófico. A vantagem de sua leitura é que a teoria do conhecimento algébrico de Kant faz-se coerente com a natureza geral do conhecimento matemático da CRP. Assim, Kant estaria conservando a manipulação com signos no âmbito do algébrico e dando um lugar à álgebra no seu sistema da CRP. A pergunta que fica, no entanto, é em que consiste exatamente este uso de sinais. De certo modo, podemos identificar a interpretação de Shabel, com as devidas ressalvas, com a interpretação de Young. Todavia, a leitura dela é mais radical, na medida em que não concebe que haja diferença entre os tipos de construções, mas apenas uma representação simbólica das construções ostensivas. No entanto, a avaliação de Shabel não considera a próximo capitulo poderemos encontrar indícios de que ele pensava haver esta vantagem, apesar de não sabermos se isso se manteria ou não nas suas concepções posteriores. 53

“I conclude that Kant did not intend to draw a strict distinction in kind between symbolic construction on the hand and ostensive or geometrical construction on the other. Rather, a "symbolic" construction is, for Kant, that which symbolizes an ostensive construction”. (Shabel, 1998, p. 591)

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comparação do texto pré-critico com a CRP e nem a relação deste com as concepções de Leibniz sobre o procedimento via signos, cuja relevância, consideramos importante.

Mais cuidadosas, ou com menos cautela, as tentativas de resolução do problema da construção simbólica fornecem, na maioria das vezes, reconstruções e re-elaborações da teoria do conhecimento matemático de Kant. Muitas vezes, porém, como Shabel bem notou, esquecem do contexto no qual Kant se encontra. Além disso, os escritos prévios de Kant e de filósofos nos quais ele se inspirou também foram pouco considerados, principalmente Leibniz que inaugurou a noção de “conhecimento simbólico”, que é o conhecimento próprio da matemática e se assemelha muito com a idéia de manipulação simbólica kantiana, especialmente do escrito anterior à CRP, a saber, na Investigação acerca da evidência dos princípios da teologia natural e da moral. Com vistas a isso, passamos a uma exposição das concepções de Leibniz sobre a matemática, especialmente ligadas à idéia de conhecimento simbólico e do texto pré-crítico de Kant, o qual se assemelha com a visão de Leibniz.

62

3. CONHECIMENTO SIMBÓLICO, CONHECIMENTO POR CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA E ÁLGEBRA Neste capítulo, apresentaremos, na primeira seção, as principais idéias de Leibniz acerca da matemática, nos centrando nos aspectos relacionados com a Investigação. Leibniz defende que todo raciocínio ocorre mediante o uso de alguns signos ou caracteres. Esse uso de signos, nos raciocínios, é que permite o que ele chamará de “pensamento” ou “conhecimento” simbólico. Kant parece ter conhecido tal concepção, pois na Investigação ele apresenta considerações sobre o método da matemática bastante semelhantes às de Leibniz, principalmente com relação ao uso de signos. Na Investigação, antes de Kant ter amadurecido suas convicções acerca do caráter sintético a priori da matemática, ele defendia, entre outras coisas, que o processo de conhecimento dessa ocorria por meio de combinações de signos que estariam pelos conceitos. As demonstrações matemáticas podiam ser realizadas por meio de manipulações simbólicas, fundadas nas leis da lógica, nas definições e em alguns outros princípios. Na segunda seção, apresentaremos a “Carta a Rehberg”, na qual Kant discute alguns procedimentos de cálculo e construção de raízes quadradas. No contexto desta discussão, ele apresentará algumas concepções a respeito dos procedimentos da álgebra, fundamentalmente em comparação com os procedimentos da aritmética. 2 , que quando pensada em termos Nesta carta, Kant enfatiza o problema de numéricos não encontramos um fator cujo produto seja “2”. Da perspectiva kantiana, isso implica que não podemos construir 2 , porém poderemos tratá-la como uma regra de aproximação esta discussão, em conexão com a CRP, poderão servir de auxílio na tentativa de descobrir como Kant pensava a álgebra e em que poderia consistir o “construir simbolicamente”.

3.1. A concepção leibniziana de conhecimento simbólico e as teses da Investigação A concepção de Leibniz a respeito das demonstrações matemáticas gira em torno da idéia de que elas podem ser realizadas por manipulação de caracteres segundo algumas regras. O encadeamento das proposições procede por inferência (em sentido amplo) lógica formal e tem como fundamento básico alguns princípios, a saber, o princípio de nãocontradição, as definições e as idênticas (proposições de identidade).

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Axiomas são considerados por Leibniz, porém estes também estariam fundamentados em leis lógicas. Leibniz acreditava que os conhecimentos matemáticos eram obtidos através da análise das proposições envolvidas no raciocínio, a partir das quais chegaríamos, numa espécie de volta, às proposições mais básicas, às identidades. Para Leibniz, precisamos definir os conceitos no início da prova e depois podemos usar alguns signos ou caracteres54 que substituirão os conceitos e suas definições no decorrer do raciocínio. Leibniz nos sugere que substituamos os conceitos por signos, que coloquemos signos no “lugar” dos conceitos e operemos com eles sem precisarmos nos referir aos conceitos. A substituição dos conceitos por signos nos servirá para o próprio desenvolvimento do raciocínio. Para Leibniz, os signos não servem apenas para substituir os conceitos e abreviar os raciocínios, mas também são considerados indispensáveis às provas matemáticas, pois são justamente os signos que permitem os cálculos. Ele declara que é possível pensar sem palavras, mas não sem outros signos, dado que são necessários aos raciocínios 55. Leibniz define signo 56: “nomes mediante os quais se abarca, de forma abreviada, grande quantidade de coisas”.(Leibniz (1671)A.VII, ii 481, p.89). 54

Leibniz em. “Signos y cálculo lógico” (S/d) distingue alguns tipos de signos e caracteres: “así pues, incluyo entre los signos las palabras, las letras, las figuras químicas, astronómicas, chinas, jeroglíficas, las notas musicales, estenográficas, aritméticas, algebraicas y todo aquello que utilizamos en lugar de las cosas cuándo pensamos. Ahora bien, los signos escritos, trazados o esculpidos se denominan caracteres” (Leibniz, GP VII, 204, p. 187) 55

Cf.:“ B. ¿Y después que? Podemos tener pensamientos sin palabras. A. Pero no sin otros signos. Trata, te lo pido, de ver si puedes establecer algún cálculo aritmético sin signos numéricos. B. Me turbas mucho pues no consideraba que los caracteres o signos fueran tan necesarios para el razonamiento. A. Por lo tanto las verdades aritméticas suponen algunos signos o caracteres.” (Leibniz, 1677, GP VII 191, p. 174). 56

“Análogamente nadie podría seguir en su espíritu razonamientos extensos si no halla ciertos signos, esto es, nombres mediante los cuales se abarca en forma abreviada gran cantidad de cosas, de modo que fuera posible recorrer rápidamente muchas, lo que sería imposible si después de suprimir los nombres u otros signos de esto tipo fuera preciso usar definiciones en vez de palabras definidas.” (Leibniz, 1671, AVII, ii, 479, p.89).

64

Os signos servem para abreviar os raciocínios e os fazerem mais visíveis enquanto um todo. Mas além disso, conforme Leibniz, são o que permite o próprio raciocínio. Segundo Rossi (1983) os signos para Leibniz têm duas funções distintas: 1) abreviar os raciocínios e 2) permitir o cálculo. É através de um sistema de sinais, segundo regras fixas, que operamos mecanicamente e chegamos às conclusões que almejamos. Este proceder por meio de manipulação simbólica é o que Leibniz chama de “pensamento”

ou

“conhecimento”

simbólico.

O

pensamento

ou

conhecimento simbólico, enquanto um processo que se realiza com o recurso a signos, que são colocados no lugar dos conceitos na cadeia demonstrativa, é o mais freqüente e necessário entre os homens 57. Num texto de 1684, “Meditações sobre o conhecimento a verdade e as idéias”, Leibniz apresenta uma espécie de distinção entre todos os tipos de conhecimentos e, nesta distinção, define conhecimento simbólico, considerando os conhecimentos

matemáticos

como os

principais

conhecimentos deste tipo. Segundo ele, os conhecimentos são divididos, basicamente, em dois tipos: obscuros e claros. Os conhecimentos claros, contudo, se dividem em confusos e distintos. Os confusos são aqueles que não conseguimos enumerar as suas notas, não podemos descrevê-los, mesmo tendo ciência deles. Alguns exemplos que Leibniz nos fornece de tais conhecimentos são o conhecimento de uma cor, ou de um odor. Os conhecimentos distintos, por outro lado, são aqueles sob os quais podemos enumerar suas notas constitutivas (Requisita). Esses se dividem em dois outros subtipos: os inadequados e os adequados. Os inadequados são caracterizados como aqueles pelos quais conhecemos suas notas, porém de 57

“Y a este tipo de pensamientos los suelo llamar ciegos y entre los hombres nada es más frecuente o necesario que ello”. (Leibniz, 1671, AVII, ii, 479, p.89).

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maneira obscura. Os exemplos que Leibniz nos sugere são os conhecimentos de elementos químicos, como o ouro, que apesar de sabermos identificá-lo, não conhecemos os elementos que o compõem. Os conhecimentos adequados são aqueles nos quais conhecemos todas as notas constitutivas do conceito e o podemos acessar claramente. Esses conhecimentos, finalmente, se dividem em intuitivo (perfeitíssimo) e simbólico (cego). O conhecimento intuitivo é um conhecimento claro, distinto, adequado, e que nos permite o acesso direto, intuitivamente, às notas do conceito. Na medida em que temos a intuição (intuição adequada) daquilo que

é

conhecido,

que

visualizamos

o

conhecido,

conhecemos

intuitivamente. Leibniz também considera este conhecimento como perfeitíssimo, dado que não precisa de nenhuma mediação e esclarecimento de notas para ser conhecido. O conhecimento intuitivo ocorre de modo imediato e é o conhecimento próprio de Deus, sendo que nós humanos só conhecemos algumas poucas noções desse modo. O conhecimento simbólico é o claro, distinto, adequado, e que nós o acessamos por meio de uma substituição dos conceitos por signos. A partir da substituição dos conceitos por signos, segundo Leibniz, podemos proceder cegamente sobre eles, sem mesmo ter que considerar as notas constitutivas dos conceitos. Assim, podemos realizar um raciocínio, onde apenas no final do procedimento simbólico é que voltaremos às notas dos conceitos e visualizaremos as conclusões, que alcançamos por meio do processo mecânico e cego de manipulação de caracteres. O pensamento simbólico é, especificamente, o modo pelo qual conhecemos em matemática. Podemos chegar a um conhecimento

66

matemático de modo simbólico a partir da mera manipulação com signos, como os numerais da aritmética ou as figuras da geometria, por exemplo. Conhecer simbolicamente, em matemática é como “calcular” com caracteres e daí chegar a um resultado sem ter que considerar os conceitos, que os caracteres substituem. O pensamento simbólico, por isso, caracteriza-se por um pensamento rápido, que proporciona uma ordenação das idéias58 e, conseqüentemente, um procedimento mecânico e infalível, pois qualquer erro pode ser facilmente reconhecido. O recurso aos signos, todavia, precisa ser fundamentado por alguns princípios, pois não podemos usá-los de modo completamente arbitrário. A manipulação simbólica tem que seguir certas regras de combinações entre os signos, pois caso contrário a manipulação não se será possível. A este respeito, Leibniz dirá que devemos nos assegurar, em primeiro lugar, da possibilidade lógica dos conceitos envolvidos, isto é, temos que garantir que os conceitos que substituímos por signos não são contraditórios. Um exemplo disso, apresentado pelo próprio Leibniz, é o caso de realizarmos um raciocínio com o conceito de “polígono de mil lados”. Para Leibniz, não precisamos levar em conta todos as notas desse conceito, pois ainda que não possamos representar exatamente os mil lados de um polígono em uma figura desenhada, podemos usar um símbolo qualquer para tal conceito e demonstrar por meio dele. No caso do conceito de “quadrolo” (círculo-quadrado), por exemplo, estaríamos impossibilitados de aceita-lo, por ser logicamente contraditório, mesmo que escolhêssemos um signo que o representasse. 58

Idéia entendida aqui, no sentido leibniziano, enquanto os conteúdos dos conceitos que são pensados. Leibniz define idéia: “Ante todo con el término idea designamos algo que está en nuestra mente” (Leibniz, 1678, p.179).

67

Além do princípio de não-contradição também temos que respeitar, segundo Leibniz, uma certa semelhança entre os signos que escolhemos e os conceitos que representarão. Podemos perceber que há uma diferença entre um signo que representa um polígono de mil lados e o signo que representa um triângulo, por exemplo. Um triângulo será representado por uma figura plana fechada por três lados e três ângulos, enquanto um polígono de mil lados somente poderá ser representado por uma palavra ou outro caractere qualquer. Mesmo que desenhemos uma figura com mil lados, esse desenho é inútil para as provas que envolvem tal conceito. Todavia, sobre a figura desenhada de um triângulo podemos prolongar retas, comparar ângulos, etc., e nos servirmos disso para as demonstrações que envolvem tal conceito. Enquanto o signo que representa o triângulo expressa as notas que compõem seu conceito, o “miliógono” (polígono de mil lados) não pode expressar as suas. A diferença com um numeral da aritmética ou uma letra da álgebra, todavia, se torna mais saliente. A figura de um triângulo, além de ser um signo colocado no lugar do conceito, é uma instância do conceito, é um exemplar de triângulo. Sobre isso Leibniz escreve59:

59

“B. Para mí que existe este inconveniente: advierto que nunca podré conocer, descubrir, probar sin servirme de palabras o sin que otros signos estén presentes en mi espíritu. A. Incluso si no hubiera caracteres nunca pensaríamos con distinción en algo ni seríamos capaces de razonamiento. B. Pero cuando miramos las figuras geométricas a menudo extraemos de ellas las verdades mediante una meditación. A. Así es, pero para considerar a estas figuras como caracteres debe saber-se que ni el círculo trazado en el papel es un verdadero círculo ni que eso es necesario, pues basta que nosotros lo tengamos por un círculo. B. Pero tiene cierta semejanza con el círculo y esta semejanza no es, por cierto, arbitraria. A. Lo confieso, y por eso las figuras son los más útiles de los caracteres. Pero ¿qué semejanza consideras que existe entre el número diez y el carácter 10? B. Existe alguna relación u orden en los caracteres como el que se da en las cosas, principalmente si han sido bien elegidos”. (Leibniz, 1677, GP VIII, p.175).

68

B. Para mim que existe este inconveniente: advirto que nunca poderei conhecer, descobrir, provar, sem se servir de palavras ou sem outros signos estejam presentes em meu espírito. Inclusive, se não houvesse caracteres nunca pensaríamos com distinção em algo, nem seríamos capazes de raciocínio. B. Mas, quando olhamos, minuciosamente, as figuras geométricas extraímos delas verdades mediante uma meditação rigorosa. A. Assim é, mas para considerar estas figuras como caracteres devemos saber que o círculo desenhado no papel não é um verdadeiro círculo e isso não é necessário, pois basta que nós o tenhamos por um círculo. B. Mas, tem certa semelhança com o círculo e esta semelhança, certamente, não é arbitrária. A. Confesso, por isso as figuras são os mais úteis dos caracteres. Porém, que semelhança considera que existe entre o número dez e o caractere 10? B. Existe alguma relação ou ordem nos caracteres como a que se dá nas coisas, principalmente se foram bem escolhidos. (Leibniz, 1677, GP VIII, p.175). A partir desta citação, podemos perceber que os signos são necessários para todos os raciocínios, segundo Leibniz. Mas eles não podem ser escolhidos aleatoriamente, sem critério. Os signos têm certa semelhança com os conceitos que representam. Conforme vimos, as figuras da geometria instanciam os conceitos e por isso são consideradas “os mais úteis dos caracteres”. Assim,

a semelhança entre os símbolos e os

conceitos, os quais representam, constitui um outro princípio a ser seguido para a realização do procedimento simbólico. Para Leibniz os signos se assemelham ou correspondem às “coisas mesmas” á própria realidade 60. Os signos que são colocados “no lugar” dos conceitos, como vimos são simplesmente

60

caracteres

Cf. Leibniz, (1677) GP VII, 192, p.

arbitrários,

eles

respeitam

uma

certa

69

correspondência com as coisas 61. Ele escreve62: Assim é, mas advirto, no entanto, que se os caracteres podem aplicar-se ao raciocínio, deve haver neles uma construção complexa de conexões, uma ordem, que seja conveniente com as coisas. Isso, se não em suas palavras individuais (por mais que isso seria melhor), ao menos em sua conexão e flexão. Esta ordem, com algumas variações, tem sua correspondência, de algum modo, em todas as línguas. Isso me deu a esperança de escapar da dificuldade, pois, ainda que os caracteres sejam arbitrários, seu emprego e conexão têm tem algo que não é arbitrário, a sabe, certa proporção entre os caracteres e as coisas e as relações entre os diversos caracteres que expressam as mesmas coisas. Essa proporção ou relação é o fundamento de toda a verdade. (Leibniz, (1677), GP VII, 192, p.175-176)

Na geometria, esta correspondência ocorre na medida em que os signos, as figuras, que estão pelos conceitos se assemelham a eles. As figuras expressariam as relações espaciais que são apresentadas na definição do conceito (do objeto geométrico). Assim, um triângulo é representado pela figura desenhada de um triângulo. Este desenho ou signo 61

Para Leibniz, não somente na matemática, mas em todos os domínios os signos conservam uma espécie de semelhança estrutural com as coisas. As palavras, para ele, têm relações entre si que representam as relações entre as próprias coisas. Sobre isso Esquisabel escreve (no prelo): “Así, Leibniz aclara el papel que le cabe a la arbitrariedad o la convención en la creación de sistemas de caracteres: la arbitrariedad afecta a la elección de los caracteres que utilizamos para representar las cosas y sus relaciones, pero no a las relaciones estructurales que rigen entre ellos y que deben quedar reflejadas tanto en las reglas de formación de caracteres como en las de transformación, tal como ocurre en el caso de las dos disciplinas paradigmáticas: la aritmética y el álgebra. Así, en estas disciplinas, las reglas formación y de transformación de los caracteres guardan un cierto orden y constancia correlativos, que tienen como misión representar las relaciones formales de las cosas (por ejemplo, la de todo y parte y las correlativas maneras de formar y descomponer todos y partes)”. 62

Así es, pero sin embargo advierto que si los caracteres pueden aplicarse al razonamiento debe haber en ellos una construcción compleja de conexiones, un orden, que convenga con las cosas sino en sus palabras individuales (por más también esto sería mejor) al menos en su conexión y flexión. Y este orden, con algunas variaciones tiene su correspondencia de algún modo, en todos las lenguas. Y esto me dio la esperanza de escapar de la dificultad. Pues aunque los caracteres sean arbitrarios, su empleo y conexión tiene sin embargo algo que no es arbitrario, a saber cierta proporción entre los caracteres y las cosas y las relaciones entre los diversos caracteres que expresan las mismas cosas. Y esta proporción o relación es el fundamento de toda la verdad. (Leibniz, (1677), GP VII, 192, p.175-176)

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representará aproximadamente a relação espacial entre os três lados e ângulos que são apresentados nas notas que constituem o conceito de triângulo. A figura desenhada corresponde e se assemelha a ele na medida em que o instancia. Na aritmética Leibniz dirá que também há uma semelhança entre os conceitos e os que os representam. Contudo, tal semelhança, ou correspondência, não ocorre de forma direta como na geometria, onde cada signo instancia cada conceito particular. Na aritmética não será propriamente os signos que se assemelharão aos conceitos, mas sim a relação entre eles. A relação, ou conexão, entre os signos numéricos representará a relação entre os conceitos aritméticos. Na aritmética a base da escolha da notação encontra-se na conexão e na disposição entre os signos e não nos caracteres particulares. Para melhor visualizar estas concepções de Leibniz, tomemos o exemplo do algoritmo que fazemos para a soma de dois números quaisquer, como “5232 + 347 = 5579”, por exemplo. Nesta operação, não pensamos o conceito pelo qual está cada signo, ou seja, não intuímos a quantidade de cada número envolvido, apenas fazemos um cálculo, segundo uma determinada regra, chegamos a um resultado correto. A combinação entre os signos, realizada a partir da regra, coincidirá com a conexão entre os conceitos, ou entre os “objetos mesmos”. No caso do nosso exemplo, não precisamos visualizar cinco mil e duzentas e trinta e duas instâncias de unidades numéricas e justapô-las com trezentas e quarenta e sete outras unidades. Precisamos apenas realizar o algoritmo da soma e a conclusão será alcançada. O algoritmo, enquanto um procedimento por combinação de símbolos segundo regras traz a vantagem de podermos detectar

71

facilmente os erros, já que podemos visualizar a demonstração. Por isso, o procedimento simbólico na matemática não deve ser considerado apenas como um recurso metodológico das demonstrações, mas, pelo contrário, um recurso necessário para a própria realização do cálculo. Para Leibniz, é na aritmética onde percebemos mais claramente a necessidade do pensamento simbólico, já que nela nada pode ser calculado sem signos numéricos, principalmente em relação a grandes cifras 63. Ele nos fornece o exemplo do número, cujo signo (em numerais arábicos) é 1.000.000.000.000 e explica que se não houvesse signos um homem normal não teria tempo de vida suficiente para considerar todas as unidades nele compreendidas64. A aritmética necessita dos signos ou caracteres, pois se fossemos pensar o valor de cada número usado num cálculo, não poderíamos acabar os cálculos mais extensos. Na geometria, segundo Leibniz, também há a necessidade do uso dos signos, pois se não os tivéssemos não conseguiríamos demonstrar certos teoremas, teríamos que apresentar a definição de cada conceito no decorrer do raciocínio e isso consistiria num processo lento e confundiria o encadeamento das proposições durante a demonstração. Resumidamente, podemos dizer que o conhecimento simbólico, respeitando os princípios da lógica e seguindo uma espécie de lei de correspondência entre os signos e os conceitos, nos leva às verdades. As demonstrações matemáticas nos dão o melhor exemplo da eficácia e da 63 64

Cf. Leibniz, “Diálogo sobre a conexión entre las cosas y las palabras” (1677)

Cf. “En efecto, nadie puede calcular, especialmente las grandes cifras, sin nombres o signos numéricos, pues habría que imaginar distintamente en vez del número todas las unidades comprendidas en él. Pero ¿quién podría imaginar distintamente las unidades incluidas en 1.000.000.000.000 a menos de disponer de la edad de Matusalén? Y aunque pudiera llevarlo a cabo, al avanzar se olvidaría de las primeras. Análogamente nadie podría seguir en su espíritu razonamientos extensos si no hallara ciertos signos,...” (Leibniz, (1671), AVII, ii 481, p.89)

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necessidade de tal conhecimento 65. Ao nos remeter às idênticas consolidam a certeza das provas e impossibilitam as conclusões contrárias. Assim, a representação simbólica nos permite conhecimento (em sentido rigoroso do termo), dado que podemos “calcular” mecanicamente e chegar a um resultado necessariamente certo e verdadeiro. Poderemos perceber que há muitas diferenças desta visão com as teses de Kant da CRP, no entanto, elas podem identificar-se em alguns aspectos com as suas teses pré-críticas. Na Investigação, conforme veremos agora, Kant assumia uma substituição dos conceitos por símbolos como meio de demonstrar em matemática. Trataremos, primeiramente, do âmbito dos conceitos, considerando suas definições e a função delas. Depois, consideraremos os raciocínios e o processo demonstrativo, os princípios que os fundamentam e o uso de signos neste processo. Veremos que estas concepções podem não ser tão distantes, em alguns aspectos, das concepções da CRP, apresentadas no primeiro capítulo. Na Investigação, Kant apresenta duas maneiras de formar conceitos, isto é, de os definir, sendo que tal distinção consiste, basicamente, no modo como cada área do saber obtém seus conceitos e não propriamente no tema de cada uma. Um dos modos de definir os conceitos é por ligações arbitrárias de conceitos e o outro é por análise abstrata dos mesmos. O primeiro é o modo próprio da matemática e outro o da filosofia. Kant escreve: “podemos chegar a qualquer conceito geral através de duas vias diferentes: por ligações arbitrárias dos conceitos e por abstração a partir de um conhecimento que a análise tornou distinto. As matemáticas apenas 65

Leibniz acreditava que o conhecimento por meio de manipulação simbólica deveria ser estendido a todos os âmbitos do conhecimento, dada a eficácia na matemática. Com vistas a isso, ele tenta cria uma “Característica Universal”, que consistia no ideal de uma língua universal que permitisse a comunicação entre todos os povos, mas, além disso, o cálculo em qualquer domínio.

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constituem definições de acordo com o primeiro método”. (Kant (1764), p.131). Os conceitos matemáticos são definidos por ligações arbitrárias a partir de outros conceitos, que nos dão conceitos novos. Tais conceitos novos são gerados pela combinação de conceitos que já tínhamos e são chamados, conforme Kant, de "não-dados", pois antes da sua definição, não temos noção alguma acerca deles. Formar conceitos por ligações arbitrárias significa dizer que se fossemos ligando conceitos uns com os outros, segundo certas regras previamente estabelecidas, estaríamos "criando" novos conceitos. Segundo este modo, próprio da matemática, na geometria podemos definir ou criar o conceito de uma figura geométrica a partir do momento em que formos ligando os conceitos de plano, linhas, pontos, retas, etc. Nas outras áreas da matemática, ligamos conceitos numéricos a partir de relações, permutações, adições, etc66. Se nos remetermos à CRP, veremos que Kant mudou sua concepção a respeito deste ponto. Ele aceitava que os conceitos fossem combinados arbitrariamente e daí poderiam gerar outros conceitos. Na concepção précrítica bastaria que os conceitos fossem produzidos pela combinação de outros para que pudéssemos operar com eles. Nesta época Kant ainda não havia exigido que aos conceitos deveriam corresponder intuições. Contudo, na CRP parece ter permanecido esse caráter de “criação” dos conceitos, porém, eles estarão relacionados diretamente com o processo construtivo 67. 66

Com relação aos conceitos não matemáticos, especialmente aos da filosofia, segundo Kant, os definimos quando decompomos suas notas, por meio de análise e os esclarecemos, os distinguimos. Esses conceitos são, ao contrário dos matemáticos, “dados”, isto é, que os temos antes de termos os analisado. 67

Encontraremos semelhança entre a CRP e a Investigação com relação aos conceitos filosóficos. Esses, na CRP também são “dados” e precisarão ser analisados. Uma diferença, contudo, é que em 1764 essa análise consistia no processo (legítimo) para se chegar ao conhecimento com tais conceitos e na CRP ela será apenas um esclarecimento dos conceitos.

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Os conceitos matemáticos, concebidos como gerados, a partir das suas definições (ou de sua exibição intuitiva no caso da CRP), acabam apresentando uma peculiaridade que traz vantagem aos conhecimentos obtidos através deles, a saber, em matemática não temos conceitos pouco elucidados, todas as suas notas podem ser dadas. A diferença no modo como atingimos as definições dos conceitos implicará numa diferença no modo como se realiza uma demonstração. Como na matemática definimos os conceitos por ligações arbitrárias, então, suas demonstrações terão como base os conceitos criados por tais definições. As definições são princípios que estão na base das demonstrações. O que nos leva a considerar a semelhança com Leibniz, neste ponto. Como vimos, Leibniz concebia as definições como princípios das demonstrações, porém, acreditava que deveríamos obtê-las via análise, enquanto Kant dirá que devemos obtê-las via síntese. Além das definições, todavia, Kant admitirá que as provas precisam de outros princípios. Esses princípios serão os axiomas e os postulados. Sabemos que na geometria euclidiana há uma distinção entre axiomas e postulados: os primeiros são princípios gerais, noções comuns, que podem ser utilizadas em muitas ciências; e os segundos, os postulados, são princípios que se restringem apenas à geometria. Kant pensava postulados e axiomas sem distinção; fala apenas em princípios indemonstráveis de fundamentação, ou proposições indemonstráveis, os quais são poucos na matemática e postos na base dos raciocínios orientam o encadeamento das proposições que se seguem68.

68

Como vimos, na CRP Kant também considera axiomas e definições como princípios das demonstrações matemáticas, com a diferença de que nesta obra eles também são por construção.

75

Produzido a partir das ligações arbitrárias dos conceitos e embasado em princípios indemonstráveis (axiomas e postulados), o conhecimento matemático é concebido na Investigação como sintético. A noção de sintético, porém, diferencia-se da noção posterior, principalmente com relação ao fato de que aqui Kant não parece estar sequer supondo a possibilidade de uma “sinteticidade” a priori. Sintético, neste contexto, parece apenas indicar que há a realização de uma síntese, na medida em que é um caminho dedutivo e “para frente”, em contraposição à análise que é uma espécie de volta às premissas e às definições dos conceitos 69. Além de encontrar seu fundamento nas definições e nos princípios indemonstráveis, as demonstrações matemáticas podem recorrer a signos. Segundo Kant, o modo de demonstrar na matemática é considerando os conceitos que são gerais através de signos que são particulares (concretos). Substituir os conceitos por signos é, tal como a noção de pensamento simbólico leibniziana, que apresentamos há pouco, colocar signos “no lugar” dos conceitos envolvidos num raciocínio de prova. Desse modo, pode-se proceder cegamente, sem ter à vista, sob os olhos, os conceitos e suas definições. Segundo Kant, é possível substituirmos os conceitos de um raciocínio por signos e os manipularmos por ligações arbitrárias até o final da prova, quando os reinterpretaremos. Sobre a substituição de conceitos por signos e os conhecimentos que podemos chegar a partir da manipulação deles, Kant escreve, referindo-se tanto à aritmética geral das grandezas indeterminadas (álgebra) quanto à dos números, onde a grandeza se relaciona com a unidade (aritmética) 70: 69

Cf.: “Compete à filosofia analisar os conceitos que são dados de um modo confuso e torná-lo determinados em todas as suas partes; mas a tarefa das matemáticas consiste em reunir e comparar conceitos dados de grandezas claras e certas a fim de ver o que daí pode resultar.” (Kant (1764) p 133). 70

Há aqui, uma possível definição kantiana da álgebra, que consideraremos a seguir.

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Quer numa, quer noutra, são imediatamente colocados, em vez das próprias coisas, os seus signos com a designação particular de aumento ou diminuição, das suas relações, etc., e procede-se em seguida, com esses signos, de acordo com regras simples e certas, por permutação, combinação e subtração e através de todos os tipos de mudanças, de tal modo que as coisas significadas são inteiramente deixadas de fora até que no fim, na conclusão, a significação simbólica da conseqüência seja decifrada. (Kant (1764) p. 133). O fato de Kant considerar os signos que substituem os conceitos matemáticos no decorrer do raciocínio como “concretos” é devido a capacidade que eles têm de representar particularmente cada conceito envolvido na demonstração. Por exemplo, na proposição aritmética “7+5 = 12”, o primeiro signo “7” representa a idéia de quantidade sete, o segundo signo “+”, representa a idéia da relação de adição do signo anterior com o posterior e assim sucessivamente. Os signos concretos também podem representar a junção de conceitos. No caso do nosso exemplo, o signo “12” representa a idéia da quantidade doze, mas também indica “7+5”, ou “6+6”. No caso da geometria, tal como Leibniz, Kant considerava as figuras como signos. Ainda em conexão com Leibniz, Kant também pensava que os signos da geometria dispõem de uma vantagem sobre os signos utilizados na álgebra e na aritmética, pois, além de estarem pelo conceito, são semelhantes aos próprios conceitos: “Em geometria onde os signos têm, além do mais, uma semelhança com as coisas significadas, a evidência é ainda maior, embora na álgebra a certeza esteja sempre assegurada” (Kant, 1764, p.148). Um círculo, enquanto uma figura plana cujos pontos da circunferência eqüidistam de um outro dado ponto, tem sua

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figura (signo) que o expressa exatamente como sua definição o descreve. A figura do círculo é um exemplar de círculo, é uma instância do conceito. Os signos da álgebra, por outro lado não têm semelhança com os conceitos, tal como Leibniz concebera. A relação com Leibniz neste ponto se torna bastante visível. A concepção kantiana de que a matemática procede por ligações arbitrárias de conceitos através de signos concretos, parece completamente compatível com a definição leibniziana de conhecimento simbólico, onde trocamos os conceitos pelos signos e procedemos cegamente. Poderíamos dizer que as noções pré-críticas kantianas acerca do uso de signos são inspiradas ou herdadas de Leibniz71. No entanto, conforme vimos, na CRP Kant modifica a suas concepções. Ao relacionarmos a Investigação com essa percebemos que as figuras da geometria que eram concebidas como signos agora são intuições, que geramos a priori (sob a forma pura do espaço). Apesar de Hintikka defender que na fase pré-crítica já se encontrava o elemento intuitivo, enquanto a apresentação de um objeto particular que estaria por um conceito geral, somos inclinados a pensar que com relação a esse ponto, há, pelo contrário, uma grande diferença. A maneira que Kant concebia os objetos matemáticos é bem diferente do modo como concebe mais tarde. As figuras da geometria eram consideradas signos e não intuições. Na Investigação, a correspondência intuitiva para os conceitos matemáticos não está presente (sequer levando em conta somente a nota da 71

Há, no entanto, uma diferença crucial entre ambos, que não pode ser ignorada e que não nos permite classificar o Kant pré-crítico de “leibniziano”, ao menos com relação a sua filosofia da matemática. Essa diferença diz respeito ao caminho a ser percorrido para chegar ao conhecimento. Segundo Leibniz, nós operamos com signos e por análise, por redução das proposições mais complexas a proposições de identidade, chegamos à conclusão que consiste em conhecimento. Kant, pelo contrário, defenderá que embasamo-nos em proposições indemonstráveis prévias e definições, mas seguimos um caminho que não é de volta, não é analítico, é sintético.

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sensibilidade como propôs Hintikka). A questão que podemos nos colocar neste momento é: teriam as concepções kantianas em torno da álgebra se modificado também, ou permaneceria algo de pré-crítico na CRP? Acreditamos que Kant não tenha modificado muito suas convicções acerca da álgebra, a modificação é em geometria e aritmética, a qual resulta numa restrição à manipulação simbólica na álgebra. A nossa hipótese é que quando Kant se refere aos procedimentos da álgebra por construção simbólica, na CRP, está conservando uma noção de operação por símbolos da Investigação. Além disso, dado que o ponto que Kant supostamente conserva é a manipulação com símbolos, haveria uma inspiração leibniziana nestas teses da sua filosofia madura. Passamos agora, a examinar a Carta a Rehberg onde poderemos perceber a permanência da manipulação simbólica da investigação, porém com a adição do procedimento da construção, concebido na CRP. 3.2. A construção simbólica e a álgebra na Carta a Rehberg

Em uma carta de 1790 dirigida a Rehberg, Kant discute alguns procedimento de cálculo e construção de raízes; também indica uma espécie de saída para os casos nos quais não podemos realizar construção; realiza considerações acerca da álgebra e de seus procedimentos ao tratar de raízes, a saber, avalia a e a possibilidade deste conceito ser construído. Kant inicia a referida carta com a seguinte pergunta: “Se o entendimento tem o poder de criar números, por que ele é incapaz de pensar

2 em

números?” 72 (Kant (1790) p.166). A sua resposta e toda a argumentação 72

“The question is: Since the understanding has the power to create numbers at will, why is tit incapable of thinking 2 in numbers?” (CR (1990) p.166).

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que se segue envolve a idéia de que

2 não é um número, mas pode ser

concebido como uma regra de aproximação. O problema envolvido na discussão em torno de

2 é que os números

irracionais não apresentam uma relação com a unidade, ou seja, não tem referente numa seqüência numérica.

2 não pode ser expresso em termos

numéricos, pois não há um fator que multiplicado por ele mesmo o produto seja “2”. Por isso não podemos construir esse conceito, dado que resulta na seqüência infinita de frações. Assim, o conceito de

2

2 não tem

um referente intuitivo, como Kant requer para os conceitos matemáticos. Em outras palavras, o referido conceito não tem realidade objetiva, ou seja, é vazio. Kant, no entanto, não considera que o conceito de

2 seja vazio,

apenas não pode ser expresso em números, mas, conforme veremos, poderá ser construído geometricamente. A partir disso a pergunta deixa de ser “porque o entendimento é incapaz de pensar

2 em números” e passa a

ser “por que não se pode encontrar um número para essa quantidade, um número cujo conceito possa representar clara e completamente a quantidade 2 ?”73 Kant explica, na seqüência da referida carta, que se nos for dado um número a e um fator x, sempre será possível encontrar um outro fator y tal que a=x.y. Porém, se nenhum fator for dado, mas apenas apresentada uma relação entre eles: que são iguais, por exemplo, então a questão será equivalente ao cálculo da média proporcional entre o número e a unidade. Assim, temos um dado número x tal que 1: x = x : a, que é o conceito de

73

“So the question is only, why cannot a number be found for this quantity, a number whose concept would represent the quantity (its relation to unity) clearly and completely.” (CR. (1790) p. 167).

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a . No caso de substituir a pelo número 4, por exemplo, teremos um fator

(igual), cujo produto será tal número. No dado exemplo: o fator é 2, 4 = 2. Porém, se o valor dado a a for 2, sendo 2 , não haverá um resultado numérico para essa raiz, contudo é possível considerá-la como uma regra: 74

2 será uma regra de aproximação Kant escreve :

Mas a razão porque o entendimento, o qual tem criado arbitrariamente o conceito de 2 , deve se contentar com uma aproximação assintótica para o número 2 e não pode também produzir o conceito numérico completo (a relação racional de 2 por unidade) _ a razão para isso tem a ver com o tempo, a progressão sucessiva como forma de todo contar e de toda quantidade numérica; pois tempo é a condição básica para toda a produção de quantidades. (Kant, 1790, p 167). O problema, contudo, é de que dado

a como uma raiz quadrada de

um número qualquer, o fato dela poder ser entendida em termos de média proporcional garante apenas que seu conceito é possível, mas não garante que tal conceito não seja vazio. Para Kant, no caso de a negativo, pode-se saber que é um conceito contraditório e, conseqüentemente, vazio. Porém, com relação à raiz positiva de a, que não é contraditória, também é preciso saber se podemos construí-la. Conforme mostra Kant, é possível construir a se por a temos um segmento de reta, o que permite uma construção geométrica75. A partir das relações entre o segmento de comprimentos a e a unidade u, tem-se uma construção que mostra o 74

“But the reason why the understanding, which has arbitrarily created the concept of

itself with an asymptotic approach to the number

2 , must content

2 , and cannot also produce the complete numerical

concept (the rational relationship of 2 to unity) _ the reason for this has to do with time, the successive progression as form of all counting and of all numerical quantities; for time is the basic condition of all this producing of quantities”. (CR (1990) p. 167) 75

Cf. Anexo.

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segmento

a . Assim, o conceito de

a é construído, dado que apresenta

geometricamente um segmento de comprimento

a , para qualquer

segmento a. Se a for concebido como um número, sua construção pode ser realizada em alguns casos. Porém, como vimos, no caso construção. Todavia,

2

2 não há

é construído em geometria, pois há uma

construção geométrica que “exibe” um segmento de comprimento

2 . Esta

construção garante a realidade objetiva do conceito, isto é, garante que o conceito é não-vazio. Se considerada aritmeticamente,

2 somente pode

ser concebida como regra . Conforme Kant, para ser tomada como um número, uma determinada quantidade deve poder ser calculada e não apenas “nomeada”, como se faz em álgebra 76. Em álgebra quando apresentamos a , enquanto a representação simbólica de raiz quadrada em geral, nomeamo-la e somente a construímos quando apresentamos a sua construção ostensiva. A Carta a Rehberg, portanto, serve para evidenciar duas idéias já apresentadas no decorrer desta dissertação, a saber, que Kant concebia a álgebra como uma heurística para resolver problemas matemáticos mais básicos; e que a correspondência intuitiva exigida aos conceitos algébricos, caso seja atendida, somente será geometricamente e/ou aritmeticamente. Quando Kant, na Carta a Rehberg, se refere à álgebra afirmando que esta nomeia, em contraposição à aritmética que calcula, parece estar pensando a álgebra como uma espécie de linguagem, a qual expressa (nomeia) questões a serem calculadas ou construídas pela aritmética e pela 76

Cf.: “But as soon as instead of a, the number for which a stands is given, so that the square root is not simply to be named (as in algebra) but calculated (as in arithmetic), the condition of all producing of numbers, viz., time, becomes the inescapable foundation of the process.” (CR (1790), p.167).

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geometria. Isso é coerente com a interpretação de Shabel, na qual Kant considera a álgebra conforme os manuais de Wolff e as praticas matemáticas de sua época, tal como apresentamos no segundo capítulo. Dado que raiz quadrada de a pode ser expressa algebricamente como a proporcional, é um conceito que é construído simbolicamente. Porém,

a

também é construída ostensivamente, exibida a priori na intuição pura, o que garante que este conceito é não-vazio. Assim, a segunda conclusão que sugerimos há pouco, fica evidenciada: as construções simbólicas são respaldadas por construções ostensivas, que lhes subjazem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Na CRP, como vimos, Kant considera que os conhecimentos matemáticos são alcançados por construção de conceitos, pela exibição a priori das intuições que correspondem aos conceitos. Vimos também que a geometria e a aritmética realizam construções ostensivas enquanto a álgebra realiza construções simbólicas. Porém, as construções simbólicas da álgebra podem ser entendidas como pressupondo construções ostensivas que lhes são anteriores. Acreditamos que a maneira mais adequada de entender a noção kantiana de “construção simbólica” é concebê-la como um procedimento demonstrativo que opera mecanicamente com signos, mas tem um correlato intuitivo, na medida em que supõe construções ostensivas correspondentes. Para recapitular esta interpretação, voltemos às passagens da CRP que se referem à álgebra: Todavia, a matemática não constrói só quantidades (quanta), como na geometria, mas também a pura quantidade (quantitatem), como na álgebra; neste caso, abstrai completamente da natureza do objeto que deve ser pensado segundo um tal conceito de quantidade. Então escolhe uma certa notação para todas as construções de quantidades em geral (números, tais como adição, subtração, etc.) extração de raízes, e após também ter adotado uma notação para o conceito geral das quantidades segundo relações diversas das mesmas, segundo certas regras universais apresenta na intuição todas as operações produzidas e modificadas pela quantidade. Onde uma quantidade deve ser dividida por outra, a matemática compõe os caracteres referentes a ambas segundo a forma designadora de divisão, e assim por diante. Assim como a geometria o consegue por intermédio de uma construção ostensiva ou geométrica (dos próprios objetos), através de uma construção simbólica a matemática atinge paragens jamais acessíveis ao conhecimento discursivo mediante simples conceitos. (CRP, B 745).

Mesmo o procedimento da álgebra com suas equações, a partir das quais a verdade é produzida juntamente com a sua prova mediante uma redução, não chega a ser geométrico; trata-se, contudo de uma construção característica na qual se apresenta na intuição os conceitos inerentes aos sinais, principalmente aqueles que se referem à relação das quantidades - e que, sem nos determos em suas vantagens heurísticas, assegura todas as inferências contra erros pelo simples fato de pô-los à nossa vista. (CRP, B 762).

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Entendemos que quando Kant afirma que a álgebra “abstrai completamente da natureza do objeto... ”, poderíamos compreender essa frase como referida a objetos construídos ostensivamente, objetos que o método algébrico considera abstratamente por meio de sinais. Na continuidade, quando afirma “Então escolhe uma certa notação para todas as construções...”, parece estar se referindo a um procedimento que é simbólico e que ocorre por combinação de signos, segundo certas regras, conforme a manipulação simbólica concebida pré-criticamente. Com efeito, na Investigação, como vimos, Kant concebia o conhecimento matemático como resultado de manipulações com signos, a partir de alguns princípios. Os signos eram considerados substitutos dos conceitos e poderiam ser ligados segundo algumas regras e alguns princípios, que levariam a uma conclusão. A combinação entre os signos que estão pelos conceitos corresponderia à combinação entre os próprios conceitos. Nos procedimentos por combinação de signos não se é necessário considerar os conceitos, pelos quais os signos estão, para chegar a uma conclusão certa e verdadeira, pode-se voltar a eles apenas no final da prova. A concepção kantiana a respeito dos procedimentos matemáticos, dessa maneira, se identifica, ao menos em parte, com a noção de conhecimento simbólico de Leibniz. O conhecimento simbólico é aquele que adquirimos a partir da combinação cega e mecânica entre os signos. Esse conhecimento permite a abreviação e visualização das demonstrações. Além disso, a própria demonstração, na maioria dos casos, somente é possível por meio do procedimento simbólico.

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As construções simbólicas, apresentadas por Kant na CRP, concebidas como procedimentos de manipulações de signos segundo regras, permitem que se “abstraia completamente da natureza do objeto” e se compute com os signos segundo “uma certa notação”. Porém, tal construção não se restringe a uma mera manipulação de signos, pois, como escreve Kant, “através de uma construção simbólica a matemática atinge paragens jamais acessíveis ao conhecimento discursivo mediante simples conceitos”. Isso nos leva a considerar que o procedimento simbólico desta construção, ainda que manipule signos sem levar em conta os conceitos pelos quais os signos estão, tem correspondentes intuitivos como suposto. Assim, as construções simbólicas são procedimentos que recorrem a computação com caracteres, porém não se restringem a isso. As construções simbólicas conseguem resultados que não são alcançados por simples conceitos porque são respaldadas por construções ostensivas prévias. Também está ligada com esta idéia, de que o que é simbólico se relaciona com o que é intuitivo, a própria concepção de álgebra de Kant. Na segunda citação, B 762, Kant escreve: “Mesmo o procedimento da álgebra com suas equações...”. Esta afirmação parecer deixar evidente que a concepção kantiana de álgebra é de um método (procedimento) que, com suas equações, resolve problemas aritméticos e geométricos. É explícito que Kant está se referindo a álgebra como um procedimento e não como uma teoria. Se Kant concebe a álgebra aos moldes dos matemáticos do século XVII, então é possível afirmar que as construções realizadas na álgebra se remetem, em última instância, a construções ostensivas. Com relação a este ponto, é importante ressaltarmos também, que na citação anterior, B745, “Todavia, a matemática não constrói só quantidades

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(quanta), como na geometria, mas também a pura quantidade (quantitatem), como na álgebra (Buchstabenrechnung)”, a palavra que utilizada em alemão, se traduzida literalmente, significa “contagem com letras” ou “cálculo com letras”, o que corrobora a idéia de que Kant não se referiu à uma ciência “álgebra”, mas a um “método algébrico”, enquanto um procedimento que calcula com letras. Na Carta a Rehberg, a concepção kantiana de álgebra como um método e o pressuposto ostensivo relativo às construções simbólicas parece evidenciar-se. Ao considerar que a álgebra nomeia, em contraposição à aritmética e a geometria que constroem ostensivamente, Kant a considera como uma linguagem, sob a qual é possível expressar conceitos que são construídos ostensivamente de outro modo. Quando se refere a

a como

um conceito algébrico abstrato, que pode referir-se a um segmento de linha ou a um número, Kant está considerando um modo geral e simbólico pelo qual nos referimos a “objetos” geométricos ou aritméticos. No caso da geometria

a sempre poderá ser construída, pois há uma construção

ostensiva que “exibe” a

a , seja a tomado como qualquer segmento.

Desse modo, o conceito algébrico de

a , que consiste na média

proporcional entre a unidade e a, pode ser expresso simbolicamente pela álgebra, porém, sua “exibição intuitiva a priori” não se dá nesta manipulação, mas numa construção ostensiva (da geometria ou da aritmética) que lhe é subjacente. O problema é que nem sempre isto é possível aritmeticamente, como o caso de 2 , por exemplo, cuja construção aritmética não é possível. Com base nisso, acreditamos que a noção kantiana de álgebra é de que esta não é exatamente álgebra no sentido contemporâneo do termo, mas

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método algébrico. Tal método, de natureza eminentemente simbólica, permite ganhar conhecimento matemático. O que nos sugere que, mesmo com construções ostensivas correspondentes, nas construções simbólicas há manipulação mecânica de signos, tal como Kant concebia na Investigação. Assim, a construção simbólica é uma “herança”, ainda que modificada, do pensamento pré-crítico kantiano. Do mesmo modo, é uma tese que também possui traços de uma herança leibniziana, proveniente da idéia de conhecimento simbólico. Porém, diferentemente de Leibniz, cuja concepção de simbólico se opõe a intuitivo (salvo exceções), Kant pensa que os conhecimentos obtidos por construção simbólica também são intuitivos. Em outras palavras, o que é simbólico é, igualmente, intuitivo, sendo que aquele supõe esse.

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