A Construção social e institucional do homicídio: da perícia em local de morte à sentença condenatória

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Descrição do Produto

Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Klarissa Almeida Silva

A Construção Social e Institucional do Homicídio Da perícia em local de morte à sentença condenatória

Rio de Janeiro Abril de 2013

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Silva, Klarissa Almeida. A Construção Social e Institucional do Homicídio: Da perícia em local de morte à sentença condenatória/ Klarissa Almeida Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2013. xvii, 256f.: il., 29,7cm. Orientador: Michel Misse. Coorientadora: Joana Vargas. Tese (Doutorado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2013. Referências Bibliográficas: f. 213-225. 1.Sociologia do Crime e da Violência. 2. Construção Social e Institucional. 3. Homicídio Doloso. 4. Sistema de Justiça Criminal. 5. Criminação-IncriminaçãoSujeição Criminal. I. Misse, Michel. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. A Construção Social e Institucional do Homicídio: Da perícia em local de morte à sentença condenatória.

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A Construção Social e Institucional do Homicídio Da perícia em local de morte à sentença condenatória

Klarissa Almeida Silva

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas (Sociologia do Crime e da Violência).

Orientadores: Prof. Dr. Michel Misse Profa. Dra. Joana Vargas

Rio de Janeiro Abril de 2013

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A Construção Social e Institucional do Homicídio: Da perícia em local de morte à sentença condenatória

Klarissa Almeida Silva Michel Misse Joana Vargas Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas (Sociologia do Crime e da Violência).

Aprovada por: Presidente, Prof. Dr. Michel Misse, UFRJ/ IFCS/ PPGSA (Orientador)

Profa. Dra. Joana Domingues Vargas, UFRJ/ NEPP-DH/ PPGSA (Coorientadora)

Profa. Dra. Jacqueline Sinhoretto, UFSCar/ PPGS

Prof. Dr. José Luiz de Amorim Ratton Júnior, UFPE/ PPGS

Profa. Dra. Elina Gonçalves da Fonte Pessanha, UFRJ/ IFCS/ PPGSA

Prof. Dr. José Ricardo Ramalho, UFRJ/ IFCS/ PPGSA

Suplentes:

Profa. Dra. Kátia Sento-Sé Mello, UFRJ/ ESS

Prof. Dr. Jean François Véran, UFRJ/ IFCS/ PPGSA Rio de Janeiro Abril de 2013

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Dedico este trabalho à minha família! Vó Neném Alezandro, Anália Kíssila, Claret, Luísa e Lígia

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Agradecimentos

É comum, no meio acadêmico, que os autores de teses e dissertações iniciem seus agradecimentos pelas instituições governamentais de incentivo à formação de pessoal em ensino superior ou de fomento à pesquisa científica, agências responsáveis pela distribuição de bolsas de estudos dentre os programas de pós-graduação no Brasil. Eu fugirei a esta regra por motivos óbvios, já que não fui contemplada com uma das referidas bolsas de estudo. Ao longo desses quatro anos, um tempo repleto de alternâncias, aprendi a valorizar o lado positivo das adversidades. E é por essa razão que, felizmente, escrevo meus agradecimentos direcionados exclusivamente a pessoas. Por causa disso, também, eles ocuparão mais páginas que o convencional. Ao longo desses quatro anos, indiscutivelmente adquiri uma bagagem pessoal que extrapola este doutoramento. Dias antes de inserir o ponto final nesta tese, perguntei-me silenciosamente se ter cursado este doutorado, sem bolsa de estudos, havia comprometido o meu trabalho e ponderei pela resposta negativa. Entretanto, tenho que reconhecer que este trabalho acadêmico é, certamente, um retrato, um reflexo, deste contexto. Inicio meus agradecimentos ao meu orientador, professor Michel Misse que, de forma heroica, supriu as necessidades materiais fundamentais ao desenvolvimento de um doutorado. Diante da ausência da bolsa, ofereceu-me trabalho digno e altamente enriquecedor à minha formação profissional dentro das pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU). Agradeço-lhe os inúmeros incentivos e, acima de tudo, o seu conhecimento teórico e metodológico, compartilhado de modo humilde. Em paralelo, agradeço especialmente à professora Joana Vargas. Sua confiança em meu trabalho superou o campo profissional reservado à coorientação. Além do apoio estrutural, apresentando-me ótimas oportunidades de trabalho que me adicionaram experiência, Joana, muito cordialmente, abrigou esta mineira em sua casa nos momentos em que residir no Rio de Janeiro mostrava-se como um desafio superior ao doutoramento. Sem este apoio, incontestavelmente, estas páginas não teriam sido escritas. Agradeço aos professores que aceitaram avaliar este trabalho acadêmico, compondo a Banca Examinadora: Profa Dra Jacqueline Sinhoretto (UFSCar), Prof. Dr. José Luiz de Amorim Ratton (UFPE), Profa. Dra. Elina Pessanha (PPGSA-UFRJ), Prof. Dr. José Ricardo Ramalho (PPGSA-UFRJ), Profa. Dra. Kátia Sento-Sé Mello (ESS-UFRJ) e Prof. Dr. Jean François Véran (PPGSA-UFRJ).

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Faço um agradecimento à professora Elina Pessanha que, enquanto coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), ouviu a principal reivindicação dos alunos de doutorado: a necessidade de bolsas de estudo para boa parte de nós. A bandeira levantada no decorrer de 2009, enquanto eu era a representante dos doutorandos, foi apoiada por outros professores e, desta maneira, foram concedidas bolsas de estudo a dezenas de doutorandos não bolsistas ao longo de dez meses, entre abril e dezembro de 2010. Foi nessa época que eu pude ter um pouco de calma e tranquilidade para dedicar-me exclusivamente ao desenvolvimento de meu trabalho de Qualificação. No ensejo, agradeço aos professores que compuseram a Comissão de Auxílio Acadêmico do PPGSA, fornecendo-me financiamentos para participação em congressos e execução de trabalho de campo. Esses auxílios foram fundamentais para o desenvolvimento de meu doutorado. Meu cordial cumprimento às secretárias do PPGSA, Cláudia, Denise, Verônica e Ângela, que sempre me atenderam com presteza e educação. Agradeço aos professores com quem tive a oportunidade de cursar disciplinas que muito me acrescentaram: André Botelho, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, José Ricardo Ramalho, Neide Esterci e, novamente, Michel Misse e Joana Vargas. Meus cumprimentos à equipe do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU), muito especialmente a Heloísa Duarte, sempre preocupada com meus pagamentos nos dias programados e com as burocracias inerentes ao curso. Ela me ensinou o caminho das pedras e, assim, ele se tornou menos difícil: Obrigada, Helô! Agradeço especialmente ao professor Alexandre Werneck pela gentileza e disponibilidade em ouvir-me, indicando-me livros, filmes, fazendo-me refletir sobre muitos resultados de meu trabalho. Minha lembrança aos professores colaboradores do NECVU: Kátia Sento-Sé Mello, Luiz Eduardo Figueira, Brígida Renoldi, Vívian Paes, Bruno Cardoso, Antônio Luz Costa e Arthur Bezerra. Um abraço aos bolsistas de iniciação científica e pós-graduandos. Às amizades construídas ao longo dos anos de trabalho no Centro de Estudos em Criminalidade

e

Segurança

Pública

da

Universidade

Federal

de

Minas

Gerais

(CRISP/UFMG), especialmente aos professores Cláudio Beato, Ludmila Ribeiro, Bráulio Silva e aos pesquisadores Felipe Zilli do Nascimento e Frederico Marinho. Também a Daniele Viana, Joyce Menezes, Karina Marinho, Rodrigo Fernandes, Vinícius Couto e, muito carinhosamente, Keli Andrade. Quanto ao campo de pesquisa no Rio de Janeiro, agradeço as portas abertas da Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro, especialmente ao Dr. Rivaldo Barbosa,

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Delegado Titular. Aos peritos Denilson Siqueira, Décio Nepomuceno e Alexandre Giovanelli, pelos diálogos sempre ricos e instigadores. Pela cessão das bases de dados, agradeço ao Instituto de Segurança Pública (ISP) do Estado do Rio de Janeiro. E, para finalizar os agradecimentos referentes ao material empírico sobre o Rio de Janeiro, agradeço a Julita Lemgruber e a Ludmila Ribeiro pela oportunidade de trabalhar no Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESeC), quando pude adentrar os corredores do Fórum Central e entrevistar operadores do sistema de justiça criminal. Nesta ocasião, pude trabalhar também com Igor Machado. Agradeço a ele e a Ludmila pela redação conjunta de artigos, os quais me ajudaram bastante a compreender o tema de minha tese. Quanto ao desenvolvimento de meu campo de pesquisa em Belo Horizonte, agradeço ao coordenador do Centro de Arquivos Forenses do Fórum Lafayette, Sr. Bernardo Cambraia, e ao assistente de pesquisa, o mestrando Davy Alves Caminhas. Caminhando para o fim dos agradecimentos, entrando no lado pessoal, meu abraço às amigas da turma de doutorado, Mônica Paranhos, Laura Senna e Paula Menezes e às amigas com quem morei, Juliana Candian, Maria Isabel Macdowell, Raquel Guilherme e Lívia Alcântara. Desejo a vocês todo sucesso em suas trajetórias profissionais! Um abraço a Brígida Renoldi, por confiar-me sua casa em muitas ocasiões. Meu abraço fraterno à sempre amiga Liliane Tomaz e toda sua família: você também faz parte importante desta história, Li! Obrigada por tudo! Um forte abraço na família Duque Platero: Marisa, Norberto e Maíra. O convite para passar uma breve temporada no México foi aceito e eu lá cheguei no Dia dos Mortos de 2011. Essa data específica, bem como todos os dias vividos naquele país, modificou o meu olhar sobre a morte. Desde então, adotei outro estilo de vida, mudança fundamental à construção e finalização deste doutorado. Meu abraço a Ángel e Alícia, casal que cuida de uma família heterogênea e especial. Muito aprendi na casa de Tepoztlán, sob o céu de Guadalupe. De volta ao Brasil, este novo caminho foi se firmando e novas amizades foram construídas. Agradeço muito especialmente a Nonata e Paulo Roberto, a Márcio Pessanha, Roberto Lima, Valéria, Júlia e Zé, Clarice, Kedma, Luiz Manni, Aline Magalhães, Saudade, Lúcio, Maria Inês, Cláudia... todo o pessoal deste grupo e ainda os jovens maduros da Aliança pela Misericórdia. Acima de tudo, reconheço e agradeço os ensinos diários de Raimundo Irineu Serra, Sebastião Mota de Melo e Rita, repassados de modo simples e claro, como são o céu e o mar.

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Agradeço àqueles a quem dedico este trabalho, minha família. Um beijo carinhoso em minha avó, Dona Neném, em meus pais Alezandro e Anália, em minha irmã Kíssila (uma grande patrocinadora de toda esta história), em meu cunhado Claret e em minha sobrinha Luísa, que enche de alegria nossos corações. Meus cumprimentos a meus tios e tias, primos e primas. Meu profundo agradecimento a Lígia Duque Platero, pela convivência que certamente lhe exigiu doses diárias de muita paciência e compreensão. Agradeço sua calma, seu amor e sua paz! A ela também agradeço o cuidado com minha alimentação e meu descanso, com meu trabalho e minha concentração! As páginas que ora apresento foram escritas por uma pessoa transformada por vários fatores, dentre os quais destaco a mudança de território, saindo das montanhas de Leopoldina, Barbacena e Belo Horizonte para chegar à beira-mar do Rio de Janeiro. Aqui, tive o privilégio que poucos pesquisadores têm: o de sentir o seu objeto de estudo, permitindo ser tocado por ele. Estar tão próxima das vítimas de homicídio exigiu-me esforços físicos, psicológicos e emocionais, o que me permitiu compreender o meu ofício de um modo muito singular. Em paralelo, fui abandonando o meu olhar estrangeiro, vivendo diariamente a simplicidade harmônica construída pelo sol, pela lua e pelas estrelas, pelo mar misturado com o céu, pela floresta no meio urbano e pela brisa suave das manhãs e dos fins de tarde, que pairam sobre este território. A Deus, obrigada!

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Morto! Consciência quieta haja o assassino Que me acabou, dando-me ao corpo vão Esta volúpia de ficar no chão Fruindo na tabidez sabor divino! Espiando o meu cadáver ressupino, No mar da humana proliferação, Outras cabeças aparecerão Para compartilhar do meu destino! Na festa genetlíaca do Nada, Abraço-me com a terra atormentada Em contubérnio convulsionador... E ai! Como é boa esta volúpia obscura Que une os ossos cansados da criatura Ao corpo ubiquitário do Criador! (Vox Victimae, Augusto dos Anjos)

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RESUMO A Construção Social e Institucional do Homicídio: Da perícia em local de morte à sentença condenatória Klarissa Almeida Silva

Michel Misse Joana Vargas

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas/Sociologia.

O objeto desta tese é o homicídio doloso, inserido no tema de pesquisa sobre administração e funcionamento do sistema de justiça criminal no Brasil. Em termos teóricos, o estudo é desenvolvido segundo a perspectiva da construção social e institucional da realidade, principalmente a etnometodologia. O objetivo do trabalho é identificar possíveis elementos que determinem a condenação de indivíduos acusados de matar alguém intencionalmente. Em termos metodológicos, foi realizada etnografia em uma unidade de polícia especializada na investigação de homicídios, especialmente junto a uma equipe de perícia. Empreendeu-se análise estatística sobre o rito do tribunal do júri com base em informações extraídas de 154 processos judiciais, os quais foram também analisados qualitativamente. Como principais resultados, destaca-se a importância da denúncia nos momentos de decisão nas duas fases do rito do tribunal do júri. Palavras-chave: Homicídio, Construção Social e Institucional, Sistema de Justiça Criminal, Criminação-Incriminação-Sujeição Criminal.

Rio de Janeiro Abril de 2013

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ABSTRACT The Social and Institutional Construction of Homicide: from the crime scene investigation to the condemnatory sentence Klarissa Almeida Silva

Michel Misse Joana Vargas Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas/Sociologia.

The object of this thesis is the homicide, inserted into the theme of research administration and functioning of the criminal justice system in Brazil. In theoretical terms, the study is developed from the perspective of social and institutional construction of reality, especially from ethnomethodology. The objective is to identify possible factors that determine the sentencing of individuals accused of intentionally killing someone. In terms of methodology, ethnography was held in a police unit specialized in homicide investigation, specifically with a team of investigators. Statistical analysis was made from information about the trial by jury based from data extracted from 154 processes, which were also analyzed qualitatively. The main results highlight the importance of accusation in moments of decision in the trial by jury. Kew-words: Homicide, Social and Institutional Construction, Criminal Justice System, Crimination-Incrimination-Criminal Subjection.

Rio de Janeiro Abril de 2013

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Lista de Siglas CEARFO – Centro de Arquivo Forense do Fórum Lafayette CF – Constituição Federal CESeC – Centro de Estudos de Segurança e Cidadania CP – Código Penal CPB – Código Penal do Brasil CPP – Código de Processo Penal CRISP – Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública CSI – Crime Scene Investigation DCcV – Delegacia de Crimes Contra a Vida DGPTC – Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica DH – Divisão de Homicídios FBI – Federal Bureau of Investigation GELC – Grupo Especial de Local do Crime GI – Grupos de Investigação GIC – Grupo de Investigação Complementar ICCE – Instituto de Criminalística Carlos Éboli IIFP – Instituto de Identificação Félx Pacheco IML – Instituto Médico Legal IPPGF – Instituto de Pesquisas e Perícia em Genética Forense ISP – Instituto de Segurança Pública JECRIM – Juizados Especiais Criminais MP – Ministério Público NECVU – Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana PCERJ – Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro PMERJ – Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro PRPTC – Posto Regional de Polícia Técnico-Científica RO – Registo de Ocorrência

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SDP – Seção de Descoberta de Paradeiros SENASP – Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça SESEG – Secretaria do Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro SESOP – Setor de Suporte Operacional SIP – Setor de Inteligência Policial SPSS – Statistical Package for the Social Sciences TJERJ – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro TJMG – Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais UCAM – Universidade Cândido Mendes UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro VPI – Verificação de Procedência da Informação

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Lista de Ilustrações Tabela 1 - Exemplos de operadores, documentos e nomeação dos acusados de acordo com cada instituição que compõe o sistema de justiça criminal no Brasil. .................................................................................................... 10 Figura 1 - O Grupo Especial de Local do Crime (GELC) na Divisão de Homicídios ........................................... 63 Figura 2 - Fluxograma do trabalho de perícia e dos laudos periciais na Divisão de Homicídios .......................... 65 Quadro 1 - Comparação entre tipificações produzidas por peritos criminais e delegados de polícia sobre eventos de mortes violentas: Divisão de Homicídios, Cidade do Rio de Janeiro, Números absolutos, Fevereiro e Março de 2012. ................................................................................................................................................................. 68 Figura 3 - Organograma do Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica ................................................... 71 Figura 4 - Planta ilustrativa da sala da Perícia na DH ........................................................................................... 75 Tabela 2 - Números absoluto e percentual válido dos registros feitos pela Perícia Criminal da Divisão de Homicídios: Dias da Semana, Rio de Janeiro, fevereiro e março de 2012. ........................................................... 79 Tabela 3 - Número absoluto e percentual válido dos registros feitos pela Perícia Criminal da Divisão de Homicídios: Turnos do Dia, Rio de Janeiro, fevereiro e março de 2012. .............................................................. 80 Tabela 4 - Número absoluto e percentual válido dos registros feitos pela Perícia Criminal da Divisão de Homicídios: Bairros da ocorrência, Rio de Janeiro, fevereiro e março de 2012. .................................................. 81 Figura 5 - Exemplo de fotografia de fragmentos de impressões digitais coletada em veículo .............................. 84 Figura 6 - Perícia de local do crime realizada segundo o modelo da Divisão de Homicídios, Rio de Janeiro, 2012 ............................................................................................................................................................................. 105 Figura 7 - Fluxograma dos principais procedimentos do processo de incriminação no rito do tribunal do júri. . 119 Tabela 5 - Fluxo no rito do tribunal do júri: processos de indivíduos incriminados por homicídio doloso consumado, Belo Horizonte, janeiro/2013. ......................................................................................................... 121 Tabela 6 - Fluxo no rito do tribunal do júri: processos de indivíduos incriminados por homicídio doloso consumado de acordo com o ano do evento registrado, Belo Horizonte, janeiro/2013 ....................................... 123 Tabela 7 - Medidas de tendência central para o tempo (em dias) decorrido entre as etapas do processo de incriminação no rito do tribunal do júri: processos dos indivíduos acusados de homicídio doloso, Belo Horizonte, janeiro/2013. ........................................................................................................................................................ 124 Tabela 8 - Distribuição do número absoluto e relativo dos resultados das sentenças finais no rito do tribunal do júri: Belo Horizonte, janeiro/2013. ...................................................................................................................... 125 Tabela 9 - Distribuição do número absoluto e relativo quanto a cumprimento da pena estipulada na sentença condenatória: Belo Horizonte, janeiro/2013 ........................................................................................................ 126 Quadro 2 - Descrição das variáveis ..................................................................................................................... 128

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Quadro 3 - Especificação das variáveis correlacionadas ..................................................................................... 129 Tabela 10 - Correlações entre variáveis legais, contextuais e individuais x sentenças condenatórias; e entre variáveis legais, contextuais e individuais x cumprimento da pena fixada na sentença: Belo Horizonte, janeiro/2013. ........................................................................................................................................................ 131 Gráfico 1 - Percentual do número de processos de indivíduos incriminados por homicídio doloso de acordo com a tipologia de homicídios: Belo Horizonte, janeiro/2013. ................................................................................... 136 Tabela 11 - Fluxo no rito do tribunal do júri: processos de indivíduos incriminados por homicídio doloso consumado: Tipologia, Belo Horizonte, janeiro/2013 ......................................................................................... 137 Tabela 12 - Medidas de tendência central para o tempo (em dias) decorrido entre as etapas do processo de incriminação no rito do tribunal do júri: processos dos indivíduos acusados de homicídio doloso: Tipologia, Belo Horizonte, janeiro/2013 ....................................................................................................................................... 138 Tabela 13 - Distribuição do número absoluto e percentual sobre sentença com resultado condenação e cumprimento da respectiva pena, de acordo com os dois principais tipos de homicídios: Belo Horizonte, janeiro/2013. ........................................................................................................................................................ 139 Gráfico 2 - Rio de Janeiro: Registros de homicídio doloso produzidos pela Polícia Civil, na Capital, entre 2002 e 2010 ..................................................................................................................................................................... 175 Tabela 14 - Rio de Janeiro: Registros de mortes violentas e de homicídio doloso produzidos pela Polícia Civil, na Capital e no Estado, em 2009, 2010 e 2011 ........................................................................................................ 175 Tabela 15 - Número absoluto e percentual de eventos classificados como mortes violentas (segundo tipos) e de eventos classificados como homicídio doloso (segundo arma utilizada): Polícia Civil, Cidade do Rio de Janeiro, 2009, 2010 e 2011. .............................................................................................................................................. 176 Tabela 16 - Rio de Janeiro: Situação em abril de 2012 dos procedimentos referentes a mortes violentas (incluindo homicídio doloso) e apenas a homicídio doloso instaurados na Capital em 2009, 2010 e 2011, número absoluto e percentual válido. ............................................................................................................................... 179 Gráfico 3 - Rio de Janeiro: Situação em abril de 2012 dos procedimentos referentes a homicídio doloso instaurados na Capital em 2009, 2010 e 2011, número absoluto. ........................................................................ 180 Gráfico 4 - Número de inquéritos de homicídio doloso relatados à justiça até abril de 2012, segundo o mês de instauração do inquérito. ..................................................................................................................................... 181 Tabela 17 - Número absoluto e percentual válido dos procedimentos da Divisão de Homicídios, por tipo de ocorrência: Rio de Janeiro, Capital, fevereiro e março de 2012 (data da coleta: 17 de abril de 2012). ............... 183 Figura 8 - Número absoluto de registros na Divisão de Homicídios, na Perícia Criminal e na Papiloscopia: Rio de Janeiro, Fevereiro e Março de 2012. ................................................................................................................... 185 Quadro 4 - Principais mudanças quanto às regras de procedimento da primeira fase do rito do tribunal do júri.190 Quadro 5 - Principais mudanças quanto às regras de procedimento da segunda fase do rito do tribunal do júri. 191 Figura 9 - Ilustração de uma sala de plenário do tribunal do júri. ....................................................................... 193

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Sumário Introdução ................................................................................................................................................1

Capítulo 1 - Para compreender um objeto de estudo: teorias e metodologias........................................22

PARTE I Criminação e Incriminação Capítulo 2 - A Polícia Civil no Rio de Janeiro .......................................................................................55 Capítulo 3 - A construção do inquérito policial de homicídio doloso: da perícia em local de morte ao inquérito relatado .................................................................................................................................. 70

PARTE II Incriminação e Sujeição Criminal Capítulo 4 - O Rito do Tribunal do Júri em Belo Horizonte ................................................................113 Capítulo 5 - A construção do processo judicial de homicídio doloso: da denúncia à sentença condenatória ........................................................................................................................................ 142

PARTE III Mudanças institucionais-legais Capítulo 6 - Mudanças na Polícia Civil no Rio de Janeiro ..................................................................174 Capítulo 7 - Mudanças no Rito do Tribunal do Júri .............................................................................187

Notas Conclusivas: A construção social e institucional do homicídio doloso .....................................207

Referências Bibliográficas ...................................................................................................................213

Anexos .................................................................................................................................................226 Anexo 1 - Descrições etnográficas: as perícias em locais de morte ................................................ 226 Anexo 2 - Fluxograma: o processo de incriminação no rito do tribunal do júri ............................. 239

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Introdução Charles Wright Mills e Max Weber ensinam que a ciência social é uma vocação. Ela é como um ofício para aquele que escolhe este caminho e, por isso, o cientista social não separa seu trabalho de sua vida (MILLS, 1975[1959]). É interessante pensar sobre essa lição quando a proposta é estudar o homicídio doloso1. Perguntei-me inúmeras vezes o porquê de estudar tal objeto e essa inquietação se mostrava tão mais presente quanto mais eu me aprofundava em meu trabalho.

A descrição de meu ofício

O interesse pelo estudo do homicídio adveio de circunstâncias mais práticas que teóricas, quase por acaso, quando ainda cursava a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de Minas Gerais, entre 2000 e 2004. Essa história começa com a necessidade de trabalhar e com a existência de uma vaga para bolsista de iniciação científica no Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública (CRISP). Candidatei-me, fui aprovada, e minha primeira tarefa como assistente de pesquisa foi coletar dados em denúncias de homicídio, redigidas pelos promotores de justiça. Todas as tardes, após as aulas, durante alguns meses de 2001, tomava o ônibus no 5102 rumo ao Fórum Lafayette, levando comigo uma maleta de couro contendo um grande e pesado notebook. Tinha 21 anos de idade e passava minhas tardes nos gabinetes dos promotores de justiça das duas varas criminais do rito do tribunal do júri da comarca de Belo Horizonte. Minha tarefa era muito simples! Consistia em extrair das denúncias informações sobre perfil dos acusados e das vítimas, das ocorrências registradas e das denúncias propriamente ditas, de modo a sistematizá-las em uma base de dados no formato do SPSS2. Lembro-me do

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De acordo com o Código Penal do Brasil, 2013: “Homicídio simples - Art. 121 - Matar alguém: Pena reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. Caso de diminuição de pena: § 1º - Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Homicídio qualificado: § 2º - Se o homicídio é cometido: I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II - por motivo fútil; III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. 2 Software da IBM® específico para análises de dados estatísticos: Statistical Package for the Social Sciences.

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dia em que cheguei para o coordenador de equipe do CRISP e sugeri a criação de uma variável no banco de dados que traduzisse aqueles termos jurídicos - a mim ininteligíveis - e que pudesse nos auxiliar na compreensão daqueles dados que eram bastante novos para o CRISP, cuja tradição era a de trabalhar com dados produzidos pelas polícias. Eu estava sugerindo, de um modo bastante ingênuo, a criação de uma tipologia dos homicídios que se basearia mais nas relações entre vítimas e agressores e nas circunstâncias em que o homicídio ocorrera, do que nas tipificações contidas naqueles documentos. Ele concordou e, desde esse dia, embora de modo inconsciente, eu começava a construir o meu projeto para a seleção de mestrado. Eu só perceberia isso dois anos depois, quando me vi habilitada para iniciar minha pós-graduação no início de 2004. Retornei às salas dos promotores de justiça e voltei a consultar outras denúncias para construir uma nova base de dados que subsidiaria o desenvolvimento de minha dissertação, defendida em 2006. Ponderei, poucos meses após a conclusão do mestrado, que seria interessante verificar “onde essas denúncias estariam”. O que aconteceria depois da denúncia oferecida? Os acusados teriam sido condenados? O processamento estaria sendo rápido ou lento? Haveria diferenças quanto aos tipos de homicídios? Várias perguntas foram surgindo e eu busquei, anualmente, essas informações no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, agregando-as à minha base de dados. Para compreender essas novas variáveis, tornou-se necessário mergulhar nos estudos sobre funcionamento do sistema de justiça criminal no Brasil. E assim, aos poucos, fui inserindo-me no tema que abriga o meu objeto. Mais que isso, fui abandonando uma linha de estudos que descrevia o homicídio como um fenômeno dado para inserir-me em uma perspectiva que compreendia o homicídio como uma construção social. Tornava-se necessário buscar outro caminho, externo à UFMG. Foi somente no final de 2007 e início de 2008 que uma questão para o desenvolvimento de uma tese começou a surgir. E isso adveio de dois episódios amplamente divulgados pela imprensa, a morte de duas crianças: João Hélio e Isabella Nardoni. A primeira fora vítima de latrocínio e a segunda, de homicídio. Interessava-me compreender por que os acusados pela morte de João Hélio foram processados pelo rito ordinário e os de Isabella pelo rito do tribunal do júri. A questão formulada no projeto de pesquisa apresentado na seleção deste doutorado, no final de 2008, era obviamente mais complexa. Eu estava interessada em saber por que os roubos seguidos de morte, os latrocínios, eram considerados “crimes contra o patrimônio” e não “crimes dolosos contra a vida”. Imaginava que observando os procedimentos do rito ordinário e os do rito do tribunal do júri eu poderia

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compreender os elementos que subsidiam tal distinção. O interesse comparativo foi diminuindo à medida que o “caso Isabella” foi se mostrando repleto de peculiaridades, enquanto o “caso João Hélio” foi rapidamente esclarecido, com a confissão dos acusados, que foram presos e condenados pouco tempo depois do evento. Embora tenha sido um motivador para a elaboração de minha proposta de estudo, não fiz do “caso Isabella” uma metodologia de estudo de caso para o desenvolvimento desta tese, tal como bem fez Figueira (2008) com o caso que ficou conhecido como “o sequestro do ônibus 174”. Meu objetivo é compreender como meu objeto de estudo, o homicídio doloso, é construído social e institucionalmente3 pelos profissionais das organizações que compõem o sistema de justiça criminal no Brasil. Descreverei o “caso Isabella”, que também ficou conhecido como “o caso Nardoni”, como uma ilustração do que abordo nesta tese. Acompanhei o caso como qualquer pessoa mais interessada o faria. Não procurei ter acesso ao processo nem tampouco tentei presenciar a sessão de julgamento. Apenas fui recolhendo um bom material de imprensa sobre o assunto e tomando notas de quando em vez sem me preocupar em referenciar a maior parte dessas fontes. Minha descrição é, portanto, uma interpretação de várias interpretações.

Ilustrando o objeto: o caso Isabella Nardoni Em 29 de março de 2008, Isabella Nardoni, 5 anos de idade, morreu “de causa violenta, por asfixia mecânica por ação vulnerante de agente físico-mecânico e politraumatismo por ação contundente”, de acordo o laudo de exame de corpo de delito (ISTOÉ, 2010, p.72). De modo menos técnico, e como repetido incansavelmente pela imprensa na época, Isabella morreu em decorrência de esganadura combinada com uma série de lesões e fraturas e, principalmente, foi arremessada da janela do apartamento localizado no 6º andar, onde morava com seu pai, sua madrasta e seus dois irmãos menores. Ao longo dos dois anos que se passaram entre a morte da menina e o julgamento dos acusados de a terem matado, o pai Alexandre Nardoni e a madrasta Anna Carolina Jatobá Nardoni, os brasileiros foram constantemente relembrados do caso. Através dos meios de comunicação, a instrução criminal no rito do tribunal do júri pode ser acompanhada como uma novela, que teve seu grande final com um julgamento em cinco dias, entre 22 e 26 de 3

A expressão “construção social e institucional do crime” vem sendo introduzida por Joana Vargas através de seus trabalhos mais recentes, como modo de ampliar a ideia de construção social do crime (Vargas, 2012; Vargas, 2013, no prelo).

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março de 2010. Afora a comoção pública decorrida das circunstâncias em que a menina morreu, o caso chamou a atenção pelas novidades que seriam apresentadas na sessão de julgamento pelo rito do tribunal do júri e pelo tamanho do processo judicial, composto por cinco mil páginas distribuídas em vinte e seis volumes. O caso foi marcado pela ausência de testemunhas e pela não confissão dos acusados, que foram presos dias depois do evento. Uma vez presos, esperava-se que Alexandre acusasse Anna Carolina e vice-versa, o que não aconteceu. Em seus respectivos interrogatórios tomados separadamente, ambos mantinham sempre a mesma versão, não apresentando contradições entre um relato e outro. Diante disso, as provas científicas, produzidas pela chamada polícia técnico-científica, protagonizaram o processamento. Pela primeira vez se viu a presença da figura do assistente técnico, “profissional especializado e legitimado para contestar ou ratificar aquilo que os peritos oficiais, representando o Estado, apresentam como fato, podendo funcionar para quem acusa ou para quem defende” (ISTOÉ, 2010, p.70). Acusação e defesa concordavam com a qualidade e eficiência das “provas” produzidas pela perícia, mas discordavam quanto aos resultados. De um lado, a acusação dizia que “a perícia foi eficiente: colheu o que lhe era possível e permitiu uma boa visão sobre o que se passou na noite do crime”, argumentava o promotor de justiça Francisco Cembranelli. De outro, a defesa ponderava: “não questiono a perícia e sim a conclusão à qual chegaram. O problema é o modo subjetivo como interpretaram as provas periciais”, dizia o advogado Roberto Podval. Recognição visuográfica do evento acompanhada pelo promotor de justiça e uma equipe contendo vários profissionais da perícia de São Paulo, uso do reagente Bluestar que fornece uma coloração azul indicativa de sangue, exame de DNA para confirmar se as manchas de sangue encontradas em uma fralda eram de Isabella, marcas na camisa de Alexandre produzidas por contato com a tela de proteção fixada na janela de onde Isabella fora arremessada, quebra de sigilo telefônico visando “provar” que os acusados estavam em casa no exato momento em que Isabella morreu, foram algumas dentre muitas outras “provas” periciais. Todas essas novidades somadas, ainda, às alterações em muitos artigos do Código de Processo Penal que entraram em vigor em meados de 2008, levaram alguns especialistas, como o perito Raphael Martello, a dizer que “o júri do caso Isabella é o grande divisor de águas”. Acreditava-se, por tudo isso, que

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“a época dos julgamentos nos quais só se ouvia um milhão de vezes a expressão ‘nobre colega’ e apenas se via teatralidade nos tribunais será definitivamente deixada para trás a partir de 22 de março. Irão valer, daqui para frente, as provas técnicas e, acima disso, a avaliação dessas provas pelos assistentes” (ISTOÉ, 2010, p. 73).

A defesa esperava um júri justo: “os Nardoni já vão chegar condenados. Nossa expectativa é ter ao menos a possibilidade de esclarecer o que aconteceu.”, dizia o advogado que sustentava a tese de que fora uma terceira pessoa que entrara no apartamento enquanto Alexandre havia deixado Isabella por alguns minutos sozinha no apartamento, dormindo em sua cama. O advogado apostava também em um erro principal da perícia: o mesmo médico legista que assinou o laudo de corpo de delito cujo trecho transcrevi no início, assinou a certidão de óbito afirmando que a “causa morte [era] indeterminada (aguarda exames complementares)”. Sustentava, assim, que a perícia pode falhar. Do outro lado, a acusação: “tenho absoluta confiança de que os jurados chegarão à mesma conclusão que eu, a de que o único resultado admissível é que foram os Nardoni”, acreditava o promotor. A expectativa era grande. À frente do Fórum de Santana, em São Paulo, centenas de pessoas acompanharam o julgamento. Foi instalado um telão para que todos pudessem acompanhar a sessão. Ao fim do quinto dia, o resultado: ambos foram condenados por homicídio doloso triplamente qualificado4 conforme decisão do conselho de sentença formado por sete jurados, quatro mulheres e três homens. A pena de Alexandre fixada pelo juiz foi de 31 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão e a de Anna Carolina, de 26 anos e oito meses de reclusão. Ao final da leitura da sentença pelo juiz-presidente Maurício Fossen, fogos de artifício nas imediações do Fórum em comemoração pelo resultado final: “a justiça foi feita”, “Isabella pode descansar em paz”, como disseram, na ocasião, alguns populares visivelmente emocionados.5 4

De acordo com o Código Penal (BRASIL, 2013), artigo 121, §2º, incisos III, IV e V. O caso Isabella Nardoni gerou, no mínimo, três livros: A Prova é a Testemunha (CASOY, 2010), A Morte de Isabella Nardoni: Erros e Contradições Periciais (SANGUINETTE, 2010) e Caso Isabella: Verdade Nova (PAPANDREU, 2009). Casoy, que assistiu ao julgamento e teve acesso ao processo na íntegra, foi incentivada por uma famosa escritora de novela, Glória Perez, a escrever sobre o caso. O livro, conta, ainda, com prefácio escrito pelo promotor responsável pelo caso, Dr. Cembranelli (VISÃO JURÍDICA, 2010). Em contrapartida, os dois outros livros, cujos autores são médicos legistas, tiveram suas publicações proibidas pela Justiça de São Paulo, em resposta à ação movida pela mãe de Isabella, Ana Carolina Oliveira. Papandreu defende a tese de que Isabella caíra de forma acidental e Sanguinette destaca que houve uma terceira pessoa, um pedófilo que teria abusado sexualmente de Isabella, jogado-a da janela para silenciá-la e saído silenciosamente do apartamento: “Procurem pelo pedófilo!”, insiste. Procurei por esses livros. Pude constatar que o primeiro possui ampla divulgação na internet e pode ser adquirido por cerca de R$ 20,00 a R$ 29,00 (http://www.reidaverdade.com/livro-a-prova-e-a-testemunha-de-ilana-casoy-maisvendido.html,http://www.dihitt.com.br/n/livros/2010/10/13/livro-a-prova-e-atestemunha,http://www.livrariasaraiva.com.br/produto/3529615/a-prova-e-a-testemunha, http://www.escala.com.br/detalhe.asp?id=12307&grupo=64&cat=298), ao passo que os outros dois são apenas 5

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Essas peculiaridades presentes no caso Isabella Nardoni se mostram caras ao meu estudo, no sentido de que permitem a descrição do porquê e do como os trabalhos da perícia criminal foram utilizados de modo substantivo em um “caso especial”, em que não havia testemunhas nem confissões, no qual a vítima era uma criança da classe média paulistana e os acusados, os responsáveis por ela. As provocações em mim causadas pelo “caso Isabella” conjugaram-se com a curiosidade advinda da observação do trâmite processual das denúncias coletadas em meu mestrado. Em um extremo, o modo como o Estado classifica uma morte como homicídio e não como acidente, apoiando-se no trabalho da perícia, e como isso se mostrou determinante para a condenação dos suspeitos. No outro, o quanto indivíduos denunciados por homicídio doloso são pronunciados e posteriormente condenados pelo conselho de sentença. Coloquei-me, então, o desafio de observar e descrever as práticas rotineiras de uma equipe de perícia, bem como analisar documentos de um conjunto formado por 154 processos de indivíduos denunciados pelo ato de “matar alguém”. Entendi que seria fundamental percorrer cada uma das etapas da instrução criminal para um evento criminado como homicídio doloso: desde a perícia em local de morte registrada até a sentença final condenatória. Com isso, busco compreender meu objeto à luz da perspectiva da construção social e institucional desta realidade (BERGER; LUCKMANN, 2002[1985]). Sistema de Justiça Criminal no Brasil: apresentação de um tema 6 de pesquisa

Por sistema de justiça criminal entende-se o conjunto de princípios fundamentais de justiça e implicações da administração da lei que não afetam os direitos invioláveis dos cidadãos, o due process7, que pode ser caracterizado por dois aspectos: um de natureza substantiva e outro de natureza procedimental (INCIARDI, 1996; REICHEL, 2005).8

referenciados em notícias da imprensa (http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/05/em-novo-livro-sobre-ocaso-isabella-medico-diz-que-pedofilo-matou-garota.html, http://pt.wikipedia.org/wiki/Isabella_Nardoni#Controv.C3.A9rsias). 6 “Reconhecemos esses temas porque insistem em serem arrastados para todos os tipos de tópicos e talvez julguemos que se trata de simples repetições. E por vezes o são! É quase certo que estarão, sempre, nos parágrafos mais densos e confusos, mal escritos, de nosso manuscrito” (MILLS, 1975[1959], p. 232). 7 A tradução da expressão “due process of law” não é trivial. Lima (2008, p. 277) chama a atenção para os problemas advindos da tradução demasiado livre feita no Brasil: “devido processo legal”. Ao contrário do Brasil, nos Estados Unidos, essa instituição é uma opção do acusado, a quem é devido (due) pelo Estado, um determinado procedimento judicial. Por essa razão, não a traduzirei. 8 Outra forma de compreender o funcionamento da justiça é através da noção de sistema tal como pensado por Niklas Luhmann. É o que vem sendo feito, no Brasil, por Costa (2012), cujo entendimento é que os “sistemas sociais (como o jurídico) se constituem como tais a partir de uma observação mediante a qual eles diferenciam e

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De acordo com essa perspectiva, características substantivas dos sistemas de justiça provêm os cidadãos de informações sobre comportamentos permitidos e proibidos, explicando quais são os meios adotados de acordo com essas leis para se chegar à punição do acusado de infringir os comportamentos proibidos. Segundo esses autores, elas asseguram aos cidadãos a ausência de arbitrariedades das autoridades legitimadas, garantindo os direitos invioláveis. Uma possibilidade de classificação desses aspectos substantivos resume-se a quatro tradições legais: dos costumes, civil, socialista e islâmica. A tradição legal dos costumes pode ser representada pela confiança nos juízes, enquanto a tradição legal civil se expressa pela confiança nos legisladores. A tradição socialista está ligada à confiança nas várias agências governamentais e a tradição islâmica, na confiança no poder divino (REICHEL, 2005). De outro lado, as características procedimentais englobam técnicas, ou etapas, para assegurar o cumprimento do processo, com vistas a garantir a operacionalização do sistema de justiça. Nesse sentido, há duas possibilidades de classificação: sistemas operados segundo procedimentos acusatórios e sistemas operados segundo procedimentos inquisitoriais. Nos primeiros, a verdade resulta de uma negociação, uma competição, entre Estado e acusado. Nos segundos, a verdade é produto de uma investigação que gera uma disputa entre Estado e acusado (REICHEL, 2005). Entende-se que características substantivas e procedimentais são articuladas da seguinte maneira: os sistemas acusatórios estão ligados à tradição dos costumes e os sistemas inquisitoriais, à tradição civil. Dessa junção criam-se três modelos de revisão judiciária: modelo difuso, modelo concentrado e modelo misturado. A própria nomenclatura nos fornece uma ideia dessa classificação: no modelo difuso, há várias cortes de justiça, enquanto no modelo concentrado, há uma única organização estatal. Já o modelo misturado contém aspectos dos outros dois modelos. O modelo difuso contém os sistemas acusatórios de tradição dos costumes. O modelo concentrado, os sistemas inquisitoriais de tradição civil. O modelo combinado contém aspectos de um e de outro em diferentes momentos (REICHEL, 2005).

designam coisas orientadas por um determinado código binário, [...] entre lícito e ilícito. [...] No Brasil, há vários fatores que não permitem o fechamento operacional necessário para que o sistema se mantenha ‘autopoieticamente’, sem a sobreposição de outros códigos (alopoiese) e com a capacidade de transformar as irritações em seu ambiente em informações sistêmicas” (COSTA, 2012, p.289).

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Ainda com base nesses aspectos substantivos e procedimentais, Inciardi (1996) considera três sistemas de processo judiciário. O sistema inquisitorial, no qual o acusado é considerado culpado antes de provar sua inocência; o sistema investigativo, onde todos os participantes do processo são obrigados a cooperar com a corte durante a investigação do crime e; o sistema acusatório, em que a inocência do acusado é presumida e a responsabilidade de construir a prova de culpa é da corte. Para esse autor, a justiça criminal é considerada como um sistema porque é constituída por três níveis que se ligam formando um conjunto: polícias, tribunais e penitenciárias. Garapon e Papadopoulos (2008) estabelecem uma comparação entre as tradições jurídicas de inquirição e de acusação, culturas de civil law e de common law, presentes respectivamente no direito francês e no direito estadunidense. A civil law advém do direito romano-germânico, que tem como primado o código no qual prevalece a força da lei, uma vez que hierarquiza as disposições em um conjunto exaustivo e coerente, refletindo a intenção legisladora, e, por esta razão, remetendo a uma ideia de lei sagrada. A lei constitui o direito, no qual o juiz é porta-voz. A interpretação feita pelo juiz sobre um fato já está julgada no código e, por isso, constitui, em teoria, um sistema fechado: há “o direito”. Na common law, prevalece a jurisprudência, as normas, as regras, segundo um modelo coordenado. É priorizada a regra do precedente, segundo a qual uma decisão tomada deve ser repetida em casos similares por todas as jurisdições: há “os direitos”. Esta pode ser considerada como um sistema aberto, no qual prevalece um método de distinção a partir de casos de espécie já julgados. Nas palavras dos autores, “se a common law supõe um sujeito livre, autônomo, suscetível de escolher o que melhor lhe convém, as culturas jurídicas continentais colocam a instituição antes de tudo” (GARAPON; PAPADOPOULOS, 2008, p.46). Grinover (1998) traz essa discussão para os modelos judiciários da América Latina e apresenta uma distinção entre o modelo acusatório e o modelo inquisitório. Argumenta a autora que características do sigilo e da forma escrita não são próprias nem peculiares do sistema inquisitório, bem como a publicidade e a oralidade não são exclusivas do sistema acusatório. Ela entende que a publicidade dos procedimentos é uma garantia do due process, bem como a forma oral é uma técnica otimizadora das funções como imediação, concentração e identidade física do juiz. Segundo a autora: “o que distingue o modelo acusatório do inquisitório é que, no primeiro, as funções de acusar, defender e julgar estão atribuídas a órgãos diferentes, enquanto no inquisitório as funções estão reunidas e o inquisidor deve proceder

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espontaneamente. [...] onde aparece o sistema inquisitivo poderá haver investigação policial, ainda que dirigida por alguém chamado juiz, mas nunca um processo.” (GRINOVER, 1998, p. 219-220).

Ainda de acordo com Grinover, a instrução processual penal latino-americana vem caminhando do modelo inquisitório rumo ao modelo acusatório. Nesse sentido, os modelos de instrução processual penal dos países da América Latina podem ser classificados em três tipos: modelo misto clássico, modelo misto intermediário e modelo acusatório. O primeiro se caracteriza pelos princípios do sistema inquisitório, seguindo-se o debate público e oral. O segundo apresenta juizados de instrução caracterizados pelo contraditório, seguindo-se o debate público e oral. Nesse modelo - o sistema misto de instrução contraditória - há a manutenção do processo bifásico, com uma etapa atribuída ao juizado de instrução e outra ao juízo. São distintas as funções do juiz, da acusação e da defesa, atribuídas a órgãos distintos. E o terceiro modelo apresenta um caráter todo público e oral, sem os juizados de instrução, substituídos por investigações preliminares destinadas exclusivamente à formação do convencimento do Ministério Público, conduzidas por este ou pela Polícia Judiciária (GRINOVER, 1998, p.243). Uma forma sintética de descrever o sistema de justiça criminal é entendê-lo como o conjunto de organizações vinculadas ao Estado para o controle e manutenção da ordem social (RIBEIRO; SILVA, 2010, 2012)9. No caso brasileiro, essas organizações são, principalmente: Polícia Militar, Polícia Civil, Ministério Público (e Defensoria Pública), Judiciário e Sistema Penitenciário. Neste sentido, a articulação entre essas organizações pode ser mensurada levando-se em conta ou os papéis referentes aos registros dos eventos tidos como crimináveis e/ou os indivíduos incriminados por esses mesmos atos. Ressalte-se, ainda, que para cada organização que compõe o sistema de justiça criminal, há um correspondente fluxo interno desses papéis e desses indivíduos, tal como pode ser observado na tabela abaixo:

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Trata-se de duas versões diferentes de um mesmo artigo, redigido em coautoria com Ludmila Ribeiro. Farei uso direto dele em algumas partes desta seção.

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Tabela 1 - Exemplos de operadores, documentos e nomeação dos acusados de acordo com cada instituição que compõe o sistema de justiça criminal no Brasil. Principais Instituição Operadores Acusados documentos Coronéis, tenentes (oficialato); Polícia Militar sargentos, soldados e cabos Boletim de ocorrência Suspeitos (praças) Peritos, investigadores, Polícia Civil Inquérito policial Indiciados detetives, escrivães, delegados Ministério Público Promotores de justiça Denúncias Denunciados Defesa prévia, Defensoria Pública Defensores públicos recursos, habeas Assistidos, clientes corpus, etc. Judiciário Juízes Processos, sentenças Réus Prontuários, guias de Sistema Penitenciário Diretores, carcereiros Presos, detentos execução Fonte: Fundação João Pinheiro (1987), Vargas (2000), Ribeiro e Silva (2010, 2012).

No Brasil, a gravidade do evento tido como crime e o quantum de pena determinam o rito de processamento. Assim, o rito ordinário é o procedimento aplicável aos eventos cuja pena máxima prevista é igual ou superior a 4 anos de pena privativa de liberdade. O rito sumário é o procedimento aplicável aos eventos cuja pena máxima privativa de liberdade é inferior a 4 anos, e o sumaríssimo, procedimento aplicável às infrações de menor potencial ofensivo cujas penas máximas não excedam a 2 anos (cumuladas ou não à pena de multa), sendo de competência do Juizado Especial Criminal (JECRIM). Ressalte-se o rito do tribunal do júri, tido como especial e aplicável aos chamados crimes dolosos contra vida, em especial, os homicídios. A existência desses diferentes ritos em um mesmo sistema de justiça criminal torna bastante complexa sua classificação em modelos jurídicos, como os apresentados anteriormente. Grinover (1998) classifica o sistema brasileiro em dois modelos: o misto intermediário e o sistema acusatório sem juizado de instrução. O sistema localiza-se no segundo modelo, quando são considerados apenas os procedimentos da instrução preparatória nos crimes de competência do rito do tribunal do júri. E a instrução para os demais crimes alheios à competência do rito do tribunal do júri permite a classificação do sistema brasileiro no terceiro modelo, o acusatório. Este é caracterizado por uma “fase investigativa prévia, de índole administrativa, destinada exclusivamente à formação do convencimento do Ministério Público quanto à acusação e cujos elementos informais não são considerados provas, nem podem fundamentar a decisão do mérito” (GRINOVER, 1998, p. 250). Argumenta a autora que, segundo as disposições do Código de Processo Penal, a fase instrutória do rito do

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tribunal do júri, que deveria servir apenas ao “juízo de admissibilidade sobre a acusação”, demandaria que o rito do tribunal do júri brasileiro fosse encaixado no terceiro modelo, o totalmente acusatório. Entretanto, segundo suas considerações, a prática tem inflado a instrução da primeira fase do rito do tribunal do júri, fazendo com que as “provas” colhidas nesta fase não sejam apresentadas, repetidas, aos jurados, sendo apenas lidas em plenário (GRINOVER, 1998, p.246). Por seu lado, Lima (2008) demonstra como o campo do direito brasileiro se sustenta sobre três formas de construção de verdades jurídicas: o inquérito policial, o processo e o tribunal do júri. Essas três formas de verdade dotam a justiça brasileira de um caráter ambivalente para não dizer ambíguo. Sustenta Lima que a justiça criminal brasileira pode ser vista como um resultado de um conjunto de importação de vários institutos de produção da verdade. Dessa maneira, é constituída por um “mosaico de construção da verdade” (LIMA, 2008). Esse mosaico se torna ainda mais visível quando são observados os procedimentos adotados para os acusados de eventos criminados como homicídio doloso, já que o rito do tribunal do júri abarca as três formas de verdades jurídicas. Lima (2008) estuda o direito brasileiro segundo uma perspectiva antropológica que se vale de análise comparativa por contraste com o direito estadunidense. Segundo esse autor, a forma como a verdade é buscada no inquérito policial advém de uma herança do direito ibérico que, por sua vez, vincula-se ao direito romano da tradição de civil law e também ao direito canônico. Essa verdade é construída com base na confissão do acusado obtida às vezes pela prática da tortura, no caráter secreto dos procedimentos adotados e na escrita, uma “transcrição autorizada do fato”. Por outro lado, o modo como a verdade é construída no ritual (e não no rito) do tribunal do júri estaria, segundo a chamada doutrina jurídica10, assemelhada à cultura anglo-saxã de tradição da common law. Contrariamente à visão dogmática do direito, Lima argumenta, especialmente no que se refere ao trial by jury11 dos Estados Unidos da América com o qual contrasta o direito brasileiro, que se trata de (pseudo)semelhanças (LIMA, 2009). Para o autor, o direito estadunidense baseia-se na lógica adversarial, “fundada na busca de consensos provisórios sobre fatos”, enquanto o direito brasileiro pauta-se pela lógica do contraditório, “que se explicita pela promoção de um dissenso infinito, o qual só se 10

Por “doutrina” entende-se “uma forma de construção de saber própria do campo jurídico. Trata-se de uma coleção de opiniões de estudiosos a respeito dos institutos jurídicos, da legislação e da jurisprudência” (MENDES, 2012, p. 455). 11 O filme Doze Homens e Uma Sentença (LUMET, 1957) é útil para observarmos como ocorre a decisão no trial by jury.

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interrompe através de uma autoridade externa às partes, que lhe dá um fim e declara uma tese vencedora e a outra, vencida” (LIMA, 2009, p. 29). No presente trabalho, com base nos achados de Lima (1989, 2008, 2009), pretendo explorar qual é efetivamente o peso do inquérito policial na construção do crime de homicídio. Seriam os juízes ou seriam os jurados os motores, ou a parte ativa, da fase judicial do sistema de justiça criminal brasileiro quando se trata do julgamento de crimes dolosos contra a vida? Seriam eles os responsáveis pelo destino dado aos réus acusados de homicídio doloso? Uma forma de olhar para o funcionamento do sistema de justiça criminal é centrar-se na sua capacidade de processar pessoas observando o fluxo dos papéis produzidos pelas organizações que o compõem (COELHO, 1986; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1987). Considera-se o primeiro estudo realizado no Brasil sobre administração do sistema de justiça criminal o de Edmundo Campos Coelho, publicado em 1986, com informações referentes à cidade do Rio de Janeiro. Como fonte de dados, o autor usou estatísticas produzidas pelo então Serviço de Estatística, Demografia, Moral e Política do Ministério da Justiça, com base em inquéritos e processos. Com isso, ele traçou padrões e tendências, desenhando o fluxo de indivíduos indiciados na Polícia, denunciados no Ministério Público, condenados na Justiça e recolhidos à prisão no Sistema Penitenciário, no período entre 1942 e 1967. Tomando o ano de 1967 como referência, o autor identificou que 16% dos indivíduos indiciados nos inquéritos policiais (estelionato, furto, roubo e homicídio) foram sentenciados à pena privativa de liberdade12. Especificamente para as taxas dos eventos tipificados como homicídio, quando comparadas às de roubos, furtos e estelionatos, ele encontra que estas são as mais altas quando correspondentes às denúncias (85%), mas são as mais baixas quando se referem às condenações (54,7%). Coelho (1986) considerou também que a instrução criminal feita no judiciário serviria para sanar as deficiências do inquérito policial, já que se trata de uma repetição do trabalho feito na polícia. Com isso, a justiça ajustaria a sua taxa de produção em relação à polícia, sendo muito mais seletiva do que esta, levando em consideração os custos sociais do crime e os custos de repressão à criminalidade. E, com isso, conforme as palavras do autor: “o que

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Dos 11.930 indiciados por crimes, 6.379 foram denunciados, 2.031 foram condenados e 1.875 sentenciados a penas privativas de liberdade.

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não pode ocorrer é que promotores e juízes produzam réus e sentenciados no mesmo ritmo que a polícia produz indiciados em inquéritos” (COELHO, 2005[1986], p.333). Nesse estudo, Coelho introduz duas ideias que se mostrariam fundamentais aos pesquisadores interessados neste tema. A primeira é a de que a pressão sobre a capacidade de processamento da justiça criminal parece estar determinando a prevalência de princípios burocráticos de eficiência de produção, constituindo ameaça aos direitos do réu a um tratamento justo. A segunda é o aspecto de funil que apresenta o fluxo do sistema de justiça criminal e ser o sistema de justiça criminal constituído de subsistemas frouxamente integrados. Neste sentido, ele incentiva a produção de novos estudos que pudessem examinar essa articulação frouxa, dentre outros, por meio da análise das taxas produzidas pelas organizações que compõem o sistema e das receitas práticas dos profissionais - policiais, promotores e juízes - que atuam nos subsistemas. Seguindo essa orientação, busco, no presente trabalho, identificar como as receitas práticas dos peritos criminais determinam a tipificação de uma morte como homicídio. Exploro também como os laudos confeccionados por estes profissionais são levados em conta na investigação e nas diferentes fases de processamento, indicando o grau de articulação entre os operadores de uma mesma organização - a polícia -, e entre os subsistemas do sistema de justiça criminal como um todo. Dedico-me, especialmente, aprofundando os achados de Coelho (1986), a melhor conhecer o papel do Ministério Público na determinação da condenação por homicídio doloso. Depois da publicação do estudo de Coelho, já em meados dos anos 1990, outras pesquisas sobre fluxo do sistema de justiça criminal no Brasil começaram a ser realizadas. O estudo de Adorno (1994) foi um dos primeiros. Ele mostra que, no Estado de São Paulo, em 1970, do total de pessoas indiciadas na polícia, 75% foram denunciadas no Ministério Público. Destas, 27% foram condenadas. Em 1982, 65% de todos os indiciados foram denunciados e 22% destes foram condenados. Levantamento realizado por Castro (1996), no período compreendido entre os anos de 1991 e 1994, também na cidade de São Paulo, mostra que de cada 100 homicídios praticados contra crianças e adolescentes apenas um caso recebeu sentença condenatória. Segundo a autora, no ano de 1999, para esta metrópole, transitaram pela vara criminal do I Tribunal de Júri cerca de 10 mil processos para apuração de responsabilidade penal em homicídios.

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Destes, aproximadamente 70% foram arquivados pelo promotor de justiça, isto é, não foram denunciados. Nessa mesma época, estudo semelhante foi realizado por Soares et al (1996), sobre trâmite processual de homicídios dolosos ocorridos na cidade do Rio de Janeiro durante o ano de 1992. Para essa localidade, nesse ano, 8,1% dos inquéritos sobre homicídios dolosos e 8,9% dos inquéritos sobre roubos seguidos de morte foram convertidos em processos penais. Ao longo dos anos 2000, o interesse de pesquisadores no tema da administração da justiça criminal no Brasil foi ganhando mais espaço. Pesquisas passaram a ser realizadas em outras metrópoles e algumas consideraram registros de outros eventos além dos homicídios. Vargas (2000, 2004) estudou o fluxo do sistema de justiça criminal para os eventos criminados como estupros, considerando os registros produzidos pela Delegacia de Defesa da Mulher, em Campinas/SP, entre 1988 e 1992. Trata-se do primeiro estudo efetivamente longitudinal realizado, tanto da perspectiva da construção social e institucional do crime (realizada na fase policial), quanto da perspectiva quantitativa interessada, dentre outros, em averiguar a capacidade de processamento do sistema. A partir do acompanhamento longitudinal até 2001 de 444 casos originados nos boletins de ocorrência registrados na delegacia até a condenação, a autora constatou que dos registros iniciais feitos na polícia, 29% apenas tornaram-se inquéritos, enquanto 71% foram arquivados. Dos inquéritos que seguiram até a fase judicial, 55% foram denunciados pelo Ministério Público. Destes denunciados, 58% resultaram em condenação. Contudo, se considerada em relação aos registros iniciais, essa percentagem representa apenas 9% das queixas dadas na polícia. Tavares et al (2003), por sua vez, acompanharam os casos de homicídio doloso registrados na cidade de Marabá/PA durante os anos de 1999 e 2000. Nesse período, foram noticiadas 60 ocorrências de homicídio doloso. Destas, 27 tiveram o inquérito policial instaurado e apenas em um caso o inquérito policial foi encerrado. O estudo mostra que em três anos de pesquisa nenhum dos 60 casos registrados na polícia chegou à fase judicial, que se inicia com a denúncia pelo Ministério Público. Rifiotis (2006) mostra que, entre os anos de 2000 e 2003, dos 546 eventos registrados como homicídio doloso nas delegacias da região metropolitana de Florianópolis/SC, 196 tiveram a indicação de um suposto sujeito-autor. Destes, 183 casos resultaram em processos

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penais e 37 foram julgados até 2006, isto é, apenas 8% do total de registros produzidos pela polícia. Ratton e Cireno mostraram que, entre 2003 e 2004, na cidade do Recife/PE, foram registrados 2.114 eventos criminados como homicídio doloso. Desses registros, 712 se transformaram em inquérito policial, sendo que 322 entraram na primeira fase do rito do tribunal do júri, já que foram denunciados pelo Ministério Público. Até novembro de 2005, 28 denúncias chegaram ao final do rito do tribunal do júri e apenas 17 delas receberam sentença final condenatória (RATTON; CIRENO, 2007). Importante observar que, não obstante o pouco tempo decorrido entre a data de registro do evento feito pelas polícias e a realização do estudo, a taxa de condenação é de aproximadamente 61% se considerado o número de casos que seguiram a instrução criminal do rito do tribunal do júri. Em estudo mais recente para essa mesma cidade, um dos autores constatou que “os inquéritos policiais que foram encaminhados como denúncias representam 27,2% dos casos de homicídio doloso e latrocínio que receberam parecer ministerial no ano de 2007” (RATTON, 2010, p. 241). Estes podem ser considerados como os “casos de sucesso” dentre o conjunto analisado. Essas denúncias correspondem, na grande maioria, a eventos criminados como homicídio doloso (93%) e apresentavam, em média, 6 testemunhas por caso. Dois estudos realizados no Rio de Janeiro utilizaram uma mesma fonte de dados: os registros de ocorrência policial para eventos criminados como homicídio doloso, organizados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) e o número de processos criminais para esses mesmos tipos de eventos iniciados no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Cano (2006) estabeleceu uma comparação entre número de registros na polícia e número de sentenças condenatórias, anualmente, entre 2002 e 2004. Os resultados indicaram que, no ano de 2004, aproximadamente, 10% dos eventos registrados como homicídio doloso na cidade do Rio de Janeiro tiveram como desfecho a sentença condenatória. Por sua vez, Cano e Duarte (2009) utilizaram as informações repassadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro referentes a todos os processos de homicídio doloso e de roubo, que foram iniciados entre os anos de 2000 e 2007 (independente de esses terem sido encerrados ou não). Os autores encontraram que 8% dos registros correspondentes a homicídios e 3% dos referentes a roubos culminaram em uma condenação. Vargas e Misse (2009), comparando a produção decisória da justiça criminal, no Rio de Janeiro, registrada em duas séries históricas, a primeira de 1953 a 1957 e a segunda de

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1997 a 2000, identificaram uma constante nas taxas de seleção policial e esclarecimento de homicídios dolosos no estado do Rio de Janeiro em períodos com meio século de intervalo, girando em torno de 30%. Esses autores chamaram especial atenção à falta de confiabilidade das estatísticas oficiais pré-construídas pelas organizações da justiça criminal para se reconstruir fluxos. Em estudo mais recente, Misse (2010), tomando por base o ano de 2005 e analisando o que aconteceu com os registros das ocorrências verificadas naquele ano, até quatro anos depois, em 2009, mostrou que a taxa de esclarecimento dos homicídios dolosos para a capital do Rio de Janeiro é muito baixa, girando em torno de 15%. Ribeiro (2010) analisou os dados sumarizados pela Fundação SEADE, referentes a todos os casos de homicídio doloso registrados no estado de São Paulo entre os anos de 1991 e 1998. A autora pôde constatar que a maior perda de casos ocorre na passagem da fase policial para a fase judicial. A autora informa que 22% dos casos cujos inquéritos policiais foram instaurados entre 1991 e 1998 resultaram na abertura de um processo penal, ou seja, resultaram em denúncias. Do total de casos registrados pela polícia nesse período, 14% resultaram em uma sentença, sendo 8% de condenação. Adorno e Pasinato (2010) trabalham com um conjunto formado por 344.767 boletins de ocorrência policial, referentes aos chamados crimes violentos (homicídio, roubo, roubo seguido de morte, estupro e tráfico de drogas) e não violentos (furto, furto qualificado e consumo de drogas), registrados em 16 delegacias que compõem a 3ª Seccional de Polícia, situada na região noroeste do município de São Paulo, no período de janeiro de 1991 a dezembro de 1997. De acordo com os autores, aproximadamente 6% dos registros converteram-se em inquérito policial. Essa proporção é um pouco maior (aproximadamente 8%) para crimes violentos. Entre estes, as maiores proporções de registros convertidos em inquéritos correspondem ao tráfico de drogas, que são geralmente fruto de prisão em flagrante (aproximadamente 93%), aos latrocínios (67,2%) e aos homicídios (60,1%). Todos esses estudos apontam a mesma direção: a baixa capacidade de incriminação da justiça brasileira e o ponto de maior gargalo ser a fase policial. Mas nenhum deles explorou efetivamente o que ocorre na fase judicial. Embora não tenha sido seu objetivo mensurar o fluxo do sistema de justiça criminal, Antunes (2013) estabelece uma compreensão sobre como a verdade é construída no rito tribunal do júri de Recife, através de etnografia e de análise de processos que foram localizados a partir do banco de dados utilizado por Ratton (2010). Observando os momentos delimitadores da instrução criminal, desde a fase policial até a

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sessão de julgamento, o autor apresenta dois modelos de construção da verdade: o tradicional e o alternativo. O primeiro é caracterizado pela utilização de provas testemunhais contra o acusado, “acionando específicos processos de incriminação que reforçam representações estereotipadas do réu que tem por função estigmatizá-lo negativamente, inclusive algumas destas incriminações visam assujeitar criminalmente o réu” (ANTUNES, 2013, p. 402). No modelo alternativo, há uma inversão quanto ao estabelecimento da sujeição criminal, este passando a recair sobre a vítima. Nestes, a sentença tende a ser absolutória, principalmente quando as motivações estão ligadas a conflitos afetivos ou conflitos na comunidade. Ele demonstra, dentre outros resultados, que a celeridade em relação ao trâmite do processo do acusado é um determinante de sua condenação, enquanto nos processos tidos como morosos a sentença final é absolutória. Pesquisa mais recente e mais completa sobre a construção do inquérito policial foi realizada em cinco capitais brasileiras, em 2008 e 2009: Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre e Brasília. Dos resultados para os eventos criminados como homicídio, destaca-se que o policial responsável pela investigação desconhece a dinâmica do “local do crime” e, somado a isso, a pesquisa indicou a precariedade quanto à preservação do local (atividade de competência das polícias militares) onde a morte ocorreu, e onde se encontra, portanto, o cadáver da vítima. Junte-se a essa observação, a baixa capacidade de produção das chamadas provas periciais em homicídios, que influencia nas baixas taxas de elucidação13 encontradas para esses crimes, diferentemente do que se observa em países modernos, que apresentam um alto grau de elucidação para eventos desse tipo (MISSE, 2010). O tema da estrutura e modernização da perícia no Brasil vem também ocupando pauta na Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (SENASP/MJ) desde 2004, quando fomentou três pesquisas em diferentes unidades territoriais. No Rio de Janeiro, Misse et al (2006) realizaram um diagnóstico da formação e da capacitação profissional dos peritos criminais, no intuito de propor uma melhor formação profissional. Em São Paulo, Santos Júnior (2006) buscou analisar os diferentes métodos e sistemas existentes e propor a implementação de um novo modelo mais eficiente e adequado às demandas da Criminalística no âmbito da Polícia Federal. Lessa Pinto (2006) procurou analisar os diferentes métodos e 13

Por “taxa de elucidação” entende-se o percentual de inquéritos policiais que se tornam denúncias no Ministério Público (MISSE, 2010).

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sistemas para propor a implementação de um modelo mais eficiente e adequado às demandas da Criminalística no âmbito da Polícia Federal, abarcando as capitais do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belém, Porto Alegre e Goiânia. Seu objetivo foi fornecer dados quantitativos e qualitativos que demonstrassem a real necessidade dos antropólogos forenses nas instituições periciais brasileiras. Dessa maneira, buscava-se apontar as áreas de maior demanda de especialistas, a situação de material “esqueletonizado” já coletado e de cemitérios clandestinos já “prospectados”. Mas, só mais recentemente, em 2012, a Secretaria Nacional de Segurança Pública empreendeu o primeiro diagnóstico nacional sobre perícia criminal, com o objetivo de subsidiar ações de fortalecimento da perícia forense. O diagnóstico mostra que em onze estados do Brasil, a perícia integra a estrutura da Polícia Civil: Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Distrito Federal, Acre, Rondônia, Amazonas, Roraima, Maranhão, Piauí e Paraíba. Nas demais Unidades da Federação, a perícia está vinculada diretamente às secretarias estaduais de segurança pública ou nomenclaturas similares 14. Como resultados principais, o diagnóstico aponta o desconhecimento que a perícia criminal no Brasil tem de si mesma, nacional e localmente (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2012). Se, tal como verificado recentemente, uma maior atenção vem sendo dada à perícia criminal, pouco se sabe sobre o seu papel efetivo na construção de um evento como homicídio, tanto na fase policial quanto nas fases subsequentes. Neste sentido, meu trabalho vem preencher essa lacuna. Quanto à forma de verdade representada pelo processo (LIMA, 2008), o tribunal do júri vem sendo estudado principalmente por antropólogos. De modo muito rico, esses pesquisadores vêm observando o momento da sessão de julgamento pelo rito do tribunal do júri como um ritual. Schritzmeyer (2001) realizou etnografia em sessões de julgamento ocorridas entre 1997 e 2001 nos cinco tribunais do júri da cidade de São Paulo. A autora buscou, em sua tese, captar valores que estruturam a “imaginação social das mortes”. Para tanto, identificou quatro aspectos que podem caracterizar o júri brasileiro. O primeiro deles é o caráter lúdico, já que se trata de uma atividade consciente e exterior à vida habitual. O segundo é o caráter ritual e cerimonial, que reside em ações ordenadas, como falas, gestos e expressões, que são de ordem simbólica. O terceiro caráter é o do drama, pois as falas dos operadores criam efeitos semelhantes às ilusões do teatro. E o quarto é representado pelo 14

No estado do Amapá, a perícia está vinculada diretamente ao Governo do Estado.

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texto, palavras e expressões, que advêm de um vocabulário de sentimento. E através da descrição desses aspectos, ela conclui que “esses julgamentos baseiam-se na manipulação de imagens relativas a dois poderes fundamentais em todo e qualquer grupo social: o de um indivíduo matar o outro e o de instituições sociais controlarem tal faculdade individual” (SCHRIZTMEYER, 2001, p. i).

Figueira (2008) considera que o “processo de produção judiciária da verdade” tem seu início no inquérito policial e se prolonga até a sentença do juiz. Esse caminho está marcado por duas conversões linguísticas. A primeira é realizada na Polícia Civil quando os saberes policiais sobre o evento criminado e sobre o incriminado são convertidos em uma linguagem que pode ser operacionalizada no inquérito policial. A segunda transposição ocorre no plenário do tribunal do júri, quando promotor de justiça e defensor convertem seus saberes técnicos em linguagem de senso comum para que os jurados, os juízes leigos, possam compreendê-los. Figueira argumenta que, além de fatos e provas, os jurados avaliam as justificativas morais que dão suporte ao discurso de promotores e defensores. Por isso, os operadores fazem uso de estereótipos de vítimas e de acusados, e trazem ao plenário assuntos da rotina da cidade, como a questão da violência e da criminalidade. Quanto ao processo decisório dos jurados, Figueira demonstra que eles levam em conta: “as provas produzidas e apresentadas pelas partes; b) a credibilidade da pessoa que está produzindo o discurso; c) a credibilidade interna do discurso, ou seja, sua capacidade de produzir efeitos de verdade; d) as biografias do réu e da vítima, para um julgamento moral dos tipos sociais que eles representam; e) os motivos (justificativa moral) que levaram à prática do crime; f) a performance ou desempenho cênico dos atores sociais” (FIGUEIRA, 2008, p. 257).

A realização de etnografia nas sessões de julgamento no Rio de Janeiro permitiu à Moreira-Leite (2006) compreender que os jurados chegam ao conselho de sentença preparados para condenar o acusado. Como os acusados que chegam à sessão do júri geralmente são as pessoas incrimináveis, ou as submetidas ao processo de sujeição criminal (MISSE, 1999, 2008) ainda na fase policial, o “julgamento pelo Tribunal do Júri tem sido utilizado como instrumento de controle da população, ainda concebida como carente e necessitada de normatização” (MOREIRA-LEITE, 2006, p.6). Minha proposta de estudo, porque inserida na perspectiva da construção social e institucional do crime, pretende abarcar todas as fases desta construção em detrimento da

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análise de apenas uma de suas fases - a do ritual do tribunal do júri. Não me deterei na análise do ritual, tendo em vista ter sido este um tema bastante explorado na literatura. Ao invés disto, recorro aos processos iniciados pelas denúncias oferecidas pelos promotores de justiça. A meu ver, essa fonte de dados, os processos, contêm documentos ainda pouco explorados pelos estudos sobre este tema, tais como as sentenças de pronúncia e as sentenças finais.15 Assim, focando na identificação de elementos que podem determinar a condenação de acusados por matar alguém intencionalmente pretendo, nesta tese, compreender como são construídos os elementos que podem determinar a criminação de uma morte em homicídio doloso e como são construídos os elementos que podem determinar a incriminação no rito do tribunal do júri. É o que pretendo responder seguindo a estrutura apresentada a seguir.

A estrutura da tese

Além desta Introdução, a tese contém seis capítulos e as Notas Conclusivas. Apresento, no Capítulo 1, uma discussão sobre a construção de um objeto das Ciências Humanas, o homicídio, com base na teoria elencada e nas técnicas metodológicas demandadas para responder à questão de pesquisa que orienta este trabalho. Na Parte I, trato da instrução criminal na fase policial, já que entendo que é neste momento que a criminação de uma morte enquanto homicídio doloso acontece. No Capítulo 2, apresento a estrutura da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro, enfatizando o fluxo de papéis dentro de uma de suas unidades especializadas, a Divisão de Homicídios, que conta com um modelo não usual de realização da perícia em local de morte. Abordo, neste capítulo também, as regras de decisão, ou regras de procedimento, que dotam de formalismo o funcionamento dessa organização. A descrição dessas regras, tanto as contidas no Código de Processo Penal, quanto as contidas em resoluções específicas e em organogramas internos, mostram-se importantes para estabelecer um contraponto com a prática, com as receitas profissionais seguidas pelos operadores dessa instituição (PAIXÃO, 1982). No Capítulo 3, descrevo como são os roteiros típicos dos peritos criminais e como são construídas as tipificações feitas por eles na realização das perícias em locais de morte registrada. Em menor medida, descrevo como são as práticas dos delegados de polícia para a construção do inquérito policial. 15

O estudo de Antunes (2013) segue a mesma direção, ocupando também este espaço de debate.

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Na Parte II, dou continuidade à descrição sobre fluxo do sistema de justiça criminal, destacando como é a instrução no rito do tribunal do júri, este dividido em duas fases. Para tanto, apresento, no Capítulo 4, uma mensuração deste fluxo, desde a denúncia até a sentença final para os acusados de cometerem mortes criminadas como homicídio doloso. Ao final, apresento possíveis elementos que parecem determinar a condenação desses acusados, bem como elementos que parecem determinar o cumprimento das penas fixadas pelos juízes nas sentenças. No Capítulo 5, demonstro como os relatos de acusação feitos por promotores de justiça e os relatos de defesa feitos por defensores públicos e advogados são utilizados pelos juízes da primeira fase do rito do tribunal do júri na construção de seus próprios relatos, as sentenças de pronúncia. E, posteriormente, como são constituídos os relatos dos juízespresidentes nas sentenças finais, redigidos após a decisão do conselho de sentença e contendo o estabelecimento da pena no caso das condenações. Na Parte III, trato das recentes mudanças institucionais-legais e reflito sobre como essas mudanças podem estar influenciando - ou podem vir a influenciar - nas receitas práticas dos profissionais que constroem o homicídio doloso social e institucionalmente através de suas tipificações em relação às mortes e aos acusados. Havendo influências, como estas poderão indicar mudanças no modo como a construção social e institucional do homicídio doloso é produzida desde a “perícia de local do crime” até a sentença condenatória do incriminado? No Capítulo 6, busco medir possíveis impactos na taxa de elucidação desses eventos para a cidade do Rio de Janeiro após a criação da Divisão de Homicídios, em janeiro de 2010. No Capítulo 7, discuto como as Leis no 11.719/08 e no 11.689/08 estão influenciando, ou não, as práticas rotineiras de promotores, defensores, juízes e serventuários do rito do tribunal do júri da comarca do Rio de Janeiro. A título de conclusão, retomo os principais resultados encontrados com o desenvolvimento deste estudo, que visa identificar possíveis elementos que determinam a condenação dos acusados por eventos criminados como homicídio doloso. Com isso, estabeleço uma compreensão sobre como o homicídio doloso é construído social e institucionalmente.

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Capítulo 1 - Para compreender um objeto de estudo: teorias e metodologias Uma forma possível de pensar a relação entre teoria e metodologia é que esta se desenha por vias de reflexividade, quando o pesquisador se vê obrigado a pensar e repensar seu objeto de estudo em associação com uma linha de argumentação teórica. A pesquisa pode ser considerada mutável. Em certos momentos, uma linha teórica se mostra mais adequada ao objeto investigado, bem como determinada técnica metodológica parece ser mais oportuna. Cotejar linhas teóricas diferentes e unir técnicas metodológicas pode trazer resultados mais amplos, posto que o objetivo final é o de procurar abarcar a amplitude do objeto. Em outro contexto, de tempo e de lugar, o mesmo objeto pode ser estudado de outra maneira. O pesquisador é um ator sensível aos novos conhecimentos adquiridos e às alterações do campo de pesquisa, cabendo a licença de uma metáfora, na qual o pesquisador é como uma pipa no céu, sujeita às alterações do ar, da temperatura, do ambiente como um todo. Ele está seguro por uma fina linha nas mãos de um menino, a teoria, que se movimenta na terra. Esta linha tênue é a metodologia. Quero dizer com isso, que a teoria segura o pesquisador e o faz movimentar em seu estudo por meio da teoria e da metodologia, ora tornando-o mais firme, ora deixando-o mais livre no céu, mas sempre o adequando ao seu objeto de investigação. Ao longo do desenvolvimento de meu estudo, coletei diferentes materiais empíricos que demandaram abordagens teóricas e metodologias também diferenciadas. O objeto desta tese é o homicídio doloso. Este será abordado com base em duas perspectivas: uma perspectiva sociológica do processo de construção social e institucional do crime e uma perspectiva que denominarei “criminológica”, que toma o crime como dado, a partir da sua definição jurídica e que, de antemão, não o problematiza, mas se preocupa em buscar as suas causas e propor soluções para remediá-lo. Cientistas sociais em geral, e sociólogos em particular, recebem do mundo social os problemas sociais que se tornaram legítimos e são constantemente instigados a transformá-los em problema sociológico, sem buscar desconstruí-los e problematizá-los (BOURDIEU, 1989, p.35). Nesse sentido, e da perspectiva do estudo do crime, uma tarefa que se impõe é investigar como se dá o seu processo de construção social e institucional, que abarca desde a reação social mais difusa até a reação social organizada, administrada pelo sistema de justiça

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criminal (MAGALHÃES, 2004, p.135). Contudo, a abordagem denominada positivista ou pós-positivista do crime também oferece explicações importantes para a compreensão do homicídio que não devem ser desprezadas, especialmente se considerado o impacto destes crimes na vida cotidiana das pessoas e o potencial dessas informações e explicações para a constituição de políticas públicas voltadas para o seu enfrentamento. Argumentarei, ao longo desta tese, que a articulação ou, pelo menos, o cotejamento dessas duas perspectivas, visando um conhecimento e compreensão mais aprofundados do fenômeno do homicídio e de seu processamento pelas organizações do sistema de justiça criminal, é possível e promissora. Proponho-me a abordar tanto a perspectiva que constituiu uma das tradições da sociologia, que denominei positivista ou pós-positivista (CRESWELL, 2003), quanto uma outra tradição que entende ser a realidade socialmente construída. A primeira reivindica que o conhecimento sobre o evento deve ser produzido por meio da sua observação e medição como “coisa”, isto é, como fato independente e externo à consciência individual e como realidade objetiva, e que as causas deste “fato” determinam seus efeitos e resultados (DURKHEIM, 2007[1895]). A segunda sustenta que os indivíduos, em interação uns com os outros, constroem e negociam o significado do evento e que isto é feito por meio de um processo que vai conferindo a este uma realidade objetiva (BERGER; LUCKMANN, 2002[1985]). O conhecimento produzido com base, tanto no primeiro conjunto de pressupostos, quanto do segundo, parece, a meu ver, relevante para uma compreensão mais acurada sobre o objeto desta tese: o homicídio doloso. Émile Durkheim: precursor de duas tradições Émile Durkheim (2002) foi o primeiro a tratar o homicídio de modo sociológico e da perspectiva positivista. N’O Homicídio, assim como n’O Suicídio, o autor faz uso de um método, tal como elaborado nas Regras do Método Sociológico, para produzir análise sociológica e permitir tornar observável a ordem social. Durkheim parte da hipótese de que “o homicídio diminuiu com a civilização” e busca testá-la, observando as taxas de assassinato nos diferentes países da Europa. Observa, por meio de dados estatísticos, que Itália, Hungria e Espanha apresentam taxas maiores de homicídios. A explicação, segundo ele, poderia estar em serem estes os países menos avançados da Europa. Em contraste com as nações de alta cultura, Alemanha, Inglaterra, França e Bélgica que apresentam taxas entre 10 e 20 por milhão de habitantes, Hungria e Itália teriam mais de 100 homicídios por milhão de habitantes. O autor segue aplicando o método e identificando os vários padrões dos

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homicídios. Este se caracteriza por ser essencialmente rural e por, de todas as profissões, serem os lavradores os que fornecem o maior contingente de autores. Poderíamos dizer que o homicídio varia conforme o lugar mais ou menos elevado que o indivíduo ocupa na hierarquia dos fins morais? - pergunta Durkheim. Sua resposta torna mais complexo o problema, pois, se o desenvolvimento do individualismo não deixa de ter relação com a redução do homicídio, este não a produz diretamente (DURKHEIM, 2002, p.159). A explicação ou as causas apontadas pelo autor para a diminuição do homicídio se devem a que as paixões e os móveis que levam ao homicídio diminuíram nas sociedades ocidentais europeias. O culto à sociedade foi substituído pelo culto ao indivíduo. Para o autor, a diminuição na taxa do homicídio testemunha antes de tudo que a imoralidade dos países europeus centrais estaria se tornando algo menos passivo, mais refletido, mais calculado. Uma imoralidade, que se faz notar antes pela astúcia do que pela violência. Essas características são, segundo o autor, as que se referem à moralidade predominante nesses países (DURKHEIM, 2002, p.166). Retomando o que Durkheim expõe em outro texto, “Regras relativas à distinção entre normal e patológico” inserido n’As Regras do Método Sociológico, o argumento é o de que “a imoralidade não é o contrário da moralidade, assim como a doença não é o contrário da saúde, uma e outra são apenas formas diferentes de um mesmo estado, as duas formas da vida moral, as duas formas da vida física. E é por isso que o crime não está fora das condições normais da vida. Sempre há crimes. O essencial é ser a sua taxa adequada ao estado em que se encontra a sociedade” (DURKHEIM, 2007[1895], p.166-167). Neste texto-aula, sobre o homicídio, Durkheim reúne muitos de seus conceitos e argumentos expostos em seus textos clássicos, além de reaplicar o método quantitativo de análise do objeto investigado. Os dados apresentados sobre o homicídio são fundamentais para dar subsídio e consolidar um argumento maior dentro de sua obra: que se refere à moralidade, à construção dos laços sociais, a como a sociedade se mantém em ordem e como indivíduo e estrutura se articulam, problemas clássicos da Sociologia. Por outro lado, coube também a Durkheim oferecer o maior insight para o desenvolvimento da sociologia do crime da perspectiva construtivista, ao argumentar, n’A Divisão do Trabalho Social, não haver nenhum ato que seja intrinsecamente criminoso e ao definir o crime por meio da reação social que ele provoca. Com esse argumento, Durkheim

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rompe com o pressuposto de toda a criminologia positivista: a ideia de que os criminosos são diferentes (PAIXÃO, 1983). Mas Durkheim não levou às últimas consequências essa afirmação, dada a sua preocupação com uma visão coletivista da sociedade. Mas se pode dizer que Durkheim é precursor de todas as vertentes que se interessam pelo estudo da reação social ao crime e pela definição coletiva do crime (MAGALHÃES, 1996). A ênfase desses estudos se volta para a compreensão do processo social que resulta na definição de uma conduta social como criminosa e desviante. O que essas perspectivas têm em comum e o que permite caracterizá-las como sociologia fenomenológica é a ideia da realidade como construção dos homens enquanto agem e pensam sobre ela e do suposto metodológico de ver o mundo da perspectiva dos atores sociais. Elas permitiram a crítica ao entendimento do crime como algo inerente ao ato ou como evento independente da reação da comunidade e propiciaram o deslocamento de foco para o processo de institucionalização do ato como um crime e de seu autor como criminoso. Assim, os estudos de Durkheim serão aproveitados pelos sociólogos contemporâneos interessados em estudar a criminalidade de duas maneiras bastante distintas. Em um extremo, a perspectiva que chamarei de Criminologia e, no outro, a Sociologia do Crime. Os estudos da Criminologia, tal como estou me referindo, têm as suas bases e pressupostos na investigação positivista. De acordo com essa abordagem, o fenômeno é tido como dado, como representação da realidade. Caracterizam essa vertente as preocupações sobre a distribuição territorial do fenômeno e sobre o perfil sociodemográfico de quem comete o crime ou de quem é vítima, buscando acessar possíveis causas e explicações para o problema do homicídio a fim de pensar políticas públicas para a sua redução. A outra visão, a Sociologia do Crime, busca observar o fenômeno como construído social e institucionalmente pelos operadores do sistema de justiça criminal, analisando a reação social que ele provoca e também com base nas tipificações que o constitui. Tipificações jurídicas constantes nos códigos penais, mas também nas tipificações profissionais e de senso comum. Essa perspectiva busca compreender como o fenômeno é registrado e tipificado, construído social e institucionalmente, por esses atores até se tornar fato jurídico (VARGAS, 2000). Do lado metodológico é possível dizer que a Criminologia faz uso de estatísticas criminais, adota preferencialmente o método que envolve teste de hipótese e identifica variáveis que possam explicar a ocorrência do crime, além da preocupação com a generalização dos resultados encontrados. Enquanto a Sociologia do Crime vale-se,

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preferencialmente, do método etnográfico e da compreensão das perspectivas que os operadores apresentam sobre suas organizações, bem como do entendimento das práticas e rotinas de trabalho desses profissionais. A esta altura, mostra-se útil ao meu estudo definir tipologias e tipificações, categorias que se vinculam, respectivamente, às perspectivas positivista e construtivista do crime. De acordo com uma das vertentes do que venho chamando de Criminologia, os crimes em geral, e os homicídios dolosos em particular, podem ser compreendidos à luz da construção de uma tipologia baseada em critérios estruturais, de um lado, e em critérios individuais ou de relação entre os envolvidos, de outro. Os fatores estruturais dizem respeito ao contexto em que os crimes ocorreram (território ou local, horário, instrumento utilizado pelo agressor, dentre outros). Já os fatores individuais abarcam as características sociodemográficas dos envolvidos e a relação social entre vítimas e agressores. Nesse caso, a tipificação jurídica é tomada de antemão pelo pesquisador, ou seja, ele considera o evento como crime que já foi tipificado e registrado pelos operadores do sistema de justiça criminal, cabendo-lhe a tarefa de compreendê-lo e explicá-lo por meio de um método de categorização e classificação em tipos correspondentes aos contextos em que esses eventos ocorrem e às características dos envolvidos e das relações entre estes. De acordo com a perspectiva da construção social, a realidade é constantemente criada pelos atores, não sendo, por esta razão, um dado pré-existente. Ela é apreendida por todos, cotidianamente em um continuo de tipificações que vão se tornando progressivamente anônimas à medida que se distanciam do aqui e agora e vão, com isso, adquirindo caráter objetivo (BERGER; LUCKMANN, 2002[1985]). Nesse sentido, tanto as regras normativas quanto as regras jurídicas podem ser vistas sob a ótica da tipificação (ROBERT, 2007), uma vez que constituem formas de classificar e categorizar o mundo da vida cotidiana, embora com grau de imposição diferenciado. As tipificações jurídicas são aquelas codificadas nos códigos, construídas socialmente pelos empreendedores morais (BECKER, 2009[1963]), grupos profissionais, políticos e legisladores. Já as tipificações profissionais constituem a maneira pela qual os operadores da polícia e da justiça classificam e categorizam comportamentos de indivíduos, interpretam a situação e definem o que foi que aconteceu, por exemplo, se foi suicídio, morte acidental ou homicídio, produzindo um relato razoável e persuasivo sobre a situação (CICOUREL, 1968; BEATO FILHO, 1991, 1992) e submetendo a ocorrência em questão à tipificação jurídica que lhe cabe.

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Tipologias do Homicídio Muitos estudos da Criminologia baseiam-se em categorizações dos crimes computados pelas mais diversas fontes de dados de instituições de segurança pública. Wolfgang e Sellin (1969) empreenderam um dos primeiros grandes estudos desta temática, priorizando a necessidade de se ampliarem as categorias de classificação criminal no lugar das categorias formuladas pelas instituições de segurança pública, através de um índice de criminalidade segundo dados de jovens ofensores. Influenciados por esse estudo, Braga et al (1999), Rosenfeld et al (1999) e Kubrin (2003) categorizaram, respectivamente, crimes envolvendo jovens e drogas, homicídios envolvendo gangues e exclusivamente homicídios. Em geral, os três estudos utilizaram informações contextuais dos casos e, principalmente, informações sobre o relacionamento entre vítimas e agressores. Com base nesses dois principais critérios classificatórios, e pressupondo que muitos homicídios ocorrem dentro de contextos normais e padrões rotineiros da vida, Williams et al (1988) categorizaram a relação social entre vítima a agressor, bem como os conflitos que desencadearam o crime. As correlações entre os tipos de homicídios por eles classificados e as relações sociais entre os envolvidos mostraram que pouco mais da metade dos homicídios entre familiares e entre conhecidos foram precipitados por algum tipo de conflito cotidiano, sendo que a maioria dos homicídios entre estranhos ocorreu por outros motivos. Em geral, os homicídios envolvendo estranhos ocorreram em outras circunstâncias, enquanto homicídios entre parentes ou conhecidos ocorreram mais frequentemente através de conflitos interpessoais. Partindo do princípio de que o homicídio não é um fenômeno unidimensional, mas sim um fenômeno qualitativamente distinguível através da relação existente entre vítima e agressor, a exemplo de Wolfgang (1958), Parker e Smith (1979) classificaram os homicídios em primário e não primário, baseando-se principalmente na relação entre vítima e agressor. Os homicídios da primeira categoria são geralmente movidos pela paixão ou impulso, enquanto os da segunda são premeditados ou programados. Em estudo complementar, Parker (1989) classificou os homicídios em: latrocínio, homicídios ocorridos concomitantes a outros crimes, homicídios primários ocorridos entre pessoas não íntimas (como amigos e conhecidos) e homicídios ocorridos entre pessoas íntimas (casados). O primeiro estudo sociológico sobre homicídio e sua apreensão pelo sistema de justiça no Brasil foi realizado sob a perspectiva de gênero por Corrêa (1983) que observou quatro

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categorias de motivos, ou temas apresentados pelos acusados de homicídios passionais, quando da análise dos processos penais relativos a tais crimes: infidelidade da mulher, abandono ou separação do casal, briga ou agressão mútua e negativa de autoria do crime. Quando da relação existente entre vítima e agressor, os envolvidos foram classificados em maridos, amásios, amantes, noivos ou namorados, cunhado e vizinho das vítimas. Influenciado por esse estudo, Fausto (2001[1984]), ao analisar processos julgados na cidade de São Paulo entre 1880 e 1924, classificou os homicídios em temas como honra, afetividade; deveres conjugais ou familiares; disputas por interesses materiais; questões de serviço; jogo, aposta, troça; choque étnico-cultural; violência sexual seguida de morte; roubo e; transgressão da ordem pública. As categorias de relacionamentos compreenderam: parentes, vizinhos, negócios, colegas de trabalho, amantes, amigos, namorados, e outras formas de relacionamento. Utilizando outra fonte de dados, os inquéritos instaurados pela Polícia Civil do Estado de São Paulo, Lima (2001) buscou explicar e compreender especificamente os homicídios nas metrópoles, principalmente aqueles “motivados” pelo tráfico de drogas, através da análise dos contextos em que tenham ocorrido e por meio da caracterização dos perfis de vítimas e agressores. A tipologia das possíveis causas dos homicídios registrados compreendeu as seguintes categorias: envolvimento com crime organizado e tráfico de drogas; conflitos interpessoais diversos (brigas entre familiares, nos bares, confrontos e vinganças não relacionadas a drogas); criminalidade não organizada (latrocínio) além de uma categoria que englobava os inquéritos em que as informações não estavam disponíveis. A maioria dos homicídios cujos autores foram identificados possuía como causa os conflitos interpessoais diversos, como brigas em bares, em domicílios, permitindo supor que os envolvidos eram pessoas próximas. Por outro lado, o crime organizado e o tráfico de drogas representaram pouco mais de 20% dos homicídios cujos autores não foram identificados. De acordo com Soares (2003), o homicídio é um fenômeno previsível em quaisquer níveis territoriais, durante um certo período. O que não se pode prever é: quais indivíduos serão as vítimas e como essa probabilidade se comporta nesses territórios. Variáveis individuais como gênero, idade, estado civil, raça e presença de arma de fogo como variável facilitadora são fundamentais para a compreensão dos crimes de homicídios. Nesse sentido, em geral, pode-se notar claramente algumas características-padrão relacionadas aos perfis dos envolvidos. Em relação à variável gênero, por exemplo, os homens são a maioria das vítimas e dos agressores, mesmo tendo a mulher se igualado ao sexo oposto em várias esferas sociais

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como status ocupacional e média de renda. As mulheres são mais vítimas de homicídios privados, em domicílios, enquanto os homens são mais vitimados nas vias públicas. Geralmente, vítimas e agressores de homicídios são jovens, entre 18 e 25 anos, mas as taxas para as vítimas mulheres apresentam auge em torno dos 30 a 44 anos, enquanto o ápice para os homens ocorre entre 20 e 24 anos. Em geral, e independente do sexo, os solteiros morrem mais que os casados e estes morrem mais que os outros estados civis. As taxas de homicídios são mais altas entre a população com status ocupacional baixo, de profissões manuais, e decrescem à medida que aumentam os anos de estudo. Guardadas as devidas especificidades teóricas e metodológicas de tais estudos, observa-se nitidamente a convergência dos mesmos quando da classificação dos crimes, principalmente os codificados como homicídio – através dos contextos precedentes e das situações em que eles ocorreram – em conflitos envolvendo questões de drogas, conflitos amorosos e conflitos provocados por discussões comuns à vida social. Por outro lado, os estudos mostraram que vítimas e agressores apresentam relações sociais de proximidade, como parentes e amigos. Tais estudos destacam a importância de criar tipologias para compreender o homicídio, através do entendimento de variáveis fundamentais como relações entre vítimas e agressores e circunstâncias em que os eventos ocorreram. Desta forma, em termos de fatores individuais, esses estudos mostram que, em geral, características das vítimas são muito semelhantes às características dos agressores demográfica e socialmente, sendo que os homicídios ocorrem entre pessoas cujas relações sociais podem ser consideradas próximas ou muito próximas, como é o caso de parentes e amigos. Além disso, nota-se que a maior parte dos agressores é do sexo masculino, a arma de fogo é a mais utilizada e os homicídios geralmente ocorrem em vias públicas, quando advindos de conflitos cotidianos ou interpessoais diversos, e ocorrem em locais privados (domicílios) quando advindos de conflitos amorosos. Nota-se, ainda, a forte relação entre uso de álcool e drogas quando do cometimento desses eventos, o pertencimento ao mesmo grupo social quando se comparam as naturalidades de vítimas e agressores e, principalmente, o baixo status ocupacional das vítimas e dos agressores, caracterizado por ocupações manuais urbanas (PASTORE; VALLE SILVA, 2000). Por último, destaca-se a jovialidade dos envolvidos, entre 19 e 25 anos de idade (SOARES, 2003; CORRÊA, 1983; LIMA, 2001; FAUSTO, 2001[1984], TOUSSAINT, 2002; BRAGA et al, 1999; WILLIAMS et al, 1988; HIDELANG, 1981; SAMPSON, 1986; KUBRIN, 2003).

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Em relação às características estruturais, ou contextuais do momento de ocorrência do delito, é enfatizada a concentração dos homicídios em regiões de desvantagem social, com grande percentual de jovens, negros, famílias monoparentais e alto percentual de crianças, cuja média de renda dos chefes de domicílios é baixa, onde a desigualdade social é tida como fator de grande influência no advento da criminalidade como um todo (COHEN et al, 1998; WILLIAMS et al, 1988; PARKER, 1989; PARKER et al, 1979; ROSENFELD et al, 1999; KUBRIN, 2003; TOUSSAINT, 2002; SAMPSON, 1984 e 1986; MESSNER et al, 1999; BEATO FILHO et al, 1999; CANO; SANTOS, 2001; LIMA, 2001). Alguns destes estudos buscaram explicar o homicídio valendo-se especificamente de tipologias. Williams et al (1988), por exemplo, mostraram que a falta de recursos e desintegração social tendem a ter efeito significante sobre os subtipos de homicídios, enquanto indicadores de orientação da cultura violenta confluem para conflitos interpessoais. Correlações entre fatores estruturais e tipologia de homicídios mostraram que percentual de pobreza e percentual de negros apresentaram influências positivas sobre todos os tipos de homicídios, exceto para os ocorridos entre familiares e para conflitos entre estranhos. Por sua vez, densidade populacional correlacionou-se positivamente a homicídios causados por outros motivos entre conhecidos e para outros motivos entre estranhos. Essa mesma variável estrutural apresentou sentido negativo para homicídios ocorridos por conflitos cotidianos e outros motivos entre familiares. Estudo de Parker (1989) mostrou que os homicídios não primários (aqueles ocorridos entre pessoas íntimas) apresentaram relação tanto com a pobreza quanto com a subcultura violenta, esta considerada por ele como uma consequência daquela. Pobreza foi significante para três dos quatro tipos de homicídios, sendo preditor dominante para familiares íntimos e outros crimes. Percentual de negros mostrou-se significante para latrocínio e homicídios primários, entre pessoas não íntimas. Tamanho populacional afetou todos os tipos de homicídios exceto os ocorridos entre familiares, enquanto densidade teve efeito significante apenas para esse tipo. Cidades com alta densidade demográfica tiveram baixas taxas de homicídios entre familiares íntimos, sendo que grandes cidades tipicamente possuíam altas taxas dos outros tipos de homicídios. As taxas de homicídios primários relacionaram-se à pobreza e ao percentual da população com idade entre 20 e 34 anos, enquanto as taxas de homicídios não primários foram significativamente relacionadas apenas ao percentual de moradores em áreas urbanas. Índice de pobreza foi um significante preditor nas taxas totais e de homicídios primários, mas não significante para os não primários (PARKER et al, 1979).

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Em estudo semelhante, Kovandizk et al (1990) apud Kubrin (2003) classificaram as relações entre vítimas e agressores em familiares, conhecidos e estranhos, constatando que desigualdade social relacionou-se a homicídios entre familiares e estranhos, mas não com conhecidos, sendo que pobreza relacionou-se apenas a homicídios entre conhecidos. Por outro lado, percentual de negros atrelou-se aos três tipos de relacionamento. Através de dados das vizinhanças de Sant Louis, o estudo de Kubrin (2003) avaliou se características socioeconômicas e demográficas correlacionavam-se a diferentes tipos de homicídios. Os resultados indicaram que enquanto a instabilidade residencial associou-se apenas a crimes de assassinato (ou seja, aqueles crimes onde as circunstâncias antecessoras não permitiram maiores abstrações a fim de categorizá-los), desvantagens econômicas associaram-se a todas as outras categorias de homicídios. A questão desse estudo é que os homicídios são multidimensionais, variam em termos de

motivos,

características

de

vítimas

e

agressores,

cenários

e

circunstâncias.

Especificamente, esse estudo examinou a relação entre estrutura de vizinhança e homicídio, com o foco em como a composição da vizinhança pode estar relacionada à natureza ou ao tipo de violência letal produzida por determinada comunidade. O estudo questionou se as características da vizinhança estão relacionadas a todos os tipos de homicídios ou se os homicídios são suficientemente distintos na natureza que seus níveis não estão igualmente associados com certas covariáveis estruturais. De acordo com os resultados encontrados por Kubrin (2003), metade dos homicídios ocorreu em local público, sendo que a grande maioria foi em consequências de conflitos cotidianos. Examinando variáveis como percentual de negros, média da renda familiar mensal, percentual de pobreza, de jovens masculinos, de mobilidade residencial, de famílias monoparentais, de desempregados e tamanho populacional, o autor concluiu que diferentes características de vizinhanças associam-se a diferentes tipos de homicídios. Desvantagem social, mobilidade residencial e tamanho da população foram significantes e positivamente associadas ao total de homicídios. Instabilidade residencial associou-se a homicídios envolvendo outros crimes, mas não a homicídios advindos de altercações gerais ou a homicídios domésticos. Os resultados revelaram, dentre outras coisas, que vizinhanças com altos níveis de desvantagem apresentaram maiores níveis de homicídio, independente dos tipos identificados. Beato Filho et al (1999), por meio de uma análise espacial dos homicídios ocorridos em Belo Horizonte e registrados pela Polícia Militar de Minas Gerais durante o período de

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1995 a 1999, buscaram identificar os conglomerados de risco de mortalidade mais elevado e relacionaram esses conglomerados com regiões onde existe tráfico de drogas e violência associada. Concluíram que não são as condições socioeconômicas as responsáveis pelos conglomerados de homicídios, mas o fato dessas regiões serem assolados pelo tráfico e pela violência associada ao tráfico de drogas. Um dos maiores problemas de ordem estrutural discutido exaustivamente pela sociologia brasileira desde os anos 1980 é o paralelo entre marginalidade e criminalidade. Autores como Paixão (1995) e Coelho (1978, 1980) argumentaram pelo caráter espúrio dessa associação, tendo em vista os dados estatísticos contaminados que informam essa relação. Coelho (1978) afirma que “não é a pobreza em si que gera a criminalidade, mas a densidade da pobreza ao permitir a elaboração da subcultura marginal” (COELHO, 1993, p.152). Outros autores entenderam que “os delinquentes são preferencialmente recrutados entre grupos de trabalhadores urbanos de baixa renda, o que significa que seu perfil social não difere do perfil social da população pobre” (ADORNO, 1993, p.5). Outros ainda afirmaram que embora a criminalidade se espalhe igualmente por todas as classes, ela é mais perseguida nas classes subalternas e estas fazem a distinção entre “bandido” e “trabalhador” (ZALUAR, 1985). Para Misse (1995), a abrangência e permanência da “pobreza” na sociedade brasileira não servem para explicar coisa alguma e correlacioná-la ao crime é no mínimo fantasmagórico. E o fantasma encontra-se desde o final da década de 1970, nomeado de “crime organizado”, particularmente com o crescimento do tráfico de drogas. Como este se instalou nas favelas e conjuntos habitacionais e periferias das grandes cidades brasileiras, a “associação do crime com a pobreza ganhou nova dimensão, que... se distingue da (dimensão) convencional reproduzida nos roteiros típicos da polícia nos tribunais e nas penitenciárias” (MISSE, 1995, p.11).

Tipificações: Homicídio, Suicídio, Morte acidental... o que foi que realmente aconteceu?

A noção de roteiros típicos advém do conceito de tipificação de Alfred Schutz (1979). Para esse autor, o mundo da vida cotidiana é um mundo que existia antes de nós. Neste sentido, ele é dado e, com ele, as interpretações feitas por nossos predecessores sobre ele. Mas esta estrutura não é coercitiva e determinista. Indivíduos interpretam a realidade e lhes dão um sentido ordenado. Esta interpretação se dá a partir de um estoque de conhecimento anterior que nos foi transmitido e também que foi constituído a partir de nossa própria experiência.

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Schutz vai chamá-lo de conhecimento à mão. Ele funciona como um código de referência que nós utilizamos para interpretar as situações, mas que não explicitamos. Biografia individual e estoque de conhecimento, juntos, constroem o sistema de relevâncias. Há dois tipos de sistemas de relevância: o sistema intrínseco e o sistema imposto. O primeiro tipo diz respeito ao resultado de interesses escolhidos, enquanto o segundo se refere ao fato de apenas recebermos os eventos que estão fora do nosso controle. É nos sistemas de relevância impostos que as regras jurídicas podem ser localizadas. A partir dos sistemas de relevância, ou do mundo experimentado, são definidas as características típicas de um determinado objeto. A linguagem é fator crucial nesse processo. É o sistema de relevâncias que escolhe o vocabulário a ser empregado. Isso torna possível a comunicação e inteligibilidade entre as pessoas. Assim como os homens tipificam os objetos à sua volta, eles também tipificam a si mesmos e às relações entre eles. Os sistemas de relevâncias e as tipificações a eles atreladas constituem o que se pode chamar de códigos, uma herança social transmitida ao longo dos tempos aos membros do grupo. Assim, os fatos e eventos passam a ser tratados como tipicamente iguais e as ações individuais únicas são transformadas em ações sociais típicas, em papéis sociais típicos. Isso faz com que um sistema de relevância passe a funcionar como um código de interpretação e como um código de orientação de conduta. O código tipificado é usado pelo ator como um código de orientação e, por seus semelhantes, como um código de interpretação. Mas, isto só é possível se o código de tipificação estiver estandardizado e se o sistema de relevâncias pertinente estiver institucionalizado (SCHUTZ, 1979). Assim, para Schutz, a realidade social é apreendida através de tipos. O que é vivenciado na percepção real de um objeto é transferido para qualquer objeto percebido como semelhante. A experiência real vai confirmar ou a percepção vai ser retificada no futuro a partir de novas experiências. Essa forma de apreender em tipos é, então, sempre aberta. O conceito de tipificação vai ser particularmente utilizado pela etnometodologia, especialmente aquela produzida com base em estudo de contextos organizados de ação, tal como hospitais, tribunais, polícias. Tipificações vão ser entendidas como teorias de senso comum (as expectativas de background que todos utilizamos) e também aquelas geradas no ambiente profissional que vão constituir o quadro de referência a partir do qual o mundo deve ser interpretado para a solução de problemas práticos à mão (CICOUREL, 1968). São exemplos disto o trabalho do policial ou do médico que nas suas atividades rotineiras

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desenvolvem suas teorias sobre os indivíduos e grupos e suas receitas práticas de como agir. No caso dos policiais, por exemplo, eles constroem, como mostrou Cicourel, suas teorias sobre moralidade e imoralidade sobre boas e más pessoas, adolescente problemático, etc. Policiais, ao tipificar comunidades, como mostrou Bittner (2003), sabem o que esperar de certas áreas quando estas estão sendo patrulhadas. Tipificações e estoques de conhecimento à mão leva o policial a interpretar o que ele vê e outras pessoas não veem. Seguindo Schutz (1979), tipificações seriam de primeira ordem, enquanto tipologias tais como são os conceitos dos sociólogos positivistas em geral, seriam de segunda ordem. Embora, como dito anteriormente, eu não descarte a noção de tipologia, considerarei, como o fez o autor, que uma tarefa importante da sociologia é esclarecer o que pensa do mundo social aqueles que nele vivem. Tal como Sudnow (1971[1967]) que, partindo de uma perspectiva sociológica da morte, mostrou como ela é vista e produzida pelos médicos e enfermeiras em hospitais e como estes eventos são constrangidos por atividades sociais legais e administrativas, pretendo descrever o lugar da morte dentro de um meio organizacional - a Polícia Civil do Rio de Janeiro - a partir da observação das condições de trabalho organizado de peritos e policiais com fins práticos de defini-la ou não como homicídio doloso. Sudnow (1971[1967]), ao realizar uma etnografia da morte que ocorre em hospital, descreve como médicos e enfermeiras categorizam os pacientes moribundos, como manipulam os cadáveres, como informam a família. A “morte” e “morrer” são estados que não podem ser decididos a priori. Para ele, estados naturais são descobertos, reconhecidos, denominados e essa atividade ocorre em um mundo social organizado. São atividades sociais desempenhadas por pessoas legitimadas para tanto. Essas definições devem considerar as atividades diárias do hospital, principalmente no que se refere à organização social do trabalho. A definição do “morrer” ou da “morte” é, assim, um processo baseado nas atividades em que se pode dizer que consiste o fenômeno. São produtos de práticas rotineiras e atividades organizadas dos membros do Hospital. Para o autor, a organização do hospital afeta e é afetada pela morte que ocorre dentro dele. As mortes típicas são aquelas que se encaixam na rotina do hospital, são as mortes de pessoas velhas ou doentes de longo tempo e pouca atenção é dada a estas. Mortes que ocorrem em circunstâncias especiais quebram ou rompem com a rotina e suscitam relatos diferentes dos que são comumente elaborados. Por outro lado, os casos especiais que levam à quebra da rotina mostram como se estrutura a atividade de rotina. Ao observar e descrever a

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conduta do staff (para usar o termo de Sudnow) nos momentos de rotina diária enquanto realizam as atividades requeridas pelo meio organizacional, posso, no meu estudo, compreender a construção da categoria “morte” segundo um esquema situacional de interpretação colocado em prática por aqueles que realizam as perícias em local de morte violenta registrada. Produzo, dessa maneira, uma etnografia na qual documento os componentes essenciais da morte desde a perspectiva deste staff. Sudnow (1971[1967]) mostra que os métodos de uma instituição para manejar suas atividades diárias são rotinizados. Entretanto, não importa o quão esses métodos estejam rotinizados, essas rotinas permanecem vulneráveis em certos momentos essenciais. Há, segundo o autor, uma classe especial de circunstâncias que transformam as rotinas, sejam tornando mais difícil sua realização, mais interessante ou substancialmente importante. São as chamadas “ocasiões críticas” advindas com os “casos especiais”. Estes exacerbam o grau notadamente atípico ao sentimento moral e, por isso, eles permitem ver com mais profundidade as exigências das atividades usuais e metódicas. Nessas ocasiões, a morte não comum empurra o staff para fora de suas atitudes regulares de indiferença e eficiência, tornando possível intuir a capacidade para a implicação emocional que as atividades normais não permitem manifestar por falta de oportunidade. No caso dos hospitais estudados por Sudnow, essas ocasiões especiais são as mortes de recém-nascidos ou de crianças. No meu estudo, são os cadáveres encontrados em suas residências, principalmente quando estas se localizam em regiões consideradas de classe média da cidade do Rio de Janeiro. Nas ocasiões críticas, os procedimentos geralmente empregados de tratamento não se instituem e se torna necessário tomar medidas especiais para responder ao “que foi que realmente aconteceu”. Os casos especiais são aqueles que fogem ao padrão rotineiramente observado, são os casos atípicos. E é justamente por sublinharem a atipicidade que tornam claro o caráter típico dos casos comuns, das ocasiões de rotina. No estudo de Sudnow, são as mortes de idosos ou de pacientes enfermos há bastante tempo, os “moribundos”, para o staff do hospital. Na minha etnografia, são os cadáveres encontrados nas vias públicas, sem elementos que permitam identifica-los, em termos de registro civil, imediatamente: são os “crackudos” ou os “traficantes”, para o staff da perícia criminal. Beato Filho (1992) observou “o que foi que realmente aconteceu” ao estudar como policiais de delegacia decidem categorizar casos de morte como morte por suicídio. Segundo o autor, os inquéritos policiais a respeito de casos evidentes de suicídio costumam ser

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telegráficos, evidenciando, em poucas linhas, que não houve a participação de terceiros. Entretanto, em casos em que há dúvidas (quando é quebrada a rotina), pode-se observar toda a lógica que orienta a investigação policial nesses casos. Por lidarem com casos de morte diariamente, os policiais aprendem a decodificar o cenário em que encontram o corpo e a consistência do tipo de morte alegado. O caso utilizado pelo autor para ilustrar o seu argumento é o de um inquérito policial detalhadíssimo e, portanto, atípico, em que o delegado defende ser inconsistente e inverossímil a versão do marido que alega que a esposa havia se matado, devido a uma depressão. Não convencido da estória, o delegado, reconstitui “o que foi que aconteceu”, no relatório do inquérito policial, por meio de uma descrição orientada não na direção do suicídio, mas na do homicídio. O autor mostra como os indícios que vão sendo apresentados referem-se à quebra de expectativas de papéis, como, por exemplo, a reação do marido em não prestar socorro, ou ainda à presença de sinais indicadores de ocorrência de homicídio que, ao serem apresentados, invalidam aqueles referentes ao suicídio. A versão alternativa do delegado era a de que o marido pobre, mediante as ameaças de separação da mulher rica, resolveu assassiná-la. Estória corroborada com depoimentos de testemunhas. Esses estudos mostram como a morte, o suicídio ou o homicídio, geralmente tratadas como algo dado ou como fato indiscutível, são, ao invés disto, realizações contínuas empreendidas pelas pessoas encarregadas de categorizá-los e defini-los (BEATO FILHO, 1991). O resultado desse processo de categorização aparece nos relatos produzidos (fichas médicas, laudos de perícia, relatório do inquérito policial, etc.) que são, eles mesmos, constitutivos do que foi que aconteceu. Para Scott e Lyman (2008[1968]), accounts (relatos) estabelecem a ponte entre a ação e a expectativa, possibilitam a continuação da interação e evitam o conflito. Em geral, as pessoas não demandam accounts, já que, como observou Schutz (1979), tomam o mundo como assente. Accounts, só serão solicitados, como também mostraram Sudnow (1971[1967]) e Beato Filho (1991) quando há quebra da rotina. Interessa aos autores os accounts enquanto afirmações feitas para explicar um comportamento impróprio ou imprevisto da própria pessoa ou de outros e menos enquanto ato de dar satisfação e de prestar contas. Estes distinguem dois tipos de accounts acionados quando uma pessoa é acusada de ter feito algo ruim ou impróprio. As desculpas, renegando a responsabilidade sobre o ato; e as justificativas, renegando a negatividade do ato. Desculpas e justificações são, segundo os autores, atos

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aprovados socialmente que neutralizam a ação ou as suas consequências. Mas, se no primeiro caso nega-se a responsabilidade pela ação, a sua intencionalidade ou a incapacidade de se antever às suas consequências, no segundo, reforça-se o ato pela sua positividade. Um exemplo de desculpa é quando a pessoa alega não ter tido a intenção de matar, embora a morte tenha sido a resultante final de seu ato. Um exemplo de justificação é quando a pessoa alega ter tirado a vida de outra em legítima defesa ou em defesa da vida de outros. Accounts podem ser acatados ou não e, segundo os autores, são determinantes, para tanto, as expectativas prévias das pessoas em interação e as normas culturais e situacionais vigentes. Um account pode ser desacreditado segundo a aparência da pessoa que o formula, o mesmo ocorrendo quando o ato é grave, excedendo ao account oferecido, ou ainda quando os motivos dados não são aceitos. A contribuição desses autores é dar ênfase à questão da moralidade na análise cognitiva da ação, questão esta que não interessou à Schutz que havia tratado dos motivos, mas não dos julgamentos morais do senso comum (HERITAGE, 1999[1987]). Garfinkel (1967) irá mais longe nesse tipo de abordagem com enfoque centrado não somente na expectativa prévia e na negociação dos atores em interação, mas nos procedimentos interpretativos que informam raciocínio, linguagem e ação cotidianos. Além disto, adotará um entendimento diferenciado e teoricamente mais sofisticado da noção de account (relato) que não caberá ser desenvolvido neste trabalho. Para meu propósito, é suficiente apontar, neste momento, que, para o autor, interessado na tomada de decisão em ambiente organizacional, um dos resultados do uso de procedimentos interpretativos acionado nessas ocasiões é a criação de relatórios ou índices que possam ser apreciados como relatos ordenados a respeito das atividades da organização perante qualquer instância de supervisão e de controle dessas atividades. Assim, neste trabalho, accounts (ou relatos) como os laudos elaborados pelos peritos, relatórios de inquérito policial, denúncias e sentenças são também vistos da perspectiva de dar satisfação e de prestar contas, e também como espaço privilegiado de criação da realidade social. É também de interesse desta tese o estudo sobre jurados em uma corte americana realizado por Garfinkel (1967), no qual busca desvendar como leigos raciocinam e decidem sobre matéria legal. Segundo o autor, o raciocínio e as decisões tomadas por esses atores respeitam as características rotineiras da ordem social e, apesar de eles se sentirem na obrigação de modificar as regras usadas em sua vida cotidiana, tais mudanças são leves. Distinguindo o que é verossímil do que parece ser improvável, o que é fato do que é fantasia,

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os jurados vão criando “o caso” que serve de referência para apreciar os elementos que são trazidos a julgamento. A diferença entre a tomada de decisão na vida cotidiana e como jurado é a montagem do caso que estes irão analisar como investigadores sociais, tratando a situação com interesse teórico. Entretanto, a atuação da defesa e da acusação, apresentando argumentos opostos, produz uma experiência desestabilizadora para eles, e é a administração desta ambiguidade, que caracteriza a atividade do jurado. Quando posteriormente questionados pelos pesquisadores sobre como se deu a tomada de decisão, as ambiguidades foram eliminadas e os jurados elaboravam relatos ideais de como haviam chegado à decisão. Observou o autor, que só em retrospecto é que eles decidiram o que foi feito para se tomar a decisão correta. O que o levou a concluir que a tarefa do tomador de decisão seria então justificar a sua ação. Garfinkel mostra, nesse estudo, que os jurados decidem de acordo com modelos de senso comum visando ao estabelecimento de algo que lhes faça sentido. Assim, certos tipos culturalmente conhecidos de agentes que agem segundo motivos típicos para cometerem ações típicas são alocados pelos jurados na construção de uma justificativa que sustente o veredicto. Se a interpretação faz sentido, se ela é verossímil, então é isso o que, de fato, aconteceu. Assim agindo, eles buscam legitimar o veredicto atendendo à expectativa da sociedade quanto à decisão deles. Agindo conforme a expectativa social, eles acreditam que são bons jurados, que agem como bons jurados, segundo atributos que um bom jurado deve ter em relação ao tribunal. Em um artigo anterior ao estudo sobre a morte intitulado “Normal Crimes”, Sudnow (1965), observando a prática cotidiana dos operadores da justiça de realizar a subsunção dos casos à tipificação penal, chama atenção para a importância, para a realização dessa tarefa, do conhecimento típico adquirido por esses operadores sobre a forma como os crimes são regularmente cometidos, os tipos de vítimas frequentemente envolvidas e as características dos cenários onde eles costumam acontecer. O contexto a que se refere Sudnow é o do funcionamento do sistema de justiça criminal americano onde é comum a prática de negociar com o acusado para “pleitear culpado” em uma ofensa de sentença mais leve para, deste modo, evitar a instauração do processo. O procedimento de redução consiste em identificar uma ofensa mais leve que lhe seja semelhante. Porém, essa redução não é feita com base nas definições prévias, previstas nos códigos, mas no conhecimento, partilhado entre os operadores, da maneira típica como o crime costuma acontecer. Sudnow mostra, para o caso

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americano, como as categorias legais são empregadas nas atividades diárias dos operadores. Para o autor, categorias legais são consideradas equipamentos básicos com os quais juízes, promotores e defensores organizam as suas atividades cotidianas. Entretanto, para interpretar o evento e subsumi-lo a tais categorias, esses atores legais irão basear-se fundamentalmente na maneira típica de como esses eventos costumam acontecer e nas suas características. Para o autor, o enfoque nessas caracterizações não está em indivíduos particulares, mas em tipos de ofensa. O conhecimento das propriedades dos tipos de crimes e criminosos e de seus atributos típicos constituiu a marca de competência desses operadores e é aprendido ao longo da socialização na profissão e, segundo Sudnow, é tão ou mais importante que o aprendizado do código penal local. Na mesma direção, Cicourel (1968), em seu estudo sobre a delinquência juvenil, argumentará a este respeito, que mais do que categorias legais, tipificações de senso comum e tipificações apreendidas organizacionalmente sobre o que são circunstâncias “normais” e o que são “não usuais” vão orientar o trabalho do policial em sua atividade rotineira. Para o autor, trata-se de uma “teoria de investigação social” na qual a polícia, utilizando seu estoque de conhecimento profissional e de senso comum interpreta a situação ou “o que foi que aconteceu”. Isto é feito categorizando os jovens segundo boas ou más atitudes, arranjo familiar, desempenho escolar, origem social etc. Tais categorizações são transformadas em documentos, textos e relatórios escritos utilizados como evidência para caracterizar determinadas atividades ou jovens como delinquentes. Este método revela a lógica reconstruída da organização policial de relacionar eventos e indivíduos a categorias abstratas dos códigos. Dele resulta a geração de categorias delinquentes objetivadas em estatísticas que são, afinal, resultado da atividade prática e cotidiana da atividade policial. Como mostra Cicourel, essa prática constituiu em atribuir formalmente rótulo de delinquente com mais frequência para jovens de classes inferiores do que jovens de classes altas, mesmo quando cometem transgressões semelhantes. Esse processo de atribuição confirma as noções de senso comum de que jovens de classes populares apresentam maiores probabilidades de se envolverem em crimes. Os dados objetivos extraídos das estatísticas oficiais, de que se valem os cientistas sociais para a sua análise são, segundo Cicourel, rótulos retirados de seu contexto de significação. Nesse sentido, categorias delinquentes não podem ser divorciadas das tipificações empregadas pela polícia (CICOUREL, 1968, p.122). Como mostra o autor, a implementação da lei é mediada pelas interpretações dos policiais do que

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significa a lei e, por refletir conhecimento de senso comum compartilhado por amplo segmento da sociedade, ganha legitimidade e suporte social. Importante enfatizar que, ao centrar-se nos encontros e interações cotidianas, esses autores, e em particular Cicourel, focam os diferenciais de poder que emergem destas interações, nas quais o “real” é criado. Centram-se, para tanto, na capacidade diferenciada que os atores envolvidos nesse processo têm de moldar as definições sociais da realidade e rotular atores como desviantes (PAIXÃO, 1983). Ou mesmo de tentar fugir ou não se subordinar a esses rótulos, produzindo accounts de negação ou de justificação. Importante considerar também que Sudnow e Cicourel trataram, em seus estudos, da justiça criminal americana que se filia ao sistema da common law, baseado na busca de “provas” e no qual mediação e a negociação são judicialmente aceitas. Vimos que embora o sistema brasileiro adote e atualiza, segundo contexto cultural próprio, alguns elementos dessa tradição, no Brasil prevalecem, também adaptados, princípios da tradição da civil law, sendo o principal deles: a busca da “verdade”. Caracteriza essa tradição, dentre outros, a sistematização das leis e dos preceitos em códigos. Nesse sentido, pode-se argumentar que, nessa tradição jurídica, diferentemente da dos autores em foco, o processamento de crimes não seria exclusivamente produto de negociações entre protagonistas e operadores e que regras e preceitos teriam um peso maior como delimitadores de certos comportamentos e práticas (VARGAS, 2004). Se é fato que as decisões na tradição jurídica brasileira devem ter por referência os códigos, especialmente os preceitos referentes aos códigos de processo, isso não significa que estes sejam efetivamente seguidos ou que descrevam acuradamente a prática dos operadores, antes pelo contrário. E isso é especialmente válido no caso da polícia. No primeiro estudo etnográfico sobre a polícia realizado no Brasil, Antônio Luiz Paixão (1982), partindo da perspectiva da construção social do crime desenvolvida pela microssociologia, dos estudos americanos produzidos sobre a polícia com ênfase na abordagem organizacional, especialmente na da perspectiva institucionalista de Meyer e Rowan (1977), buscou entender como, no caso da polícia brasileira, regra e prática eram articuladas. O autor observou que na “lógica em uso” dos policias, formalismos legais eram abandonados ou invertidos em favor de um conjunto de tipificações utilizadas para orientar a ação e interpretar situações.

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“Tipificações [são elaboradas] sobre a natureza e composição da clientela marginal, sobre fontes competentes de informação e modos de processamento de suspeitos. [Estas] constituem a cultura da organização, e a socialização profissional significa o uso competente desta cultura” (PAIXÃO, 1982).

Para Paixão (1982), o descolamento de decisões e atividades práticas dos objetivos postulados e representados nos códigos e regras legais aproxima o estudo do sistema de justiça criminal da teoria das organizações, particularmente da concepção de organizações como sistemas frouxamente articulados, desenvolvida por Meyer e Rowan (1977). Esses autores argumentaram que as regras e procedimentos formais estão muito distantes das práticas adotadas cotidianamente pelos membros das organizações. Os procedimentos formais, segundo os autores, têm, em geral, caráter cerimonial. Isto é, os membros das organizações fingem se conformar a eles, mas, na prática, atuam de acordo com o que consideram ser mais eficiente para o desenvolvimento de suas tarefas. As regras formais, segundo os autores, servem para justificar a ação e as decisões tomadas de acordo com elas. Essa abordagem será desenvolvida por Hagan e colegas (1979) para estudar a justiça criminal americana. Hagan estudou a influência da atuação dos probation officers nos processos de decisão, agentes cuja função é investigar a personalidade e as situações social e legal do acusado e então elaborar uma recomendação individualizada para a sentença. Com base neste estudo, concluiu que a criação do subsistema de probation tem muito mais a ver com a fabricação de mitos legais do que com a reestruturação, de fato, dos processos de decisão.16 A referência ao grau de articulação ou disjunção das organizações do sistema de justiça criminal brasileiro foi feita pela primeira vez por Edmundo Campos Coelho em seu artigo seminal intitulado “A administração da Justiça Criminal no Rio de Janeiro: 19421967”, publicado em 1986, conforme já exposto na Introdução desta tese. Coelho (1978) sustentou também, conforme referido no início do presente capítulo, que as estatísticas oficiais não conseguem captar a criminalidade nas classes médias e altas visto que nesses segmentos as querelas são resolvidas em âmbito privado, sem o acionamento da polícia e/ou da justiça. Há uma espécie de cruzada moral estabelecida pelas organizações policiais para combater certos tipos de crimes. Em razão disso, cria-se um estereótipo do criminoso e um consequente encaixe da população mais pobre nesse estereótipo.

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Recentemente, Vargas e Rodrigues (2011) utilizaram-se do conceito de sistema frouxamente integrado para estudar a (des)articulação do trabalho de investigação na fase policial.

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Considerando que as pessoas de status social baixo não possuem imunidades institucionais, ao contrário das pessoas de status social mais alto, tendem a ser mais presas, processadas e condenadas. Ele identifica três fatores que determinam punições mais severas no tribunal: cor, status social baixo e ter permanecido preso ao longo da instrução. Por essa razão, as infrações consideradas crimes do colarinho branco são consideradas ilegais, mas não como um comportamento criminoso, já que quem os comete não se enquadra neste estereótipo do criminoso. “Os legisladores criam o crime ao elaborar leis cuja infração constituirá comportamento criminoso; e essas leis são elaboradas de tal forma que as probabilidades de serem violadas por certos tipos sociais coincidem com as probabilidades imputadas ao desempenho de certos roteiros típicos” (COELHO, 2005[1978], p.285).

Misse (1999, 2006, 2008, 2008a) aprofunda essa ideia da “criminalização da marginalidade” afastando a tese equivocada de que a pobreza é a causa da criminalidade ou do aumento da violência urbana e construindo o conceito de acumulação social da violência. Esse processo social, segundo o autor, teve início há pouco mais de meio século, nos anos 1950, e permanece até os dias atuais, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Àquela época, os eventos tidos como crimes mais comuns eram as contravenções penais, os pequenos furtos, a sedução, o adultério, estelionato, ou seja, crimes que dependiam mais da astúcia do indivíduo e da ingenuidade da vítima do que da violência. Os tipos de homicídios mais registrados eram os que tinham como motivação a passionalidade e, muitas vezes, o suicídio do assassino. A partir dos anos 1950, começam a ter notícias de assaltantes à mão armada, arrombamentos e assaltos a residências e bancos17 (MISSE, 2008a). À mudança nesse padrão da criminalidade associa-se uma alteração no padrão de sua repressão. A criação do Grupo de Diligências Especiais pelo então chefe de polícia é uma dessas mudanças. O comandante desse grupo passa a recrutar sua equipe dentre o então chamado Esquadrão Motorizado da polícia e, como suas ações culminavam não na prisão, mas na morte dos suspeitos dos crimes, a imprensa começa a nomeá-los de Esquadrão da Morte. Com a morte do comandante, em 1964, os comandados criam um grupo para-policial e, a partir de então, cadáveres passam a ser encontrados em lugares ermos da capital com a

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Paixão (1995) também descreve como se deu essa mudança ao longo de 30 anos, entre 1970 e 2000: do “malandro” para o “crime organizado”.

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inscrição: “Menos um ladrão na cidade. Assinado: E.M.”. Outros grupos de extermínio passam a surgir na cidade, bem como figuras dos “justiceiros”. Nas palavras de Misse: “O carisma positivo de uma violência que se neutralizava sob o personagem do “justiceiro” abria caminho para denunciar a insatisfação com a modernidade judicial, lenta e cercada de garantias, em benefício do eterno retorno da vingança, mesmo que uma vingança impessoal e universalizada como justa” (MISSE, 2008a, p.377).

Mas foi com a redemocratização do país, no início dos anos 1980, que o volume dessa criminalidade violenta ganha visibilidade na imprensa fluminense e nacional. Misse percebe o processo de acumulação social da violência no Rio de Janeiro e suas imediações, mas pondera que o mesmo pode ganhar aspectos de abrangência nacional, ao compartilhar dimensões comuns com outras capitais. Para compreendê-lo enquanto uma construção social, Misse argumenta que não é suficiente tomar como referência as leis codificadas, já que é comum no Brasil que “a lei não seja seguida em certos e variados casos, e, como seus contextos produzem às vezes que padronizam práticas extralegais relativamente legítimas” (MISSE 2008a, p. 379). Neste sentido, ele propõe operar a construção social do crime com base em quatro níveis analíticos. A criminalização é o processo pelo qual se instituem as sanções para os atos definidos como crimes, aquelas típico-idealmente definidas pelos legisladores e que se encontram nos códigos. Entendo por criminação o percurso através do qual atores interpretam cenas e/ou relatos, eventos, de acordo com os dispositivos contidos nos códigos, as ações criminalizadas. A incriminação acompanha a criminação. De modo muito semelhante ao processo de construção da criminação do evento, constrói-se a incriminação do suposto sujeito-autor de ter cometido aquele evento criminado. A identificação desses atores incriminados passa por um processo que Misse chama de sujeição criminal, através do qual são selecionados preventivamente os supostos sujeitos que irão compor um tipo social cujo caráter é socialmente considerado propenso a cometer um crime. Nas palavras do autor: “Quando a transgressão, cuja criminação é socialmente justificável, desliza para a subjetividade do transgressor e para sua individualidade, reificando-se socialmente como caráter ou enquadrando-o num tipo social negativo, constitui-se o que propomos chamar de sujeição criminal. Essa noção parece-me tanto mais interessante quanto maior for a capacidade do poder de definição de antecipar (ou prever) a adequação da incriminação a um indivíduo e de construí-lo como pertencente a um tipo social. Amplia-se a sujeição criminal como uma potencialidade de todos os indivíduos que possuam atributos próximos ou afins ao tipo social” (MISSE, 2008, p.23).

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O exercício a que me propus desenvolver neste estudo é, principalmente, demonstrar como esses operadores analíticos (MISSE, 1999, 2006, 2008, 2008a) são construídos para o homicídio doloso. Observando as receitas profissionais de uma equipe de perícia descrevo como uma morte é criminada como homicídio doloso. Ainda na fase de instrução criminal da polícia e ao longo de toda a instrução criminal no rito do tribunal do júri apresento como a incriminação é construída por delegados nos relatos do inquérito policial e por promotores de justiça nos relatos contidos nas denúncias. Chego ao fim do processo de incriminação analisando os relatos dos juízes nas sentenças de pronúncia, que encerra a primeira fase do rito do tribunal do júri, e nos relatos das sentenças finais, principalmente as condenatórias. Ao longo de todo o processo de construção social e institucional do homicídio, perpasso observações que permitem indicar aspectos sobre como a sujeição criminal está presente nas práticas de peritos e nos relatos de promotores e juízes. Na próxima seção, descrevo a metodologia adotada para propor uma compreensão de meu objeto de estudo. Notas Metodológicas Empiricamente, minha proposta de pesquisa pede a observação sobre como uma morte é registrada pelo Estado. Interessa, em um primeiro momento, compreender como certos tipos de mortes tornam-se tipificadas como homicídio doloso. A partir deste momento, o Estado passa a tratar não mais de uma morte qualquer, mas de um evento criminado. Aos olhos do Estado, e da sociedade como um todo, um evento criminado, principalmente um homicídio doloso, indica que a normalidade social foi quebrada por algum indivíduo e que, portanto, esta necessita ser restabelecida. Uma forma de se atingir este restabelecimento é com a acusação de um indivíduo pelo cometimento do evento. Mas esta acusação só fará sentido para a sociedade se ela apresentar um caráter público (MISSE, 1999). Neste sentido, e considerando as descrições feitas por outros estudos aqui já citados sobre como o sistema de justiça criminal funciona no Brasil, é nas unidades da Polícia Civil que as notícias dessas mortes, que podem vir a ser tipificadas como homicídio doloso, chegam neste primeiro momento. Diante disso, localizei-me na Divisão de Homicídios da cidade do Rio de Janeiro, entre os meses de fevereiro e maio de 2012, para acompanhar principalmente os trabalhos da chamada “perícia de local do crime”. Essas portas me foram abertas por ocasião de minha participação na pesquisa Fluxo do Trabalho de Perícia nos Processos de Homicídio Doloso, realizada no Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência

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Urbana (NECVU-UFRJ) e fomentada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. A etnografia18 realizada junto à equipe de perícia da Divisão de Homicídios - ou simplesmente “DH” 19, para usar uma expressão corrente entre esses profissionais - começou no dia 18 de fevereiro de 2012, um sábado de carnaval, quando acompanhei o trabalho desses profissionais por todo o horário de plantão, das 8h do sábado às 8h do domingo. Desde esta data até 14 de março de 2012, frequentava a sala da perícia entre duas a três vezes por semana, ali permanecendo durante 8 a 12 horas por dia, chegando sempre pontualmente às 8h20. Foi possível acompanhar dezenove “perícias de local” de morte registrada e perceber um pouco da rotina de trabalho desses profissionais. Como a equipe da perícia trabalha em esquema de plantão, busquei, com este cronograma, alternar as equipes. Com isso, “trabalhei” com quase todos os profissionais ali lotados, cerca de vinte: oito peritos criminais, seis peritos legistas e seis papiloscopistas.21 Pude observar as receitas profissionais seguidas por peritos criminais, peritos legistas e papiloscopistas durante a realização das perícias em local de mortes que podem vir a ser tipificadas como homicídio doloso, ou simplesmente as “perícias de local de crime”, para usar uma expressão dos próprios operadores. Entre meados de março até meados de maio, continuei indo à Divisão de Homicídios, mas me dediquei a observar outros setores, como o Setor de Inteligência Policial (SIP), onde as estatísticas são produzidas, a Seção de Descoberta de Paradeiros (SDP) - quando pude acompanhar, por exemplo, a realização de um retrato falado -, bem como os trabalhos dos Grupos de Investigação (GI) e dos delegados assistentes. Em algumas ocasiões eu era convidada a acompanhar reuniões na sala do Diretor da unidade e estive presente em dois dias de grande movimentação interna e externa, sobretudo da imprensa local em virtude de prisões

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Por “etnografia”, entendo o exercício que permite ao pesquisador construir o campo ao mesmo tempo em que constrói a teoria sobre seu objeto e, naturalmente, transforma-se a si mesmo. Ao realizar uma etnografia, o pesquisador transforma o exótico em familiar e/ou o familiar em exótico (DAMATTA, 1978), bem como empreende um esforço intelectual para compreender os dados, a construção das construções de outras pessoas através da descrição densa (GEERTZ, 1989). 19 Na maioria das vezes em que eu utilizar as aspas em expressões ou palavras é para destacar que se trata de termos recorrentes no vocabulário dos atores do campo, como categorias nativas. 20 O chegar pontualmente às 8h mostrou-se primordial, já que o plantão se inicia neste horário. A partir daí, se “pintasse um local”, a equipe poderia “ir para a rua” imediatamente, o que implicaria dia de campo perdido se eu me atrasasse. Não raro, a equipe saía antes das 8:30h, principalmente às segundas-feiras. A sede da Divisão de Homicídios fica na Barra da Tijuca. 21 Não acompanhei os trabalhos de dois peritos criminais, um perito legista e um papiloscopista, que estavam de férias no momento do campo.

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de “bandidos importantes”, como a do miliciano Marquinhos Sem Cérebro22 - preso por uma das equipes da Divisão de Homicídios - e a do traficante Piolho23 - que, mesmo preso por equipe de outra delegacia, causou certo furor no ambiente da Divisão, já que havia “pelo menos uns dez inquéritos [de homicídio] nas costas dele”, segundo ouvi pelos corredores. Esta etnografia trouxe a possibilidade de compreender de que maneira o Estado registra, em um primeiro momento, uma morte violenta como homicídio doloso e não como outro tipo de morte violenta. Acessando o livro de registros dos laudos dos peritos criminais e dos papiloscopistas e a base de dados interna da Polícia Civil, pude empreender uma comparação entre tipificações produzidas por peritos, de um lado, e por delegados, de outro. Assim, discuto como um mesmo evento pode receber diferentes tipificações, que são correspondentes a cada tipo profissional: por que uma morte é um “encontro de cadáver” para o perito criminal e esta mesma morte passa a ser um homicídio doloso para o delegado? Após o encerramento do campo de pesquisa, busquei aprofundar as observações sobre a investigação criminal desses dezenove “locais” que observei. Apesar de não ter tido acesso aos inquéritos policiais a eles correspondentes, obtive a informação sobre o andamento da instrução criminal, isto é, em que fase os inquéritos se encontravam: se estavam “em andamento” dentro da Divisão de Homicídios ou se haviam sido “relatados ao Ministério Público”. Utilizarei o termo “instrução criminal” para me referir também aos procedimentos da fase policial por considerar, em concordância com Misse (2010) que o inquérito policial é uma forma de instrução criminal, já que contém registrado por escrito os resultados obtidos pela investigação (MELLO, 1965 apud MISSE, 2010). De modo complementar, entrevistei nove operadores desta unidade: um delegado adjunto, um delegado assistente, dois peritos legistas, um papiloscopista, três peritos criminais e o agente responsável pela sistematização das estatísticas da Divisão de Homicídios e análise criminal24. Com essas informações, pude identificar elementos capazes de determinar a conclusão e relatoria de um inquérito policial, de modo que este seja encaminhado ao Ministério Público para o oferecimento da denúncia, abrindo, assim, a primeira fase do rito do tribunal do júri. Para dar continuidade ao estudo desse processo, mostrou-se necessário recorrer a fontes de dados que abarcassem a instrução criminal no rito do tribunal do júri. Como já 22

Alguns links sobre a notícia: http://extra.globo.com/casos-de-policia/marquinho-sem-cerebro-preso-peladivisao-de-homicidios-em-bangu-4666266.html e http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/04/traficanteacusado-de-tres-homicidios-e-preso-em-bangu-no-rio.html . 23 Alguns links sobre a notícia: http://extra.globo.com/casos-de-policia/policia-civil-prende-traficante-piolho-domorro-do-dezoito-4731474.html e http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/chefe-do-trafico-do-morro-dodezoito-piolho-e-preso-com-a-mulher-na-zona-oeste-20120425.html . 24 Análise das entrevistas com uso do software NVivo 9.0.

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demonstrado por outros estudos de Sociologia do Crime no Brasil, as dificuldades para se desenvolver pesquisas com base em dados fidedignos são muitas e de diferentes naturezas (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 1987; VARGAS, 2004; MISSE, 2006). Para o estudo do fluxo de pessoas e papéis pelo sistema de justiça criminal, a principal delas refere-se a não correspondência entre os códigos identificadores dos eventos registrados por cada uma das instituições que compõem o sistema de justiça criminal, o que praticamente impede uma análise consistente sobre o funcionamento desse sistema, tanto em termos de fluxo quanto do tempo dispendido no processamento. A essa dificuldade soma-se a pouca disponibilidade dos profissionais dessas organizações em receber pesquisadores interessados em observar como esses registros são computados, de modo a proceder acuradamente a análise das estatísticas oficiais produzidas por essas organizações. Neste sentido, o material empírico trabalhado, na Parte II, para desenvolver minha discussão sobre como a incriminação (e a sujeição criminal, em menor medida) foi levantado no rito do tribunal do júri da cidade de Belo Horizonte/MG, já que eu possuía um ponto de partida que foi construído ao longo do meu trabalho de mestrado (SILVA, 2006). Também no decorrer dos oito anos de trabalho no Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG, pude participar de várias pesquisas dentre as quais destaco O Inquérito Policial no Brasil: Uma pesquisa empírica (MISSE, 2010; VARGAS; NASCIMENTO, 2010), oportunidade em que pude não só aprofundar esse ponto de partida, como melhor conhecer os procedimentos do inquérito policial. Ao buscar identificar os elementos que parecem determinar a conclusão do inquérito policial de homicídio doloso, acabei observando também aqueles elementos que determinam o arquivamento dos mesmos. Neste sentido, visando compreender o que não segue em frente no sistema de justiça criminal, realizei uma análise exploratória sobre pedidos de arquivamento de inquéritos policiais de homicídio doloso, produzidos por promotores de justiça da capital mineira. E, em paralelo, explorei também alguns relatórios de conclusão de inquérito policial redigidos por delegados da Delegacia de Crimes Contra a Vida (DCcV) desta cidade. Em pesquisa com vistas a embasar minha dissertação de mestrado, analisei 265 denúncias de homicídios dolosos tentados e consumados, oferecidas entre dezembro de 2003 e dezembro de 2005 por todos os oito promotores de justiça lotados, naquele momento25, nas duas varas criminais do rito do tribunal do júri da comarca de Belo Horizonte/MG, Fórum 25

Trabalho de campo realizado entre dezembro de 2005 e fevereiro de 2006.

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Lafayette. Essas denúncias se referem a ocorrências registradas entre 1993 e 2005, com concentração nos últimos dois anos, 2004 e 2005. Esses dados, que constituem uma seleção não aleatória do volume total de homicídios dolosos tentados e consumados ocorridos em Belo Horizonte nesse período, permitiram-me utilizar algumas técnicas da metodologia quantitativa para discutir, principalmente, o fenômeno dos homicídios dolosos, analisado por meio de uma tipologia (SILVA, 2006, 2008). Desdobramentos dessa pesquisa mostraram-se factíveis e dediquei-me a acompanhar as fases judiciais em que esse conjunto de denúncias se localizava, inserindo meus estudos na linha de pesquisa interessada em compreender o funcionamento do sistema de justiça criminal no Brasil26 da perspectiva de fluxo. Para acessar essas informações, utilizei duas unidades de análise da base de dados original: agressores e denúncias. As informações correspondentes a essas unidades de análise podem ser consideradas como os elementos-chave de identificação dos processos junto ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG). Uma vez que os casos coletados junto ao Ministério Público, as denúncias, apresentam enorme variabilidade em virtude das características específicas de cada caso, foi necessário proceder a uma limpeza na base de dados original. Assim, através do nome do acusado, conjugado ao nome do promotor responsável pela denúncia, ao número do inquérito, bem como ao nome dos pais e data de nascimento do acusado, pude garantir que a unidade de análise passasse a ser o indivíduo processado. Desta forma, cheguei a um banco de dados composto por 348 processos, sendo que houve apenas três casos de agressores que foram denunciados duas vezes, por dois crimes diferentes. Não foi identificado nenhum caso homônimo, facilitando a consulta aos registros no TJMG. Destes 348 casos, foi possível identificar 245 processos de indivíduos incriminados por homicídio consumado e tentado, uma amostra correspondente a 70,4%. 27 Mas, para os objetivos desta tese, considerei apenas as fontes correspondentes a indivíduos processados por homicídio doloso consumado, cujas denúncias foram oferecidas entre janeiro de 2004 e dezembro de 2005, perfazendo um conjunto de 154 casos dentre os

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O andamento processual pode ser facilmente consultado no site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (www.tjmg.jus.br), se o usuário possuir ou o número do processo ou o nome do réu. 27 O volume de casos não encontrados (29,6%) pode ser atribuído à incompatibilidade entre o modo da realização da busca e a forma como os casos foram registrados pelos operadores no banco de dados do TJMG.

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245 identificados. Consultando a base de dados do TJMG sobre movimentação processual, pude agregar variáveis à base de dados original28. Nesta tese, utilizo as seguintes: a) Idade do agressor no momento do evento registrado b) Sexo do agressor c) Tipologia de homicídio doloso a. Conflitos cotidianos b. Drogas/tráfico c. Vingança d. Motivos amorosos e. Caput do artigo 121 f. Motivos financeiros g. Trabalho policial h. “bala perdida” d) *Situação (em 2007, setembro) do processo a. Entre denúncia e pronúncia b. Entre pronúncia e sessão de julgamento c. Entre sessão de julgamento e execução da pena e) *Situação atual (em 2013, janeiro) do processo a. Entre denúncia e pronúncia b. Entre pronúncia e sessão de julgamento c. Entre sessão de julgamento e execução da pena f) Data da ocorrência registrada g) Data da denúncia h) *Data da sentença de pronúncia i) *Data da sessão de julgamento j) *Tempo decorrido entre ocorrência e denúncia (em dias) k) *Tempo decorrido entre denúncia e sentença de pronúncia (em dias) l) *Tempo decorrido entre sentença de pronúncia e sessão de julgamento (em dias) m) *Tempo decorrido entre denúncia e sessão de julgamento (em dias) n) *Tipo da sentença final: a. Condenação b. Absolvição 28

As variáveis marcadas com asterisco são as acrescidas à base original, cuja descrição completa pode ser encontrada em Silva (2006).

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c. Desclassificação o) *Se o réu respondia a outro processo além do referido (sim x não) p) *Se réu estava sendo defendido por advogado particular (sim x não) q) *Se o réu condenado está cumprindo a pena fixada (sim x não) r) Se vítima estava na companhia de alguém no momento da morte (sim x não) s) Se agressor utilizou arma de fogo (sim x não) t) Se vítima e agressor eram conhecidos (sim x não) Uma ponderação de ordem metodológica importante para esse tipo de estudo é quanto ao tempo de referência da pesquisa. Entende-se que quanto maior o intervalo de tempo decorrido entre a realização do estudo e os registros das fontes de dados analisados, maior a chance de o pesquisador conseguir compreender o funcionamento do sistema de justiça criminal (MISSE; VARGAS, 2009). Neste sentido, este material permite bastante solidez nas análises, já que se trata de casos que deram entrada no rito do tribunal do júri há aproximadamente nove anos. Entre final de 2008 e início de 2009, por ocasião da pesquisa O Inquérito Policial no Brasil: Uma pesquisa empírica (MISSE, 2010; VARGAS; NASCIMENTO, 2010), tive a oportunidade de entrar em contato com o coordenador do Centro de Arquivo Forense do Fórum Lafayette (CEARFO) que, na ocasião, desarquivou 32 processos a partir do rol original de 245 processos localizados. A análise preliminar desses 32 autos findos me permitiu amadurecer o tratamento que seria dado a este material sendo que, para o desenvolvimento desta tese, retomei os contatos com a coordenação do Arquivo no intuito de solicitar o desarquivamento de todos os 245 processos.29 Infelizmente, todo esse material só foi efetivamente disponibilizado para consulta em novembro de 2012. Dentre o conjunto que corresponde ao interesse desta tese, foram consultados 130 dos 154 processos localizados (84,4%). As razões pelas quais alguns processos não foram consultados são as seguintes: ou eles estavam com desembargadores do TJMG; ou com juízes das varas criminais do tribunal do júri; outros estavam arquivados em uma empresa terceirizada que também faz o serviço de arquivamento dos processos do Fórum Lafayette; e alguns poucos não apresentavam condições físicas para serem manuseados, já que estavam mofados e/ou úmidos. 29

Agradecimento especial ao Sr. Bernardo Cambraia, então coordenador do Centro de Arquivo Forense do Fórum Lafayette, que prontamente procedeu ao desarquivamento dos processos e me colocou em contato com outros setores do Fórum. Agradeço a Davy Alves Caminhas, mestrando em Sociologia pela UFMG e meu assistente de pesquisa, que cuidadosamente consultou estes processos, fotografando os documentos necessários à análise.

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Observando os relatos contidos nessa fonte de dados, empreendi o método da análise de conteúdo30, priorizando os seguintes documentos contidos nesses processos: denúncia, laudos periciais, sentença de pronúncia, sentença final e guia de execução do réu. Com isso, foi possível observar os relatos produzidos por acusação e defesa, bem como os relatos dos juízes nas sentenças de pronúncia e nas sentenças finais, quando fixam a pena ao réu condenado. Considero que as sentenças dos juízes, por encerrarem as fases do rito do tribunal do júri, constituem resumos da instrução criminal neste rito. Neste sentido, a sentença de pronúncia (que encerra a primeira fase do rito, ao mesmo tempo em que demarca o início da segunda fase) contém trechos de depoimentos de testemunhas e trechos do interrogatório do réu, bem como as principais alegações finais de acusação e de defesa. A sentença final é redigida após a sessão de julgamento e contém o relato do juiz sobre: a decisão do conselho de sentença - se o réu foi condenado ou absolvido; uma breve descrição sobre o acusado e; principalmente, a determinação da punição nos casos de condenação. Esta punição é expressa pelas razões que motivaram o juiz a decidir por um tipo de pena a ser cumprida pelo condenado, na maioria das vezes, um cálculo sobre o tempo em que o réu deverá ser mantido preso. Trabalhando este material, foi possível chegar à indicação de possíveis determinantes para a condenação dos incriminados por homicídio doloso bem como para suas punições. Tais determinantes foram comparados quanto à incriminação para acusados de cometer homicídio do tipo drogas/tráfico e acusados por homicídio do tipo conflitos cotidianos. A discussão oriunda dessa comparação permite indicar algumas pistas sobre como a construção da sujeição criminal é operada no rito do tribunal do júri. Em 2008, o Código de Processo Penal, datado de 1941, foi alterado de modo substantivo. As leis no 11.690/08, no 11.719/08 e no 11.689/08 alteraram, respectivamente, os procedimentos previstos para a coleta de “provas” e uso das mesmas pelo juiz, no rito ordinário e no rito do tribunal do júri. A primeira lei abarca a esfera da polícia judiciária (Polícias Civis e Polícia Federal) e as outras duas leis abarcam a esfera do judiciário (Magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública).

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Segundo Bauer (2012, p.190), “análise de texto faz uma ponte entre um formalismo estatístico e a análise qualitativa dos materiais. No divisor quantidade/qualidade das ciências sociais, a análise de conteúdo é uma técnica híbrida que pode mediar esta improdutiva discussão sobre virtudes e métodos”. Guardadas as devidas diferenças entre as Ciências Sociais e a História, a leitura de Ginzburg (1987[1976]), bem como a de Fausto (2009) foram bastante úteis ao desenvolvimento dessas análises.

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A Lei no 11.690/08 refere-se às regras para a realização do exame de corpo de delito e das perícias em geral, bem como, e principalmente, o modo como o juiz pode fundamentar sua decisão com base nessas provas. Uma das modificações parece, a meu ver, ter fornecido subsídio ao modelo de realização de perícia introduzido com a criação da Divisão de Homicídios na cidade do Rio de Janeiro. Não obstante a Parte I desta tese contemplar o funcionamento desta nova unidade da Polícia Civil, busco verificar, na Parte III, se a introdução desta delegacia especializada tem causado algum impacto sobre as taxas de resolução de mortes violentas e, em especial, sobre eventos criminados como homicídio doloso. Faço isso com base nos dados estatísticos fornecidos pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) para essas ocorrências registradas entre janeiro de 2009 e dezembro de 2011. Neste sentido, e complementando o que é discutido na Parte I, torna-se interessante tentar mensurar possíveis impactos do advento desta nova unidade policial quanto à taxa de elucidação dessas mortes criminadas como homicídio doloso. Busco, principalmente, identificar se as taxas de relatoria de inquéritos policiais sofrem um aumento a partir de 2010, data da criação da Divisão de Homicídios. A Lei no 11.719/08 traz mudanças para as regras de decisão do rito ordinário, que não é objeto de discussão desta tese. Entretanto, como a primeira fase do rito do tribunal do júri segue os mesmos procedimentos do rito ordinário, essas mudanças têm que ser consideradas. Essa lei parece estar conferindo um caráter mais acusatorial ao funcionamento da primeira fase do rito do tribunal do júri. Já a Lei no 11.689/08 modifica algumas regras correspondentes à segunda fase do rito do tribunal do júri e, ao que parece, estas sofreram menos alterações que aquelas referentes ao rito ordinário. Com base em entrevistas e observações de audiências de instrução e sessões de julgamento, destaco as principais mudanças ocorridas com o advento dessas leis, discutindo se estão sendo colocadas em prática ou, de outro lado, por que não estão sendo operadas. Entre o segundo semestre de 2009 e o primeiro semestre de 2010, a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça fomentou o projeto de pesquisa Os novos procedimentos penais: uma análise empírica das mudanças introduzidas pelas leis 11.689/08 e 11.719/08. Este projeto, para o qual fui convidada a participar, foi executado no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (CESeC-UCAM)31. 31

Projeto coordenado pela professora Julita Lemgruber. Agradeço especialmente aos amigos Ludmila Ribeiro e Igor Machado, parceiros na redação de artigos sobre este tema que foram apresentados na 34ª. ANPOCS e IX Reunião de Antropologia do Mercosul.

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Nesta oportunidade, pude realizar doze entrevistas com operadores do direito da cidade do Rio de Janeiro: três juízes, dois advogados criminalistas, quatro defensores públicos, um promotor de justiça e dois serventuários32. Também nesse contexto, foram observadas nove audiências de instrução e seis sessões de julgamento nas varas criminais de competência do tribunal do júri. Meu objetivo na tese em realizar esta discussão é indicar como a adaptação a essas novas regras de decisão - ou, de outro lado, a manutenção das antigas práticas rotineiras - pode estar influenciando, ou poderia influenciar no futuro, a construção da incriminação dos acusados de homicídio doloso. Nas Notas Conclusivas, analiso os principais resultados encontrados a partir do empreendimento deste trabalho cujo objetivo é identificar possíveis determinantes da condenação de incriminados por homicídio doloso, tendo como perspectiva a construção social e institucional da realidade.

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Dos doze entrevistados, seis estavam lotados nas varas criminais do rito do tribunal do júri. Entretanto, os que estavam lotados nas varas do rito ordinário já haviam trabalhado no rito do júri e, por isso, decidi manter todas as entrevistas para a análise.

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PARTE I Criminação e Incriminação

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Capítulo 2 - A Polícia Civil no Rio de Janeiro Atendendo aos objetivos de meu estudo, a compreensão sobre como o homicídio doloso é construído social e institucionalmente, inicio a discussão de cunho mais empírico enfatizando como meu objeto de estudo, o homicídio doloso, é construído dentro de uma das organizações que compõe o sistema de justiça criminal no Brasil: a Polícia Civil através do inquérito policial33. É possível dizer que o formato do inquérito policial no Brasil atual é ainda muito semelhante ao apresentado em fins do século XIX. Essa impressão advém da leitura da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal atualmente em vigor, já que nessa seção, o legislador relata suas razões para conservar o inquérito policial nos moldes do regulamentado pelo código anterior, de 1890. Não obstante mudanças significativas em alguns de seus artigos, as regras de decisão, ou regras de procedimento contidas no código de hoje datam de 1941. Na Exposição de Motivos do então “novo” Código, argumenta o legislador quanto à conservação do inquérito policial: “Foi mantido o inquérito policial como processo preliminar ou preparatório da ação penal, guardadas as suas características atuais. O ponderado exame da realidade brasileira, que não é apenas a dos centros urbanos, senão também a dos remotos distritos das comarcas do interior, desaconselha o repúdio do sistema vigente. [...]34 há, em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo à propositura da ação penal, um argumento dificilmente contestável: é ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstancias objetivas e subjetivas. [...] Por que, então, abolir-se o inquérito preliminar ou instrução provisória, expondo-se a justiça criminal aos azares do detetivismo, às marchas e contramarchas de uma instrução imediata e única? Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas o nosso sistema tradicional, como o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos aleatória, mais prudente e serena.” [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, Exposição de Motivos, destaques do legislador].

Ainda quanto ao aspecto legal de construção do inquérito policial, diz o Código de Processo Penal que ele deve terminar no prazo de dez dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, ou no prazo de trinta dias, quando estiver solto.

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Foucault (2003[1973], pp. 86-95, passim) considera que “a polícia é um instrumento para-judiciário. Ela integra uma rede de poder que não é da ordem do judiciário, mas que desempenha uma das funções da justiça: não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades. Nas sociedades onde se tem o panoptismo, a forma de poder repousa não mais sobre o inquérito, mas sobre o que ele chama de exame, que se baseia na vigilância, no controle e na correção”. 34 O uso dos colchetes serve para diferenciar as minhas intervenções das intervenções feitas pelos legisladores, ou pelos operadores, estas contidas entre parênteses.

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Todas as peças do inquérito policial devem ser reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade, isto é, o delegado. Os instrumentos do crime, bem como os objetos que interessam à prova, acompanharão os autos do inquérito, que acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base uma a outra (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigos 9-12). As regras de decisão, ou regras de procedimento, que se referem às práticas dos profissionais da polícia técnico-científica estão contidas também no Código de Processo Penal e inseridas no Capítulo II, que normatiza a produção das provas. Elas estão descritas nos artigos 158 a 184. Destacam-se as que estipulam o prazo de dez dias para a elaboração do laudo, a realização da autopsia pelo menos seis horas depois do óbito, exceto no caso de mortes violentas em que as lesões permitam precisar a causa da morte e não houver necessidade de exame interno para a verificação de circunstância relevante. O Código obriga a fotografia dos cadáveres na posição em que forem encontrados, bem como todas as lesões externas e vestígios deixados no local do crime (BRASIL, Código de Processo Penal, artigos 160, 162 e 164). Não apenas o formato do inquérito policial, mas o modo como ele é construído até os dias de hoje é, certamente, um ponto de discussão na Sociologia do Crime e na Antropologia do Direito no Brasil (LIMA, 1989, 2008, 2009; GRINOVER, 1998; MISSE, 2010; VARGAS, 2012; MENDES, 2012). Esses estudos mostram que o inquérito policial representa a manutenção do caráter inquisitorial da cultura jurídica brasileira, porque construído com base no segredo, voltado para a busca da “verdade real” dos fatos35. Referidas pesquisas chamam a atenção, dentre muitas outras particularidades do sistema de justiça criminal brasileiro, para a importância da confissão e do depoimento de testemunhas de acusação e para a formação da culpa do acusado ainda na fase preliminar36. O fato de o inquérito permanecer entranhado37 no processo judicial é certamente um dos pontos mais debatidos por esses autores e todos seguem na mesma direção: o caráter inquisitorial da fase de instrução criminal na polícia acaba por influenciar a fase de instrução

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Sobre busca da “verdade real”, ver Lima (2008), Vargas (2012). O filme O Caso dos Irmãos Naves (PERSON, 1967) mostra como os procedimentos práticos da Polícia da década de 1930 eram baseados na busca pela verdade real dos fatos através da confissão dos acusados. Este caso, tido como “o maior erro da história da justiça brasileira”, foi muito relembrado por juristas e jornalistas ao longo de 2010, após a prisão do goleiro do Flamengo, Bruno, acusado pelo homicídio de Elisa Samúdio. Guardadas as devidas diferenças, em ambos os casos, não se encontraram os corpos das vítimas e os suspeitos permaneceram presos desde a notícia-crime. 37 O termo é usado para discriminar os documentos que não podem ser retirados dos autos do processo penal (LIMA, 2008). 36

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criminal judicial, que deveria apresentar caráter acusatorial, dado as regras de procedimento na qual ela é fundamentada. Por ora, farei uso desses estudos no que tange à observação sobre as práticas rotineiras dos policiais civis na operacionalização dessas regras de decisão, ou regras de procedimento. Para tanto, inicio com uma breve descrição de como a instrução criminal na polícia e o inquérito policial para o homicídio doloso vem sendo construído na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Meu objetivo é reconstruir como este processo se dá nas delegacias vinculadas ao Programa Delegacia Legal do Rio de Janeiro, e como constitui o fluxo de papéis em uma unidade especializada, a Divisão de Homicídios, que foi criada em janeiro de 2010. Neste sentido, é importante destacar uma das principais mudanças, em termos de gestão pública, ocorridas no estado do Rio de Janeiro, desde 1999: a criação do Programa Delegacia Legal. Este foi pautado em “princípios como transparência e modernização das atividades policiais, com o objetivo de produzir maior celeridade dos procedimentos policiais” (PAES, 2008, p. 165), informatizando e padronizando o fluxo de procedimentos que deve ser seguido para a realização das investigações realizadas nas delegacias (MISSE et al, 2010). Não obstante o fato de nem todas as delegacias do estado estarem inseridas neste programa, sendo chamadas de delegacias tradicionais ou convencionais as que ainda não foram incorporadas, Paes (2008) e Misse et al (2010) chamam a atenção para mudanças estruturais e organizacionais, bem como para a manutenção de certas práticas rotineiras dos operadores das delegacias legais do Rio de Janeiro. Essas pesquisas mostram, por exemplo, que, contrariamente ao previsto na determinação do Programa Delegacia Legal, cada etapa dos procedimentos policiais permanece sendo de responsabilidade de diferentes grupos de policiais, conforme distribuição feita por cada delegado. Em termos organizacionais, pode-se dizer que as delegacias funcionam com a seguinte estrutura: (1) Balcão de atendimento: onde trabalham estagiários dos cursos de graduação em Serviço Social ou de Psicologia cuja função é atender o público que procura a delegacia, bem como fazer uma triagem entre o que será registrado ou não; (2) Grupos de Investigação (GIs): compostos por quatro policiais que trabalham em plantão de 24 horas por 72 horas de folga, responsáveis pela feitura dos registros de ocorrências (RO) e das verificações de procedência da investigação (VPI)38, sem atuar

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Note-se que a chamada “verificação de procedência da informação” é uma regra de procedimento prevista no Código de Processo Penal, momento no qual a autoridade policial deve se certificar se houve mesmo um evento

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na etapa seguinte, a do inquérito policial. Entende-se por RO a anotação que o policial faz da notícia-crime, ou da queixa do cidadão que procura a delegacia. Conforme decisão do delegado adjunto, que é quem trabalha no plantão, um registro de ocorrência pode ser suspenso ou pode ter prosseguimento. No segundo caso, ele faz um despacho determinando a instauração de uma VPI, a partir da qual se instaura o inquérito policial; (3) Grupos de Investigação Complementar (GICs): formados por policiais que trabalham com maior flexibilidade de horário, realizando a maioria das “diligências” externas e se encarregam dos procedimentos referentes aos inquéritos policiais, sendo que cada policial do GIC se ocupa de poucos inquéritos; (4) Setor de Suporte Operacional (SESOP): onde policiais trabalham em horário comercial organizando a circulação dos documentos que passam pela delegacia; (5) Setor de Inteligência Policial (SIP): onde policiais têm a função de fornecer aos investigadores informações relevantes à investigação, como dados de suspeitos, levantamentos de informações estatísticas sobre a criminalidade na circunscrição da delegacia, dentre outras coisas; (6) Outros setores como: a sala do síndico, função ocupada por um funcionário não policial responsável pela manutenção da estrutura física da sede da delegacia, as celas para abrigar os presos por até 24 horas, as salas de reconhecimento, cozinha, copa e quartos de descanso. Ainda no âmbito da pesquisa de Misse et al (2010), etnografia realizada nas delegacias do Rio de Janeiro, entre fins de 2008 e meados de 2009, mostrou como é construído o processo de incriminação nesta cidade, desde o registro de um evento criminável até a chegada às Varas Criminais. Essa pesquisa antecedeu a criação da Divisão de Homicídios e não pôde incorporar em sua análise a produção das provas periciais e testemunhais, como buscarei fazer neste trabalho. Os procedimentos para a confecção de inquéritos policiais para os crimes de homicídio doloso seguiam, à época da pesquisa, o mesmo fluxo referente a outros crimes, como estelionatos e roubos, por exemplo. Desta forma, quando não há a prisão do suspeito dentro das 24 horas subsequentes ao evento registrado como crime39, o processo de incriminação pode ser descrito da seguinte maneira.

que pode ser considerado crime. Atualmente, no Rio de Janeiro, esta tem sido uma prática utilizada para verificar a viabilidade de investigar o caso e instaurar um inquérito policial (MISSE et al, 2010). 39 Quando o suspeito é preso dentro deste prazo, os inquéritos são instaurados por flagrante e encaminhados diretamente aos juízes das Varas Criminais.

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A notícia do evento chega à delegacia e é feito um registro de ocorrência (RO) pelos policiais do grupo de investigação (GI) daquele plantão. Abre-se posteriormente a chamada verificação de procedência da investigação (VPI), com base na qual o delegado decidirá sobre a instauração ou não do inquérito policial. Uma vez instaurado, este passa a ser de responsabilidade de um policial do grupo de investigação complementar (GIC) chamado “sindicante de inquérito”. Este policial realiza os procedimentos necessários à investigação, tais como ir ao local procurar por testemunhas, intimá-las para prestarem depoimentos (oitivas) em cartório, solicitar laudos junto à polícia técnico-científica, dentre outros procedimentos cartoriais pertinentes à investigação policial e à instrução criminal. Feito isso, o inquérito, quando dotado de “provas de materialidade e autoria”, é devolvido ao delegado. O delegado então “relata o inquérito”, isto é, envia ao Ministério Público um relatório onde consta uma espécie de análise resumida de toda a instrução criminal realizada na fase policial. Com este relato, o delegado reforça a materialidade do evento criminado e indica a possível autoria do mesmo evento, sugerindo a incriminação (“indiciamento”) do suposto sujeito-autor a uma tipificação penal. Este relato é acompanhado pelos documentos produzidos ao longo da instrução criminal, tais como depoimentos transcritos de testemunhas, interrogatório do possível autor, laudos periciais, dentre outros. Estes são grampeados em uma pasta de papelão. Adquirindo uma organização dotada de sentido racional, ainda que cronologicamente a ordem de construção desses papéis tenha sido outra. Segundo diagnosticado na pesquisa referenciada, um dos entraves ao desenvolvimento dos inquéritos de homicídio doloso consistia na má qualidade e demora dos laudos periciais, centralizados nos institutos da polícia técnico-científica, além da ausência de testemunhas. A pesquisa mostrou que diante de um evento classificado inicialmente como “encontro de cadáver”, o GI de plantão na delegacia expedia uma solicitação à referida polícia para a realização da perícia de local do crime, bem como a solicitação ao Corpo de Bombeiros para a remoção do cadáver. O perito criminal, lotado nos postos regionais de polícia técnicocientífica ou nos institutos que a compõem, recebia a informação sobre o evento e se dirigia ao local, sem o acompanhamento de outros policiais civis e sem conhecimento de outras informações a respeito do evento, o que impedia que as considerações técnicas fossem utilizadas para esclarecer a dinâmica do mesmo. A precária comunicação entre as delegacias e os institutos da polícia técnico-científica pôde ser apontada como um dos fatores que contribuíam à inércia e à lentidão do trabalho policial. A pesquisa cita um dos policiais de GI, segundo o qual “o ideal está em que um

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policial vá até o local do crime e acompanhe a perícia de local, inclusive para que se possa arrolar testemunhas, mas isso quase nunca é feito” (MISSE et al, 2010, p.73). Ainda quanto ao trabalho da perícia para os inquéritos de homicídio doloso, a pesquisa destacou a “precariedade da perícia de local que, quando realizada, apresenta apenas uma descrição muito superficial do posicionamento e das condições em que o corpo se encontrava antes de sua remoção” (MISSE et al, 2010, p.74), além da ausência de fotografias do local e a não realização de coleta de impressões digitais nem de outros indícios materiais, como fios de cabelo na cena do crime, vestígios que poderiam auxiliar na identificação da autoria. Destacase, ainda, o fato de peritos e policiais do GI não se deslocarem às chamadas “áreas de risco”, favelas com forte presença do tráfico de drogas para dar andamento às investigações dos homicídios ali ocorridos ou mesmo dos cadáveres encontrados nessas regiões. Desde janeiro de 2010, uma modificação de ordem estrutural - e que parece estar interferindo no modo como são construídos os processos de incriminação correspondentes a eventos criminados como homicídio doloso - foi a criação da Divisão de Homicídios. De acordo com a legislação que a institui, esta unidade especializada tem por objetivo “dinamizar as investigações relativas aos crimes contra a pessoa, em especial o crime de homicídio” (SESEG, Resolução no 306/2010). De acordo com o artigo 2o desta legislação, compete à Divisão de Homicídios: “I – promover a promoção e a repressão aos crimes dolosos contra a vida, em especial os homicídios e latrocínios na forma consumada; II – dirigir e coordenar, privativamente, investigações referentes aos crimes de sua atribuição, nos primeiros 30 (trinta) dias da ocorrência, sendo delegada a redistribuição do inquérito policial à circunscrição do fato, ao diretor da Divisão de Homicídios; (...) V – comparecer, obrigatoriamente, aos locais de crime de sua atribuição, assumindo prontamente a direção das investigações e confeccionando o competente registro de ocorrência, independentemente da circunscrição onde tenha ocorrido o evento, no município do Rio de Janeiro ou por determinação da Administração Superior da Polícia Civil; (...)”.

O interessante a observar neste documento é o fato de os eventos registrados como latrocínios, ou roubos seguidos de morte - que no Código Penal em vigor são classificados como crimes contra o patrimônio e, portanto, excluídos da definição legal de crimes contra a vida - receberem o mesmo tratamento que os homicídios dolosos, no que se refere aos

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trabalhos de instrução criminal na polícia que antecedem os ritos processuais do Judiciário40. O ponto que mais chama a atenção nos procedimentos previstos para esta nova unidade especializada está na criação dos chamados Grupos Especiais de Local de Crime (GELC), que devem ser compostos por delegados adjuntos, policiais dos grupamentos de investigação (GIs) e uma equipe de perícia formada por três profissionais: perito criminal, perito legista e papiloscopista: “Cada Grupo Especial de Local de Crime – GELC – será composto por, no mínimo, 01 (um) delegado adjunto, 01 (um) perito criminal, 01 (um) perito legista, 01 (um) papiloscopista e (04) quatro agentes policiais aprovados no Curso de Aperfeiçoamento do Programa ‘Delegacia Legal’, além do serviço de remoção de cadáver a ser prestado, preferencialmente, em colaboração pelo CBMERJ [Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro]” [SESEG, 2010, Resolução no 306, artigo 18].

Ao que parece, com base apenas na leitura da Resolução que cria a Divisão de Homicídios, os procedimentos previstos para esta unidade tendem a responder institucionalmente às principais limitações expostas pelos próprios policiais entrevistados por Misse et al (2010) quanto aos procedimentos de investigação de homicídio doloso. Parece atender também ao antigo legislador quanto à atuação da autoridade policial, o delegado de polícia. Este deve dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais logo que tiver conhecimento da prática da infração penal (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 6º). Por essas razões, cabe descrever como é construído o fluxo de papéis dentro da Divisão de Homicídios da cidade do Rio de Janeiro. Desde a criação da Divisão de Homicídios, todas as mortes violentas que podem vir a ser criminadas como homicídio doloso passaram a ser de competência desta unidade e não mais das delegacias distritais correspondentes às áreas onde a morte foi registrada (MISSE et al, 2013). Para os objetivos deste trabalho sobre como uma morte violenta é posteriormente criminada como homicídio doloso, parece-me interessante destacar, dentro da estrutura da Divisão de Homicídios, os Grupos Especiais de Local de Crime (GELC), por apresentarem um desenho diferenciado de realização da perícia de local do crime, em relação ao que 40

Os roubos seguidos de morte, também chamados de latrocínios, constituem categoria que compõe o Título II, que trata dos Crimes Contra o Patrimônio, e são tipificados no Capítulo II, que trata dos Roubos e da Extorsão, no artigo 157, §3º, do Código Penal do Brasil. No caso dos acusados de roubos seguidos de morte, a pena prevista é de reclusão entre 20 e 30 anos, além de multa. Ou seja, em tese, a pena para os acusados de roubo seguido de morte é maior, ou mais severa, que para os acusados de homicídio doloso, entre 12 e 30 anos de reclusão. Uma diferença significativa entre essas duas tipificações refere-se ao tipo de rito judiciário a que são submetidas. Enquanto os processos de homicídio doloso são tratados de acordo com os procedimentos do rito do tribunal do júri, os processos de roubo seguido de morte recebem tratamento jurídico do rito ordinário.

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tradicionalmente é realizado no Brasil pelos peritos criminais que se dirigem aos locais desacompanhados da autoridade policial (MISSE et al, 2010; VARGAS et al, 2010; VARGAS et al, 2011; RODRIGUES, 2011). Além de prever a presença de um delegado e de agentes policiais durante a realização da perícia de local do crime, esta deve ser realizada por três tipos de peritos: o criminal, o legista e o papiloscopista. As atribuições do GELC estão definidas no artigo 19 da Resolução SESEG no 306/2010, cujos incisos estão abaixo transcritos: “I – deslocar-se imediatamente, após acionados, até os locais de crimes de homicídios dolosos e latrocínios, ambos consumados, ocorridos na capital do Estado do Rio de Janeiro ou, em casos de maior relevância ou aguda repercussão social, em todo o Estado do Rio de Janeiro, por determinação da administração superior; II – realizar todos os atos de Polícia Judiciária necessários para a elucidação dos crimes, atinentes a fase preliminar de investigação; III – providenciar a confecção do competente registro de ocorrência, autos de prisão em flagrante, executar medidas cautelares e atos de Polícia Judiciária, bem como outras atividades administrativas, sempre sob a presidência de Autoridade Policial e a imediata remoção do(s) cadáver(es); IV – compete a Delegado Adjunto coordenar o GELC e criar meios para que sejam realizados os serviços de perícia e as demais diligências atinentes à elucidação do crime, além de elaborar a recognição visuográfica do local; V – guardar o prédio da DH, seus bens, viaturas policiais, documentos e objetos nela acautelados; VI – exercer outras atribuições definidas em lei, regulamento ou ato normativo”. [SESEG, 2010, Resolução no 306, artigo 19].

A Resolução estipula a rotina dos policiais que compõem as equipes do GELC, que devem prestar serviços em escala de plantão previamente definida, não assumir o serviço de plantão sem a presença de um Delegado Adjunto, chefe da equipe e não se ausentar do plantão antes da chegada da equipe subsequente (SESEG, 2010, Resolução no 306, artigos, 21, 22 e 24). Pode-se dizer que a estrutura da Divisão de Homicídios acompanha a estrutura de qualquer delegacia distrital vinculada ao Programa Delegacia Legal, sendo o GELC o principal setor que a diferencia das demais41.

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Além do GELC compõem a estrutura da Divisão de Homicídios os seguintes setores: Permanência, Setor de Inteligência Policial (SIP), Setor de Suporte Operacional (SESOP), Grupos de Investigação (GI) caracterizados e não caracterizados, Grupos de Investigação Complementar (GIC) e a Seção de Descoberta de Paradeiros (SDP), além do síndico e do balcão de atendimento.

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A etnografia na Divisão de Homicídios foi realizada ao longo do primeiro semestre de 2012, principalmente entre fevereiro e março. As observações do campo permitem afirmar que, na prática, o funcionamento do GELC é muito próximo ao previsto na Resolução SESEG no 306/2010. Com a realização deste campo, pude desenhar o esquema abaixo que localiza o GELC na estrutura organizacional da Divisão de Homicídios. Figura 1 - O Grupo Especial de Local do Crime (GELC) na Divisão de Homicídios

Delegados Assistentes

Grupos de Investigação (GIs) [policiais descaracterizados]

Perito Criminal Diretor da DH

Grupos de Investigação Complementar (GIC)

Perito Legista Perícia Papiloscopista

Delegados Adjuntos

GELC

Investigador (apoio) Grupos de Investigação (GIs) [2 policiais caracterizados e 2 descaracterizados]

O GELC é composto por profissionais que atuam “na rua”, isto é, aqueles que vão ao local onde o cadáver foi encontrado por quem noticiou a morte à polícia, por isso chamado de “local do crime”. Paralelamente, auxiliando o trabalho do GELC, alguns funcionários permanecem na Divisão de Homicídios. Dirigem-se ao “local do crime” (1) a equipe da perícia, formada pelo perito criminal, pelo perito legista e pelo papiloscopista, mais um investigador que, geralmente, é quem dirige a viatura, (2) uma dupla de investigadores “caracterizados”, isto é, com uniformes da Polícia Civil, e uma dupla de investigadores “não caracterizados”, isto é, sem uniformes, os quais compõem os Grupos de Investigação (GI) e (3) um delegado adjunto, que é o responsável pelo GELC. Internamente, trabalham dois agentes no setor chamado Permanência, um funcionário no Setor de Inteligência Policial e outro funcionário no Cartório. Conforme me disseram, “o GELC é todo mundo que está no plantão”. O desenho acima ajuda a entender que os delegados adjuntos dirigem, coordenam, orientam, supervisionam e fiscalizam todas as atividades investigatórias do GELC. São eles

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que devem acompanhar os trabalhos da perícia nos “locais dos crimes”, diferentemente da atuação comum dos delegados de polícia. Aos delegados assistentes cabe: dirigir, coordenar, orientar, supervisionar e fiscalizar todas as atividades investigatórias dos GIs, designando previamente a equipe que prosseguirá no inquérito policial, imediatamente, após a atuação do GELC. Os grupos de investigação complementar (GICs) são diretamente subordinados ao delegado titular, também chamado “diretor da DH”, e atuam em auxílio aos grupos de investigação (GIs) subordinados aos delegados assistentes, principalmente quando se trata dos chamados “casos de repercussão”, aqueles que ganham visibilidade social42 (SESEG, 2010, Resolução no 306, artigo 7º, inciso I; artigo 6º, inciso V). Os delegados assistentes não trabalham em escala de plantão, cumprindo o horário de expediente, de oito horas por dia, seguindo horário de trabalho comum a servidores públicos em geral. Entretanto, sempre que designados, eles devem comparecer à Divisão de Homicídios, o que pode acontecer em feriados, fins de semana ou durante a madrugada. No momento da etnografia, a Divisão de Homicídios contava com cinco delegados assistentes, sendo que um deles atuava especificamente na Seção de Descoberta de Paradeiro. Todos os delegados assistentes cobrem as férias dos delegados adjuntos, depois de estabelecido um esquema de rodízio entre eles. Nessas ocasiões, eles devem ir aos “locais de crime” e presidir, portanto, os GELCs. Vinculados aos delegados assistentes estão também os grupos de investigação (GIs) compostos por policiais descaracterizados, que trabalham internamente em horário comercial. O fluxo dos papéis produzidos pela equipe do GELC, tal como previsto nas regras internas de procedimento da Divisão de Homicídios, pode ser representado como o desenho abaixo, obtido na própria Divisão de Homicídios na ocasião da etnografia.

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Antes de iniciar o campo propriamente dito, esperei por duas horas na antessala do diretor para uma reunião de apresentação do projeto. O atraso se deveu ao fato de ele estar atendendo a um conhecido bailarino e coreógrafo, cujo filho havia sido assassinado recentemente. Já neste dia pude notar, ainda que superficialmente, a atuação do GIC. Percebi, no decorrer do campo, que eram sempre os mesmos policiais que falavam com a imprensa sobre determinados casos e que eram eles os responsáveis por anunciar ao diretor a presença de alguma pessoa importante, bem como por organizar a entrada da imprensa na sede da Divisão de Homicídios.

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Figura 2 – Fluxograma do trabalho de perícia e dos laudos periciais na Divisão de Homicídios*

Fonte: Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro/ Divisão de Homicídios da cidade do Rio de Janeiro *Onde está escrito “Fato delituoso (PMERJ)”, leia-se “Evento interpretado como crime contra a vida pela PMERJ”.

O fluxograma anterior será interpretado à luz da etnografia realizada, embora o detalhamento das práticas rotineiras correspondente a cada uma dessas etapas esteja contemplado no próximo capítulo. O desenho mostra que, após recebida a notícia de uma morte - isto é, de um evento interpretado como crime contra a vida pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro - pela chamada “Permanência da DH”, esta a repassa ao GELC, que se dirige ao local em que a morte foi registrada. Em um primeiro momento, a equipe da perícia faz a análise do local, coleta vestígios, realiza levantamento papiloscópico, bem como a análise do corpo da vítima. De volta à sede da Divisão de Homicídios, os peritos redigem o relatório de cognição “visuográfica” e o delegado adjunto redige o relatório preliminar sobre o “local do crime” bem como os termos de declaração. Os vestígios apreendidos pelos peritos, tais como projéteis de armas de fogo, armas, cabelos ou pelos, bem como os fragmentos de impressões digitais, dentre outros, são entregues ao SESOP, que dá encaminhamento aos

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demais institutos que compõem a polícia técnico-científica, externos à “DH”, para fins de realização dos exames necessários. Em paralelo, com base no relatório preliminar de “local do crime”, o GI vinculado ao delegado assistente passa a trabalhar na confecção do inquérito policial propriamente dito. Nota-se pelo fluxograma anterior que peritos redigem um papel, o relatório de cognição “visuográfica” que antecede o laudo, onde fazem constar categorias relativas à natureza das ocorrências, procedendo, desta maneira, a uma classificação com base em receitas profissionais que não precisam estar vinculadas às tipificações do Código Penal atualmente em vigor no Brasil. Este pode ser considerado como um primeiro momento da interpretação sobre uma morte registrada. Este relatório parece ter a função de imprimir mais celeridade à instrução criminal produzida na Divisão de Homicídios, já que o laudo oficial é o documento que será incorporado, de fato, ao inquérito policial. Como visto, de acordo com o Código de Processo Penal, o tempo para a confecção do laudo pericial corresponde a dez dias, no máximo. Minhas observações de campo permitem dizer que o fato de esses profissionais trabalharem dentro de um mesmo espaço físico favorece um “diálogo criminalístico” entre peritos, delegados assistentes e delegados adjuntos que ocorre de forma oral e escrita no ambiente da Divisão de Homicídios. Isto pode acontecer nos corredores, no momento do cafezinho quando eles se encontram ocasionalmente ou, de modo mais formal, quando um se dirige à sala do outro para “debater aquele local”. E é escrito quando os delegados leem esses relatórios e dão início à construção do inquérito policial com base neles, ainda que sem os papéis oficiais em mãos. Presenciei algumas dessas conversas e, principalmente, percebi alguns delegados cobrarem dos peritos o laudo oficial para ele poder “relatar o inquérito”. De modo informal e cordial, diziam algo semelhante a: “estou com o inquérito pronto, só falta o laudo para eu relatar, me manda logo”. Em paralelo, os delegados adjuntos redigem outro papel, o relatório preliminar de “local do crime”, cujo objetivo é dar subsídios aos delegados assistentes que “levarão o caso adiante”, isto é, que designarão procedimentos visando instauração de VPIs, “diligências” e, possivelmente, a instauração dos inquéritos policiais. Tem-se, assim, um segundo momento da interpretação sobre o mesmo evento, este agora com menos variações porque vinculados ao Código Penal. Neste sentido, comparar como esses dois tipos profissionais, peritos e delegados, interpretam e classificam uma mesma morte registrada, mostra-se frutífero à

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discussão desta tese, já que entendo ser este o primeiro momento da construção social e institucional de um evento que pode ser registrado como homicídio. Pude observar que as duas principais categorias registradas pelos peritos criminais da Divisão de Homicídios são os “homicídios” e os “encontros de cadáveres”. Reside aqui um ponto interessante de análise. No Código Penal do Brasil não existe a categoria “encontro de cadáver”, mas as práticas rotineiras dos peritos criminais usam essa classificação. Neste sentido, os “encontros de cadáver” têm que receber, posteriormente, uma classificação pertinente à tipificação penal, o que é feito pelo delegado assistente, responsável pela redação do inquérito policial. Esta é uma prática que demonstra a necessidade de encaixar o conhecimento típico em categorias abstratas presentes nos códigos (CICOUREL, 1968). Este pode ser considerado, portanto, o primeiro passo da construção social e institucional do crime, ou do que Misse (1999, 2008) vem chamando de criminação: uma vez constatada a morte de um indivíduo, esta pode ser interpretada como uma morte violenta provocada por alguém ou autoprovocada; sendo uma morte violenta provocada por alguém este evento deve ser criminado, ou seja, tipificado nos moldes do Código Penal. É desta maneira que um “encontro de cadáver”, segundo os peritos pode torna-se um “homicídio doloso”, segundo os delegados. A categorização de “encontro de cadáver”, assim, pretende referir-se a uma morte que tem possibilidade de vir a ser criminável. O quadro a seguir permite visualizar essas variações de interpretação sobre um mesmo evento, uma mesma morte registrada. Na primeira coluna estão as classificações feitas pelos peritos criminais com base em suas receitas profissionais, ou tipificações profissionais. Na segunda coluna, encontram-se as tipificações construídas pelos delegados sobre os mesmos eventos. E, na terceira coluna, é apresentada uma tipologia de mortes violentas criada por mim para fins analíticos, segundo o critério de semelhança entre as classificações dos operadores.

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Quadro 1 – Comparação entre tipificações produzidas por peritos criminais e delegados de polícia sobre eventos de mortes violentas: Divisão de Homicídios, Cidade do Rio de Janeiro, Números absolutos, Fevereiro e Março de 2012.

Os dados apresentados no quadro anterior podem servir de exemplo para a principal discussão desta Parte I da tese, sobre como uma morte é criminada como homicídio doloso. Essa discussão ilustra o papel que a perícia representa atualmente na fase de instrução

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criminal, que é o de comprovar a chamada “materialidade do fato”, visando fornecer subsídios que permitam aos delegados de polícia realizar a subsunção prévia do evento à lei penal codificada. Mas, paralelamente à criminação, de uma morte como homicídio doloso, ocorre o processo de incriminação, construído através de procedimentos que visem à identificação do indivíduo que cometeu o ato criminado. A subsunção do evento criminável à lei penal codificada vai ocorrer, de fato, com o Ministério Público, o que será discutido na Parte II. Neste capítulo, mostrei como a comunicação de uma morte transita por setores de uma unidade da Polícia Civil especializada nas investigações de notícias-crime desta natureza, a Divisão de Homicídios do Rio de Janeiro. Destaquei o fluxo dos procedimentos burocráticos relacionados às regras de decisão para a realização das chamadas perícias de “local do crime”, praticadas pelos profissionais do Grupo Especial de Local do Crime (GELC). Mostrei que mortes classificadas por peritos criminais como “encontro de cadáver” são tipificadas em “homicídio doloso” por delegados de polícia, o que constitui um dos níveis analíticos da construção social e institucional do crime, a criminação. No capítulo seguinte, com base na observação das práticas rotineiras desses profissionais, discuto como esta criminação é construída e como, paralelamente, inicia-se o processo de incriminação.

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Capítulo 3 - A construção do inquérito policial de homicídio doloso: da perícia em local de morte ao inquérito relatado Dando prosseguimento à discussão do capítulo anterior, abordo nas próximas páginas o modo como é construída a subsunção de uma morte categorizada por peritos criminais como algum tipo de morte violenta (principalmente “encontro de cadáver”) à codificação na lei penal como homicídio doloso, por delegados de polícia. Busco identificar quais são os elementos principais que os operadores da Polícia Civil, principalmente peritos criminais e delegados, levam em consideração para tipificar uma morte violenta como homicídio doloso iniciando o processo de criminação e, em paralelo, o processo de incriminação. Desde 2009, após a promulgação da Lei no 12.030, que prevê autonomia técnica, científica e funcional para as perícias de natureza criminal, há um movimento por parte desses profissionais de desvincular a perícia criminal da Polícia Civil. Este é, certamente, um assunto bastante polêmico que divide opiniões dentre a própria classe, tal como pude perceber em conversas e entrevistas com os profissionais da Divisão de Homicídios do Rio de Janeiro. No estado do Rio de Janeiro, a legislação que normatiza o trabalho da chamada polícia técnico-científica, representada principalmente pelos peritos criminais e médicos legistas, é a Lei no 3586/01, na qual consta que os peritos ocupam o segundo grupo dentre as classes profissionais de toda a Polícia Civil43. Vinculados ao Departamento Geral de Polícia TécnicoCientífica (DGPTC) estão os peritos criminais, peritos legistas, auxiliares e técnicos de necropsia e os papiloscopistas, divididos em outras unidades específicas de suas funções, tal como desenhado no organograma a seguir (MISSE et al, 2013).

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O primeiro grupo é composto pelos delegados e o terceiro, pelos agentes, inspetores, oficiais de cartórios, dentre outros.

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Departamento Geral de Polícia TécnicoCientífica

Figura 3 – Organograma do Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica

Instituto de Identificação Félix Pacheco (IIFP) Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (IML) Instituto de Pesquisas e Perícia em Genética Forense (IPPGF) Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) Postos Regionais de Polícia Técnico-Científica (PRPTCs)

Papiloscopistas (identificação)

Peritos legistas (exames de necropsia e de corpo de delito)

Peritos criminais (exames em substâncias químicas e biolócias)

Peritos criminais (exames em armas e munições)

Peritos criminais (perícias de local de crime)

Mas quais são as regras de decisão ou de procedimentos que orientam os peritos criminais? Segundo o Manual de Procedimentos de Polícia Judiciária do Rio de Janeiro, encontram-se definidos alguns procedimentos específicos para o caso do Rio de Janeiro, principalmente no que diz respeito aos burocráticos. Dentre eles, destaco: envio de memorando de encaminhamento de pacientes ao Instituto Médico Legal 44, prazos para emissão de laudos (15 dias, enquanto no Código de Processo Penal o prazo é de 10 dias), comparecimento da autoridade policial ao local de crime (facultativo, enquanto no Código de Processo Penal é obrigatório), envio de material apreendido e procedimentos básicos de acautelamento desses materiais apreendidos nas delegacias e exame das vestes do cadáver no IML. Essa legislação recebe críticas por parte dos operadores, principalmente quando estes a consideram defasada e ineficiente, o que é usado também como justificativa para seguirem outras regras, as não codificadas e aprendidas no meio profissional, nas suas práticas rotineiras. Tentativas de uniformizar e padronizar os procedimentos da criminalística no Brasil têm sido feitas pelos próprios peritos criminais, muitos dos quais partem da história da chamada ciência forense, tomando como orientações típico-ideais as contidas nos manuais 44

Para informações mais detalhadas sobre o trabalho dos profissionais do IML Afrânio Peixoto, ver trabalhos de Medeiros (2011 e 2012).

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internacionais, como o do FBI45 (Federal Bureau of Investigation) dos Estados Unidos. Além disso, comparações com programas de televisão que representam o que eles consideram como “um trabalho eficiente da perícia” são inevitáveis, tal como a feita com a série estadunidense CSI (Crime Scene Investigation). Garrido e Giovanelli (2012) produziram um desses manuais de procedimento voltados à criminalística. Segundo os autores, os exames em locais de crimes têm como principais finalidades constatar se realmente houve crime; qualificar a infração penal; coletar evidências materiais que estejam presentes na cena; perpetuar os vestígios por meio de descrição escrita, levantamento fotográfico topográfico e papiloscópico. Mas, para que o trabalho do perito possa ser bem feito, é necessário, segundo eles, a total preservação do local. No Brasil, esta primeira etapa é realizada pela Polícia Militar, que é quem, geralmente, aciona a Polícia Civil. É por isso, um dos pontos de maior crítica aos trabalhos dos peritos, tal como observado no Rio de Janeiro por Misse et al (2010) e, em Belo Horizonte, por Rodrigues (2011) e Vargas e Rodrigues (2011). É destacado neste manual que a função do perito em um local de crime é “encontrar vestígios que nenhuma outra pessoa consiga, pois o seu treinamento visa a enxergar determinadas coisas que as pessoas comuns não veem” (GARRIDO; GIOVANELLI, 2012, p.62, passim). E, neste sentido, a busca dos vestígios em cena de crime pode ser feita de três maneiras diferentes: em espiral, em quadrantes ou em faixas, indicando o modo como o perito deve se locomover dentro do cenário. Especificamente quanto aos locais de mortes intencionais, destaca-se a importância de se analisar a dinâmica das manchas de sangue. Estas se mostram como fundamentais para descrever o movimento das vítimas, da arma do acusado e o impacto de uma arma ou projétil no corpo da vítima. Desta maneira, as chamadas manchas por projeção podem indicar o movimento da vítima, ou da arma do acusado ou o impacto da arma ou projétil no corpo da vítima de acordo com a velocidade com que as manchas são projetadas em uma superfície. As manchas também podem ser úteis para indicar o contato/transferência de algum objeto, como uma pegada, por exemplo. E elas podem auxiliar a descrever a movimentação passiva da vítima com base na observação da ação da gravidade, ou seja, auxiliam a informar, 45

O filme J.Edgar (EASTWOOD, 2011) baseia-se na biografia do diretor do FBI, John Edgar Hoover, considerado o patrono da organização e que ficou no cargo por 48 anos.

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por exemplo, se a vítima morreu naquele local ou se ela foi transportada até ali (GARRIDO; GIOVANELLI, 2012, p.71, passim). Quanto ao trabalho dos papiloscopistas, tem-se que as impressões papilares podem ser patentes (visíveis) ou latentes. Por isso, é importante que o perito saiba utilizar corretamente os sais e pós magnéticos como o chamado “negro de fumo”, material carbonáceo, como o grafite, utilizado para revelação em superfícies claras, e o “carbonato de chumbo”, pó branco muito fino, utilizado para revelação em superfícies escuras. Uma vez coletado o fragmento das impressões papilares, deve-se proceder ao confronto com algum banco de dados de identificação datiloscópica produzido por órgão governamental específico. No caso do estado do Rio de Janeiro, esses registros são de competência do Instituto de Identificação Félix Pacheco (IIFP). A comparação entre o fragmento coletado no local do crime com o armazenado no banco de dados requer a capacitação do papiloscopista principalmente quanto ao Sistema de Vucetich, que se baseia na classificação dos “tipos básicos de conformação das papilas dérmicas nas falanges distais (dáctilos): arco, presilha interna, presilha externa, verticilo” (GARRIDO; GIOVANELLI, 2012, p.75, passim; IIFP, 2002). Este trabalho pericial é tido como fundamental tanto nos manuais como pelos próprios policiais, visto que, dependendo de onde o fragmento é encontrado na cena do crime, a autoria pode ser identificada com bastante certeza. Não raro, é considerado “o CSI da perícia”, segundo ouvi durante a etnografia na Divisão de Homicídios. O trabalho realizado pela perícia da Divisão de Homicídios, como envolve três tipos profissionais - o perito criminal, o legista e o papiloscopista - engloba uma mescla dessas orientações, tornando-se por isso um lugar privilegiado para a realização do campo etnográfico desta tese. Como ficará mais claro diante das descrições de práticas rotineiras adotadas em cinco perícias de local de morte violenta, esses profissionais trabalham de modo colaborativo, mas com independência funcional, tanto “na rua” quanto “na base” [entenda-se, sede da DH], ao redigirem seus laudos. Conforme veremos a partir de agora, a principal “novidade”

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deste

trabalho é o diálogo produzido no próprio “local do crime” entre os diferentes profissionais:

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A palavra está entre aspas porque reflete a qualificação que os profissionais da Divisão de Homicídios atribuem ao trabalho desenvolvido nesta unidade.

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delegados, peritos criminais, peritos legistas, papiloscopistas e investigadores, cujo trabalho alcança um alto grau de articulação. De acordo com as palavras de um delegado:

“A importância da perícia não se resume apenas aos locais. Há na DH o que se pode chamar de criminologia dinâmica, onde os peritos estão presentes permitindo o diálogo intenso entre delegado e eles.” [Delegado Assistente]

Para os objetivos desta tese, mostrou-se fundamental compreender como a perícia em local de morte criminável está sendo operada por esses profissionais, dentro das regras de procedimento deste “novo formato”. Para tanto, a opção metodológica foi pela realização de etnografia na Divisão de Homicídios, especialmente acompanhando as práticas rotineiras dos profissionais do GELC. O trabalho de campo junto à equipe da perícia da Divisão de Homicídios começou no dia 18 de fevereiro, sábado de carnaval, quando os acompanhei por todo o horário de plantão, das 8h do sábado às 8h do domingo. A sala da perícia está localizada no andar térreo da Divisão de Homicídios, no final de um corredor onde estão os escaninhos de todos os policiais. Há duas salas amplas, a primeira contendo uma pia e material de limpeza, uma mesa e um armário, onde ficam guardados os projéteis, estojos e munições apreendidas em “locais de crime”, além de muitos papéis. A segunda sala, contígua a esta, contém quatro mesas com três computadores e um armário grande, onde são guardados os materiais e aparelhos de trabalho, como máquinas fotográficas, material de escritório, material para os papiloscopistas, dentre outras coisas como frasco de luminol, líquido utilizado para identificar manchas e respingos de sangue em superfícies onde não é possível vê-lo a olho nu. Ao lado dessa segunda sala, há uma terceira, de tamanho menor, onde fica a geladeira, televisão, mesinha para lanche e uma mala com ferramentas como pás utilizadas, por exemplo, para desenterrar ossadas. Ao lado dessa salinha, há uma espécie de closet onde ficam os coletes à prova de balas. Ao lado desta, o banheiro reformado recentemente, muito limpo e, por isso, muito requisitado pelas mulheres de outros setores da DH. Ao fundo dessa salinha, há um hall com os escaninhos dos peritos e dois quartos: o das mulheres, com uma cama do tipo beliche; e o dos homens, com duas camas beliches. Os colchões são cobertos em couro e há, ainda, armários e criados-mudos ao lado das camas. É um ambiente amplo, bem

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refrigerado e limpo. A seguir, a ilustração da planta da sala onde está alojada a equipe da perícia (Figura 4). Figura 4 – Planta ilustrativa da sala da Perícia na DH

Sala 2 Sala 2

Closet Sala 3

Quarto Mulheres

Sala 1 Sala 1 Banheiro Banheiro

Quarto Homens

A equipe da perícia da Divisão de Homicídios, no momento em que a etnografia foi realizada, estava composta por vinte profissionais: oito peritos criminais, seis peritos legistas e seis papiloscopistas. É um ambiente onde predominam os homens, já que há somente quatro mulheres: uma perita criminal, duas peritas legistas e uma papiloscopista. Justamente por esse motivo, e primando pela não identificação dos profissionais, farei referência a todos eles no gênero masculino. Acompanhei as receitas práticas seguidas por quase todos os profissionais lotados na perícia, não acompanhando apenas os trabalhos de dois peritos criminais, um perito legista e um papiloscopista. São profissionais das mais diversas áreas. Apenas como exemplo, dentre os peritos criminais, há químicos, engenheiros químicos, farmacêuticos e biólogos. Dentre os peritos legistas, que são todos médicos, as especializações são em pediatria, ortopedia, clínica geral e psiquiatria. Dentre os papiloscopistas, há biólogos e economistas, por exemplo.

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A carga horária é de 40 horas semanais para todos esses profissionais e a escala de trabalho varia de acordo com cada tipo profissional. Compondo ainda a equipe da perícia, há os investigadores que são o “apoio” e geralmente são eles que dirigem as viaturas. O perito criminal é como um “chefe da equipe de perícia” e é ele quem geralmente senta no banco do carona, ao lado do motorista. A comunicação das notícias-crime é remetida ao perito criminal pela Permanência, quem recebe a comunicação. Pode-se dizer que esses profissionais escolheram suas profissões motivados pela aquisição do status de servidor público e tudo o que a isso está agregado, como, principalmente, a estabilidade no emprego. Este é o teor da resposta imediata, que é, muitas vezes, complementada por comentários que remetem ao gosto pela investigação policial. As frases seguintes exemplificam essa ideia: “Tinha me formado, não sabia o que fazer e surgiu o concurso. Fiz e passei.” [Papiloscopista] “Estava dando aula que nem um condenado, não tinha tempo para nada. Aí o pai de um amigo meu me falou do concurso. Fiz a inscrição no último dia, não estudei e passei. Então, tinha que ser mesmo.” [Perito Criminal] “Sempre gostei de assistir aqueles filmes de suspense, aqueles filmes policiais, tipo 47 CSI .” [Perito Criminal]

Pude perceber que a postura da equipe quanto ao trabalhar na Divisão de Homicídios é bastante homogênea. “Trabalhar na DH”, como eles dizem, foi uma opção e não uma ordem a ser cumprida. Quando a unidade foi criada, cada setor de perícia da Polícia Civil deveria escolher dentre seu elenco aquelas pessoas que “tivessem o perfil”. Essa expressão muito reproduzida por esses atores significa, dentre outras coisas, saber trabalhar em equipe, ter vontade e ânimo para encarar o “serviço da rua”, e “gostar do que faz, principalmente”. Atrelado ao “serviço de rua” está o “acompanhar o caso até o seu final” e “saber o que aconteceu”. 47

A referência a esta série americana, CSI, é muito comentada por eles. Não raro eles comparam o serviço realizado na DH com o que se passa na televisão. Há uma paródia sobre o CSI chamada CSI Nova Iguaçu, que é também bastante comentada entre eles em clima de descontração e muitas risadas, incluindo as minhas: http://www.youtube.com/watch?v=JCyTZT9WYVs, http://www.youtube.com/watch?v=kuSKDYl1Uqw&feature=related, http://www.youtube.com/watch?v=O6d9MHhHhmk&feature=related.

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Entre 18 de fevereiro e 14 de março, acompanhei dezenove “perícias de local do crime”. Como já exposto, a notícia-crime sobre “o local” é recebida pela Permanência da DH, setor responsável pelo atendimento das comunicações por telefone. O número do telefone da DH não é divulgado amplamente à sociedade civil. Por isso, quem geralmente aciona a DH são as delegacias distritais ou a Polícia Militar (PMERJ). A comunicação pode acontecer da seguinte maneira: um indivíduo telefona para o “190”, número referente às comunicações para a PMERJ, informando ter encontrado um cadáver em determinada rua; a PMERJ aciona a delegacia distrital daquela região e esta aciona a DH. Uma vez que a comunicação é recebida pela Permanência da DH, o agente liga para o ramal da sala da perícia ou vai até a sala e informa “o local”. Enquanto este não é noticiado, os profissionais da perícia fazem outras atividades: trabalham em seus laudos, estudam ou descansam. Quando chega a notícia, todos encerram essas atividades e se preparam para sair. A preparação consiste em pegar os instrumentos de perícia, vestir os coletes à prova de balas, pegar as armas. Inclui, também, ir ao banheiro e/ou pegar uma garrafa d’água na geladeira. À frente da DH, três viaturas são compostas, formando um comboio. A primeira transporta o delegado adjunto e uma dupla de policiais do grupo de investigação a ele subordinado. Na segunda viatura seguem outros dois policiais, também do GI subordinado ao delegado adjunto. Na terceira viatura, seguem os três peritos, mais o investigador chamado de “apoio”. Não raro, uma dupla de policiais do grupo de investigação subordinado a um dos delegados assistentes acompanha o comboio em carro descaracterizado, ou seja, sem as inscrições que remetem à instituição Polícia Civil. Todos os profissionais do GELC, incluindo a equipe que compõe a perícia e salvo alguns delegados adjuntos e os policiais do GI vinculado ao delegado assistente, trajam coturnos pretos, calças pretas, camisa de malha cinza com a inscrição “Polícia Civil” na parte de trás em letras grandes e, na parte da frente, ao lado esquerdo, em letras pequenas. Completa o uniforme o colete à prova de balas. Segundo informado pelos peritos, um colete à prova de balas é composto por duas placas, que podem ser de cerâmica ou malha de fibras metálicas e uma capa preta, com várias repartições para portar objetos, desde armas de fogo e algemas, até canetas e blocos de papel. Possui aproximadamente cinco quilos devido à sua composição. Na parte da frente, na altura do peito, visualizam-se o escudo da Polícia Civil, fixado no lado esquerdo e, no lado direito, a

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inscrição Divisão de Homicídios juntamente com uma etiqueta pequena, na qual está escrito o cargo daquele profissional. Na parte de trás, no alto e ao centro, há uma etiqueta maior com a inscrição correspondente à função daquele profissional em letras garrafais amarelas: delegado, perito criminal, médico legista ou papiloscopista. A equipe da perícia gentilmente me cedeu um colete, o menor dentre todos, para que ficasse ajustado em mim48. Em dias e horários muito quentes (o campo foi realizado em pleno verão carioca), usá-lo era mais um dos desafios impostos pela pesquisa. Os momentos na viatura junto com a equipe da perícia foram sempre ricos em informações sobre o funcionamento da DH, da perícia fora e dentro da DH, e de como eles se sentiam trabalhando nessa unidade. Minha percepção sobre o ambiente de viatura permite caracterizá-lo como descontraído, salvo quando o local a ser periciado é considerado um “local de risco”, isto é, regiões do Rio de Janeiro ainda controladas pelos traficantes de drogas, onde as polícias encontram resistências ou correm risco, sentem-se ameaçados. Passei por três “locais de risco”, momentos onde percebi uma tensão por parte da equipe, seguida por uma mudança na postura. A conversa cordial foi interrompida, prevaleceu o silêncio, os vidros foram abertos e os fuzis, apontados para as ruas. Nessas ocasiões, eu me lembrava das orientações que me foram dadas por um perito criminal, no primeiro dia de campo: “a primeira coisa é identificar de onde os tiros estão vindo; aí, corre para o lado oposto; tenta ficar perto da viatura, mas não entra nela; tenta ficar na parte da frente, atrás de um pneu e perto do motor; o motor é a única coisa que para tiro de fuzil... e fica perto de mim, onde eu possa te ver”. [Perito Criminal]

Dias depois, ouviria de outro perito criminal: “o único problema do tiro é que quando você escuta ele, ele já te atingiu”, ao que um perito legista complementou: “e se você não ouvir o tiro é porque você morreu”. Eu ri, eles também, e fomos almoçar. Um de meus objetivos com a etnografia consistia também em ter acesso aos dados registrados por essa agência, e, por isso, sugeri aos peritos e aos papiloscopistas que eu 48

Tratava-se do colete de uma das mulheres que lá trabalhava. Nos primeiros dias de campo, sábado e segundafeira de Carnaval, a inscrição “Perícia Criminal” do “meu colete” foi mantida, o que me fez sentir fantasiada no cenário. Estas foram retiradas no terceiro dia de campo, a segunda-feira após o carnaval. As inscrições da frente nunca foram retiradas. Algumas reflexões podem ser feitas sobre o “vestir o colete”. A principal delas se refere ao fato de, não raro, eu ter sido vista pelos demais policiais da Divisão de Homicídios, por bombeiros e por policiais militares presentes nos “locais”, como uma “aprendiz de perita criminal”, uma “novata”, o que me tornava, de certa maneira, inserida no grupo observado e invisível aos atores. Eu era “apenas mais uma”. No primeiro dia de campo, um dos peritos criminais tirou uma foto minha, vestida com o colete.

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sistematizasse, em uma planilha de dados, as informações contidas em seus respectivos livros de registros dos laudos. Eu alimentava esta planilha nos momentos em que não estávamos “na rua”, sendo possível observar o cotidiano da sala da perícia de modo pouco explícito. Busquei, com isso, inserir-me melhor no campo, realizando uma atividade afim com os trabalhos deles, o que me pareceu muito produtivo. Neste sentido, apresento uma descrição do volume de procedimentos registrados pela perícia nos meses em que estive em campo, refletindo, portanto, um momento bastante delimitado do trabalho desenvolvido por estes profissionais. Cada registro anotado por eles no livro informa o número de procedimento, número do laudo, nomes dos integrantes da equipe, data do plantão, horário da solicitação, endereço do “local de crime” e a classificação do tipo de perícia realizada, ou, como eles dizem, a “natureza da ocorrência”. A Tabela 2 fornece uma ideia dessa movimentação de acordo com os dias da semana. Tabela 2 - Números absoluto e percentual válido dos registros feitos pela Perícia Criminal da Divisão de Homicídios: Dias da Semana, Rio de Janeiro, fevereiro e março de 2012. Dias da Semana Números absolutos Percentual válido Percentual acumulado Sábado 38 19,6 19,6 Segunda-feira 31 16,0 35,6 Domingo 27 13,9 49,5 Quinta-feira 27 13,9 63,4 Sexta-feira 25 12,9 76,3 Quarta-feira 23 11,9 88,1 Terça-feira 23 11,9 100,0 Total 194 100,0

A tabela mostra uma distribuição quase uniforme quanto aos dias da semana em que as ocorrências de homicídios chegam à Divisão de Homicídios. Destacam-se o sábado e a segunda-feira como dias de maior concentração dos registros. A observação do dia-a-dia do trabalho da perícia da Divisão de Homicídios mostrou que os registros feitos na segunda-feira ocorrem geralmente pela manhã, correspondendo, portanto, a uma consequência de atos praticados durante o fim de semana. Conhecer o trabalho da perícia da Divisão de Homicídios com base nos registros elaborados pelos peritos criminais permite visualizar os períodos do dia em que os trabalhos desses profissionais são mais requisitados. No livro de registro, eles escrevem o horário de chegada ao local a ser periciado. Apenas um perito anota o horário da solicitação. A Tabela 3 mostra os dados por turno do dia, em quatro fases: manhã (06:01 às 12:00), tarde (12:01 às 18:00), noite (18:01 às 00:00) e madrugada (00:01 às 06:00).

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Tabela 3 - Número absoluto e percentual válido dos registros feitos pela Perícia Criminal da Divisão de Homicídios: Turnos do Dia, Rio de Janeiro, fevereiro e março de 2012. Turnos do dia Números absolutos Percentual válido Percentual acumulado Manhã 65 33,5 33,5 Madrugada 51 26,3 59,8 Tarde 45 23,2 83,0 Noite 31 16,0 99,0 Não informado 2 1,0 100,0 Total 194 100,0

A tabela mostra que 1/3 das ocorrências são registradas pelas manhãs. Pouco mais de ¼ são registradas durante a madrugada (26,3%) e cerca de 23%, durante a tarde. O fato de a maior parte dos registros se concentrarem nas manhãs não significa que esses eventos tenham ocorrido nesse período. Ao contrário, indica que os mesmos ocorreram ao longo da madrugada e que, somente pelas manhãs, as pessoas viram o corpo e acionaram a Polícia Militar que, por sua vez, acionou a Divisão de Homicídios. O horário de chegada ao local é importante para definir, principalmente, as condições do ambiente em que os exames foram realizados. Segundo um perito legista: “Um corpo sob um saco preto, exposto ao calor intenso das 9:00 ao meio-dia, sofre um processo muito mais rápido de putrefação que um corpo exposto ao calor das 5:00 às 9:00. Então, determinar o horário em que a perícia é feita é fundamental para entendermos as condições em que aquele corpo se encontrava no momento dos exames. Isso para o médico do IML é fundamental, para ele entender também porque eu estimei aquele tempo de morte”. [Perito Legista]

No primeiro dia de campo, alguns dos profissionais da perícia disseram que “iríamos cansar de ir a Campo Grande e a Santa Cruz”. Eles diziam: “Todo dia a gente vai lá”. Com o tempo de campo, comecei a perceber que o caminho se repetia com certa frequência. Muitos deles, ao longo do caminho que fazíamos, apontavam para um ponto da rua e diziam: “já fiz um local aqui”, “já fiz um local atrás daquela rua, subindo e dobrando à direita”. No quinto, sexto e sétimo dias de campo, foi a minha vez de dizer algo semelhante: “eu já vim aqui, já acompanhei um local aqui perto, ali, naquela rua”, ao que eles me responderam: “é, minha filha, aqui a gente vem o tempo todo”. Estavam se referindo ao bairro Campo Grande, vizinho ao bairro Santa Cruz. Contabilizando os bairros de registros das ocorrências, pude comprovar que não se tratava de mera impressão da parte deles. Nem, tampouco, da minha. A Tabela 4 contém essas informações.

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Tabela 4 - Número absoluto e percentual válido dos registros feitos pela Perícia Criminal da Divisão de Homicídios: Bairros da ocorrência, Rio de Janeiro, fevereiro e março de 2012. Bairros Número absoluto Percentual válido Santa Cruz 22 11,3% Campo Grande 15 7,7% Realengo 8 4,1% Bangu 7 3,6% Bairros com 4 registros 24 12,6% Bairros com 3 registros 24 12,0% Bairros com 2 registros 17 17,0% Bairros com 1 registro 65 25,5% Sem informação 12 6,2% Total 194 100,0% *Os números absolutos dos bairros com 1, 2, 3 e 4 casos registrados são o resultado da multiplicação entre o número de casos registrados e o número de bairros com a respectiva quantidade.

Campo Grande e Santa Cruz somam cerca de 1/5 (19%) de todas as ocorrências registradas pelos peritos criminais49, sendo que Realengo e Bangu, áreas próximas a estas somam cerca de 8% de todos os registros. Aproximadamente ¼ dessas ocorrências estão em bairros que registraram 1 evento e não havia informação para 6,2% das ocorrências registradas pelos peritos criminais em seu livro de controle de laudos. Mas, o interessante a acrescentar à descrição da tabela, é que o trabalho de campo mostrou que a maior parte dos “locais” feitos nos bairros de Campo Grande e Santa Cruz se referem não a homicídios, mas a encontros de cadáver, ou seja, trata-se de bairros com muitas áreas ermas e pouco urbanizadas, propícias, portanto, ao abandono dos cadáveres das vítimas de homicídios. Somadas às conversas informais dentro da viatura ou na sala da perícia, bem como às entrevistas gravadas realizadas a posteriori e em ambiente diferente do da Divisão de Homicídios50, as observações feitas com a etnografia me permitiram captar alguns padrões que podem funcionar como determinantes da criminação de uma morte violenta como homicídio doloso. A começar pela observação do trabalho do perito criminal, é possível dizer que: “o trabalho do perito criminal começa de fora para dentro, como uma espiral, onde o corpo é o centro. Ao contrário, o trabalho do perito legista segue o caminho oposto da mesma espiral, de dentro para fora”. [Perito Legista]

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Trabalho de Fernandez (2011) traz estatísticas mais específicas para a região de Campo Grande. Convidei-os a conhecer a sede do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, onde realizei as entrevistas. 50

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É por isso que os trabalhos de ambos se encontram e se complementam. Já o trabalho do papiloscopista é procurar “fragmentos” em objetos que estejam “no local” e onde possivelmente o autor possa ter tocado com mais firmeza ou com mais força. Nem sempre os trabalhos do perito legista são necessários, já que, em alguns “locais”, os corpos estão em estado de putrefação ou carbonizados. Da mesma maneira, há “locais” em que os trabalhos do papiloscopista também não serão utilizados, já que não são encontrados objetos onde se possam identificar os “fragmentos”.51 Tomando como parâmetro os “locais” por mim acompanhados, dois casos de corpos carbonizados e onze casos de cadáveres encontrados nas ruas ilustram, respectivamente, as ocasiões descritas acima. Houve apenas um caso de cadáver encontrado na rua, mais especificamente às margens de um córrego, onde o trabalho do papiloscopista foi necessário, já que a vítima estava com as mãos algemadas. De modo oposto, o trabalho do perito criminal é sempre necessário, já que cabe a ele descrever não apenas o local, mas a dinâmica do crime. Como disse um perito criminal:

“Não é que o trabalho do perito seja o mais importante ou o mais necessário, não é isso. A questão é sobre os laudos. O perito sempre tem laudo, o papiloscopista às vezes tem laudo e o legista nunca tem laudo. Ele faz apenas um relatório para auxiliar o laudo que será feito por outro legista no IML. Este sim é que vai para o inquérito”. [Perito Criminal]

Pude observar que, na maioria das vezes, os “locais estão acautelados, mas não preservados”. Quando há as fitas tarjadas de amarelo e preto, estas delimitam somente o corpo e não o seu entorno mais amplo, “o local” propriamente dito. É muito comum que os cadáveres estejam cobertos por sacos pretos ou panos, como lençóis. Sempre há muitos populares nos locais, principalmente quando os cadáveres são encontrados em vias públicas. Uma vez localizado o corpo, o perito criminal passa a observar as “manchas de sangue”. A posição dessas manchas é fundamental para identificar se a vítima morreu naquele local ou se o corpo foi deixado, “desovado”, ali. Este ponto pode ser considerado como o principal determinante para classificar, nesse primeiro momento, a natureza da ocorrência. Ou seja, ainda que o cadáver tenha sido encontrado com várias perfurações provocadas por projétil de arma de fogo, os “PAF”, a categorização elencada pelo perito criminal pode ser 51

Ou, no senso comum, “impressões digitais”.

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“encontro de cadáver” caso as manchas de sangue indiquem que o corpo foi deixado, e não executado, naquele local. Note-se que, nos “casos de PAF”, tem-se a coleta dos projéteis e dos estojos, quando há. Sendo um “local” classificado como “homicídio”, a posição em que esses objetos se encontravam se mostra fundamental para tentar determinar o número e a posição dos atiradores. Mas, mesmo nos “locais” classificados como “encontros de cadáver”, se houver tais objetos, os mesmos também são recolhidos, embora “pouca coisa possa ser dita” com base neles. Não raro, esses projéteis encontram-se incrustados nos corpos e estes caem ao solo quando do exame “perinecroscópico”, realizado pelo perito legista. Com base em minhas observações e nos diálogos com a equipe da perícia, é possível dizer que o perito legista começa seus trabalhos quando o perito criminal terminou de “fazer o local” e vai começar a examinar o corpo. Os dois, então, examinam o cadáver juntos. Conversam, “trocam ideias”, verificam as posições de entrada e de saída (quando há) dos projéteis e a trajetória dos mesmos. Para isso, eles deveriam usar o swab52, mas, na falta deste instrumento, utilizam um palito de madeira comprido e fino, ou simplesmente cotonetes para examinar as feridas, inserindo-os nos orifícios provocados pelas perfurações. Com esse método, eles podem definir, por exemplo, se a lesão foi “transfixante ou penetrante”. No primeiro caso, o projétil entra e sai pelo corpo da vítima. No segundo, ele está dentro do corpo da vítima e será retirado no Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (IML) quando da necropsia realizada por outro médico legista. A direção dessas perfurações pode definir, também, a posição do atirador. Observei que é mais rotineiro o papiloscopista entrar em cena antes de o perito criminal iniciar os seus trabalhos. Mas houve “locais” em que ambos trabalharam concomitantemente. Esse profissional, carinhosamente chamado entre eles por “papi”, realiza um trabalho que considerei como muito delicado e que demanda cuidado. Ele “aplica o pó” nas superfícies onde há possibilidade de o acusado ter tocado. Se a superfície é escura, o pó aplicado é de cor branca. Se, ao contrário, a superfície é clara, o pó aplicado é de cor preta. A aplicação é feita com o uso de um pincel, com o qual o “papi espalha o pó” fazendo movimentos circulares sobre a superfície. Em seguida, ele utiliza outro pincel para retirar o excesso do pó que ficou. Se “fragmentos” forem encontrados, eles fotografam a superfície localizando uma fita métrica abaixo dos mesmos (Figura 5).

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Swab é um instrumento utilizado com vistas a penetrar nas perfurações provocadas nos corpos. Trata-se de uma haste flexível fina e comprida.

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Figura 5 - Exemplo de fotografia de fragmentos de impressões digitais coletada em veículo

Fonte: Laudo papiloscópico

Posteriormente, os “papis” colam uma fita adesiva sobre o “fragmento” encontrado, retiram-na e a colam novamente em uma placa de resina. O “fragmento” coletado no local será escaneado na sala da perícia, na sede da Divisão de Homicídios, e exportado como imagem para o computador. Essa imagem será contrastada com o banco de dados do Instituto de Identificação Félix Pacheco (IIFP), também da Polícia Civil, através do Sistema Automatizado de Identificação de Impressões Digitais (SAIID). Há dois bancos de dados: um apenas com indivíduos identificados como autores de crimes, o “banco criminal”; e outro contendo os registros dos demais indivíduos da sociedade fluminense, o “banco civil”. Se o “fragmento for positivado”, ou seja, se o confronto entre imagem do fragmento coletado e o registro datiloscópico oficial obtiver um “escore”53 alto, o indivíduo possivelmente será chamado a depor para “explicar o que ele estava fazendo ali”, principalmente se tal “positivação” ocorrer com um indivíduo do “banco criminal”.

“Nada paga a gente positivar o autor. Imagina! Pegamos a digital do cara. Não tem mais jeito. No mínimo, ele vai ter que explicar o que ele estava lá naquela hora. E se for ‘criminal’ então, aí mesmo que não tem jeito”. [Papiloscopista]

É marcante no dia-a-dia da perícia da Divisão de Homicídios a autonomia de cada profissional. Sobretudo os peritos criminais e os legistas demonstram muita liberdade em seus procedimentos típicos, rotineiros. Cada um trabalha de uma forma: há peritos criminais que fazem suas notas em cadernos simples; outros levam formulários elaborados por eles mesmos em pranchetas e apenas marcam as observações do “local”, como se estivessem respondendo a um questionário ou a uma prova de múltipla escolha. Alguns desses formulários contêm 53

“Escore” é um valor compreendido entre 0% e 100% e indica que, quanto mais próximo de 100% maior a chance de o confronto entre o “fragmento” encontrado “no local” e a impressão digital registrada no banco de dados estadual ser “positivo”, isto é, da mesma pessoa.

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“mapas esquemáticos” do corpo humano onde são marcadas as lesões observadas. Os peritos criminais preferem redigir seus laudos em suas casas, em seus computadores. Como desenhado na Figura 2 do capítulo anterior, os peritos criminais têm que remeter ao SESOP todos os objetos encontrados, “apreendidos”, nos “locais de crime”. Tais objetos devem ser armazenados em sacos plásticos próprios e devidamente identificados pelo número do procedimento. É o perito criminal que determina para qual setor da polícia técnicocientífica o material será enviado para a realização dos exames. Em termos de receitas profissionais, pode-se dizer que os peritos legistas atuam de modo mais heterogêneo que os peritos criminais. Ponto importante no trabalho do perito legista é informar ao médico legista que realizará a necropsia no cadáver no IML as condições em que este foi encontrado. Enquanto um dos peritos legistas transmite a informação via internet do próprio local utilizando seu aparelho celular que permite georreferenciar os pontos onde fotos são tiradas, outros não tomam anotações. Há os que registram em cadernos e outros que preferem formulários elaborados por eles mesmos. Segundo os peritos legistas, um dos pontos “frágeis” no que diz respeito ao trabalho deles, e que atinge a todos, independente da forma como optam por trabalhar, é o fato de enviarem seus “relatórios de local” aos médicos legistas do IML via e-mail pessoal, na ausência de uma rede interna de comunicação institucional. Entre os papiloscopistas, essa variação do “modus operandi”, digamos assim, é bem menor. Isso pode ser explicado, talvez, pela própria dinâmica do trabalho de cada tipo profissional. O trabalho dos “papis” necessita de softwares e acesso à intranet da Polícia Civil. Por essa razão, eles realizam o “confronto” e redigem seus laudos nos computadores da sala da perícia, na sede da Divisão de Homicídios. Os dias de campo foram intensos, desgastantes e produtivos para minha pesquisa. Foram horas dentro das viaturas, junto com os profissionais da perícia da Divisão de Homicídios, durante a manhã, tarde, noite e madrugada. Foram dezenove perícias de locais de mortes violentas acompanhadas, dezenove corpos vistos a poucos metros de distância. Em um “local” não havia corpo, já que ele fora socorrido ao hospital54. Em outro “local”, havia dois corpos. Das dezenove “perícias de local” acompanhadas, dez corpos não 54

Este “local” pode ser considerado uma exceção do trabalho da perícia da Divisão de Homicídios. Quando as vítimas são socorridas aos hospitais, não há a realização da “perícia de local”. A justificativa dada pelos

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foram identificados no local de realização da perícia, ou seja, onde foram encontrados. Provavelmente, alguns deles poderiam ser identificados no IML através das impressões digitais coletadas pelos papiloscopistas que lá trabalham. Os outros nove corpos foram identificados nos locais por familiares que estavam presentes no momento da realização da perícia. Pude perceber que a identificação do corpo é um dos primeiros passos em direção à instauração de um inquérito policial, “é um ponto de partida”. Mas se, de acordo com a opinião desses profissionais, a vítima é um andarilho, ou se o corpo está muito carbonizado ou “calcinado55”, e se ninguém noticia ao Estado o desaparecimento dessas pessoas, dificilmente um possível suspeito de autoria da morte poderá ser identificado56. Neste sentido, essas vítimas, quando vivas, poderiam pertencer ao “mundo do crime” (RAMALHO, 2002). Mortos, esses indivíduos serão esquecidos pela sociedade (MEDEIROS, 2012). E os autores de suas mortes jamais serão procurados. De todos esses corpos, vi apenas duas mulheres dentre todas as vítimas, uma delas, o meu primeiro “local”, uma jovem de 34 anos que se jogara do 14º andar de um prédio de um condomínio da Zona Sul da capital. Vi dois corpos carbonizados, onde observei apenas uma massa amorfa de cor amarelo-amarronzada medindo cerca de um metro de diâmetro, cujo odor ainda me é indescritível. Os demais corpos eram homens: dois aparentavam ter 50 anos; um era branco e um pouco gordo; os demais eram jovens, pardos ou negros, muito franzinos. Todos trajavam bermudas, poucos vestiam camisas de malha. A maioria nada calçava, alguns calçavam chinelos e apenas um usava tênis. As massas amorfas estavam dentro de porta-malas de carros junto a pneus, em lixões de áreas pouco urbanizadas, são os chamados “microondas”. Três corpos estavam em portamalas de carros roubados e abandonados em vias públicas. Outros três, em residências (incluindo o corpo de uma das mulheres), e um corpo estava dentro de um bar. Nove corpos foram encontrados em vias públicas, onde havia circulação de transeuntes. Destes nove, um profissionais é a de que o “local é desfeito”. Neste caso que acompanhei, o homicídio tinha ocorrido dentro da casa do autor, que estava preso em flagrante dentro da viatura da Polícia Militar estacionada em frente da casa. Por essa razão, a “perícia de local” foi realizada. 55 Termo utilizado pelos peritos legistas para se referirem aos corpos que, de tão carbonizados, têm seus ossos facilmente decompostos diante de um leve toque. É o que acontece com a maioria dos casos taxados de “microondas”, como pude ver em duas ocasiões. 56 Isso parece explicar a existência da Seção de Descoberta de Paradeiros (SDP) na estrutura da Divisão de Homicídios. Ouvi pelos corredores da delegacia: “depois da DH, os casos de desaparecimento da capital estão sendo encaminhados para nós”. A SDP é composta por um delegado assistente e cinco policiais. Um deles quase sempre estava presente nos “locais” junto com o GELC.

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foi encontrado dentro de uma lixeira, outro próximo a uma caçamba, outro em uma estrada um pouco deserta e dois próximos a córregos. Quatorze corpos apresentavam perfurações provocadas por armas de fogo, principalmente na cabeça. Dois deles apresentavam marcas de tortura anteriores à execução. Um corpo apresentava lesão no pescoço e outro corpo, agressão por paulada na cabeça. Como mostrado no capítulo anterior, os “encontros de cadáver” são posteriormente tipificados como “homicídio doloso”. As classificações dessas “perícias de local”, de acordo com os peritos, foram as seguintes: um suicídio, quatro homicídios, um duplo homicídio e os demais, “encontros de cadáver”. As mortes já classificadas como “homicídio doloso” pelos peritos criminais foram as que se referiam aos corpos em residências ou lugares fechados, como o bar. Ao longo dos trajetos percorridos junto com a equipe da perícia dentro da viatura, era comum a identificação feita por eles dos “futuros clientes”. Tratava-se de jovens pardos ou negros, franzinos, vestindo apenas bermudas, andando com passos incertos, um pouco cambaleantes, como se bêbados estivessem. Essas observações feitas pela equipe demonstram a tipificação profissional em uso que, não por acaso, confirma os padrões das mortes violentas no Rio de Janeiro. O uso dessas tipificações permite pensar, portanto, como nesses casos trata-se não apenas de tipificações, mas de sua cristalização em tipos sociais sobre os quais incide a sujeição criminal já nessa fase inicial de construção do crime (MISSE, 1999, 2008). Nas próximas páginas descreverei as práticas rotineiras dos profissionais do GELC, principalmente as dos peritos, a partir de cinco casos. Estes exemplificam como os procedimentos de criminação darão suporte à construção de incriminações, com base nas receitas profissionais ou regras de experiência. A primeira descrição é um exemplo do que foi dito anteriormente, sobre como a sujeição criminal parece começar a ser construída já na perícia de local do evento a ser criminado. As duas descrições seguintes podem ser considerados como atípicas: uma que se refere a um suicídio e outra que trata de um duplo homicídio em um apartamento de um bairro de classe média da capital fluminense. A quarta descrição constitui um caso típico de encontro de cadáver. A última cena descrita refere-se a um caso em que uma vítima sobreviveu e serve

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para demonstrar como a presença de testemunha parece ser um determinante para a conclusão de um inquérito policial.57 Dedicarei especial atenção a um caso que pude tomar como atípico dentre todas as “perícias de local” que observei. Por mais que os métodos de uma instituição estejam rotinizados, essas rotinas permanecem vulneráveis em certos momentos essenciais. Há uma classe especial de circunstâncias que transformam as ocasiões de rotina, tornando sua realização mais difícil, ou mais interessante ou mais importante. São os chamados casos especiais ou ocasiões críticas, nas quais os procedimentos geralmente empregados de tratamento não se instituem, exigindo que o staff tome medidas especiais. Os casos especiais empurram o staff para fora de suas atitudes regulares de indiferença e eficiência, já que exacerbam o grau notadamente atípico ao sentimento moral (SUDNOW, 1971[1967]). Inicio este rol de descrições com uma “perícia de local” de “encontro de cadáver” típico onde pude refletir sobre a ideia de sujeição criminal tal como vem sendo desenvolvida por Misse (1999, 2008, 2010). A “sujeição criminal” é um dos quatro níveis analíticos da construção social do crime, segundo esta perspectiva. Nas palavras do autor, trata-se do processo através do qual são selecionados preventivamente os supostos sujeitos que irão compor um “tipo social” cujo caráter é socialmente considerado “propenso a cometer um crime”. Caso no 8 Data: 20 de fevereiro de 2012, segunda-feira de carnaval Horário de chegada ao local: 13:20 Horário de saída do local: 13:39 Corpo localizado na sarjeta, próximo a uma caçamba de lixo. Como o local é o “pé de uma favela”, ou seja, entrada para uma favela, o exame é feito muito rapidamente. Apenas os peritos legista e criminal se aproximam do corpo enquanto o restante da equipe se posiciona em direções diferentes. Este caso gerou dúvidas quanto à classificação

57

Os demais casos encontram-se descritos no Anexo 1. Minhas descrições distam da objetividade científica já que foi impossível omitir as sensibilidades percebidas em cenários demasiado novos para mim. Com a rotinização das atividades de campo, o estranhamento do olhar foi amenizado, um indício da saturação do campo de pesquisa. Depois dos dois primeiros dias de campo, julguei pertinente não mais fazer os plantões das 24 horas, mas apenas o de 12 horas. Assim, passei a acompanhá-los entre as 8h e 20h. Conforme os dias se passavam, eu me sentia mais à vontade naquele ambiente e percebi que descansar após o retorno dos “locais de crime” era importante. Nesse tempo, cerca de uma hora em que os peritos também descansavam, eu deitava naquela que passara a ser “minha cama” e aproveitava para anotar em meu caderno de campo as conversas que tinha com eles dentro da viatura. Neste tempo, relia minhas descrições, tomava nota das minhas impressões sobre os locais e das minhas sensibilidades sobre aqueles cenários outrora tão distantes de minha vida.

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pelo perito legista: ele não sabia, no primeiro momento, se teria sido acidente ou se teria sido uma agressão, já que não havia perfurações de projéteis ou de armas brancas. Na viatura, saindo do local, disseme

que

precisava

ter

acesso

ao

relatório

de

necropsia,

que

seria

enviado pelo IML. Isso aconteceu à noite, quando já estávamos na sala da Perícia. Consultando via intranet, ele teve acesso ao laudo de necropsia feito pelo médico legista do IML. Este afirmava que a lesão que provocara a morte havia sido provocada por agressão. Ao saber disso, ele comunicou ao perito criminal: “oh, fulano, sabe aquele caso do ‘crackudo do valão’? Então, foi agressão mesmo, tá aqui, oh!”. Este recebeu a notícia com um ar de surpresa, dizendo algo como: “hum... achei que o ‘crackudo’ tinha caído no valão e se afogado”. “Crackudo” foi

a

forma

pela

qual

eles

se

referiram

à

vítima,



que

esta

apresentava uma aparência de usuário de crack, isto é, vestindo apenas uma bermuda, negro, franzino, sem documentos e com uma aparência suja.

O interessante a analisar nesta descrição é, primeiramente, o tempo de duração da “perícia de local”, cerca de 19 minutos entre a chegada das viaturas ao local e a saída das mesmas. Ou seja, a perícia propriamente dita deve ter durado menos de dez minutos. Isso demonstra como essa vítima constitui um caso que pode ser considerado típico, já que as receitas práticas foram aplicadas de modo muito rápido pelo staff da perícia da Divisão de Homicídios. A agilidade no que se refere ao modo como eles seguiram as regras de experiência constitui um indicativo de que se tratava de um evento rotineiro, com o qual eles estavam acostumados a lidar. O principal aspecto a ser notado se refere ao modo como eles se referiram ao sujeito vitimado, “o crackudo do valão”, nomeação dada com base na observação rápida do local onde o corpo fora encontrado, uma sarjeta no “pé de uma favela”, bem como na observação dos aspectos físicos do próprio cadáver: sujo, negro, franzino e trajando apenas uma bermuda. Estar presente neste cenário permitiu-me observar como um dos níveis analíticos da construção social (e institucional) do crime: a sujeição criminal pode atuar muito cedo ainda nessa primeira fase de definição do evento. Embora os peritos não estivessem se referindo ao autor daquela morte – até porque havia dúvidas quanto à natureza da morte: se acidente ou se por agressão – o modo como as práticas rotineiras foram aplicadas neste momento, bem como o modo como esses profissionais se referiram à vítima, permite inseri-lo em um tipo social correspondente àqueles sujeitos propensos a cometerem crime ou, como ele está morto, um sujeito que certamente algum dia já cometera um crime.

90

Decodifiquei a lógica desta sujeição criminal da seguinte forma: o cadáver de um homem negro, franzino, vestindo bermuda, encontrado em uma sarjeta no pé de uma favela, sem documentação que permita identifica-lo, sujo e maltrapilho é certamente o corpo de um sujeito que, quando em vida, era certamente um usuário de crack e, como se sabe, todo usuário de crack, sendo pobre e morador de rua como este aparenta ser, é dado a práticas de outros delitos criminais como furtos e roubos e também dado a brigas e discussões com outros usuários de drogas. Como se sabe também, quem tem um comportamento deste tipo, mais cedo ou mais tarde, acabará sendo morto por alguém, ou porque brigou ou porque não pagou a droga que consumiu ou por outros motivos semelhantes a esses. Por isso, seres humanos como os pertencentes a este tipo social, o “crackudo do valão”, são os futuros clientes deste staff. A regra de experiência estereotipada reconhece, no corpo morto, a sua sujeição criminal. A próxima descrição de uma “perícia de local” liga-se diretamente à análise anterior. Refiro-me a ela como um exemplo de “normal crimes” (SUDNOW, 1965), já que posso considera-la como uma ocasião de rotina, tal como a anterior, e que, por ser uma ocasião de rotina, demandou, por parte dos peritos, uma definição operacional da morte mais comum dentre as tipificações por eles construídas, o “encontro de cadáver”. Mas, diferentemente da situação anterior, não consegui identificar na observação das receitas práticas aplicadas pelo staff durante a realização desta perícia, elementos manifestados de sujeição criminal. Caso no 7 20 de fevereiro de 2012, segunda-feira de carnaval Horário de chegada ao local: 11:59 Horário de saída do local: 12:47 No centro de uma rua em bifurcação em T, um carro da marca Volkswagen Gol, da cor preta. Pessoas aglomeram-se nas esquinas sob o forte mormaço do meio-dia de uma segunda-feira de Carnaval. Alguns passam fantasiados, olham para o carro e seguem, provavelmente, rumo a algum bloco

carnavalesco.

descalço.

As

Da

viaturas

porta se

entreaberta

posicionam

nas

do

porta-malas,

extremidades

da

um



rua.

Os

peritos descem e se aproximam do carro. ‘Trabalho para você!’, diz o perito criminal para o papiloscopista. Este pega a maleta onde se encontram os instrumentos, retira um pote pequeno com um pó de cor branca,

dois

pincéis,

veste

as

luvas

descartáveis

e

inicia

a

aplicação deste pó na porta do porta-malas, nos vidros traseiro e laterais. Tira fotos de alguns pontos específicos posicionando uma régua próxima a eles. Ele volta à viatura, pega uma fita adesiva e a cola nesses pontos, passando o dedo por cima dessa fita. Em seguida, retira-a e a cola em uma placa transparente. Findo seu trabalho, o

91

papiloscopista balança a cabeça em sinal afirmativo para o perito criminal

e

este,

então,

abre

a

porta

do

porta-malas

do

carro.

Delegado e demais policiais, além dos dois bombeiros, do investigador que acompanha a equipe da Perícia e do perito legista, aproximam-se do carro neste momento. O perito criminal e o legista olham o corpo e pedem aos bombeiros que o retirem do carro. O exame será feito no chão. Há dificuldades para isso e a retirada demora, sendo necessária a ajuda de quase todos os policiais presentes. Do ponto onde estou, não me é possível perceber o porquê da dificuldade da remoção do corpo para o exame. Com a demora, mais pessoas se posicionam cada vez mais próximo do local. Como eu estava em uma das extremidades, um pouco mais distante do carro em si, houve um momento em que um homem pediu a mim permissão para passar pelo local. Eu estava com o colete no

qual

portanto,

estava ele

me

escrito via

“Polícia

como

tal.

Civil” Eu

sabia

e

“Perito

que

não

Criminal” podia

e,

deixá-lo

passar, mas, ao mesmo tempo, não tinha autoridade para impedir sua passagem. Olhei em volta, todos, inclusive os policiais responsáveis por fazer a guarda do local, estavam atentos ao corpo. Não tinha a quem recorrer e acabei dizendo ao homem que ele teria que aguardar um pouco para passar. Esta seria a primeira intervenção direta de minha presença em campo e me fez refletir sobre a influência do pesquisador no ambiente que ele busca compreender. Imediatamente um policial se aproximou, reafirmou ao homem o que eu disse, e ficou ao meu lado. Vigilância? Fato é que me senti observada por quem eu observava. E tive a certeza de que não estava invisível ao grupo de policiais. Depois de um tempo o corpo foi retirado do porta-malas do carro e examinado sobre o saco plástico preto utilizado para a remoção dos cadáveres pelo Corpo de Bombeiros. Mais tarde, já na viatura, soube que a dificuldade se deu pelo fato de o corpo, ao ser jogado dentro do porta-malas, ter-se encaixado sob o kit-gás e enrijecido nesta posição. Em diálogo na viatura, o papiloscopista me diz que conseguiu pegar um fragmento muito bom, mas que provavelmente, este seria do PM que chegou ao local, porque parecia recente e ele afirmara ter aberto a porta do porta-malas do carro.

Trata-se de um caso típico, uma ocasião de rotina, por ser a vítima um homem, jovem e o “local” ser um bairro de classe baixa da capital fluminense. É típico também por ter sido classificado como “encontro de cadáver” pelos peritos criminais, já que esta é a categorização mais recorrente, tal como mostrei no capítulo anterior.

92

Classificou-se como “encontro de cadáver”, segundo eles, em virtude da observação das manchas de sangue, que estavam no próprio corpo da vítima, bem como pelo fato de os projéteis não terem sido encontrados no porta-malas do carro, o que indicava que o corpo fora colocado ali e, posteriormente, abandonado naquela rua. A tipicidade deste evento advém do fato de o corpo não ter sido identificado imediatamente no “local”. Não havia testemunhas, nem conhecidos da vítima. Outro ponto que permite classificá-lo como típico é o tempo de realização da perícia, que teria sido bastante rápida, não fosse o fato de o braço do jovem ter se enrijecido sob o kit-gás do carro. A busca por fragmentos datiloscópicos, em alguns pontos do carro, é típica quando considero especificamente as práticas rotineiras dos papiloscopistas. Mas atípico quando tenho em mente as perícias de local em geral, já que o típico são os cadáveres encontrados nas ruas, sem qualquer objeto próximo a ele. E, especificamente sobre as práticas dos papiloscopistas, este também teria sido um caso típico se o fragmento encontrado fosse do policial militar que chegara primeiro ao “local”, com a função de acautelá-lo e preservá-lo até a chegada dos peritos criminais, tal como escrito no Código de Processo Penal. Entretanto, dias depois, na sala da perícia e em conversa com este papiloscopista, soube que o fragmento havia sido “positivado” e o “dono” daquela digital era um “cara do criminal”, ou seja, o fragmento pertencia a um homem com registro no banco dos “criminosos do Rio de Janeiro”. Este foi, incontestavelmente, um momento de contentamento por parte deste papiloscopista. O “dono da digital” foi intimado a depor depois de alguns dias e, segundo me disse o papiloscopista, “ele estava encrencado”. E, como a vítima fora identificada no IML, o inquérito havia sido instaurado com “provas de materialidade” e “fortes indícios de autoria”. Descritas duas ocasiões rotineiras, passo, agora, a expor as ocasiões críticas. A próxima “perícia de local” descrita é uma situação semelhante à estudada por Beato Filho (1992), quando empreendeu um estudo etnometodológico sobre a construção de um fato, se suicídio ou homicídio. Observando o conteúdo de um inquérito policial, analisando principalmente os relatos dos detetives responsáveis pela investigação do evento, o autor demonstrou as receitas práticas seguidas por esses profissionais para definir “a verdade real dos fatos”. Assim, Beato Filho decodificou como um evento-morte inicialmente tipificado como suicídio pode ser alterado para homicídio. Vejamos o nosso caso:

93

Caso no 1 18 de fevereiro de 2012, sábado de carnaval Horário de saída da DH: 16:34 Horário de chegada ao local: 17:00 Horário de saída do local: 19:10 Bairro de classe média da Zona Sul fantasiadas

pelas

ruas

da

do

cidade

me

Rio

de

lembram

Janeiro. que

é

Pessoas

carnaval.

Estranhamento no olhar dos transeuntes para as viaturas, parecendo se perguntar: ‘o que a Polícia faz aqui?’. Entramos no estacionamento de um condomínio. Desci da viatura sem o caderno de campo e com uma máquina

fotográfica

que

me

foi

entregue

ainda

na

DH

pelo

perito

criminal. Sob um saco plástico preto o corpo de uma mulher magra. Os policiais da 9ª DP estavam no local. Nenhum familiar ou conhecido da vítima. O zelador do condomínio é a testemunha que achou o corpo e comunicou à 9ª DP. Ele aponta para a janela de onde a moça caíra, 14º andar. A cortina azul balançando conforme a brisa. Aos poucos pessoas surgem nas janelas do prédio. Uma senhora reza. Outra cerra o vidro. Um casal acompanha com interesse todo o trabalho dos policiais. Após alguns minutos, a viatura do Corpo de Bombeiros estaciona entre mim e o corpo. É o carro que fará o recolhimento do mesmo. O exame dura cerca

de

uma

hora.

O

perito

criminal

sobe

em

uma

escada

até

o

parapeito do primeiro andar onde, aparentemente, o corpo batera antes de chegar ao chão. Isso poderia explicar os hematomas encontrados na face da vítima. Com o tempo, as informações começaram a chegar. Um dos policiais repassa ao delegado que se trata de uma mulher de 34 anos, recém-chegada ao Rio de Janeiro, oriunda de Vitória/Espírito Santo, estudante de mestrado em Cenografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não pude deixar de perceber a semelhança entre aquela

vítima

estudante

de

e

eu:

mulher,

pós-graduação

idade

da

aproximada,

UFRJ.

Talvez

externa

por

isso,

ao

Rio,

julguei

providencial que minha visão tenha sido encoberta pela viatura dos Bombeiros. Findo o exame no corpo e no local da queda, todos subimos ao apartamento. Lá estavam três senhoras e dois rapazes com quem a moça morava. A porta do quarto dela estava trancada por dentro e havia sido arrombada pelos policiais militares que chegaram primeiro ao

local.

Isso

causou

grande

irritação

no

delegado

e

também

nos

peritos. A preservação da cena é fundamental para o laudo de local do crime.

Para

o

perito

criminal,

o

apartamento

deveria

ter

sido

interditado, nem os moradores poderiam estar lá. Afinal, eles estavam interessados em definir um fato: suicídio ou homicídio? No quarto, uma

cadeira

Remédios

próxima

à

antidepressivos

janela,

‘sem

espalhados

sinal sobre

de a

briga’, cama.

disseram.

Consulta

ao

94

notebook da vítima (a página do facebook58 estava aberta). Nenhuma carta,

nenhum

também

nada

aviso,

que

nada

pudesse

que

pudesse

comprovar

o

comprovar

homicídio.

o

suicídio.

Os

Mas

investigadores

conversam com os demais moradores do apartamento. Nenhum deles estava no local no horário da queda da moça. Eles também não a conheciam bem porque

ela

chegara

em

17

de

janeiro,

um

mês

atrás.

Eu

evitava

permanecer na sala, sem outros policiais por perto. Isso porque, como eu estava vestindo o colete, essas pessoas vinham conversar comigo, dando seus testemunhos sobre o que elas achavam que tinha ocorrido. Ao mesmo tempo em que me interessava ouvi-los, não podia ser a única porque eu não tinha a autoridade para tomar aqueles depoimentos. E se um

deles

me

falasse

algo

que

poderia

ser

fundamental

para

a

investigação? Tratei de ficar o mais próximo possível do quarto, onde estavam os demais policiais. Assim, eles também poderiam ouvir o que me diziam. Ao descermos do apartamento, no elevador, perguntei ao perito legista a sua opinião. Disse-me ele: ‘suicídio mesmo. Mas os policiais não podiam ter entrado lá. Acho que o delegado vai intimálos.

Isso

acham’.

não

podia

Retornamos

ter

ao

acontecido!

estacionamento,

Vamos onde

ver

o

que

estavam

as

os

colegas

viaturas.

Aguardamos a equipe e seguimos para o outro local, já comunicado pela Permanência ao delegado adjunto.

Este pode ser considerado como um caso menos comum dentre todas as “notíciascrime” recebidas na DH. Por esta razão, pode ser considerado atípico quando se considera este contexto, embora possa ser considerado típico dentre os padrões de suicídios. Neste sentido, dois fatores permitem perceber a atipicidade do caso dentro do contexto da DH: a morte ocorreu em um condomínio de um bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, considerado como de classe média; a vítima era mulher, jovem e estudante universitária de pós-graduação. O que mais chama a atenção são os procedimentos adotados. Uma vez visualizado o corpo no estacionamento do condomínio, o perito criminal e o perito legista foram conversar com o zelador que encontrara o corpo. Como havia dúvidas quanto ao tipo de morte, se suicídio ou se homicídio, o delegado titular da delegacia distrital juntamente com seu grupo de investigação estavam no local. A Divisão de Homicídios foi comunicada justamente para definir a morte. Caso a perícia indicasse homicídio, o evento passava a ser de

58

Site e serviço de rede social, operado e de propriedade privada da Facebook Inc. Em 4 de outubro de 2012, o Facebook agregava 1 bilhão de usuários ativos (fonte: www.wikipedia.org, consulta em 21 de março de 2013).

95

responsabilidade da DH, caso fosse suicídio, o evento ficaria com a delegacia distrital, conforme as prescrições normativas. Uma vez constatada a “morte por queda de altura considerável”, toda a equipe do GELC, e apenas a equipe do GELC, subiu ao apartamento da jovem a fim de realizar a perícia no quarto de onde ela, em tese, teria pulado. Todos os indícios levavam a classificação desta morte violenta para a categoria suicídio, não fosse a porta do quarto da jovem estar arrombada... pelos bombeiros e policiais militares que foram chamados pelo zelador e chegaram antes do GELC. O papiloscopista procurou no computador e nas páginas de redes sociais da jovem alguma mensagem direcionada a alguém que poderia “consolidar as evidências como suicídio”. Nada fora encontrado neste sentido e os trabalhos do GELC se voltaram para a tomada de depoimentos dos que com ela conviviam no apartamento. Enquanto os policiais do GI conversavam com os amigos – e os amigos conversavam comigo em paralelo – os peritos permaneciam no quarto da jovem procurando por diagnósticos médicos, dentre outros “elementos”, que apontassem para algum quadro de depressão. E, novamente, nada neste sentido foi encontrado. Tal como mostrado por Beato Filho (1992), a busca por esses elementos constitui práticas rotineiras desses profissionais que visam encontrar vestígios que possam descartar a hipótese de homicídio ou de acidente e, concomitantemente, confirmar a hipótese de suicídio. Com isso, constrói-se um relato com base na razoabilidade, e, consequentemente, constrói-se a verdade do que ocorreu. Ao fim da perícia, os policiais militares foram devidamente intimados pelo delegado adjunto a comparecer na DH para esclarecimentos quanto ao arrombamento da porta. Então, toda a equipe desceu ao estacionamento. O corpo não mais estava no chão, já havia sido “guardado” pelos bombeiros no chamado “rabecão”. O comboio de viaturas foi novamente formado e saímos do condomínio rumo a outro local de registro de morte violenta, comunicado ao delegado adjunto enquanto esta perícia era realizada. Chamo a próxima descrição de “caso especial” em referência ao estudo de Sudnow (1971[1967]), no qual empreendeu uma análise organizacional de um hospital motivado por dois interesses: descrever as condições do trabalho organizado com fins práticos neste ambiente e descrever o lugar da morte e do morrer dentro deste meio organizacional. Uma das

96

principais contribuições deste estudo, e a que incorporo em meu trabalho, refere-se à observação dos momentos críticos em que os métodos rotinizados se mostram vulneráveis exigindo a tomada de medidas especiais por parte do staff. Caso no 15 Data: 09 de março de 2012 Horário de saída da DH: 18:18 Horário de chegada ao local: 19:41 Horário de saída do local: 21:52 Decorrido cerca de um mês em que me encontrava mergulhada no campo de pesquisa, já estava suficientemente familiarizada com o ambiente da sala da perícia da Divisão de Homicídios (DH) e, principalmente, com os profissionais que lá trabalhavam. Em 09 de março de 2012, decidi acompanhar o trabalho da perícia durante o plantão noturno, ou seja, das 18h daquele dia às 8h do dia seguinte. Liguei à tarde para a sala da perícia e conversei com os peritos que estavam de plantão naquela sexta-feira. Após uma brincadeira do perito legista que disse: ‘você não

tem

nada

melhor

para

fazer

numa

sexta-feira

à

noite,

menina?

[risos] Pode vir passar a noite comigo, será um prazer’, desliguei o telefone e tratei de arrumar minha mochila para passar a noite na DH. Além de meu caderno de campo e vários lápis apontados, coloquei na mochila, um lençol, uma fronha, pijama, escova de dente, toalha de banho,

sabonete

líquido,

chinelo,

boné,

agasalho

(apesar

do

forte

verão carioca), frutas, hidrotônico, iogurte e barras de cereal. Tomei o ônibus às 15:30h e às 17:30h estava chegando à sede da Divisão de Homicídios. Ainda estava cumprimentando a equipe plantonista quando o telefone tocou e foi atendido pelo perito criminal. Ele desligou o telefone, suspirou e disse, no vocabulário pitoresco dos cariocas: - Porra! Foi só você chegar e já pintou local. Que pé frio! Vamos lá, duplo homicídio, um casal no seu apartamento. -

Porra!

Duplo

homicídio?

Que

isso,

Klarissa,

ah,

assim

pode

ir

embora. Me arrependi de ter te convidado pra passar a noite comigo, disse o perito legista. - Onde é?, perguntou o papiloscopista. - [nome do bairro], disse o perito legista. - Fudeu! Nesse horário, vamos chegar lá daqui a umas duas horas, disse o papiloscopista. - A noite promete ser quente. Você tá preparada? Ou achou que ia ficar dormindo no fresquinho..., disse-me o perito legista.

97

- Tô preparada sim. Aliás, vai ser o meu primeiro local sem ser na rua,

dentro

de

residência.

Tava

faltando

isso

no

meu

campo

de

pesquisa, respondi. - Ah, então você tá feliz, né?, disse o legista [risos de todos na sala] - Bem... um pouco. É importante pro meu trabalho, respondi. - Então, bora, vamos. Tá aqui seu colete, veste aí, disse o legista me entregando aquele que tinha se tornado o “meu” colete à prova de balas. Ao

longo

do

caminho,

a

história

foi

sendo

construída.

O

perito

criminal conversava pelo rádio com o delegado adjunto e, aos poucos, repassava as informações para os demais na viatura. Antes de chegar ao local, passamos na Delegacia de Polícia que havia registrado o fato. Lá, o delegado adjunto e o perito criminal conversaram com o delegado titular. A história tornava-se cada vez mais detalhada. Cerca de duas horas depois da saída da DH, chegamos a um prédio de classe média. Não havia

policiais

militares

nas

imediações,

apenas

a

fita

amarela

tarjada de preto envolvendo a caixa de correspondências no portão do prédio. Todos adentramos no prédio, sendo que o delegado adjunto e dois policiais subiram até o apartamento antes dos demais. Minutos depois, os três retornaram à entrada do prédio. O delegado autorizou a entrada “somente da perícia” e a equipe subiu as escadas. Eu subia em penúltimo lugar na fila. À minha frente, o perito criminal, o delegado e

o

papiloscopista,

Chegamos

a

um

nesta

corredor

ordem. onde

Atrás

estavam

de

mim,

dois

o

perito

familiares,

legista. os

que

encontraram os corpos e comunicaram à polícia. Um vizinho observava a movimentação com a mão na boca e os olhos arregalados. Dizia: “eu não ouvi nada. Como pode, meu Deus?”. Um policial, que subiu atrás de nós, conversava com ele. A porta da cozinha estava destrancada e, segundo os familiares, eles a encontraram assim. O perito criminal a abriu e, filmando com a câmera, entrou no apartamento. Todos permanecíamos no corredor. Poucos minutos depois, ele voltou e chamou os outros dois colegas da perícia. O delegado também entrou e eu perguntei se poderia entrar também. Ele disse que sim, e me deu a passagem, indo atrás de mim. Passamos pela cozinha e, já no corredor, pude sentir um cheiro fétido conjugado com o calor abafado de um ambiente fechado há um tempo. Posicionei-me à frente da porta do banheiro, que ficava, por sua vez, à frente da porta da sala, onde estava o corpo da mulher, e contígua à porta do quarto, onde estava o corpo do homem. A perícia começou pelo corpo do homem, que estava sentado em uma cadeira à frente

do

computador.

Em

um

primeiro

momento,

as

circunstâncias

98

levavam

a

crer

que

o

assassino

o

matara

da

porta

do

quarto

e,

posteriormente, matara a mulher. O perito criminal foi o primeiro a entrar

no

dizendo:

quarto “o

e,

tiro

veementemente,

após foi

afirmando

alguns pelas que

minutos, costas”,

o

“tiro

chamou ao

o

que

perito este

certamente

veio

legista

discordou da

porta,

entrando pela têmpora”. O perito criminal me chamou para entrar no quarto e me mostrou as manchas de sangue, que indicavam que o tiro havia sido pela nuca. Havia muito sangue no chão do quarto, próximo à cadeira onde o homem estava, sangue de uma consistência grossa, um pouco ressecado, exalando um cheiro muito forte, peculiarmente fétido. Aprendi, então, que isso indicava que a morte havia ocorrido há um bom tempo,

talvez

no

dia

anterior.

Saí

do

quarto

e

o

perito

legista

entrou. Os dois peritos conversaram longamente, discutindo sobre a posição do atirador. O delegado entrou no quarto. Eu me posicionei, então, na porta do quarto. Os óculos do homem, que estavam sobre a poça de sangue, foram pegos pelo perito criminal. A lente esquerda estava perfurada: “o tiro saiu pelo olho esquerdo. Confere aí!”, disse o perito criminal ao perito legista. Este então pegou “o que deveria ser um swab” para examinar a direção da perfuração. Eu fechei os olhos por

alguns

instantes,

porque

esta

realmente

é

uma

cena

não

muito

agradável de se ver e ouvi apenas a voz do perito criminal dizendo: “nossa! Não falei. Foi daqui onde estou que o cara atirou!”. Abri os olhos. O perito criminal estava atrás do corpo. As extremidades do (pseudo)swab, uma no olho esquerdo e outra atrás da cabeça. Eles se entreolharam, mas nada disseram. O papiloscopista estava ao meu lado. Nós também nos entreolhamos e fizemos sinal afirmativo com a cabeça. Eu estava compreendendo os códigos. Percebi que a história inicial estava sendo remontada. O assassino não era desconhecido do homem, não havia sinal de brigas, de discussão. O homem deu passagem para o assassino

se

posicionar

confiança

dele.

O

perito

atrás

dele.

legista

Tratava-se

sugeriu

de

voltarem

uma o

pessoa

corpo

para

da a

posição original, o que foi feito com a ajuda do delegado dada a dificuldade imprimida pelo estado de rigidez do corpo. O homem, que estava reclinado na cadeira, foi reposicionado de modo ereto, à frente do

computador

posição

do

e,

ao

atirador.

fazerem

isso,

Coletaram

um

conseguiram projétil

que

perceber estava

melhor abaixo

a da

escrivaninha. Findo o exame no corpo do homem, que foi colocado dentro de um saco preto feito de lona e lacrado por zíper e retirado pelos bombeiros, o papiloscopista buscou “fragmentos” de impressões digitais na

cômoda,

no

guarda-roupa

e,

posteriormente,

na

janela.

Nada

encontrou. Um investigador ficou um tempo no computador, que estava

99

ligado, indicando que o homem o estava usando quando foi morto. O Skype estava aberto, havia mensagens no Messenger postadas cerca de 30 horas

atrás.

Seguiram

para

o

exame

no

corpo

da

mulher,

na

sala

contígua ao quarto. Sobre o tapete, em “decúbito dorsal”, ou seja, com as costas apoiadas no solo, pernas dobradas, um pé descalço, o outro calçando

chinelos.

Vestia

uma

bermuda

e

uma

blusa,

os

cabelos

amarrados. Aparentava entre 50 e 60 anos, semelhante à idade do homem. A bolsa ao lado da mão esquerda, fechada. Sobre o sofá, uma almofada perfurada. Minutos antes do início da perícia, ouvi de uma das pessoas que encontrara os corpos o seguinte comentário dirigido ao delegado, no corredor do prédio: “eu cheguei e vi que ele estava morto. Achei que ela poderia estar viva ainda e retirei a almofada de cima do rosto dela. Só então vi que ela também estava morta”. O delegado, o perito criminal e o perito legista deram início à perícia no local onde se encontrava o corpo da mulher. O delegado, muito próximo ao corpo, apenas

observava,

enquanto

os

peritos

o

examinavam.

Ele

disse:

“verifica, por favor, se ela está com as unhas feitas e com o cabelo pintado”. O perito criminal examinou e, verificando que não estavam feitos, perguntou ao delegado o porquê. Este respondeu: “ela estava com salão de beleza marcado para ontem às 14h. Se ela não foi...”. Ele tinha obtido esta informação também no corredor do prédio, em conversa com a outra pessoa que encontrara os cadáveres. Chamou a dupla de investigadores: “Verifica lá o nome do salão aonde ela ia. Tem que ir lá, hein?”. E os dois policiais, que estavam em outro quarto, saíram do apartamento em direção ao corredor. Novamente o uso do (pseudo)swab na cabeça da mulher e, posteriormente, a mudança de posição do corpo. Ao virarem o corpo, um odor fortíssimo pairou no ar, o mais forte que havia sentido até então e completamente diferente dos demais cheiros que já havia sentido em outros locais periciados. Mais forte e fétido que os dos corpos carbonizados, vistos ao ar livre, próximo a lixões. Cobri meu nariz com uma das mãos, a outra segurava o caderno, e me mantive ali onde estava, no corredor do apartamento, de frente para o corpo.

Uma

diferença

importante

entre os

ambientes

onde os

corpos

foram encontrados refere-se ao fato de, na sala, as janelas estarem fechadas e com o ventilador de teto desligado. No quarto do casal, onde estava o homem, o ventilador de teto estava ligado e havia uma fresta

na

janela.

apartamento.

Um

Este

dos

odor

espalhou-se

bombeiros,

que

rapidamente

voltara

para

por

ver

a

todo

o

perícia,

retornou às pressas para a porta da cozinha, tapando o nariz com uma das mãos. Antes, porém, olhou para mim dizendo: “Nossa Senhora! Como você

está

aguentando?”.

O

papiloscopista,

que

estava

ao meu

lado,

100

olhou-me, fez uma careta e, depois, sorriu piscando o olho para mim. Pouco

tempo

depois,

a

perícia

foi

dada

por

encerrada.

Senti-me

exausta. Após um tempo, ganhei a cozinha e a área de serviço. Deixeime ficar próxima ao tanque de lavar roupas, olhando as estrelas e aspirando um pouco de ar puro. Fazia uma noite muito bonita, no fim do verão

carioca.

O

papiloscopista

me

acompanhou

e

ali

ficamos

conversando. Cada um construindo a sua história na cabeça. Quando o corpo da mulher foi recolhido pelos bombeiros, dentro do saco preto, eu

e

o

papiloscopista

ficamos

no

corredor

do

prédio.

Uma

das

testemunhas começou a contar como eles encontraram os corpos, contou sobre algumas relações familiares, dentre outras coisas que, imaginava eu, complementavam a história já sabida de antemão pelos policiais. Por alguns minutos, ficamos apenas eu e a testemunha, que, certamente me identificava como mais uma policial dado o uso do colete com as inscrições Polícia Civil e Divisão de Homicídios, dizia-me coisas que me

pareciam

relevantes

àquela

investigação.

Embora

eu

não

fizesse

perguntas, prestava a máxima atenção ao que a testemunha me dizia. Lembrava-me das narrações de Joana Vargas (2000) e de David Sudnow (1971[1967]) quando em seus campos de pesquisa. Eu não podia sair dali,

nem

podia

interferir

no

andamento

das

investigações.

A

testemunha continuava a me dizer coisas que eu julgava importantes. Quando o papiloscopista retornou, eu tentei fazer com que ela falasse novamente o que tinha dito para mim, mas não obtive êxito. Na viatura, comentei o que ela me disse e, posteriormente, já de volta à sede da Divisão de Homicídios, fui levada pelo perito legista até o delegado adjunto que esteve neste local periciado para remeter-lhe o que eu havia escutado. Mas ao que parece, minhas informações não pareceram ser tão determinantes como eu imaginava, o que indicaria que eu ainda não havia penetrado na lógica do grupo por mim observado.

Esta seria uma noite intensa. Saímos desta perícia e fomos jantar em um

restaurante

arroz,

batatas

próximo fritas

ao e

bairro

farofa.

onde

estávamos.

Tomamos

Comemos

Coca-Cola.

A

frango,

conversa

foi

animada, repleta de brincadeiras alheias ao trabalho, mas intercalada com

algumas

explicações

mais

técnicas

que

me

eram

dadas

pelos

profissionais. Informações sobre como determinar o tempo de morte com base

nos

“livores”59,

rigidez

e

desidratação

dos

corpos.

Ainda

no

caminho para a sede da Divisão de Homicídios, “a base”, o perito criminal 59

recebeu

uma

ligação

do

delegado

adjunto

informando

“Livores” são manchas escuras, pretas, arroxeadas ou esverdeadas, na pele dos cadáveres.

sobre

101

outro local. Fizemos uma parada rápida “na base” e seguimos para o novo local; de lá, fomos para outros dois locais de mortes. Retornamos à Divisão de Homicídios, em definitivo, somente às 5:30h, com o dia já clareando. Nesta noite, todas as perícias de local foram feitas em lugares fechados, três residências e um bar. Eu, que até então havia observado apenas perícias em vias públicas, considerei um dia de campo bastante

produtivo

e,

apesar

do

cansaço,

voltei

para

minha

casa

satisfeita com o trabalho realizado.

Esta perícia pode ser classificada como um “caso especial” por vários motivos. Primeiro, eram duas vítimas, um casal de meia-idade, moradores de um bairro de classe média da Zona Norte do Rio de Janeiro, ambos aposentados e com uma família “normal”, não fosse o envolvimento de um dos filhos com o tráfico de drogas. É atípico também pelas mortes terem ocorrido dentro da residência das vítimas e, principalmente, pelo tempo de duração da perícia e, ainda, pelo fato de o GELC ter sido o primeiro a chegar ao local, que ainda não estava, portanto, “acautelado” pela Polícia Militar. O caso também é atípico pela presença de parentes das vítimas no local e por elas terem encontrado os corpos e, portanto, feito a comunicação à delegacia distrital da região que repassou a “notícia-crime” à DH. O que merece ser destacado neste caso atípico é a atuação do delegado adjunto ao lado dos peritos criminal e legista. A discordância inicial entre os dois peritos demonstra uma primeira tentativa de adaptação diante da quebra das receitas profissionais normalmente seguidas nos casos típicos. O perito legista praticamente obrigou o perito criminal a comprovar o que ele estava afirmando quanto à posição do atirador. Diante da comprovação da posição do atirador por parte do perito criminal (que foi verbalizado em um tom vitorioso), todos os operadores do GELC tiveram que se adaptar à nova versão “do que foi que aconteceu”. Como anunciado, Sudnow (1971[1967]) ao descrever o lugar da morte e do morrer dentro do ambiente organizacional de um hospital demonstra como a morte de pacientes que não estejam na condição de “moribundo” - como as ocorridas em salas de parto - mobiliza enfermeiros, médicos e funcionários a tomarem medidas especiais, já que empurra o staff para fora de suas atitudes regulares de indiferença e eficiência. Este momento da perícia descrita exemplifica uma situação semelhante às observadas por Sudnow. Este momento da perícia demarca também a quebra do comportamento-de-tal-tipo, aquele estruturado, reconhecível, repetitivo e padronizado (GARFINKEL, 1967).

102

Retomando a descrição, o autor seria alguém conhecido e, por isso, o papiloscopista deu início a um processo exaustivo de procura por fragmentos de digitais no quarto onde fora encontrado o corpo do homem. Diante da suspeita de que o autor seria o filho envolvido com o tráfico, e não os traficantes em busca do pagamento da dívida contraída pelo filho, tanto os investigadores quanto os peritos deram início à procura por algum indício que poderia levar à comprovação da suspeita. A apreensão dos celulares foi uma primeira ação neste sentido, bem como a conversa exaustiva por parte dos policiais do GI com a filha e o genro do casal, os parentes que encontraram os corpos. Os investigadores também se dedicaram a procurar a quantia de dez mil euros reservada para a viagem do casal a Cuba marcada para os dias subsequentes, segundo informado pela filha. O dinheiro não fora encontrado, o que aumentou a suspeita sobre o filho do casal. Outra observação que me foi falada posteriormente por um dos policiais presentes nesta perícia foi quanto ao uso da almofada sobre o rosto da mulher. A almofada teria duas razões: abafar o som da arma e impedir que o autor, conhecido da vítima, não a olhasse nos olhos para “não perder a coragem”. Essa observação, atrelada ao tiro pelas costas dado no homem, parece ter ganhado força ao longo da instrução criminal na polícia. Diante desta perícia, o inquérito foi instaurado, os parentes foram intimados a comparecer na DH para prestar depoimento, descobriu-se que o filho não estava sequestrado e, até onde pude conversar com esses policiais, o indivíduo incriminado não era mais o filho, mas o genro do casal, aquele que encontrara os corpos e que fizera a comunicação à delegacia distrital. Apesar de terem me passado essa informação, não me disseram o que havia motivado tal “mudança de rumo nas investigações”. Diante disso, procurei entrevistar os dois policiais do GI que estiveram “no local” e que estavam responsáveis por este inquérito policial, mas não obtive êxito em minhas tentativas. Por cinco vezes a entrevista foi agendada e desmarcada pelos mesmos. Caso no 19 Data: 14 de março de 2012 Horário de saída da DH: 11:03 Horário de chegada ao local: 11:42 Horário de saída do local: 12:30 Findo o que seria meu último dia de campo, ponderei sobre acompanhar os

trabalhos

de

um

perito

criminal

que

havia

sido

sempre

solícito e atento com a pesquisa. Então, decidi voltar

muito

à DH para

acompanhá-lo. O local a ser feito era em um Complexo de favelas onde

103

estava

havendo

“golpe

de

estado”,

ou

seja,

quando

um

grupo

de

traficantes de outra região decide ocupar um território. Era este o contexto

onde

extremamente

eu

iria

tensa,

acompanhá-los.

principalmente

pelo

A

chegada

fato

de

o

ao

local

comboio

foi

ter

se

perdido, ainda que por um breve tempo, nas imediações do Complexo. Os quebra-molas eram extremamente altos, o que obrigava os motoristas a dirigirem

muito

devagar.

Eu

me

senti

muito

vulnerável

neste

dia.

Chegamos ao local, havia duas equipes de jornais de televisão, os mais sensacionalistas, e muitos curiosos. O corpo estava dentro do portamalas de um carro estacionado dentro de um condomínio. Ao chegar ao local, o policial militar que acautelava o mesmo, informou ao delegado que havia outra vítima e que ela estava no hospital após ter sido torturada. Os populares diziam que haviam cortado o pé desta vítima sobrevivente. Próximo ao carro onde estava o corpo, um camburão da Polícia

Militar

Perguntei

se

com

eles

três

tinham

rapazes algum

franzinos

envolvimento

detidos com

naquela

aquele

caso

manhã. e

me

disseram que não. O perito criminal e o legista fizeram primeiramente o exame dentro do porta-malas e, depois, pediram aos bombeiros que o retirassem. Uma senhora surgiu na janela do prédio próximo ao local e disse que ouviu gemidos e gritos por volta das 7:00h daquele dia. O delegado se interessa e começa a fazer mais perguntas para ela. Ela vai se intimidando e o policial militar adverte: ‘doutor, pergunta muito não, senão amanhã vocês têm que voltar aqui pra fazer o local dela’. E, de fato, o delegado parou de perguntar. Conversando entre si, eles comentaram que ela devia ter ouvido os gritos do rapaz que fora torturado e que estava no hospital. Provavelmente também o sangue no chão era dele e não daquela vítima fatal. O corpo foi colocado ao meu lado, a menos de 1 metro de onde eu estava, e o exame começou. Este perito criminal usa cotonetes no lugar do swab para marcar as lesões nos corpos das vítimas. Ele e o legista examinaram o corpo demoradamente. Eles estavam muito próximos de mim e, como havia muitos policiais na ocasião, eles conversaram muito comigo. Admirei-me com o fato de não me sentir assustada com a proximidade daquele corpo bem como com a naturalidade com que eu conversava com os policiais e bebia água que eles me serviam. Comecei a perceber a chamada “saturação do campo de pesquisa” de uma outra maneira e decidi realmente que este seria meu “último local”. Como me disse um perito legista certa vez, “depois de um tempo você se acostuma. Eles deixam de ser pessoas e passam a ser coisas”. Em conversa na viatura, perguntei qual fora a classificação

daquela

ocorrência

e

o

perito

criminal

respondeu

‘encontro de cadáver’. Eu perguntei por que ele classificara daquela

104

maneira e ele respondeu que havia pouco sangue no local, não havia projéteis e cartuchos e que a vítima estava muito suja de lama, de terra, o que não era característico daquele local. O perito legista acrescentou que havia lesões “post mortem”, isto é, lesões provocadas depois que a pessoa morreu. Isso é ‘característica de arrastamento do corpo’.

Ele

me

explicou

que

essas

lesões

ficam

brancas,

como

uma

espécie de couro arranhado. Perguntei sobre o sangue no chão e ambos concordaram que não era da vítima, mas provavelmente da que estava no hospital e que havia sido torturada, segundo informado.

Após o fim desta “perícia de local”, percebi que os policiais do GI não retornaram junto com o comboio de viaturas para a DH. Disseram-me que eles haviam ido para o hospital a fim de, se possível, ouvir a vítima sobrevivente. Como se tratava de “golpe de estado”, isto é, traficante matando traficante, era muito provável que a vítima saberia informar quem teria “feito o serviço”. Este foi o elemento que diferenciou este caso dos demais que eu havia acompanhado, já que foi o único em que houve uma testemunha “de fato” (MINGARDI, 2005). Por isso, a construção da incriminação se mostrava mais palpável que nos demais casos. Dias depois, pude entrevistar um dos delegados assistentes da DH e ele me fez uma caracterização importante sobre os homicídios relacionados ao tráfico de drogas, estabelecendo um contraponto com os homicídios relacionados às milícias. Na opinião dele, os traficantes deixam testemunhas oculares, enquanto os milicianos “matam todo mundo”. Esta percepção auxilia a compreender o caso ora descrito e permite pensar que os inquéritos de homicídios relacionados a tráfico de drogas podem ter a instrução criminal na fase policial feita de modo mais rápido, bem como uma maior chance de a mesma ser concluída. “Às vezes, eles [os traficantes] deixam exatamente [a testemunha viva] para ser um caráter de punição. Às vezes eles não matam porque sabem que aquela esposa, aquele filho, não tem nada a ver com o problema dele com a vítima. Diferente já da postura do miliciano. O miliciano já vai matar todo mundo. Porque ele não quer deixar provas. Ele é policial, ele sabe como funciona. O traficante não. Tem certa regra, um tribunal do tráfico. Então é diferenciado, a execução é diferenciada, as atitudes são diferenciadas. Se ele quiser matar o A e o A está do lado do B, ele vai matar o A e o B. Se o traficante quer matar o A. Vamos supor que o A esteja devendo uma carga que perdeu ou comprou droga e está devendo. Ele vai matar o A. Vai matar o B se ele quiser, geralmente ele deixa o B vivo. Até para contar história. Às vezes até mesmo para servir de exemplo para o outro”. [Delegado Assistente]

Até este momento, busquei descrever principalmente como a criminação de uma morte violenta como homicídio doloso e, em paralelo, o início da incriminação são construídas

105

social e institucionalmente, com base em trabalho de campo realizado junto aos profissionais da perícia que trabalham no GELC da Divisão de Homicídios. Foi possível compreender como o trabalho de perícia é realizado de acordo com um modelo diferenciado quando comparado ao modelo mais tradicional, ou convencional, existente no Brasil (VARGAS; NASCIMENTO, 2011; RODRIGUES, 2011). A figura abaixo ilustra uma “perícia de local do crime”, segundo este modelo. Nela, podemos perceber o perito criminal, próximo ao corpo, e o conjunto de policiais dialogando com o delegado adjunto. Figura 6 - Perícia de local do crime realizada segundo o modelo da Divisão de Homicídios, Rio de Janeiro, 2012*.

investigador

delegado

papiloscopista

corpo

perito

*Foto (posteriormente tratada) retirada no campo de pesquisa, no primeiro “local” observado.

As “perícias de local de crime” podem ser compreendidas como o primeiro momento em que o Estado responde a uma notícia sobre uma morte violenta. A classificação desta morte violenta como um evento criminável e, posteriormente, como um homicídio doloso, é o primeiro estágio da construção social e institucional deste tipo de crime. Sendo uma morte violenta categorizada como um evento supostamente criminoso, resta definir em qual categoria este se encaixaria. Neste sentido, há dois tipos profissionais que podem ser vistos como os responsáveis por essa tipificação: os peritos e os delegados. Interessante observar que eventos classificados pelos peritos criminais como “encontro de cadáver” tornam-se, posteriormente, “homicídio doloso”. Como isso ocorre? Não observei as receitas práticas adotadas pelos delegados ao construírem um inquérito policial. Mas, pude conversar com alguns dos delegados assistentes da Divisão de Homicídios sobre suas práticas bem como ter acesso aos registros dessa organização.

106

Decorrido um ano do término deste campo etnográfico, retomei os contatos com a Divisão de Homicídios no intuito de procurar a informação sobre os procedimentos policiais referentes a estes dezenove “locais” de morte violenta. Fui informada de que todas essas mortes haviam se tornado inquérito policial de homicídio doloso, exceto dois casos: o classificado como suicídio, descrito anteriormente (Caso no 1) cujo registro de ocorrência havia sido “suspenso” já que “suicídios” não são de competência da DH, e o de um “autor” que fora preso em flagrante60 e que, por isso, o registro de ocorrência havia sido remetido diretamente ao juiz de uma das varas criminais do rito do tribunal do júri. Dentre os dezessete inquéritos restantes, dois haviam sido “relatados à justiça”, isto é, a instrução criminal desta etapa havia sido concluída, com materialidade comprovada e autoria identificada implicando a relatoria do inquérito ao Ministério Público. Ambos haviam sido classificados pelos peritos criminais como “encontro de cadáver”. Um desses casos foi o descrito anteriormente (Caso no 19), em que uma das vítimas sobrevivera e fora socorrida ao hospital, parecendo demonstrar a importância da presença de testemunhas “de fato”. No outro61, houve a presença de policiais militares à paisana62 no “local”, que estariam investigando a relação da vítima com o tráfico de drogas da região, segundo me disseram. Os demais quinze inquéritos, incluindo os outros três casos descritos anteriormente (Casos no 7, no 8 e no 15), estavam no chamado “pingue-pongue” (MISSE, 2010) entre a Divisão de Homicídios e o Ministério Público, decorrido um ano do evento registrado como homicídio doloso. Diante dessas informações, quais são os elementos que podem determinar a conclusão da instrução criminal na fase policial? Segundo os policiais com quem conversei, um inquérito pode ser relatado quando há indícios de materialidade do evento criminado e indícios de autoria para este mesmo evento. Nas palavras de um delegado assistente da Divisão de Homicídios:

60

Ver descrição do caso no 16 no Anexo 1. Ver descrição do caso no 6 no Anexo 1. 62 Segundo o que os próprios peritos me disseram, quando eu perguntei sobre “quem eram aqueles caras armados que chegaram na Blazer branca”, estes eram policiais que trabalhavam “descaracterizados”, “disfarçados de civis” para obter informações sobre a criminalidade em determinadas regiões, principalmente o tráfico de drogas. Naquele momento, associei a presença daqueles policiais com a chamada “milícia”, mas não tive meios de verificar a correspondência entre minha imaginação e a “realidade” presente no inquérito. 61

107

“Porque às vezes a gente pega um caso com aquela linha de investigação certinha, tem testemunha, tem isto, tem aquilo. Têm casos que a gente não tem praticamente testemunha, a prova pericial vai ser praticamente nula. Então vai depender muito. Eu relato isto que eu estou te falando”. [Delegado Assistente]

No intuito de identificar possíveis elementos que podem determinar a conclusão de um inquérito policial, bem como sua relatoria ao Ministério Público, aproveitei a oportunidade para realizar duas consultas à base de dados da DH, em datas diferentes. Em 20 de março de 2012, busquei o número de inquéritos cujas mortes foram registradas ao longo do mês de fevereiro do mesmo ano e contabilizei dez inquéritos que haviam sido relatados ao Ministério Público. Em 17 de abril de 2012, procedi da mesma maneira, mas considerando o mês de março do mesmo ano como data de referência para o registro das mortes. Pude contar seis inquéritos relatados. Em conversa posterior com alguns dos delegados assistentes responsáveis por alguns desses inquéritos, pude verificar que a presença de testemunhas, principalmente as que presenciaram o evento, pode ser um determinante para a indicação de um suposto sujeito-autor e, portanto, para a conclusão e relatoria de um inquérito policial. Nas palavras de delegados entrevistados: “Por exemplo, este [inquérito] aqui tinha testemunha ocular. O marido dela foi retirado de dentro de casa - ela viu, e levado para um determinado local dentro da comunidade. Tentaram matar, não conseguiram. Foi socorrido e tudo mais. Passou um tempo, eles se mudaram. Eles foram atrás da casa dele e ela presenciou a hora que eles executaram. Ela é uma testemunha ocular, então ela reconheceu, certo? É difícil a gente ter um caso assim? É. Geralmente eles querem matar todo mundo, não ter testemunha”. [Delegado Assistente] “Existem vários meios de prova. Tem a prova oral, que é a testemunha, tem a prova pericial, que são os peritos que realizam. Tem os indícios, que são meios de provas. A confissão é meio de prova. São vários meios de prova que a gente tem. Então, em alguns casos, a gente vai ter a confissão e a testemunha, beleza. Confissão, testemunha e prova pericial. Têm outros que a gente vai ter só a confissão, outros só a testemunha, outros só a perícia. A gente vai solucionar cada caso de um jeito. E tem alguns casos que vão ter só os indícios, que são meios de prova. Então eu te ameacei na frente de todo mundo. Presenciaram a ameaça. Falo que você não vai passar do natal. Você desaparece e é encontrada antes do natal morta, picada dentro do saco plástico que tentaram colocar fogo. Aí eu te pergunto, alguém viu? O cara some depois disto, eles moravam juntos. Aconteceu isso tudo que te falei e o cara desaparece. Isso são os indícios. Virou carvão, está carbonizado, não vai sobrar quase nada para a perícia. O que tinha não teve como conseguir nada de perícia” [Delegado Assistente]

108

Vargas e Nascimento (2010) descrevem que um relatório de inquérito policial tem como objetivo: “constituir-se em uma espécie de resumo informativo de todos os volumes do inquérito, servindo para orientar o promotor no oferecimento da denúncia ou no pedido de arquivamento. No relatório final, o delegado recapitula, de maneira sintética, a ocorrência que gerou a investigação e faz uma narrativa, também bastante sucinta, dos principais passos adotados durante a investigação. Ao final do documento, a autoridade policial representa junto ao Ministério Público pelo indiciamento do suspeito, ou pelo arquivamento do inquérito. No caso do indiciamento, o delegado também pode representar pela prisão do indiciado, representação que poderá ser avalizada ou não pelo MP, e decretada ou não por um juiz. Na narrativa que faz dos fatos ocorridos e dos procedimentos adotados, durante a investigação, evidencia-se o caráter cartorial e inquisitorial do inquérito policial” (VARGAS; NASCIMENTO, 2010, p.122).

Vargas e Nascimento (2010) mostram como as prisões em flagrante e as confissões dos acusados, bem como depoimentos de testemunhas, são determinantes para a identificação da autoria do homicídio doloso e, portanto, para a relatoria de um inquérito policial. Os laudos periciais são necessários para corroborar a materialidade do evento, ou seja, a morte como homicídio doloso e não outro tipo de morte. Neste sentido, o inquérito policial, uma vez concluído por conter “materialidade comprovada e indícios de autoria”, é “relatado” ao Ministério Público. Com base nele, o promotor de justiça redige a denúncia, abrindo-se a primeira fase da instrução no rito do tribunal do júri. Mas o inquérito policial pode ser enviado ao Ministério Público, por várias vezes ao longo de anos, sem ser relatado. Isso ocorre quando o prazo estipulado no Código de Processo Penal para a conclusão do inquérito não foi suficiente para que as investigações demandassem a indicação de autoria. São os chamados “pedidos de dilação de prazo” para a continuidade das investigações, também conhecido como “pingue-pongue” entre delegacia e Ministério Público (MISSE et al, 2010). Esta é uma das razões apontadas pelos promotores de justiça para o arquivamento do inquérito policial, suspendendo por tempo indeterminado as investigações a ele relacionadas. Segundo Misse (2010), de todos os homicídios dolosos consumados e tentados registrados pela polícia na cidade do Rio de Janeiro, em 2005, 92,5% chegaram ao conhecimento do Ministério Público, mas somente 3,6% transformaram-se em denúncias, até 2009. Somando com os inquéritos referentes a flagrantes, essa taxa passa a ser de 11% podendo chegar a 15%. Entende-se que a polícia interpreta o que foi que aconteceu, segundo uma lógica reconstruída que relaciona eventos e indivíduos às categorias contidas no código penal, estas abstratas (CICOUREL, 1968). Neste sentido, o delegado, ao construir o inquérito policial,

109

transforma um conhecimento típico adquirido na socialização profissional em uma tipificação penal, mencionando-a em seu relatório final. Esse conhecimento típico se baseia na observação sobre como certos crimes são regularmente cometidos, os tipos de vítimas frequentemente envolvidas e as características dos cenários, dos contextos em que esses mesmos eventos ocorrem. As categorias legais são, assim, elementos que servem para esses operadores organizarem suas atividades cotidianas (SUDNOW, 1965), mas apenas isso. Com a observação das receitas práticas seguidas pelos peritos, pude decodificar algumas dessas tipificações. Por essa razão, entendo que receitas semelhantes orientam as atividades cotidianas dos delegados, embora não as tenha observado. Paixão (1982) foi um dos pioneiros a realizar etnografia na polícia de uma área metropolitana. Entrevistando policial de Belo Horizonte e vivenciando o dia-a-dia de delegacias distritais dessa região, ele pode demonstrar que formalismos legais, as regras de decisão, são abandonados ou invertidos de modo a favorecer um conjunto de tipificações utilizadas para orientar a ação e interpretar situações. Essas tipificações profissionais consistem em ideologias e estereótipos formulados organizacionalmente, tornando mais econômica a ação policial, principalmente quando se considera que essa ação é voltada para a vigilância e controle das “classes perigosas” (PAIXÃO, 1990, 1995). Quando uma ocorrência é comunicada, diz Paixão (1982), a investigação busca a identificação da autoria na “clientela marginal” da organização. Para isso, são usadas tipificações que articulam as modalidades de ação criminosas com comportamentos típicos de atores. A esse modo de agir da polícia, ele deu o nome de “lógica em uso”, baseada tanto na experiência subjetiva do policial como no treinamento prático. Nas palavras do autor, que se vale de entrevistas com policiais: “(...) ‘quando o inquérito é instaurado, ele já está quase pronto. A gente já sabe quem é o criminoso’. Não se trata, de forma alguma, de incompetência na implementação de determinações legais (escrivães consideram o conhecimento do ‘ritual do inquérito’ um elemento fundamental de seu sentido de ‘honra’ profissional) ou do uso de elementos informais para a realização de produtos formalizados. A atividade prática do inquérito policial é orientada, por um lado, por avaliações organizacionais de adequação dos instrumentos legais disponíveis para a apuração de ‘broncas’ e, por outro, pela aplicação a casos concretos de teorias e estoques de conhecimento policiais sobre a natureza do fenômeno criminoso e seus atores” (PAIXÃO, 1982).

Ainda segundo este autor, o policial apresenta um estoque de conhecimento que inclui tanto tipificações - entendidas como teorias de senso comum que categorizam e avaliam

110

objetos, indivíduos ou objetos (apud CICOUREL, 1968) - sobre o “vagabundo” em distinção ao “trabalhador” como maneiras de realizar um interrogatório: “(...) ‘O homicida tem lá suas razões. Muitas vezes a gente conclui o inquérito dizendo - matou por motivos fúteis. Fúteis para a gente, para ele não eram, tanto que ele ‘matou’. O interrogatório do homicida é um esforço para estabelecer ‘conexões de sentido’ entre motivo subjetivo e ação - implica uso de empatia e, assim, ‘se você fala mais alto com um homicida, ele não abre a boca’. Em oposição, o ‘chorro’ ‘se não leva uns tapas, não fala’.” (PAIXÃO, 1982).

Pesquisas mais recentes mostram como as observações feitas por este autor há trinta anos se mostram atuais. Elas destacam o caráter sigiloso dos procedimentos envolvidos na construção do inquérito policial (LIMA, 2008; MISSE et al, 2010; VARGAS, 2012), momento em que se persegue a comprovação da materialidade do fato, no caso, da morte violenta como homicídio doloso e, em paralelo, a identificação de um suposto sujeito-autor que deverá ser responsabilizado por este mesmo evento criminável, dando início ao processo de incriminação. Vargas e Rodrigues (2011) argumentam que o inquérito policial encarna o Estado que pretende o controle do criminoso. Por ser obrigatório, permite o estabelecimento de algum grau de articulação das atividades realizadas entre a organização policial e as demais instituições que compõem o sistema de justiça criminal, frouxamente ajustado (COELHO, 1986). As informações trazidas pela etnografia realizada na Divisão de Homicídios permitem dizer que os inquéritos policiais relatados “com mais rapidez, dentro do prazo de trinta dias”, são aqueles em que os indícios de autoria são obtidos por meio dos depoimentos de testemunhas de fato. Isso indica que as chamadas “provas objetivas”, as produzidas pela perícia, indicam a materialidade do evento registrado a ser criminado, mas não a autoria do mesmo63, exceto nos “locais” que considerei como “casos especiais” no sentido atribuído por Sudnow (1971[1967]). A observação das receitas práticas do staff da Divisão de Homicídios permite ampliar a análise quanto à função dos relatos produzidos pelos peritos na construção social e institucional do homicídio. Com base nesse trabalho de campo, posso dizer que os relatos produzidos pelos peritos criminais, peritos legistas e papiloscopistas são interpretados pelos delegados quando estes redigem os seus próprios relatos, a conclusão do inquérito policial. 63

Em O Crime do Restaurante Chinês, Bóris Fausto narra os procedimentos utilizados pela Polícia Civil do estado de São Paulo, em 1936, para se chegar à autoria de uma chacina. Analisando o inquérito policial, conjugando com o contexto da época, o historiador mostra como o farto uso de laudos da medicina forense - à época muito influenciada pela criminologia positivista como a de Lombroso - permitiu construir uma história verossímil para a incriminação (errônea) de um suspeito (FAUSTO, 2009).

111

Nas ocasiões de rotina, os relatos produzidos pelos peritos não são utilizados para sustentar a incriminação dos acusados pela autoria dessas mortes criminadas como homicídios. Ao identificar os padrões referentes a como esses cadáveres são encontrados (tais como: ausência de testemunhas sobre o evento, sem identificação civil dos corpos das vítimas, com sujeição criminal, sem indícios periciais claros ou evidentes, sem preservação do “local do crime”, corpos não encontrados no “local do crime” e localizados em vias públicas), posso dizer que os relatos dos peritos cumprem uma função cerimonial (HAGAN et al, 1979; COELHO, 1980a; VARGAS; RODRIGUES, 2011) dentro da construção do inquérito policial. Dados os padrões por mim observados, posso afirmar que até um leigo em perícia (como eu) seria capaz de tipificar essas mortes como homicídios. Reside aqui o aspecto cerimonial que atribuo aos laudos periciais na construção social e institucional do homicídio. Os relatos produzidos pelos peritos servem como justificações que embasam as decisões dos delegados quanto a relatar um inquérito de homicídio e não um inquérito de outro tipo de morte. O grande volume de homicídios, as dificuldades produzidas pelos

padrões

dessas

mortes

certamente

influenciam

a

baixa

capacidade

de

resolução/elucidação da polícia carioca. Isso pode explicar, em parte, a frequência alta de práticas cerimoniais, principalmente nos casos “típicos” e “rotineiros”, na atuação da perícia.

112

PARTE II Incriminação e Sujeição Criminal

113

Capítulo 4 - O Rito do Tribunal do Júri em Belo Horizonte Nos dois capítulos anteriores, mostrei como é construída a criminação de uma morte violenta como homicídio doloso. Localizando-me na Polícia Civil, pude observar alguns dos principais aspectos apontados por outros estudos sobre a fase de instrução criminal nessa instituição. Pude perceber que essa fase tem início com a perícia de local da morte registrada, mas cujos laudos parecem não influenciar na identificação da autoria do crime, prevalecendo, para isso, o depoimento de testemunhas. Com isso, introduzi a discussão sobre como a incriminação começa a ser construída em paralelo à criminação por meio do inquérito policial. Uma vez concluído, o inquérito policial é enviado ao Ministério Público para que o promotor de justiça ou ofereça a denúncia, tornando pública a acusação ao suposto sujeito-autor, ou devolva o inquérito para o delegado, por considerar o relatório insatisfatório, pedindo novas diligências; ou, em oposição, peça pelo arquivamento do inquérito. Neste sentido, como ilustração, transcrevo um relatório de delegado da Delegacia de Crimes Conta a Vida de Belo Horizonte sugerindo o arquivamento de um inquérito policial. Vale observar que, de acordo com as regras de procedimento contidas no Código de Processo Penal (Brasil, 2013), o delegado de polícia não tem autorização para arquivar um inquérito64: “MM.ª Juíza, O presente inquérito policial foi instaurado em 28 de abril de 2000 para investigar crime de homicídio ocorrido em data e local epigrafados, figurando como vítima [Nome]. Às fls.17-19 juntou-se laudo de necrópsia comprovando que a vítima faleceu por hemorragia interna decorrente do alvejamento por quatro disparos de arma de fogo, três dos quais com efeito transfixante, distribuídos todos em conformidade com os esquemas de fls. 20-21. Foi arrecadado no interior do corpo de delito um projetil que, submetido a exame balístico, restou caracterizado como calibre .380”, segundo consta do laudo de fls. 16. Exame toxicológico, também realizado no corpo da vítima, retornou resultado negativo, ao passo que a medição de teor alcoólico acusou presença de 24,92 dg/l. Foram inquiridas nos autos os filhos da vítima [Nome] (fls. 22-22v.) e [Nome] (fls. 27-27v.), bem como os vizinhos [Nome] (fls. 23-23v.) e [Nome] (fls. 31-31v.). As testemunhas relataram que a vítima era alcoólatra e apresentava comportamento tumultuário quando embriagada. Embora não tenham presenciado o crime afirmaram também ter ouvido dizer que o autor era [Nome], marginal conhecido na região, motivado pelo fato de [Nome da Vítima], alcoolizado, ter lhe dirigido insultos e provocações.

64

“A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos do inquérito” (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 17).

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Aos citados testemunhos indiretos veio juntar-se o depoimento de uma testemunha ocular do delito, qual seja, [Nome] (fls. 79-80), que com efeito confirmou a precitada linha investigativa no que diz respeito quer à autoria, quer à motivação do crime. [Nome da testemunha ocular] contou, a propósito, que por volta das 18:00 hs. estava em sua casa quando ouviu os tiros e foi à rua ver o que se passava, avistando então [Nome do autor] disparando contra [Nome da vítima] e evadindo em seguida. O autor [Nome], todavia, faleceu em 6 de março de 2003, conforme prova a certidão de fls. 81. Também veio a óbito a pessoa de [Nome de outra testemunha], vulgo “Xuda”, apontado por [Nome da testemunha ocular] como outra testemunha presencial do crime (fls. 82). Em face do exposto, encaminho os autos a V. Ex.ª, com vistas ao Ministério Público, sugerindo, s.m.j., o arquivamento do feito, com fulcro no art. 107, inciso I, do Código Penal, c/c art. 62 do Código de Processo Penal. É o relatório.” [relatório de inquérito policial, Belo Horizonte, Junho/2007].

A pesquisa realizada em Belo Horizonte no ano de 2008 - da qual participei ativamente65 - contabilizou 197 “pedidos de arquivamento” feitos pelos promotores de justiça das duas varas criminais do rito do tribunal do júri nessa comarca, entre 2000 e 2008 (VARGAS e NASCIMENTO, 2010). Os resultados mostraram que 48% das razões descritas pelos promotores nesses pedidos referiam-se à ausência de testemunhas e/ou indícios insuficientes para indicar a autoria do homicídio. Dentre as outras razões, destacam-se os suicídios, os acidentes e as mortes naturais ou por causas indeterminadas. Recorrendo a esse mesmo conjunto de dados, contei 71 pedidos de arquivamento redigidos entre 2000 e 2008 que se relacionavam a eventos criminados como homicídio doloso entre 1996 e 2008. Nesses pedidos, 90% das vítimas haviam sido identificadas, ao passo que em pouco mais da metade dos inquéritos policiais remetidos ao Ministério Público havia autor identificado (53,5%). O cálculo do tempo decorrido entre a data do evento registrado e o pedido de arquivamento para esse conjunto de dados permite dizer que os arquivamentos são redigidos cerca de 4 anos após o registro do evento. A principal razão dada pelos promotores para o pedido de arquivamento se referia à ausência de testemunhas e/ou a indícios de autoria insuficientes (57,7%); morte do indiciado (26,8%), legítima defesa (11,3%) dentre outras razões como acidentes e inimputabilidade penal do autor, isto é, quando o autor possui menos de 18 anos na data de registro do evento ou quando fica comprovado que o autor apresenta distúrbios mentais (4,2%). O trecho abaixo ilustra um tipo desses relatos: “Trata-se de Inquérito Policial instaurado com o objetivo de elucidar o crime de homicídio praticado em desfavor da vítima [NOME], devidamente qualificado nos 65

O Inquérito Policial no Brasil: Uma pesquisa empírica (MISSE, 2010).

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autos, ocorrido à data de 11 de junho de 1998, por volta das 23h15min., na Avenida [nome, no.], Bairro [nome], nesta Capital e Comarca. A Autoridade Policial encetou diligências, juntou depoimentos de testemunhas às ff. 18/21, 48/52, acostou o relatório de necropsia n° 10.538/98 às ff. 12/14, bem como o relatório perinecroscópico às ff. 25/38, e ofertou relatório final, acostado às ff. 152/153v, não logrando, todavia, êxito em identificar, localizar e qualificar o autor do delito. Durante diligências, foi suscitado o possível envolvimento do irmão da vítima, [NOME DO IRMÃO DA VÍTIMA], contudo, a menção ao seu nome não foi secundada por informações, mesmo que precárias, quanto às suas atuações efetivadas no evento. Nesta esteira, foi confeccionado o relatório policial, reconhecendo não terem sido exitosas as diligências para elucidação do exício. A materialidade delitiva, contudo, restou comprovada através do relatório de necropsia às ff. 12/14 e pelo laudo pericial às ff. 25/38. Destarte, no que tange a (s) autoria (s) delitiva (s), frustradas as diligências visando acertamento. Com o desenvolver dos trabalhos de apuração do delito não foram frutíferas as providências objetivando consubstanciar provas e elementos indiciários suficientes a solidificar evidência formal e material quanto ao (s) autor (es) do ilícito. Insta salientar, ademais, que as investigações se arrastam, sem sucesso, desde o ano de 1998. Dessa forma, ausentes elementos indicativos de autoria, requer o Ministério Público o arquivamento do presente Inquérito Policial, aderindo ao pronunciamento da Autoridade Policial às ff. 152/153v, sem prejuízo da reativação do caderno, diante do surgimento de possíveis novas provas que possam nortear o prosseguimento da investigação frustrada.” [pedido de arquivamento, Belo Horizonte, Junho/2008].

No pedido de arquivamento dado como exemplo, percebe-se que a vítima fora identificada, havia a comprovação da morte violenta como homicídio doloso pelo laudo de necropsia, e até a indicação do irmão da vítima como possível autor do evento criminado. Mas esta não foi seguida de indícios indicativos de que este era o possível autor do crime. Por isso, o promotor decide, dez anos depois do registro do evento, pelo arquivamento do inquérito policial “aderindo ao pronunciamento da Autoridade Policial”, isto é, decidindo em concordância com a sugestão do delegado de polícia. Como restará mais claro no próximo capítulo, esses relatos construídos por delegados e promotores de justiça podem ser analisados sob o ponto de vista institucional, como accounts (GARFINKEL, 1967) fornecidos pelo staff a prestar contas do que foi realizado nessas organizações com vistas a dotar de sentido suas decisões (SUDNOW, 1965, 1971[1967]). Assim agindo, esses profissionais repassam à sociedade uma ideia de racionalidade, de que as regras previstas nos códigos foram seguidas, ainda que estas sejam de caráter cerimonial, reforçando o “mito da estrutura” (HAGAN et al, 1979; COELHO, 1980a).

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A exposição sobre os pedidos de arquivamento do inquérito policial é útil para apontar os elementos que determinam o oferecimento da denúncia, já que as razões dadas pelos promotores de justiça para o arquivamento do inquérito se referem à ausência dos elementos que eles consideram necessários para o oferecimento da denúncia, principalmente a ausência de indícios de autoria do evento criminado como homicídio doloso66. Neste sentido, pretendo, a partir de agora, compreender como a incriminação é construída, desde o oferecimento da denúncia pelo promotor de justiça até a sentença final proferida pelo juiz no rito do tribunal do júri. Desta maneira, procuro identificar possíveis determinantes que levam à condenação de incriminados por homicídio doloso. Na pesquisa de que participei citada anteriormente, e que foi realizada em Belo Horizonte no ano de 2008, trabalhamos, dentre outras metodologias, com a análise de processos de homicídio doloso com sentença transitado em julgado e cujos eventos haviam sido registrados entre 1985 e 2003. Os resultados indicaram uma média de 2,5 perícias por processo, sendo os principais tipos as perícias de local do crime (23%) e a identificação de armas, munições e calibres (22%). A mesma pesquisa apontou que 65,3% das testemunhas ouvidas nesses processos foram consideradas “de fato” e o restante, “de caráter” (34,7%). Entende-se por “testemunhas de fato” aquelas que presenciaram o evento e as “testemunhas de caráter” são aquelas que, por terem relações sociais com os envolvidos, podem fazer considerações sobre o caráter, a moral, desses indivíduos, vítimas ou acusados (MINGARDI, 2005). Além disso, 80% dos inquéritos de homicídio doloso continham a confissão do suspeito, indicando que a instrução criminal na fase policial é extremamente dependente do depoimento de testemunhas e da confissão dos suspeitos (VARGAS; NASCIMENTO, 2010; VARGAS, 2012). Uma das características do sistema de justiça criminal brasileiro é o fato de a testemunha ser obrigada a dizer a verdade - do contrário pode ser processada por falso testemunho - ao passo que o acusado possui o direito de se manter em silêncio, ou mesmo de mentir, ao longo do interrogatório, já que nenhum indivíduo é obrigado a “produzir provas contra si mesmo”. Deste ponto decorrem duas observações, com base na análise do material aqui trabalhado. A primeira é que os depoimentos das testemunhas ganham credibilidade, mesmo quando estas são apenas “de caráter”, isto é, mesmo quando os seus depoimentos são baseados em seus juízos de valor sobre o acusado. O trecho abaixo ilustra essa análise: 66

Segundo Wright Mills, “frequentemente temos a melhor percepção considerando os extremos – pensando o oposto daquilo que nos preocupa diretamente” (MILLS, 1975[1959], p. 230).

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“Em data de 14.05.03, o desfavorecido acompanhado de causídico [isto é, advogado] compareceu a esta Especializada e obviamente orientado por terceiros negou ter ceifado a vida do sujeito passivo, objeto da perscrutação dos presentes autos, apesar de testemunha afirmar de forma cristalina ser ele o autor do sinistro, conforme se depreende do depoimento lançado às fls.14/15V [depoimento da testemunha “de caráter”], assim agindo com o objetivo único de tumultuar o andamento das investigações.” [relatório de inquérito policial, Belo Horizonte, 2003].

Nesse excerto, percebe-se o teor de “verdade” atribuído pelo acusador ao depoimento desta testemunha de acusação, que é a única testemunha, apesar de não ter presenciado o evento. Na produção de seu relato, o acusador torna “cristalino” o testemunho, e, em contrapartida, dota o depoimento do acusado do teor de mentira, pois ele teria o “objetivo único de tumultuar o andamento das investigações”, ao negar que tenha sido ele o autor do evento. A segunda observação, que acompanha a primeira, é que essa característica do sistema de justiça criminal brasileiro, qual seja, a do suspeito poder mentir, dá margens para a desconfiança em torno do depoimento do acusado quando este nega a autoria, tal como observado pela leitura do trecho acima. Em contraposição, quando os acusados confessam a autoria do evento criminado, ao seu relato é atribuído teor de verdade incontestável. Tratarei mais especificamente desse tema, a confissão, no próximo capítulo. Por ora, é suficiente apresentar um trecho de relatório de inquérito policial com indiciamento de autor, baseado na confissão do acusado e nas “provas” de materialidade obtidas pela perícia: “Extrai-se do que se expôs que sobejam nos autos indícios convergentes de autoria; indícios, por sinal, corroborados pela confissão do próprio indiciado, em que pese sua negativa do animus necandi [isto é, a intenção de matar]. Nesse sentido, porém, a análise do laudo necroscópico, mais do que comprovar a materialidade do delito, ministra subsídios técnicos bastantes para elidir completamente a hipótese de as agressões pérfuro-cortantes produzidas pelo autor na vítima haverem sido animadas por elemento subjetivo culposo, desmentindo, portanto, a tese forjada na autodefesa. Isso porque o aludido exame pericial registra a existência no corpus delicti de três feridas, além de outras duas produzidas pelas intervenções cirúrgicas que a vítima atravessou por ocasião de seu socorro no Hospital Júlia Kubitschek, onde sofreu uma laparotomia e uma toracotomia. As lesões pré-cirúrgicas, em número de três, localizaram-se no terço superior do braço esquerdo, na região epigástrica e na face lateral do hemitórax esquerdo, lesões estas que redundaram na morte da vítima por hemorragia interna. A multiplicidade de lesões, portanto, sinaliza o dolo direto do agente no sentido de atentar contra a vida do ofendido. Individualizada, pois, a autoria do crime, e provada a respectiva materialidade, indicio [Nome], vulgo “Camelô”, qualificado alhures, dando-o como incurso nas sanções do art. 121 do Código Penal Brasileiro. Considerando, s.m.j., encerrados os trabalhos de polícia judiciária, encaminho os autos à V. Ex.ª, com vistas ao Ministério Público. Eis o relatório.” [relatório de inquérito policial, Belo Horizonte, setembro/2006, grifos meus].

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Entende-se que o inquérito policial é uma das formas de construção de verdades jurídicas do sistema de justiça criminal brasileiro que permite caracterizá-lo como de tradição inquisitorial, já que, dentre outras coisas, os procedimentos relacionados à sua construção são operados de modo sigiloso e confidencial. A partir do momento em que os relatos de acusação se tornam públicos por meio da denúncia, boa parte dos procedimentos realizados na fase de construção do inquérito policial são refeitos na primeira fase do rito do tribunal do júri, principalmente a tomada de depoimentos das testemunhas e do interrogatório do acusado. O caráter público do processo de incriminação no rito do tribunal do júri e, principalmente o julgamento pelo conselho de sentença, constituem peculiaridades que dotam o sistema de justiça criminal brasileiro do caráter adversarial. Por esta razão, alguns autores o classificam como misto, já que o sistema conteria, dessa maneira, aspectos tanto da cultura jurídica da tradição de civil law quanto da cultura jurídica de tradição de common law (GRINOVER, 1998; LIMA et al, 2000; LIMA, 2008). O fluxograma a seguir ilustra os principais momentos do processo de incriminação no rito do tribunal do júri, que é dividido em duas fases. Em complemento, estão ilustradas também as etapas relacionadas à Polícia e ao Sistema Penitenciário em caixas pontilhadas.

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Figura 7 - Fluxograma dos principais procedimentos do processo de incriminação no rito do tribunal do júri. Inquérito policial relatado ao Ministério Público [Fase policial]

Recebimento do inquérito pelo Ministério Público [Primeira fase]

Oferecimento da denúncia [Primeira fase]

Recebimento da denúncia pelo juiz [Primeira fase]

Citação do réu [Primeira fase]

Apresentação da defesa prévia [Primeira fase]

Realização das audiências para "oitiva das testemunhas e interrogatório do réu" [Primeira fase]

Apresentação das "alegações finais" de acusação e de defesa [Primeira fase]

Sentença de pronúncia [Fim da primeira fase e início da segunda fase]

Intimação da sentença de pronúncia [Segunda fase]

Preparação do processo para julgamento em plenário, "sessão de julgamento ou sessão do júri" [Segunda fase]

Realização da sessão de julgamento pelo Conselho de Sentença, "Júri" [Segunda fase]

Sentença final, com fixação da pena pelo juiz [Segunda fase]

Execução da pena [Sistema Penitenciário]

Fonte: Brasil, Código de Processo Penal (2013); Ribeiro et al (2010).

Esse fluxograma permite visualizar melhor as duas fases do processo de incriminação no rito do tribunal do júri, as quais podem ser descritas sucintamente67 da seguinte maneira: Primeira fase: tem início com o oferecimento da denúncia pelo promotor de justiça do Ministério Público, onde ele qualifica o réu, descreve o evento criminado como homicídio doloso com base nos documentos apresentados no inquérito policial e, principalmente, indica a tipificação penal pela qual o autor do evento criminado deve responder. O acusado, o “indiciado” na fase policial, passa a ser, então, nomeado como réu. A denúncia é enviada ao juiz que, aceitando-a, “cita o réu”, isto é, informa ao autor que ele está sendo processado judicialmente pela tipificação elencada pelo promotor de justiça. É quando a acusação ganha formalmente o caráter público. Citado, o autor deve apresentar sua “defesa prévia” por escrito. Após a apresentação 67

Importante ressaltar que entre um momento e outro de cada fase, há outros procedimentos envolvidos. Entretanto, para os objetivos desta tese, desenho o fluxo do rito do tribunal do júri para os casos que chegam à condenação. Para visualizar o fluxo de processamento completo e bem mais detalhado, consultar publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), atualizada por Ribeiro et al (2010), após a Lei no 11.689/08, apresentado nesta tese no Anexo 2.

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de sua defesa, marca-se a chamada “audiência de instrução”, momento em que ocorre a “oitiva das testemunhas” e o “interrogatório do réu”, isto é, todos os envolvidos são ouvidos pela acusação (promotor de justiça) e pela defesa do réu sob a administração do juiz. Após a audiência, acusação e defesa apresentam suas respectivas “alegações finais”. Intermédio entre a primeira fase e a segunda fase: As alegações finais são avaliadas pelo juiz e este decide quanto ao pronunciamento ou não68 do réu, através da “sentença de pronúncia”. Ser “pronunciado” significa que o juiz considerou haver indícios suficientes de materialidade e autoria para submeter o réu ao julgamento pelo conselho de sentença, mais conhecidos como júri popular. Com a sentença de pronúncia, tem-se o fim da primeira fase e o início da segunda fase do rito do tribunal do júri. Segunda fase: Uma vez “pronunciado”, o réu recebe a “intimação da sentença de pronúncia”, uma espécie de carta que o informa sobre a decisão do juiz bem como a data e a hora agendadas para a realização da sessão de julgamento. Tem-se a preparação do processo para o julgamento em plenário, o informe aos jurados sobre a data marcada e uma nova intimação para todos os envolvidos estarem presentes na sessão de julgamento. Realizada a sessão de julgamento, o conselho de sentença decide pela condenação ou absolvição do réu. O juiz então “acata a soberana decisão do conselho de sentença” e redige a sentença final onde, no caso de condenação, é estipulada a pena.

No intuito de identificar possíveis determinantes que podem levar a condenações de incriminados por homicídio doloso, utilizo uma base de dados construída a partir da análise de conteúdo de denúncias que foram oferecidas pelos promotores de justiça, entre janeiro de 2004 e dezembro de 2005, em Belo Horizonte/MG (SILVA, 2006). Posteriormente, já trabalhando para o desenvolvimento deste doutorado, passei a acompanhar anualmente 69, desde 2007 (setembro) até 2013 (janeiro), as fases judiciais em que os processos originados 68

Na decisão de pronúncia, o juiz pode “absolver sumariamente o acusado”; ou o juiz pode “impronunciar o réu”, por exemplo, em casos onde se entende que o homicídio foi culposo, ocasião em que o réu não teve a intenção de matar a vítima, ou que foi interpretado como uma lesão corporal seguida de morte ou de um roubo seguido de morte, crimes que são de competência das varas criminais do rito ordinário e não do rito do tribunal do júri. É comum a defesa do réu recorrer da sentença de pronúncia, reforçando argumentos que permitam levar à “absolvição sumária” ou à “impronúncia” do réu. 69 Duas de minhas publicações apresentam análises com respeito ao fluxo, considerando a atualização feita ano a ano, de 2007 a 2011 (SILVA, 2010 e SILVA, 2012).

121

por essas denúncias se encontravam, de modo a observar o processo de incriminação desses indivíduos ao longo do tempo70. Uma ponderação de ordem metodológica importante referese ao tempo de referência do estudo. Quanto maior o intervalo de tempo decorrido entre o registro do evento e seu processamento passando por todas as etapas decisórias, maior a capacidade de análise e compreensão do fluxo de pessoas e papéis que atravessam o sistema de justiça criminal71. Neste sentido, os dados aqui analisados foram registrados há cerca de 9 anos, o que propicia confiabilidade à análise empreendida. Para os objetivos deste capítulo, primeiramente, mensuro o fluxo do rito do tribunal do júri com base em um conjunto formado por 154 processos de indivíduos denunciados por homicídio doloso consumado, entre janeiro de 2004 e dezembro de 2005, na cidade de Belo Horizonte. Em seguida, busco identificar elementos que podem ser indicados como determinantes para que o conselho de sentença decida pela condenação desses indivíduos. Por último, reproduzo algumas dessas análises, segregando este conjunto segundo uma tipologia do homicídio por mim construída. A fim de simplificar a análise sobre fluxo pelo rito do tribunal do júri, separei a incriminação em três etapas, demarcada pelos seguintes momentos: (1) entre oferecimento da denúncia e sentença de pronúncia, que abarca os procedimentos da primeira fase do rito do tribunal do júri, (2) entre sentença de pronúncia e sessão de julgamento, que abarca a segunda fase do rito do tribunal do júri e (3) após a sessão de julgamento, em execução da pena fixada na sentença pelo juiz, nos casos de condenação. Tabela 5 – Fluxo no rito do tribunal do júri: processos de indivíduos incriminados por homicídio doloso consumado, Belo Horizonte, janeiro/2013. 2007 (setembro) 2013 (janeiro) Etapas da incriminação pelo rito do tribunal Número Percentual Número Percentual do júri absoluto válido absoluto válido Denúncia-Pronúncia 30 19,5 7 5,0 Pronúncia-Sessão de Julgamento 79 51,3 23 16,4 Sessão de Julgamento-Execução da Sentença 45 29,2 110 78,6 Total 154 100,0 140* 100,0 *A diferença de 14 casos perdidos entre 2007 e 2013 é explicada pelo fato destes processos terem sido “baixados” ao longo do período abarcado. Por essa razão, as informações para eles não estavam disponíveis para consulta.

70

Consulta realizada via site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (www.tjmg.jus.gov.br). Essa ponderação foi enfatizada por Joana Vargas em mesa redonda sobre o tema por ocasião do XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, SBS, ocorrido na Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, em julho de 2007. 71

122

O recorte temporal para a análise dos dados, contemplando o ano de 2007 e o ano de 2013, foi escolhido pela seguinte razão: o ano de 2007 está ainda muito próximo à data de registro do evento e, principalmente, à data do início da instrução criminal no rito do tribunal do júri, marcado pelo oferecimento da denúncia, o que ocorreu entre janeiro de 2004 e dezembro de 2005; em complemento, a data mais atual permite visualizar o fluxo através de um intervalo de tempo mais amplo, o que fornece mais solidez aos resultados. Os dados apresentados na Tabela 5 indicam uma inversão no desenvolvimento dos casos pelas etapas do processo de incriminação, principalmente se observamos os percentuais válidos para os casos que chegaram à sessão de julgamento. Em 2007, pouco mais de 1/4 dos indivíduos denunciados tinham sido julgados, ao passo que em 2013 essa representação supera os 78%. Acompanhando essa tendência, há uma redução significativa para os que se encontram entre a etapa demarcada pelo oferecimento da denúncia até a sentença de pronúncia ao longo do tempo. Em 2007, pouco menos de 1/5 dos casos se encontravam nesta primeira etapa, enquanto, em 2013, esse valor corresponde a 5%. O número de processos dos indivíduos denunciados que se localizavam na etapa demarcada pela sentença de pronúncia até a realização da sessão de julgamento apresenta uma redução significativa: em 2007, pouco mais da metade dos processos se encontrava nesta etapa e, em 2013, aproximadamente 16% nela se localizavam. Essa configuração reforça a observação de um fator inerente à compreensão do fluxo do sistema de justiça criminal: seu caráter longitudinal, passada a grande seleção da fase policial (COELHO, 1986; VARGAS, 2004, MISSE; VARGAS, 2009; RIBEIRO, 2009; CANO; DUARTE, 2010). Esses réus foram denunciados entre janeiro de 2004 e dezembro de 2005 e seus processos chegaram à fase de sentenciamento decorridos 9 anos após a acusação pública. Por essa razão, torna-se importante verificar a correspondência entre ano de registro do evento e a etapa do processo de incriminação em que o processo se encontra em 2013. É o que está apresentado na Tabela 6, a seguir:

123

Tabela 6 – Fluxo no rito do tribunal do júri: processos de indivíduos incriminados por homicídio doloso consumado de acordo com o ano do evento registrado, Belo Horizonte, janeiro/2013.

DenúnciaPronúncia Ano da ocorrência registrada

2005

Total

2004 2003 2002 1993-2001

Número absoluto Percentual Número Absoluto Percentual Número Absoluto Percentual Número Absoluto Percentual Número absoluto Percentual Número absoluto Percentual

0 0,0% 0 0,0% 3 11,1% 1 5,6% 3 18,7% 7 5,0%

Etapas da incriminação no rito do júri Pronúncia-Sessão de Sessão de JulgamentoJulgamento Execução da Sentença 8 17,0% 9 28,1% 2 7,4% 2 11,1% 2 12,5% 23 16,4%

39 85,0% 23 71,9% 22 81,5% 15 83,3% 11 68,7% 110 78,6%

A Tabela 6 apresenta a distribuição percentual referente ao fluxo dos processos desses indivíduos de acordo com o ano do evento registrado pela Polícia. Percebe-se que todos os réus dos processos referentes aos homicídios dolosos registrados em 2004 e 2005 haviam sido pronunciados até janeiro de 2013, sendo que a maioria dessas pessoas havia sido submetida à sessão de julgamento. Paralelamente, todos os casos localizados na etapa compreendida entre denúncia e sentença de pronúncia correspondiam a eventos registrados entre 1993 e 2003. Uma explicação possível para essa configuração refere-se à criação, em 2004, da Divisão de Crimes Conta a Vida (DCcV) na capital mineira, unidade da Polícia Civil de Minas Gerais especializada nas investigações dos eventos registrados como homicídio doloso. Essa criação resultou no advento da “política de resultados”, metas de produtividade estipuladas pela Secretaria Estadual de Segurança Pública de Minas Gerais segundo a qual cada delegado da DCcV deveria relatar, no mínimo, dez inquéritos de homicídio doloso por mês (VARGAS; NASCIMENTO, 2010). Essa nova política pode ter sido responsável por este resultado? Este é um tema a ser investigado em futuros trabalhos. Esses dados podem ainda ser explorados quanto ao tempo. Entende-se que análises sobre determinantes de decisões devem ser conjugadas com as análises sobre o tempo (VARGAS, 2004). E é pela via da observação das chamadas medidas de tendência central, especialmente da mediana, que melhor se pode predizer a duração deste tempo. É o que está exposto na tabela abaixo, que mostra o número de dias decorridos em cada etapa do processo

Total

47 100,0% 32 100,0% 27 100,0% 18 100,0% 16 100,0% 140 100,0%

124

de incriminação pelo rito do tribunal do júri, desde a data do evento registrado até janeiro de 2013. Com efeito, pelo fato de o sistema de justiça criminal apresentar um desenho de funil em razão da seletividade inicial, entende-se que o tempo de processamento para os incriminados é melhor representado pela mediana. Dentre as medidas de tendência central, é o valor menos suscetível a distorções provocadas pela grande amplitude entre os valores mínimos e os valores máximos. Esta medida corresponde ao valor que divide pela metade o conjunto de dados observado, estando o conjunto em ordenado de modo crescente de acordo com uma dada variável (RIBEIRO et al, 2011). Na tabela a seguir, são apresentados os valores dessas medidas de tendência central, além dos valores mínimos e máximos, para o conjunto observado no que se refere ao tempo decorrido entre as etapas do processo de incriminação pelo rito do tribunal do júri.

Tabela 7 - Medidas de tendência central para o tempo (em dias) decorrido entre as etapas do processo de incriminação no rito do tribunal do júri: processos dos indivíduos acusados de homicídio doloso, Belo Horizonte, janeiro/2013. (1)

(2)

(3)

(4)

Fase Policial

1ª. Fase do Rito do Tribunal do Júri

2ª. Fase do Rito do Tribunal do Júri

Rito do Tribunal do Júri

Data da ocorrência e data da denúncia

Data da denúncia e data da pronúncia

Data da pronúncia e data da sessão de julgamento

154

134

108

Data da denúncia e data da sessão de julgamento 110

0

20

46

44

(1) Média

502

414

815

1.158

(2) Mediana

312

328

686

1.019

(3) Desvio Padrão

622

329

578

679

(4) Valor mínimo

8

59

84

226

(5) Valor máximo

4.091

2.619

2.343

2.836

N

Casos válidos Casos não válidos

Antes de analisar a tabela anterior, é importante estabelecer um parâmetro de comparação entre o que pode ser tomado como tempo previsto pela lei e o tempo efetivo. No Brasil, o tempo tido como legal previsto para a conclusão do trâmite judiciário no rito do tribunal do júri é de 315 dias para os processos dos acusados que permanecem em liberdade, e de 295 dias para os processos dos acusados que estejam presos (RIBEIRO, 2009; CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 2013).

125

A tabela permite dizer que, para este conjunto de dados, 312 dias é o tempo gasto entre a data do evento registrado e a data de oferecimento da denúncia. Essa medida informa, portanto, que a construção do inquérito policial demanda aproximadamente 1 ano, resultado que reforça o explorado no capítulo anterior. Entre a data de oferecimento da denúncia e a data de sentença de pronúncia do réu gastam-se 328 dias. Uma vez pronunciado, o réu será levado a julgamento 686 dias após este momento. Neste sentido, todo o processo de incriminação, pelo rito do tribunal do júri para eventos criminados como homicídio doloso se desenvolve dentro de 1.019 dias para o conjunto de dados aqui observado, aproximadamente 3 anos. Este tempo está longe de corresponder àquele previsto no Código de Processo Penal, indicando a distância entre as práticas efetivas dos operadores e as prescrições ou regras de procedimento. Até este momento descrevi, em termos de tempo e fluxo, como é construído o processo de incriminação pelo rito do tribunal do júri para acusados de homicídio consumado. Mas, qual é o resultado final deste processo de incriminação? A Tabela 8 contém o número absoluto e o percentual válido para tipo de sentença final de acordo com a decisão do conselho de sentença das sessões de julgamento. Em termos analíticos, no caso da decisão ter sido a sentença condenatória, torna-se necessário estender a análise da persecução penal até a fase de execução, a fim de observar o volume de processos de réus condenados que estavam cumprindo a pena fixada pelo juiz do tribunal do júri (Tabela 9).

Tabela 8 – Distribuição do número absoluto e relativo dos resultados das sentenças finais no rito do tribunal do júri: Belo Horizonte, janeiro/2013. Número Percentual Percentual Tipo de sentença Percentual Absoluto Válido Acumulado Condenação 102 66,2 92,7 92,7 Absolvição 6 3,9 5,5 98,2 Casos válidos Desclassificação 2 1,3 1,8 100,0 Total 110 71,4 100,0 Casos não válidos 44 28,6 Total 154 100,0

126

Tabela 9 – Distribuição do número absoluto e relativo quanto a cumprimento da pena estipulada na sentença condenatória: Belo Horizonte, janeiro/2013. Número Percentual Percentual Cumprimento da Pena Percentual Absoluto Válido Acumulado Sim 60 38,9 57,7 57,7 Não 41 26,6 39,4 97,1 Desclassificação 2 1,2 1,9 99,0 Casos válidos Não informado 1 0,6 0,9 100,0 Total 104 67,5 100,0 Casos não válidos Não se aplica 50 32,5 Total 154 100,0

As tabelas 8 e 9 mostram que, dos 110 réus que foram submetidos à decisão do conselho de sentença na sessão de julgamento, 102 foram condenados, 6 foram absolvidos e 2 casos foram desclassificados para outros crimes diferentes de homicídio doloso. Entre os casos de condenação que possuíam informação sobre cumprimento ou não da sentença, 60 réus estavam cumprindo pena e 41, não. Ou seja, os dados mostram que 92,7% dos denunciados que foram submetidos à decisão do conselho de sentença foram condenados e 5,5% foram absolvidos. Dentre os condenados, pouco mais da metade estava, em janeiro de 2013, cumprindo a pena fixada pelo juiz na sentença final (57,7%). A observação desse conjunto de dados quanto ao fluxo do processo de incriminação pelo rito do tribunal do júri mostra que a grande maioria das denúncias de eventos tipificados como homicídio doloso resulta em condenação, decorridos cerca de 9 anos da acusação pública. Como forma de seguir elaborando essa discussão, passo a investigar algumas variáveis de caráter legal, de caráter contextual e de caráter individual retiradas das denúncias que originaram os processos. De acordo com o que venho indicando até este momento, essas variáveis poderiam estar correlacionadas com (1) a sentença condenatória e/ou com (2) o cumprimento da pena fixada nessas mesmas sentenças. Embora eu esteja elaborando uma análise estatística simples, de correlação entre variáveis, é possível pensar em divisão analítica com vistas apenas a facilitar a compreensão do que pretendo discutir. As variáveis “sentença” e “pena” podem ser categorizadas para análise como variáveis dependentes. E as variáveis legais, contextuais e individuais, como independentes. São elas:

127

Variáveis legais: V1) Arma utilizada: se o homicídio foi cometido por arma de fogo ou por outros instrumentos; V2) Tipo de Defesa: se o acusado estava sendo defendido pela Defensoria Pública ou se estava sendo defendido por advogado particular; V3) Quantidade de Processos: se o acusado respondia por outros processos além do referido na base de dados ou se estava respondendo somente pelo processo analisado; Variáveis contextuais: V4) Companhia da vítima: se vítima estava acompanhada no momento do fato ou se estava sozinha; V5) Relação entre vítimas e acusados: se vítimas e acusados eram conhecidos ou desconhecidos; Variáveis individuais: V6) Sexo do acusado; V7) Idade72: se acusado possuía 20 anos ou menos ou se acusado possuía 21 anos ou mais na data do evento registrado; V8) Estado civil: estado civil do acusado. No Quadro a seguir apresento a descrição dessas variáveis, segundo as categorias que as compõem e a distribuição do número absoluto e do percentual válido para cada uma delas:

72

O recorte na idade foi escolhido porque “ser o agente menor de 21 anos na data do fato (...) constitui circunstância que sempre atenua a pena” (BRASIL, 2013, Código Penal, artigo 65).

128

Quadro 2 - Descrição das variáveis

Variáveis Independentes Variáveis Legais Variáveis V1: Arma utilizada

V2: Tipo de defesa V3: Quantidade de processos

Categorias Homicídio provocado por uso de arma de fogo Homicídio provocado por outros instrumentos Total Acusado defendido por Defensoria Pública Acusado defendido por advogado privado Total Acusado responde apenas por este processo Acusado responde por outro processo além deste Total Variáveis Contextuais

Variáveis V4: Companhia da vítima V5: Relação entre vítima e acusado

Categorias Vítima estava acompanhada no momento do homicídio Vítima estava sozinha no momento do homicídio Total Vítima e acusado eram conhecidos Vítima e acusado eram desconhecidos Total Variáveis Individuais

Variáveis V6: Sexo do acusado V7: Idade do acusado73

V8: Estado civil do acusado

Categorias Masculino Feminino Total 20 anos ou menos 21 anos ou mais Total Solteiro Casado Amasiado Divorciado Viúvo Total

Número absoluto 94 59 153 68 62 130 71 83 154

Percentual válido 61,4 38,6 100,0 52,3 47,7 100,0 46,1 53,9 100

Número absoluto 57 54 111 116 20 136

Percentual válido 51,4 48,6 100,0 85,3 14,7 100,0

Número absoluto 143 11 154 31 101 132 101 21 10 2 1 135

Percentual válido 92,9 7,1 100,0 23,5 76,5 100,0 74,8 15,6 7,4 1,5 0,7 100,0

Número absoluto 102 6 108 60 41 101

Percentual válido 94,4 5,6 100,0 59,4 40,6 100,0

Variáveis Dependentes Variáveis Sentença

Pena

Categorias Condenação Absolvição Total Condenado estava cumprindo a pena Condenado não estava cumprindo a pena Total

Pela observação das variáveis descritas no quadro anterior, é possível construir um perfil sobre esses eventos criminados como homicídio dolosos. Quanto ao perfil dos acusados, quase todos são do sexo masculino (92,9%), a maioria possuía 21 anos de idade ou mais, na data em que o evento foi registrado (76,5%), e a maioria também estava solteira a essa mesma 73

Valor da média foi 26 anos, entre os extremos 18 e 55 anos. Observei as faixas etárias considerando intervalos iguais a 9 anos. O resultado foi o seguinte: 62,1% possuíam entre 18 e 26 anos; 22,7% possuíam entre 27 e 35 anos; 11,4% tinham entre 36 a 44 anos e 3,8% possuíam 45 anos ou mais na data do evento registrado.

129

época (74,8%). Pode-se dizer que a arma de fogo foi o instrumento utilizado com maior frequência pelos acusados (61,4%) e que pouco mais da metade desses acusados respondia por, no mínimo, outro processo além do aqui considerado (53,9%). Pouco mais da metade desses acusados estava sendo defendida pela Defensoria Pública (52,3%) e o restante pela defesa constituída, o que nos fornece uma ideia quanto ao fato de esses indivíduos pertencerem à classe socioeconômica baixa (PASTORE; VALLE SILVA, 2000), já que a Constituição Federal do Brasil “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” (BRASIL, 2013, artigo 5º, LXXIV). Quanto ao contexto em que esses eventos ocorreram, as informações permitem dizer que as vítimas estavam acompanhadas no momento em que foram mortas, indicando a possibilidade de existência de testemunhas de fato (51,4%). Paralelamente, a maioria desses acusados conheciam as vítimas (85,3%). Tal como já apontado, 94,4% desses acusados foram condenados e 59,4% destes estavam cumprindo a pena fixada pelo juiz na sentença final. Diante dessas informações, e visando à identificação de possíveis elementos que podem ser considerados como determinantes da condenação desses acusados, uma possibilidade de análise é correlacionar essas variáveis legais, contextuais e individuais com as variáveis “sentença” e “pena”. Para tanto, é necessário recodificar essas variáveis de modo que suas categorias indiquem a presença e a ausência do fator de interesse. Dessa maneira, as variáveis acima foram recodificadas conforme exposto no Quadro a seguir: Quadro 3 - Especificação das variáveis correlacionadas Variáveis originais

Variáveis recodificadas

Sentença

Condenação

Pena

Em cumprimento

V1 = Arma utilizada

V1 = Arma de fogo

V2 = Tipo de defesa

V2 = Defesa privada

V3 = Quantidade de processos

V3 = Outros processos

V4 = Companhia da vítima

V4 = Testemunhas

V5 = Relação entre vítima e acusado

V5 = Conhecidos

V6 = Sexo do acusado

V6 = Homem

V7 = Idade do acusado

V7 = 21 anos ou mais

V8 = Estado civil do acusado

V8 = Solteiro

Presença do fator investigado (valor = 1) Condenação Réu em cumprimento de pena Homicídios cometidos por arma de fogo Réu defendido por advogado particular Réu responde por outros processos Vítima estava acompanhada Vítima e acusado eram conhecidos Acusado do sexo masculino Acusado possuía 21 anos ou mais Acusado era solteiro

Ausência do fator investigado (valor = 0) Não condenação Réu em não cumprimento de pena Homicídios cometidos por outras armas Réu defendido pela defensoria pública Réu responde somente por este processo Vítima estava sozinha Vítima e acusado eram desconhecidos Acusado do sexo feminino Acusado possuía 20 anos ou menos Acusado não era solteiro

130

A Tabela 10 apresenta os valores correspondentes aos coeficientes de Pearson para as correlações entre (1) as oito variáveis e a sentença ser condenatória e entre (2) as oito variáveis e o cumprimento da pena fixada na sentença, além dos valores dos testes de significância destas correlações e o número de casos considerados na análise. Entende-se como Coeficiente de Pearson (r) uma medida estatística que indica o grau de relação entre duas variáveis, a força desta associação, podendo apresentar associações positivas, no mesmo sentido, ou negativas, em sentido contrário. Considera-se uma associação estatisticamente significante quando os valores dos testes de significância observados são inferiores a 5% (valor p ≤ 0,05) (BARBETTA, 2011[1994]; PEREIRA, 2004[1999]).

131

Tabela 10 – Correlações entre variáveis legais, contextuais e individuais x sentenças condenatórias; e entre variáveis legais, contextuais e individuais x cumprimento da pena fixada na sentença: Belo Horizonte, janeiro/2013. Variáveis Legais Fatores V1 = Arma de fogo

V2 = Defesa Privada

V3 = Outro processo

Fatores V4 = Testemunhas

V5 = Conhecidos

Fatores

V6 = Homem

V7 = 21 anos ou mais74

V8 = Solteiro

Medidas

Condenação

Coeficiente de Pearson (r) 0,200* Valor p de significância 0,036 Número absoluto 110 Coeficiente de Pearson (r) 0,120 Valor p de significância 0,226 Número absoluto 103 Coeficiente de Pearson (r) 0,225* Valor p de significância 0,018 Número absoluto 110 Variáveis Contextuais Medidas

Condenação

Coeficiente de Pearson (r) -0,039 Valor p de significância 0,733 Número absoluto 80 Coeficiente de Pearson (r) -0,102 Valor p de significância 0,325 Número absoluto 95 Variáveis Individuais Medidas

Condenação

Medidas Coeficiente de Pearson (r) Valor p de significância Número absoluto Coeficiente de Pearson (r) Valor p de significância Número absoluto Coeficiente de Pearson (r) Valor p de significância Número absoluto

Medidas Coeficiente de Pearson (r) Valor p de significância Número absoluto Coeficiente de Pearson (r) Valor p de significância Número absoluto

Medidas

Coeficiente de Pearson (r) 0,191* Coeficiente de Pearson (r) Valor p de significância 0,045 Valor p de significância Número absoluto 110 Número absoluto Coeficiente de Pearson (r) -0,156 Coeficiente de Pearson (r) Valor p de significância 0,123 Valor p de significância Número absoluto 99 Número absoluto Coeficiente de Pearson (r) -0,020 Coeficiente de Pearson (r) Valor p de significância 0,837 Valor p de significância Número absoluto 110 Número absoluto *Correlação é estatisticamente significante ao nível de (valor p ≤ 0,05).

Em cumprimento -0,018 0,860 101 -0,104 0,309 97 0,136 0,174 101 Em cumprimento -0,014 0,909 74 0,068 0,529 89 Em cumprimento -0,037 0,712 101 -0,057 0,593 91 0,055 0,587 101

Como se percebe observando os valores dos coeficientes de Pearson (r) juntamente com os valores dos testes de significância apresentados na Tabela 10, as correlações são estatisticamente significantes em três situações: (1) entre a variável legal “homicídio ter sido cometido por arma de fogo” e sentença com resultado condenação; (2) entre a variável legal “réu responder por mais de um processo além deste” e sentença com resultado condenação e; (3) entre a variável individual “réu ser homem” e sentença com resultado condenação. Nesses 74

Estabeleci correlações para esta variável considerando as faixas etárias correspondentes a intervalos de 9 anos. As correlações não se mostraram significativas para nenhuma das faixas etárias.

132

três casos, os coeficientes de correlação de Pearson têm valores positivos, mas baixos, indicando relações diretas e fracas entre as variáveis, o que não impede de apontar algumas tendências. Destaco duas dessas correlações, as de ordem legal, e desprezarei a correlação de cunho individual, já que o número de mulheres era extremamente reduzido para permitir uma comparação consistente entre ausência e presença do fator investigado, acusado ser “homem” e as variáveis “condenação” e “em cumprimento da pena”. Com base nesses resultados, é possível dizer que essas duas variáveis podem ser apontadas como possíveis elementos que podem influenciar para que o resultado final do processo de incriminação seja a condenação: (1) homicídios que tenham sido cometidos através do uso de arma de fogo e (2) os acusados responderem a outros processos, já que esses fatores explicam respectivamente em 20% e 22,5% a sentença ser condenatória. Vale chamar a atenção para o sinal negativo das correlações considerando a idade do acusado, indicando que a tendência é de não condenação para os acusados com 20 anos ou menos. Os resultados até aqui mostram que, se o percentual de condenação é alto, o mesmo não ocorre com o de cumprimento da pena. A exploração para as correlações entre as variáveis legais, as contextuais, as individuais e sentença com resultado condenação e cumprimento da pena fixada na sentença se mostrou relevante em dois contextos de âmbito legal. Para o objetivo de meu estudo, que é o de identificar possíveis elementos que podem levar à condenação dos acusados, é interessante refinar a análise no sentido de buscar identificar alguns padrões quanto a essas condenações. A consulta às denúncias me permitiu extrair variáveis estruturais e contextuais que tornaram possível a criação da categoria analítica: tipologia de homicídios dolosos. O primeiro nível analítico corresponde às variáveis estruturais, e se refere às informações sobre o evento conforme registrado pelos operadores (tais como: local, hora, logradouro, arma utilizada, dentre outras). O segundo nível analítico refere-se às informações correspondentes à relação social entre vítimas e acusados, compondo assim, o grupo de variáveis contextuais. Esta foi a única forma de acessar as características comuns a acusados e vítimas, visto que não tive acesso a nenhuma informação sobre perfil das vítimas bem como a informações mais acuradas sobre o perfil do acusado, para além de idade, sexo e estado civil (tais como: raça, profissão, escolaridade, renda), por não estarem presentes em quantidade suficiente nos conteúdos das denúncias consultadas.

133

Observando padrões correspondentes a cada nível analítico e conjugando-os com padrões encontrados pelas categorias penais elencadas pelos promotores de justiça, pude construir essa tipologia (SILVA, 2006, 2008). Neste sentido, o conjunto de informações sobre os processos dos indivíduos denunciados pode ser observado com mais profundidade tendo como base analítica esta tipologia. É o que apresento nas próximas páginas, com a descrição de como essa categoria analítica foi construída em outro momento, com base na perspectiva do que venho chamando de “criminologia”, e, posteriormente, com a distribuição percentual desses processos, segundo tipos de homicídio doloso. 1. Conflitos cotidianos: envolvendo brigas e discussões de “somenos importância” entre pessoas conhecidas. Na maioria dos casos, tipificadas penalmente nos incisos II e IV do artigo 121, § 2º. do Código Penal (isto é, homicídio qualificado, cometido por motivo fútil e à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido) : “(...) Dúvida não resta que o ora denunciado agiu por motivo fútil, haja vista um 75 banal desentendimento desencadeado com sua companheira e seu cunhado [nome], fato que desagradou os outros dois cunhados, o que torna o seu gesto homicida desprovido de uma motivação significante e caracterizado por induvidosa desproporcionalidade (...) [trecho de denúncia].”

2.

Drogas/Tráfico: vítimas ou denunciados possuíam algum envolvimento com drogas, podendo ser de gangues inimigas de tráfico na busca por controle territorial, ou pertencentes a mesma gangue, ou, ainda, possuir relacionamento de usuário e vendedor principalmente nos casos de dívidas relacionadas ao consumo dessas substâncias. A maioria dos casos foi tipificada penalmente nos incisos II, III e IV do artigo 121, § 2º. (isto é, homicídio qualificado cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe; com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido), conjugado com outros artigos, como o 288 (isto é, associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes) e artigo 69 (isto é, concurso material, quando agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não), todos do Código Penal:

75

Resumidamente, o desentendimento em questão se deu em virtude de a vítima (cunhado do acusado) não ter conseguido matar uma galinha que seria preparada como refeição do denunciado.

134

“(...) O vínculo subjetivo do denunciado e dos partícipes, na realização dos dois crimes narrados surge cristalino pela prova dos autos, vez que na seara da marginalidade, o denunciado, executor material e seus comparsas, partícipes, em comunhão de propósitos e desígnios tinham por finalidade dar vazão à suas fúrias assassinas, no desejo de eliminar a gangue rival, Gangue do Brochado (...)” [trecho de denúncia].

3. Vingança: corresponde àqueles casos onde o acusado tinha como objetivo vingarse da vítima por razões outras que não advindas de drogas e relações amorosas, como brigas anteriores e desentendimentos de outra ordem. Geralmente, enquadrados nos incisos I, II e IV do art. 121: “(...) Segundo restou apurado, o denunciado possuía um arsenal que era guardado por [nome], v. ‘Bocão’, irmão da vítima, na residência deste. Contudo, durante uma abordagem policial, as referidas armas foram apreendidas, o que gerou no denunciado desejo de se vingar (...)” [trecho de denúncia].

4. Motivos amorosos: todos os casos onde os antecedentes indicavam brigas entre pessoas íntimas, casais de namorados, cônjuges, amantes e, ainda, retaliação devido a rompimento da relação por uma das partes. Geralmente, enquadrados nos incisos I, II, III e IV do art. 121: “(...) Consta do Inquérito Policial que, após um conturbado relacionamento entre o denunciado e a vítima, caracterizado por uma convivência às turras, influenciada pela presença maléfica do álcool, do ciúme e de constantes agressões, teve-se por termo este degradante relacionamento por iniciativa da vítima. Diante da separação em tela, o denunciado, sentindo-se uma profunda revolta e insatisfação materializou o seu instinto vingativo e sentimento de desprezo à genitora da sua filha (...)” [trecho de denúncia].

5. Caput: este termo refere-se aos crimes em que as circunstâncias não foram suficientemente apuradas para qualificar o crime. Assim, no texto da denúncia, os acusados foram enquadrados no art. 121, caput, equivalente a “homicídio simples”: “(...) Como apurado, o Denunciando, após a chegada de sua companheira [fulana de tal] na residência comum, começou a interpelá-la mediante altos brados, em tom ameaçador, apossando-se, ato contínuo, da faca referida, passando a golpeá-la, gritando de forma recorrente que iria matá-la, causando-lhe lesionamento. Tendo a vítima clamado por socorro, vieram em seu auxílio as vítimas [nome1] e [nome2], também residentes no mesmo domicílio, que intercederam fisicamente e impediram o Denunciando na consumação do ilícito contra a convivente. Inconformado com a intervenção das vítimas [nome1] e [nome2], o Denunciando passou a desferir-lhes golpes com o instrumento cortante contra ambas, com intuito de ceifar-lhes a vida,

135

lesionando-as, não se consumando a volição homicida pelo dissenso dos ofendidos (...)” [trecho de denúncia].

6. Motivos financeiros: todos os casos cujas circunstâncias antecedentes envolveram questões financeiras como dívidas contraídas de outras ordens senão por drogas. Geralmente qualificados nos incisos II e IV do art. 121: “(...) O crime foi cometido por motivo torpe, eis que o denunciado tentou ceifar a vida da vítima em virtude da partilha de uma herança (...)” [trecho de denúncia].

7. Trabalho policial: esta categoria engloba todos os delitos envolvendo policiais militares ou civis, quando estes estavam em trabalho, uma vez que o conflito se deu justamente em virtude de obrigações profissionais desses indivíduos, não diferenciando se correspondiam a acusados ou a vítimas, a grande maioria dos casos. Em geral, esses crimes ocorreram em locais de risco, envolvendo traficantes e/ou criminosos que trocaram tiros com os policiais quando de investigação e/ou perseguição policial: “(...) Quando os denunciados estavam próximo à Rua dos Otoni, esquina com Av. Professor Alfredo Balena, o policial militar Sargento [nome] desembarcou da viatura e iniciou a perseguição a pé. Porém, quando os acusados estavam próximos ao Hospital de Pronto Socorro, os mesmos, fazendo uso das armas de fogo que portavam, efetuaram disparos contra o Sargento PM [nome], não o atingindo, contudo, por circunstâncias alheias às suas vontades (...)” [trecho de denúncia].

8. Bala perdida: envolvendo circunstâncias em que a vítima apenas se encontrava próximo ao local da ocorrência, no momento do crime. Na maioria das vezes, esses crimes foram enquadrados nos incisos II, III e IV do art. 121: “(...) os autores desembarcaram e continuaram a fuga correndo e efetuaram novos disparos contra os policiais, vindo a atingir as vítimas [nome1] e [nome2] que transitavam pelas imediações de onde ocorreram os fatos, por erro na execução do crime (...)” [trecho de denúncia].

136

Gráfico 1 – Percentual do número de processos de indivíduos incriminados por homicídio doloso de acordo com a tipologia de homicídios: Belo Horizonte, janeiro/2013.

Como se percebe pela observação do gráfico anterior, as denúncias referentes a indivíduos incriminados por homicídios que puderam ser classificados como do tipo conflitos cotidianos podem ser consideradas como principais (30,6%), ao lado das que se referem aos homicídios que permitem a classificação no tipo drogas/tráfico de drogas (23,1%) e no tipo vingança - não motivada por vinganças relacionadas a drogas/tráfico ou a motivos amorosos ou a motivos financeiros - (21,8%). Pouco menos de 10% das denúncias consultadas se referem a homicídios em que vítima e autor possuíam uma relação amorosa, nas quais os incriminados foram motivados por conflitos ligados a este tipo de relação social. Os chamados “homicídios simples”, aqueles tipificados como caput do artigo 121 correspondem a 7,5%. As querelas motivadas pela relação de dívidas entre vítimas e acusados, exceto as dívidas relacionadas a drogas/tráfico, representam 5,4%. As denúncias em que os incriminados eram policiais militares em serviço ocupam 1,4% do conjunto analisado e as que foram classificadas como balas perdidas, 0,7%. Como se percebe, os tipos conflitos cotidianos e drogas/tráfico somam pouco mais da metade do conjunto de dados aqui analisado e podem ser entendidos como tipos opostos, já que os homicídios do tipo conflitos cotidianos envolvem discussões e brigas do dia-a-dia, enquanto os homicídios do tipo drogas/tráfico de drogas envolvem outros eventos crimináveis como consumo e venda de drogas ilícitas, porte de armas e formação de quadrilha. Por esta

137

razão, e considerando que os demais padrões de homicídio não são mais convencionais e mais facilmente identificáveis e elucidáveis (inclusive em outros países), trabalharei apenas com esses dois tipos, de modo que poderei melhor controlar, nas suas diferenças, a incidência dos mesmos fatores nas práticas dos operadores. Neste sentido, em relação à análise de fluxo no rito do tribunal do júri, pode-se esperar uma diferença significativa para o andamento dos processos segundo o tipo de homicídio? Na tabela abaixo estão apresentados os percentuais referentes aos tipos de homicídios segundo as etapas do rito do tribunal do júri: (1) entre denúncia e sentença de pronúncia; (2) entre sentença de pronúncia e sessão de julgamento; e (3) entre sessão de julgamento e execução da sentença.

Tipologia

Tabela 11 – Fluxo no rito do tribunal do júri: processos de indivíduos incriminados por homicídio doloso consumado: Tipologia, Belo Horizonte, janeiro/2013.

Conflitos cotidianos

Número absoluto

Drogas/ tráfico

Número absoluto

Percentual Percentual

Etapas da incriminação pelo rito do tribunal do júri DenúnciaPronúncia-Sessão de Sessão de JulgamentoPronúncia Julgamento Execução da sentença 4 7 30

Total

41

9,8%

17,1%

73,2%

100,0%

0

4

29

31

0,0%

12,1%

87,9%

100,0%

Os dados compilados na Tabela 11 mostram que a análise por tipologia acompanha o padrão geral observado, ou seja, independentemente do tipo de homicídio doloso consumado, a maioria dos casos havia sido submetida à decisão do conselho de sentença, na sessão de julgamento, até janeiro de 2013. Destacam-se as informações relacionadas aos homicídios vinculados a questões de drogas e/ou tráfico de drogas, já que aproximadamente 88% dos processos desses indivíduos haviam percorrido todas as etapas da incriminação pelo rito do tribunal do júri até janeiro de 2013, sendo que os demais 12% se encontravam no início da segunda fase do rito do tribunal do júri, aguardando a sessão de julgamento. Quando comparadas às estatísticas referentes ao tipo conflitos cotidianos, as referentes ao tipo drogas/tráfico de drogas parecem indicar um possível determinante de condenação, já que o fato de crimes relacionados a questões de drogas parecem ser julgados mais rápido. Diante desse resultado, um processo vinculado ao tipo drogas/tráfico de drogas tenderia realmente a transitar mais rápido que o tipo conflitos cotidianos? A Tabela 12 contém

138

os valores das medidas de tendência central para o tempo decorrido entre as etapas da incriminação pelo rito do tribunal do júri de acordo com a tipologia construída. Tabela 12 – Medidas de tendência central para o tempo (em dias) decorrido entre as etapas do processo de incriminação no rito do tribunal do júri: processos dos indivíduos acusados de homicídio doloso: Tipologia, Belo Horizonte, janeiro/2013. (1)

(2)

(3)

(4)

Fase Policial

1ª. Fase do rito do tribunal do júri

2ª. Fase do rito do tribunal do júri

Rito do tribunal do júri

Data da ocorrência e data da denúncia 45

Data da denúncia e data da pronúncia 37

Data da pronúncia e data da sessão de julgamento 29

Data da denúncia e data da sessão de julgamento 30

Tipologia e medidas de tendência central

N

Casos válidos

Conflitos Cotidianos

Casos não válidos

Drogas/Tráfico de Drogas

N

0

8

6

15

Média

483

465

844

1.232

Mediana

299

361

723

1.110

Desvio Padrão

553

324

595

690

Valor mínimo

14

77

110

274

Valor máximo

2.351

1.496

2.334

2.836

Casos válidos

34

34

29

29

0

0

5

5

Média

Casos não válidos

359

339

717

1.024

Mediana

174

195

680

919

Desvio Padrão

412

247

399

503

Valor mínimo

11

67

141

249

Valor máximo

1.611

968

1.620

2.275

Observando os valores das medianas na tabela anterior, os homicídios relacionados a questões de drogas e/ou tráfico de drogas tramitam mais rapidamente que o tipo conflitos cotidianos. Na fase policial, os processos do tipo drogas/tráfico de drogas demandam 174 dias enquanto os processos relacionados a conflitos cotidianos ocupam 299 dias. Para a primeira fase do rito do tribunal do júri, demarcada pelos procedimentos entre o oferecimento da denúncia e a sentença de pronúncia, percebe-se que os processos relacionados às questões de drogas gastam 195 dias e os relacionados a conflitos cotidianos, 361 dias. A situação se mantém quando se observa o tempo para a segunda fase do rito do tribunal do júri, entre a sentença de pronúncia e a sessão de julgamento, respectivamente, 680 e 723 dias. Consequentemente, ao observar todo o processo de incriminação no rito do tribunal do júri (coluna 4), percebe-se que os “autos processuais” cujos homicídios compõem o tipo

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drogas/tráfico de drogas tramitam mais rapidamente que os do tipo conflitos cotidianos, cerca de 6 meses a menos. Não obstante seu estudo ser sobre o crime de estupro, Vargas (2004) mostrou que o fato de o acusado estar preso parece ser um dos determinantes para que o fluxo seja concluído mais rapidamente, o que está diretamente ligado a uma variável legal já que o Código de Processo Penal prevê prazos mais curtos para o cumprimento das regras de decisão quando os acusados estão presos. Diante da ausência desta informação - prisão ao longo do processamento - na fonte de dados aqui consultada, é possível apenas conjecturar que, pelo fato de esses indivíduos serem denunciados por homicídio doloso consumado dupla ou triplamente qualificado conjuntamente a outros crimes como os de formação de quadrilha e concurso material, eles podem ter sido presos ao longo do processo de incriminação, o que demandaria um fluxo de processamento mais rápido que o fluxo apresentado para o outro tipo aqui considerado. A fim de esmiuçar a análise sobre esses dados, trabalhei as informações sobre condenações e cumprimento da respectiva pena considerando, agora, a tipologia de homicídios para esses dois tipos. A pergunta que se busca responder é: um processo de um indivíduo acusado de um homicídio doloso do tipo drogas/tráfico de drogas apresenta maior chance de obter como resultado uma sentença condenatória que o homicídio do tipo conflitos cotidianos? Avançando a análise sobre o processo de incriminação pelo rito do tribunal do júri e sobre a fase de execução penal, pergunta-se: o fato de o indivíduo incriminado estar cumprindo a pena fixada pelo juiz na sentença condenatória pode ser determinado pelo tipo de homicídio em relação ao qual ele foi condenado? A Tabela 13 apresenta esses dados. Tabela 13 – Distribuição do número absoluto e percentual sobre sentença com resultado condenação e cumprimento da respectiva pena, de acordo com os dois principais tipos de homicídios: Belo Horizonte, janeiro/2013. Sentenças com resultado condenação*

Cumprimento da pena fixada na sentença condenatória

Tipologia

Conflitos Cotidianos Drogas/Tráfico

Número Absoluto 26 28

Percentual** 86,6 96,5

Número Absoluto 16 20

Percentual** 53,3 68,9

*São apresentados apenas os dados de sentenças cujos resultados foram a condenação do acusado. Os demais casos enquadram-se em sentenças de desclassificação, absolvição ou casos não válidos. **Percentual considerando o número de processos de acusados que foram submetidos à sessão de julgamento até janeiro de 2013 (Cf. Tabela 11: 30 casos do tipo conflitos cotidianos e 29 casos do tipo drogas/tráfico).

140

Os dados apresentados na tabela anterior permitem dizer que, até janeiro de 2013, 96,5% dos indivíduos incriminados por homicídio doloso consumado relacionado a drogas/tráfico de drogas foram condenados pelo conselho de sentença sendo que 68,9% destes indivíduos estavam cumprindo a pena fixada pelo juiz na sentença final. Dentre os 86,6% dos réus condenados por homicídios relacionados a conflitos cotidianos, 53,3% estavam cumprindo a pena estabelecida na sentença. Diante da observação desses dados, um possível determinante que pode influenciar na decisão do conselho de sentença para a condenação do indivíduo parece residir no fato de o homicídio estar relacionado a questões de drogas ou ao tráfico de drogas. O mesmo pode ser dito em relação à “dosimetria da pena” por parte do juiz togado. Como sugerido anteriormente, esses indivíduos são incriminados por outros eventos além do homicídio, o que parece reforçar a importância das variáveis legais na determinação da sentença (HAGAN, 1974). Estas agregariam possivelmente variáveis extralegais como a inserção desses indivíduos no tipo social representado pelos personagens do traficante, do bandido, do marginal ou do vagabundo (MISSE, 1999). Neste capítulo foram apontados aspectos referentes ao fluxo do processo de incriminação correspondente a eventos criminados como homicídio doloso consumado cuja acusação pública teve início entre janeiro de 2004 e dezembro de 2005, em Belo Horizonte/MG. Dessa maneira, foi possível identificar possíveis determinantes que podem levar (1) a sentenças condenatórias e (2) ao cumprimento da pena estipulada nestas mesmas sentenças. O que as análises aqui empreendidas permitem dizer é que independentemente dos tipos de homicídios, grande parte dos processos desses indivíduos incriminados havia sido submetida à sessão de julgamento até janeiro de 2013, decorridos 9 anos do início do processamento pelo rito do tribunal do júri. Em relação à análise específica para tempo do processo de incriminação, percebe-se que os “autos” relacionados a homicídios do tipo drogas/tráfico são os que tramitam mais rapidamente no rito do tribunal do júri. Em relação às sentenças condenatórias e ao cumprimento da pena estipulada nessas sentenças, percebe-se que os indivíduos incriminados por homicídios do tipo drogas/tráfico de drogas são os mais condenados, já que 96,5% receberam sentença condenatória e, mais punidos pois aproximadamente 69% encontram-se cumprindo a pena fixada pelo juiz nessas mesmas sentenças. Esmiuçando-se essa análise, sobre aspectos e possíveis elementos que podem determinar sentenças condenatórias e punição, foi possível indicar duas correlações de

141

ordem legal: os fatores “homicídios cometidos por armas de fogo” e “acusados responderem por outros processos além do analisado” podem influenciar para que o resultado da sentença final seja a condenação. Quando elaboram as denúncias, os promotores de justiça narram um resumo do inquérito policial onde são apresentados elementos da materialidade do evento criminado e indícios de autoria em relação a este mesmo evento. Com isso, os promotores tornam pública a acusação de um indivíduo, que até então era secreta. Construir uma categoria analítica como a tipologia de homicídio doloso considerando as variáveis estruturais e contextuais presentes nessas denúncias são úteis para refletir sobre fatores legais e contextuais que podem ser determinantes para que o resultado final do processo de incriminação seja a condenação desses indivíduos, bem como o cumprimento da pena fixada nessas sentenças. Os resultados apontam para um processo de incriminação mais punitivo para os indivíduos que cometeram homicídios relacionados a questões de drogas e/ou tráfico de drogas já que são os mais condenados e os que mais cumprem a pena. Essa constatação indica uma maior reação social aos homicídios envolvendo tráfico de drogas e, possivelmente, a continuidade da construção social e institucional da sujeição criminal, processo iniciado no primeiro momento da instrução criminal da fase policial, com a perícia em local de morte violenta, tal como apresentado no Capítulo 3. No intuito de estudar essa tendência em que incriminação e sujeição criminal venham a caminhar juntas, no próximo capítulo, discuto como esses dois níveis analíticos da construção social do crime, em especial do homicídio doloso, são construídos por meio dos relatos de acusação pública e dos accounts de defesa, com base nos quais o conselho de sentença decide pela condenação desses sujeitos e o juiz decide, por sua vez, sobre a fixação da pena a ser cumprida por esses indivíduos.

142

Capítulo 5 - A construção do processo judicial de homicídio doloso: da denúncia à sentença condenatória Neste capítulo, dou prosseguimento à discussão apresentada anteriormente, tendo como material empírico 130 “autos processuais” originados pelas mesmas denúncias que compuseram o conjunto de 154 casos analisado no capítulo anterior76. Como forma de controle, os processos foram numerados seguindo a mesma codificação da base de dados utilizada anteriormente. Por esse motivo, quando necessário, faço referência a eles da seguinte maneira: Processo no 1, Processo no 2 e assim por diante até Processo no 154. Analiso esses processos visando identificar possíveis elementos que parecem determinar a decisão do conselho de sentença para condenar os acusados. Em minhas análises, não estarei falando de práticas rotineiras de promotores de justiça, defensores, juízes e jurados, já que eu não as observei. Por isso, é importante destacar também que, apesar de considerar a decisão tomada pelo conselho de sentença, eu não analiso a sessão de julgamento, o ritual do tribunal do júri propriamente dito. Este vem sendo estudado principalmente por antropólogos que destacam como a verdade jurídica é construída com base em aspectos lúdicos, textuais e dramatúrgicos deste ritual (SCHRITZMEYER, 2001, 2012; FIGUEIRA, 2008). Como o meu interesse nesta tese é compreender o homicídio doloso através da construção social e institucional, valho-me de análise documental referente ao rito (e não ritual) do tribunal do júri. O que a fonte de dados aqui contemplada me permite, em termos metodológicos, é analisar esse material com base nos relatos de acusação pública (produzidos por promotores de justiça) aos quais se contrapõem os relatos da defesa (produzidos pelos defensores públicos ou advogados e pelos próprios acusados em seus interrogatórios), bem como as decisões dos juízes tomadas com base nesses relatos. Nesse sentido, meu olhar para os relatos de acusação e da sentença está orientado pelo entendimento de Garfinkel (1967) sobre accounts: relatos que justificam a tomada de decisão em ambiente organizacional. E, de outro lado, meu olhar para os relatos da defesa, bem como as falas transcritas dos acusados, segue o entendimento de accounts segundo a perspectiva de Scott e Lyman:

76

A explicação para a não consulta aos 24 processos restantes deve-se a que os processos que se encontravam com juízes das varas criminais, ou com desembargadores ou, ainda, arquivados em uma empresa terceirizada que faz serviço semelhante ao do Arquivo do Fórum. Portanto, eles foram localizados, mas não acessados.

143

“afirmação feita por um ator social para explicar um comportamento imprevisto ou impróprio - seja este comportamento seu ou de outra pessoa, quer o motivo imediato para a afirmação parta do próprio ator ou de alguém mais” (SCOTT; LYMAN, 1968[2008], p. 138).

Como visto, a instrução criminal na fase da polícia é sigilosa. Diferentemente, na instrução criminal no rito do tribunal do júri, os procedimentos ganham caráter público, já que abarca crimes de ação pública, esta promovida por denúncia do Ministério Público (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 24). Ao buscar identificar elementos que podem determinar a condenação dos acusados, analiso como a incriminação é construída ao longo da instrução criminal no rito do tribunal do júri, desde a denúncia até a sentença final passando pela sentença de pronúncia, momento este que delimita a transição entre a primeira e a segunda fase do rito. Consulto prioritariamente os processos localizados e acessíveis para análise que já contivessem “sentença transitada em julgado”, isto é, já finalizados e arquivados em definitivo no Arquivo do Fórum Lafayette. De modo complementar, ao final do capítulo, demonstro as análises dos processos para os dois tipos principais inseridos na tipologia de homicídio explorada no capítulo anterior: conflitos cotidianos e drogas/tráfico. Em menor medida, consulto também os processos cujas sentenças finais tiveram como decisão do conselho de sentença, a absolvição do acusado. O objetivo em olhar esses processos é o mesmo que me fez analisar pedidos de arquivamento de inquéritos policiais, o de pensar o oposto (MILLS, 1975[1959]): identificar se os elementos determinantes para a absolvição são os que correspondem, em contraposição, aos elementos que determinam a condenação. Atualmente, no Brasil, um processo judicial de homicídio doloso é composto pelos seguintes documentos que considero principais para análise: inquérito policial, denúncia, alegações finais da acusação e da defesa, sentença de pronúncia e sentença final. Pedidos de dilação de prazo77, certidões positivas ou negativas de intimações de testemunhas e de acusados, transcrições de depoimentos de testemunhas e do interrogatório do acusado colhidos na primeira fase do rito do tribunal do júri, bem como mandados de prisão, que dentre outros documentos, completam um processo.

77

Discussão mais detida sobre a movimentação cartorial de um processo, o “pingue-pongue” entre delegacias e judiciário encontra-se no livro “O Inquérito Policial no Brasil: uma pesquisa empírica”, organizado por Michel Misse (MISSE, 2010). Especificamente para Belo Horizonte, ver neste livro capítulo de Vargas e Nascimento (pp.102-190).

144

Todos esses papéis são agrupados por grampos de metal e encadernados em capas de cartolina, de cores azul, verde ou parda, contendo o timbre do Tribunal de Justiça, número da Vara Criminal, nomes dos réus e a tipificação penal. É muito comum o processo ser decomposto em dois ou mais volumes, com cerca de 250 páginas cada. É comum também a existência de apensos, cadernos com 20 a 30 páginas contendo informações extras. Nos casos em que os réus estão presos, há uma tarja vermelha, que tem a função de chamar a atenção dos operadores indicando que estes casos devem ser priorizados, já que o Código de Processo Penal prevê prazos mais curtos para os trâmites judiciais referentes a indivíduos presos. Como meu interesse nesta tese é compreender como o homicídio é construído social e institucionalmente, tenho que levar em consideração algumas características do sistema de justiça criminal brasileiro, principalmente o fato de estar inserido em uma tradição do direito codificado, onde prevalece a lógica do contraditório (GRINOVER, 1998; LIMA, 2009). Por essa razão, as regras de procedimento exercem mais influência como delimitadoras de certos comportamentos e práticas dos operadores (VARGAS, 2000), principalmente quando o comparamos com o direito estadunidense, onde prevalece a lógica adversarial. Antes de apresentar minhas análises sobre os relatos, considero importante descrever as regras de decisão, ou regras de procedimento, que orientam as rotinas práticas dos operadores do rito do tribunal do júri: promotores de justiça, juízes e conselho de sentença, bem como os defensores, sejam eles públicos ou privados. Faço isso porque, como já ressaltei, não observei essas receitas práticas e não posso descrever, tal como fiz no Capítulo 3, como esses relatos foram (e são cotidianamente) construídos. Mas posso interpretá-los enquanto relatos que prestam contas de decisões, ou justificar sua revogação e que são de ordem institucional-legal. O processo de construção social e institucional de um evento como o homicídio doloso passa por uma série de formalismos legais que exigem a produção de relatos com vistas a dar satisfação e prestar contas do que é decidido em cada etapa da instrução criminal. Se cada relato é a interpretação de interpretações feitas de relatos anteriores, feitos por diferentes operadores, a interpretação que eu faço desses relatos é o resultado compilado de uma leitura de terceira, quarta mão. Reside aqui uma ponderação de ordem epistemológica importante sobre as análises que ora apresento. A seguir, uma breve descrição das regras de procedimento, ou regras de decisão, que orientam a produção desses relatos contidos nos processos aqui analisados.

145

O Capítulo IV da Constituição Federal (BRASIL, 2013) apresenta as funções essenciais à Justiça, reservando a primeira seção ao Ministério Público (artigos 127 a 130-A) e a terceira seção à Advocacia e à Defensoria Pública (artigos 133 a 135). De acordo com essa referência de ordem legislativa, o Ministério Público abrange o Ministério Público da União e os Ministérios Públicos dos estados. É uma instituição permanente, sendo responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. É um órgão dotado de três princípios institucionais: a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Além disso, é autônomo funcional e administrativamente, sendo que seus cargos são preenchidos mediante concurso público. Aos membros do “MP”78, são garantidas a vitaliciedade, inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídio. Por outro lado, é vetado a eles receber honorários, exercer a advocacia, participar da sociedade comercial, exercer outra função pública exceto uma de magistério e exercer atividade político-partidária salvo exceções previstas em lei (BRASIL, 2013, Constituição Federal, artigo 128). Estudos voltados para a percepção dos promotores de justiça quanto às suas funções mostram que esses operadores veem o “MP” como um órgão de defesa dos direitos meta-individuais de uma sociedade hipossuficiente (SADEK, 1997; ARANTES, 1999; SILVA, 2001). Resumidamente, são nove as funções institucionais do Ministério Público: a) promover a ação penal pública; b) zelar pelo respeito aos Poderes Públicos e à Constituição Federal; c) promover o inquérito civil e a ação civil pública; d) promover ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados; e) defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; f) expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência; g) exercer o controle externo da atividade policial; h) requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial e; i) exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade (BRASIL, 2013, Constituição Federal, artigo 129). Tal como apresentado na Parte I quando mencionei as regras de decisão, ou regras de procedimento voltadas ao trabalho dos peritos, as regras que orientam as receitas práticas dos promotores de justiça também estão contidas no Código de Processo Penal 79, Título III, intitulado “Da Ação Penal”: 78

Pude observar na leitura dos processos que é muito comum o uso da sigla “MP” para se referir a Ministério Público. Uso-a aqui, portanto, como categoria nativa. 79 Leis de 2008 (no 11.689/08, no 11.719/08, no 11.690/08) e de 2009 (no 11.900/09) alteraram alguns artigos do Código de Processo Penal. Dos processos dos quais partem minhas análises, 9 contêm sentenças de pronúncia com datas posteriores a 2008. Entretanto, 57% deles contêm sentenças finais datadas após 2008. Como minha

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“nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo” (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 24).

Por esta regra, entende-se que a denúncia é a peça inicial de uma ação penal pública. Esse documento deve conter todas as informações do fato delituoso, de forma a possibilitar a defesa do réu. Para isso, a narração nela contida deve, segundo o texto, ser sucinta, clara e justa. Como apresentado na Parte I, o inquérito policial segue entranhado ao processo judicial e tem a função, tal como expresso também no Código de Processo Penal, de embasar o promotor de justiça para o oferecimento da denúncia. Quanto ao prazo de oferecimento da denúncia, estabelece o referido código: cinco dias, se o réu estiver preso, contados da data em que o Ministério Público recebeu o inquérito policial; e quinze dias se o réu estiver em liberdade ou afiançado, sendo que o Ministério Público pode devolver o inquérito à delegacia de origem para maiores investigações e esclarecimentos. Nesse último caso, o prazo será contado novamente a partir da data do recebimento do inquérito pela segunda vez. A denúncia pode ser rejeitada pelo juiz quando: “o fato narrado evidentemente não constituir crime [ou quando] já estiver extinta a punibilidade pela prescrição ou outra causa [ou ainda, quando] for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal” [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 43].

Uma vez que a denúncia é oferecida e aceita pelo juiz, ocorre a citação do réu, isto é, a comunicação oficial e pública ao sujeito que está sendo alvo do processo de incriminação. Pela primeira vez, e só agora, a defesa entra legalmente no processo de incriminação. Diante disso, ele é obrigado a apresentar sua defesa prévia, seja por advogado particular ou por defensor público. Diz a Constituição Federal: “O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da sua profissão nos limites da lei.” [BRASIL, 2013, Constituição Federal, artigo 133].

intenção neste estudo é identificar possíveis elementos que podem determinar a decisão dos jurados pela condenação dos acusados, decidi utilizar o Código de Processo Penal de 2013 (atualizado até 12 de dezembro de 2012). Tratarei exclusivamente dessas leis que modificaram as regras de procedimento no Capítulo 7 desta tese.

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“A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV 80.” [BRASIL, 2013, Constituição Federal, artigo 134].

Dando prosseguimento ao fluxo no rito do tribunal do júri, oferecida e aceita a denúncia, citado o réu e apresentada sua defesa prévia, são iniciados os procedimentos necessários à instrução criminal na primeira fase do rito, com a tomada de depoimento das testemunhas e do interrogatório do réu, pela segunda vez. A primeira vez, como se recorda, deu-se na instrução preliminar do inquérito policial, na etapa policial. Também, como se recorda, foi esta instrução preliminar que foi a base da denúncia formulada pelo Ministério Público. A diferença, agora, converge para o caráter público desses procedimentos e pela presença obrigatória de defensor para o acusado. As pessoas não falam mais para um delegado ou para policiais em um ambiente secreto, mas para um juiz em um “plenário” onde há espaço para o público interessado em assistir a essas “audiências de instrução”. As regras de procedimento correspondentes ao interrogatório do acusado estão também contidas no Código de Processo Penal, nos artigos 185 a 200, se incluirmos as regras também voltadas para a validade da confissão. Os artigos 202 a 225 correspondem às regras para a tomada de depoimento das testemunhas. Dentre todos esses artigos, destaco os que contêm as regras que mais serão úteis às análises empreendidas neste capítulo: “O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído [isto é, particular] ou nomeado [isto é, público ou dativo]. [...] Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. [...] O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos.” [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigos 185, 186 e 187]. “O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz. [...] 80

Já transcrito em nota no capítulo anterior.

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A confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz fundado no exame das provas em conjunto.” [BRASIL, Código de Processo Penal, artigos 197, 198 e 200]. “Toda pessoa poderá ser testemunha. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado [...] e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade. [...] As testemunhas serão inquiridas cada uma de per si, de modo que umas não saibam nem ouçam os depoimentos das outras, devendo o juiz adverti-las das penas cominadas ao falso testemunho. Se o juiz, ao pronunciar a sentença final, reconhecer que alguma testemunha fez afirmação falsa, calou ou negou a verdade, remeterá cópia do depoimento à autoridade policial para a instauração do inquérito.” [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigos 202, 203, 210 e 211].

Ouvidos novamente testemunhas e o acusado, os “autos” são encaminhados ao juiz responsável pela primeira fase do rito, o mesmo que ministrou (em tese) as audiências, para que ele possa tomar uma dentre três decisões: pronunciar, impronunciar ou absolver sumariamente o acusado. Essa decisão é chamada “sentença de pronúncia” e constitui um relato onde o juiz da primeira fase do rito expõe sua decisão quanto ao encaminhamento (ou não) do denunciado ao julgamento pelo conselho de sentença, também chamado júri popular. Segundo as regras de procedimento contidas no Código de Processo Penal: “O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento da pena. [...] Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado. [...] O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando: I – provada a inexistência do fato; II – provado não ser ele o autor ou partícipe do fato; III – o fato não constituir infração penal; IV – demonstrada causa de isenção de pena ou exclusão do crime.” [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigos 413, 414 e 415].

Como se percebe pelos três artigos transcritos anteriormente, a decisão do juiz deve ser sempre “fundamentada”. Por essa razão, ela é tomada segundo o chamado “princípio do livre convencimento motivado” do juiz, que deve ser embasado nos elementos que o levaram a tomar tal decisão. Esses elementos são, geralmente, a análise das “provas” colhidas em fase

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de instrução criminal (policial e judicial), em jurisprudências81 e/ou na própria doutrina jurídica (MENDES, 2012). As regras de decisão que orientam os accounts dos juízes estão contidas no Código de Processo Penal, dentre as quais destaco a “exposição de motivos” 82 do legislador quanto às “provas” e ao uso que o juiz deve delas fazer para fundamentar sua decisão e também quanto a prestar contas da sua decisão. “O projeto abandonou radicalmente o sistema chamado da certeza legal. Atribui ao juiz a faculdade de iniciativa de provas complementares ou supletivas, quer no curso da instrução criminal, quer a final, antes de proferir a sentença. Não serão atendíveis as restrições à prova estabelecida pela lei civil, salvo quanto ao estado das pessoas; nem é prefixada uma hierarquia de provas: na livre apreciação destas, o juiz formará, honesta e lealmente, a sua convicção. A própria confissão do acusado não constitui, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade. Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. [...] O juiz criminal é, assim, restituído à sua própria consciência. Nunca é demais, porém, advertir que livre convencimento não quer dizer puro capricho de opinião ou mero arbítrio na apreciação das provas. O juiz está livre de preconceitos legais na aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se ao seu conteúdo. Não estará ele dispensado de motivar a sua sentença. E precisamente nisto reside a suficiente garantia do direito das partes e do interesse social. Por outro lado, o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não estará sujeito a preclusões. Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet.” [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, Exposição de Motivos, VII, destaques do legislador e grifos meus].

Sendo o réu pronunciado, “os autos serão encaminhados ao juiz-presidente do Tribunal do Júri” (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 421). Como já dito nesta tese, a sentença de pronúncia demarca o momento que encerra a primeira fase do rito do tribunal do júri e, ao mesmo tempo, o que abre a segunda fase. Sendo pronunciado o réu, são iniciados os procedimentos para a realização da sessão de julgamento pelo conselho de sentença, formado por sete cidadãos escolhidos de uma lista inicialmente composta por vinte e cinco indivíduos. Essa lista maior, por sua vez, é obtida de outras instituições públicas que indicam, a pedido do Tribunal de Justiça, um rol de seus servidores.

81

Jurisprudências são decisões sobre casos que extinguem ambiguidade na interpretação de partes da lei, fixando uma regra única de interpretação para casos análogos. 82 A “Exposição de Motivos” é uma parte que antecede o Código de Processo Penal. Nela estão contidas as principais razões para as mudanças propostas pelos legisladores no “novo código” (de 1941) em relação ao código anterior (de 1890).

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“Atualmente, serão alistados pelo presidente do Tribunal do Júri de 800 (oitocentos) a 1.500 (um mil e quinhentos) jurados nas comarcas de mais de 1.000.000 (um milhão) de habitantes, de 300 (trezentos) a 700 (setecentos) nas comarcas de mais de 100.000 (cem mil) habitantes e de 80 (oitenta) a 400 (quatrocentos) nas comarcas de menor população. [...] O juiz-presidente requisitará às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários a indicação de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado.” [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigos 425 e 426, grifos meus].

Esse momento do rito do tribunal do júri vem recebendo atenção por parte da Antropologia do Direito, e as análises têm sido realizadas em contraste com o trial by jury, o julgamento existente nos modelos de justiça vinculados à tradição de common law. Boris Fausto (2001[1984]) mostra que na época do Império, o procedimento do Tribunal do Júri era aplicado a outros crimes além dos homicídios, sendo o conselho de sentença constituído por “pessoas de reconhecido bom senso”, indicadas por delegados, juízes de paz, padres, dentre outros da “nobreza”. Lima (2008) comenta sobre esse procedimento ter sido visto pelos juristas desta época como muito avançado para a sociedade brasileira83 e, por isso, as restrições em relação à sua utilização nos crimes comuns. Ainda citando o Código de Processo Penal, o serviço do júri é obrigatório, semelhante a outros direitos individuais que se tornam obrigações no Brasil: o voto, ter um defensor constituído quando processado no sistema de justiça criminal e o serviço militar para homens maiores de 18 anos, são exemplos (LIMA, 2009). Podem ser jurados “todos os cidadãos maiores de 18 anos de notória idoneidade”, estando a obrigatoriedade demarcada por uma punição prevista para aqueles que se recusarem injustificadamente a prestar o serviço, uma “multa no valor de 1 (um) a 10 (dez) salários mínimos, a critério do juiz, de acordo com a condição econômica do jurado” (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 436). Em contrapartida: “O exercício efetivo da função de jurado constituirá serviço público relevante, estabelecerá presunção de idoneidade moral e assegurará prisão especial, em caso de crime comum, até o julgamento definitivo. Constitui também direito do jurado [...] preferência em igualdade de condições, nas licitações públicas e no provimento, mediante concurso, de cargo ou função pública, bem como nos casos de promoção funcional ou remoção voluntária.” [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigos 439 e 440].

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Figueira (2008) dedica especial atenção à história do Tribunal do Júri no Brasil.

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A leitura do artigo 445 do Código de Processo Penal permite perceber que os jurados são temporariamente alçados ao nível dos juízes togados, já que os responsabiliza criminalmente nos mesmos termos correspondentes a estes. O Tribunal do Júri é composto, então, por: “1 (um) juiz togado, seu presidente, e por 25 (vinte e cinco) jurados que serão sorteados dentre os alistados, 7 (sete) dos quais constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento”. [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 447].

Muito mais haveria que falar sobre as regras de decisão, ou regras de procedimento, correspondentes ao julgamento em plenário, se meu interesse de pesquisa fosse o ritual do Tribunal do Júri em vez do rito. Para meus objetivos neste momento, basta complementar a apresentação dessas regras destacando que “o Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido” (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 482) e que os jurados não podem conversar entre si. A decisão dos jurados aqui no Brasil se baseia em votação sigilosa em uma “sala secreta” contígua ao salão do plenário onde ocorre a sessão de julgamento. Cada jurado recebe pequenas cédulas contendo sete delas as palavras “sim” e outras sete contendo a palavra “não”. A cada quesito, ou a pergunta do juiz, o jurado deposita uma das cédulas em uma urna lacrada. Finda a votação, esta será aberta pelo juiz no salão do plenário, e os votos serão contados seguindo a ordem de acordo com a qual os quesitos foram formulados84. A decisão quanto à condenação ou à absolvição do acusado se dá pela maioria dos sete votos: “Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação. §1º A resposta negativa, de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado. §2º Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado? §3º Decidindo os jurados pela condenação, o julgamento prossegue [...]”. [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 483].

Sendo condenado pelo conselho de sentença, o incriminado receberá do juiz a definição da pena prevista no Código Penal em correspondência ao “crime” que ele cometeu. 84

Para uma comparação contrastante com o júri da tradição da Common Law (como nos EUA), ver Lima (2008).

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A decisão dos jurados é brevemente descrita na sentença final pelo juiz-presidente, documento no qual este apresenta o seu account quanto à pena referente à tipificação jurídica: “Em seguida, o presidente proferirá sentença que: I – no caso de condenação: a) Fixará a pena-base; b) Considerará as circunstâncias agravantes ou atenuantes alegadas nos debates; c) Imporá os aumentos ou diminuições da pena, em atenção às causas admitidas pelo júri; d) Observará as demais disposições do art. 387 deste Código; e) Mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva; f) Estabelecerá os efeitos genéricos e específicos da condenação”. [...] “A sentença será lida em plenário pelo presidente antes de encerrada a sessão de instrução e julgamento.” [BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigos 492 e 493].

Para os objetivos deste capítulo, dedico especial atenção às análises advindas da leitura das sentenças de pronúncia e das sentenças finais do juiz togado já que estas, por encerrarem, respectivamente, a primeira e a segunda fase do rito do tribunal do júri, contêm os accounts dos juízes. Quanto às sentenças de pronúncia, pude observar uma padronização quanto ao formato de elaboração da mesma, indicando que os juízes da primeira fase do rito do júri seguem para sua elaboração uma receita profissional. Em geral, esses documentos iniciam-se pela tipificação contida no Código Penal na qual o indivíduo foi incriminado na denúncia, acompanhada de um resumo da mesma, onde se encontra destacado o contexto do evento registrado: “[NOME DO DENUNCIADO] já qualificado nos autos, foi denunciado como incurso nas sanções do art. 121, §2º., incisos I e IV do Código Penal Brasileiro, por prática de homicídio qualificado contra a vítima [Nome].” Narra a denúncia que: (...) Consta dos inclusos autos do IP [entenda-se: inquérito policial] que o denunciado, no dia 05 de fevereiro de 2005, por volta das 10:40h, na Rua do Grupo, altura do no 83, Conjunto Granja de Freitas, nesta cidade, efetuou diversos disparos de arma de fogo em [Nome da vítima], provocando-lhe as lesões descritas no relatório de necropsia de fls. 19/25, causa eficiente de sua morte. Consta, ainda, que o denunciado agiu por motivo torpe, eis que matou a vítima por supor que esta atrapalhava seus negócios, a saber, o tráfico de drogas na região. Consta, finalmente, que para alcançar seu intento o denunciado utilizou de recurso que dificultou a defesa da vítima, pois dissimulou telefonando para a casa da vítima fazendo-se passar por um cliente que encomendava um botijão de gás e, quando [Nome da vítima], no exercício de sua profissão chegou para fazer a entrega, foi recebido com os disparos que lhe ceifaram a vida (...)” [sentença de pronúncia, Processo no 2].

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Feita esta parte introdutória, o juiz segue a elaboração da sentença de pronúncia fazendo menção ao inquérito policial. Ele o faz como modo de se referir à denúncia, informando que o promotor se baseou no inquérito, entranhado no processo, para redigi-la. O fato de o inquérito policial ser entranhado no processo é uma das principais críticas feitas ao funcionamento do sistema de justiça criminal no Brasil (LIMA, 1989, 2008; GRINOVER, 1998, MENDES, 2012; MISSE, 2010; VARGAS; NASCIMENTO, 2010). Fazendo parte do processo judicial, o inquérito não somente serve para embasar o início da instrução criminal no rito do tribunal do júri (e no rito ordinário também) com a denúncia, mas permanece influenciando as decisões tomadas pelos operadores ao longo de todo o processamento, mesmo sabendo-se que ele foi produzido sem ouvir (ou mesmo sem o conhecimento) da defesa. O principal conteúdo desta crítica é que o inquérito, construído em moldes inquisitoriais na fase policial, expande o caráter inquisitorial às etapas posteriores da instrução criminal. Dadas as regras de decisão contidas no Código de Processo Penal quanto ao livre convencimento do juiz, descrever os documentos contidos no inquérito policial mostra que este foi certamente utilizado para embasar a decisão de pronúncia. Essa observação permite consolidar a crítica, já que o juiz não faz uma mera descrição do inquérito, mas parece efetivamente considerar o conteúdo nele contido, conforme os trechos abaixo ilustram: “Referida denúncia baseou-se no incluso inquérito policial iniciado por Portaria e do qual constam, entre peças regulamentares e outras: boletim de ocorrência (fls. 63/65), depoimento de testemunhas (fls. 16/17V, 18/19V, 20/21V, 78/80 e 110/114), relatório de necropsia (fls. 22/24), certidão de óbito (fls. 32), declarações das vítimas [nome A] (fls. 33/35), [nome B] (fls.81/82), [nome C] (fls.83/85), e relatório final (fls. 186/192).” [sentença de pronúncia, grifos meus, Processo no 93]. “Referida Denúncia baseou-se no incluso inquérito policial iniciado por Portaria (fls. 06) e do qual constam, entre peças regulamentares e outras: declaração dos indiciados (fls. 63/65 e 66/67), depoimento das testemunhas (fls. 72/73, 75/58, 80/82, 84/85, 92/93, 131/134, 137/138, 140/141, 161/162, 167/183, 200/201, 229/230 e 233/234), comunicações sobre as investigações e relatório final (fls. 254/276).” [sentença de pronúncia, grifos meus, Processo no 55].

“Referida Denúncia baseou-se no incluso inquérito policial iniciado por Auto de Prisão em Flagrante (fls. 05/08), e do qual constam, entre peças regulamentares e outras: boletim de ocorrência (fls. 14/15), declarações do indiciado (fls. 08, 36/38), relatório de necropsia (fls. 52/57), levantamento do local dos fatos (fls. 78/89) e relatório final (fls. 43/43vo).” [sentença de pronúncia, grifos meus, Processo no 79].

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Dando continuidade à elaboração da sentença de pronúncia, o juiz narra um resumo da primeira fase do rito do tribunal do júri, com a descrição dos procedimentos realizados, tais como: citação do réu, audiências realizadas, certificação dos antecedentes do acusado, até o momento das alegações finais redigidas pela acusação e pela defesa. Observei que a estratégia de elaboração do account do juiz é apresentar recortes dos principais trechos das alegações finais de acusação pública e, posteriormente, os trechos das alegações finais apresentadas pela defesa do acusado, em descrições sucintas. Estabelecendo um contraponto entre esses accounts, de conteúdos conflitantes, ele passa a fundamentar sua decisão, demarcada pela expressão escrita em negrito e sublinhada “É o relatório.” ou outras expressões semelhantes. Seguem alguns exemplos: “A Denúncia foi recebida em 14/06/2005, à f. 131. ACD [isto é, auto de corpo de delito] às ff. 113/115. Auto de apreensão às ff. 38 e 86. Laudo de vistoria em telefone celular às ff. 44/55. Termo de restituição à f. 56. Laudo de levantamento de local e anexo às ff. 57/76. Laudo de determinação de calibre à f. 77. Fac [isto é, ficha de antecedentes criminais] às ff. 97/101, 126/129 e 177/180. Laudo toxicológico à f. 116. Cac [isto é, certidão de antecedentes criminais] às ff. 130 e 176. O acusado foi interrogado às ff. 138/140. Durante a instrução foram ouvidas 3 (três) testemunhas arroladas em comum pela acusação e defesa, às ff. 158/160. Em alegações finais, o Ministério Público pediu a pronúncia do acusado como incurso nas sanções do art. 121, §2º, incisos I, III e IV, do CPB. A defesa do acusado, em alegações finais, arguiu, em preliminar, nulidade absoluta do processo, aduzindo, em síntese, que não houve a citação do réu. Pediu, ainda, a desqualificação do delito. É O RELATÓRIO.” [sentença de pronúncia, Processo no 8, destaques do juiz]. “A mesma Denúncia, em que arroladas 8 (oito) testemunhas, foi recebida em 21.10.05 (fls. 175), e o réu citado (fls. 186/187) e interrogado (fls. 188/190) em 25.10.05, ocasião em que o Defensor do réu, presente, foi intimado para fins de defesa prévia e requereu revogação da prisão preventiva. Em 18.11.05, procedeu-se à inquirição de seis das testemunhas da inicial (fls. 210/218) e na continuidade da instrução, em 20.06.06, colheu-se a fala de uma outra testemunha do mesmo rol (fls. 259). Uma última testemunha foi ouvida na data de 28.11.06 (fls. 297). Certificados os antecedentes, abriu-se vistas para fins do art. 406 do CPP (fls. 296). O Dr. Promotor de Justiça, em Alegações Finais (fls.299/301), ressaltou estarem provadas autoria e materialidade, bem como a procedência das qualificadoras. Ao final, requereu a pronúncia do réu, nos termos da peça exordial acusatória [isto é, denúncia]. A Defesa, por seu turno (fls. 303/307), requereu o decote das qualificadoras, alegando serem elas manifestamente improcedentes. É o relatório.” [sentença de pronúncia, Processo no 41].

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Os accounts dos juízes no encerramento da primeira fase do rito do tribunal do júri têm continuidade com as argumentações destes frente às alegações da defesa, apresentadas em accounts que ora neutralizam a culpa, ora justificam o ato do acusado. Os juízes constroem linhas argumentativas nos accounts valendo-se ora das jurisprudências e doutrina jurídica, ora dos trechos de depoimentos de testemunhas e dos interrogatórios dos acusados para sustentar e justificar suas decisões. Estas se referem não somente ao pronunciamento (ou não) do réu para ser julgado pelo conselho de sentença no ritual do tribunal do júri, mas também a outros pedidos da defesa como, e principalmente, a liberdade provisória dos réus que se encontram presos. É recorrente que esses accounts sejam demarcados por um subtítulo: “Passo à fundamentação” ou “Passo a fundamentar e a decidir”. Cabe lembrar que a sentença pode ser reformada pelos desembargadores do Tribunal de Justiça. E, neste sentido, é um account a ser apreciado por superiores. Seguem trechos de sentenças de pronúncia para exemplificar esta análise: “É o relatório. Passo a fundamentar e a decidir. A análise atenta dos autos está a indicar ser o réu [NOME] autor dos homicídios narrados na Exordial acusatória [isto é, denúncia], em concurso com os demais denunciados. A materialidade tem suporte no relatório de necropsia (fls.133/140 e 141/147). Quanto ao requerido pela Defesa vejamos: Júlio Fabbrini Mirabete [isto é, um “doutrinador”], em seu Manual de Direito Penal, preleciona: ‘Existe na coação moral uma ameaça, e a vontade do coacto não é livre, embora possa decidir pelo que considere para si um mal menor; por isso, trata-se hipótese em que se exclui não a ação, mas a culpabilidade, por não lhe ser exigível comportamento diverso. É indispensável, porém, que a coação seja irresistível, ou seja inevitável, insuperável, inelutável, uma força de que o coacto não se pode subtrair, tudo sugerindo situação à qual ele não se pode opor, recusar-se ou fazer face, mas tão-somente sucumbir, ante o decreto do inexorável. É indispensável que a acompanhe um perigo sério e atual de que ao coagido não é possível eximir, ou que lhe seja extraordinariamente difícil suportar. Nessa hipótese, não se pode impor ao indivíduo a atitude heroica de cumprir o dever jurídico, qualquer que seja o dano a que se arrisque.’ (MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral (arts. 1º a 120 do CP), 22ª. ed., São Paulo: editora Atlas, 2005). [isto é, citação de um doutrinador]. Pretendo o réu o reconhecimento da coação moral irresistível. Não existe nos autos, por ora, elementos de prova que atestem a situação alegada pelo réu [NOME]. A coação moral irresistível, para ser aceita como excludente de culpabilidade, há de ser substancialmente comprovada por elementos concretos existentes dentro do processo, não bastando a simples versão dada por quem a invoca. Nesse sentido: ‘A coação moral irresistível, para ser aceita como excludente de culpabilidade, há de ser substancialmente comprovada por elementos concretos existentes dentro do processo, não bastando a simples versão dada pelos agentes que se dizem vítimas de coação, especialmente quando a descrição do fato por eles fornecida está contaminada pelo vício da incoerência e da contradição’ (TAMG – AC – Rel. Abel Machado – RJTAMG 21/366) [isto é, citação de uma jurisprudência].

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‘A coação irresistível, além de reclamar prova induvidosa, a cargo da defesa, exige, no plano moral, a existência de uma intimação concreta e exterior ao agente’ (TACRIM-SP – AC – Rel. Haroldo Luz – JUTACRIM 99/146) [isto é, citação de uma jurisprudência].” [sentença de pronúncia, Processo no 67].

“Ex positis, e por tudo o mais que dos autos consta, não existindo em favor do acusado nenhuma excludente de ilicitude ou causa de isenção de pena, deve [NOME] ser PRONUNCIADO a julgamento perante o Tribunal do Júri, nos termos da peça exordial acusatória, por ser medida de JUSTIÇA. Outrossim, requer o Ministério Público, seja o réu, [NOME], mantido no cárcere, em sendo pronunciado, vez que permanecem inalteradas as razões da custódia preventiva do acusado, possuidor de extensa certidão de antecedentes criminais (fls. 80/82), demonstrando ser dado à prática de crimes contra a pessoa, e, ainda, possuir incidência em crimes de ameaça contra diversas vítimas, demonstrando personalidade avalentoada, resolvendo questiúnculas na base da violência, deixando claro seu desprezo pela vida alheia, culminando com a prática desse bárbaro crime de homicídio duplamente qualificado, hediondo por natureza, não estando a merecer retornar ao convívio social, portanto, o seu encarceramento garante a ordem pública e assegura a aplicação da lei penal, e ainda, sua liberdade poderá traduzir para a sociedade um total descrédito no trabalho da Polícia Judiciária, do Ministério Público e da Magistratura. Além do que, a impunidade na Capital Mineira está a gerar o aumento da criminalidade sendo nosso dever contê-la, e isso se dará, evitando que este elemento nocivo, o acusado, alastre sua sanha assassina pela Capital das Alterosas.” [relato de acusação pública, alegações finais, Processo no 154, grifos meus].

Nota-se que o account dado pelo juiz mostra como este se alia ao account do promotor de justiça, em conflito com o do defensor, que tem seu papel limitado pela falta de credibilidade dada ao seu relato. Mostra também o papel que o juiz se arroga de defesa e preservação da ordem social distinguindo aqueles réus cuja separação é necessária realizar com a prisão. Considerando os resultados produzidos na Parte I desta tese, busquei observar, nos processos analisados, a função dos papéis produzidos pela polícia técnico-científica – os laudos periciais – para a construção da incriminação. Percebi que as referências aos laudos periciais nas sentenças de pronúncia são pontuais. Essas menções parecem sustentar, apenas, que o evento registrado pelo qual o indivíduo está sendo incriminado foi registrado como homicídio e é, de fato, um homicídio doloso. Assim, os laudos periciais não acrescentam elementos às decisões dos juízes quanto ao pronunciamento do réu ao julgamento pelo conselho de sentença. Minha leitura desses documentos permite dizer que os laudos construídos pela perícia cumprem uma função cerimonial também na fase judicial, já que não parecem configurar

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como elemento determinante para a decisão do juiz quanto à indicação da autoria. Os laudos de perícia de local do evento raramente são mencionados, enquanto os relatórios de necropsia sempre o são, já que, ao conterem a definição da causa mortis, atestam aquilo que já se sabe, isto é, que se trata de uma morte que permite a criminação enquanto homicídio doloso. “O acusado [NOME], vulgo Didi, não nega a autoria do golpe de faca que ceifou a vida da vítima, mas sustentou haver agido em legítima defesa. O contexto probatório corrobora a autoria dos fatos narrados na inicial [isto é, na denúncia], cuja materialidade está positivada no relatório de necropsia onde diagnosticada a causa mortis: ‘HEMORRAGIA INTERNA CONSEQUENTE A FERIDA PÉRFURO INCISA NO TÓRAX’ (fls. 37/38). Certas, pois, autoria e materialidade, passemos à análise do que foi requerido pelas partes.” [sentença de pronúncia, Processo no 42].

A observação quanto a não utilização dos laudos periciais como produtores de elementos capazes de sustentar os accounts formulados pelos juízes quando de suas decisões de pronúncia, mostrou que esses elementos são procurados nos testemunhos e nas confissões dos acusados, tomando também por base as alegações feitas pelo promotor. A observação dos processos indica que raramente os acusados estão acompanhados de seus defensores no momento do interrogatório na Polícia Civil. A presença do defensor passa a ser obrigatória a partir dos procedimentos referentes à primeira fase do rito do tribunal do júri, após o oferecimento da denúncia, quando a acusação passa a ser pública. Talvez por essa razão, tenha sido recorrente a confissão na fase policial e a negação da autoria, ou argumentação de legítima defesa, nos interrogatórios tomados ao longo da instrução na primeira fase do rito do tribunal do júri. Os accounts de defesa relacionados a essa alteração de conteúdo dos interrogatórios convergem para a existência da tortura na fase policial. “[...] ‘que também já tinha me ameaçado de morte, veio pra cima de mim, acho que era pra me bater, mas ele nem imaginava que eu estivesse armado, ele não sacou nada não, nem tinha nada na mão, mas eu logo saquei meu revolver calibre 0.38, de cinco tiros, preto, cano curto, e efetuei um disparo nele, acho que pegou no coração do TUCA, ele chegou a bater o braço no revolver, aí tanto ele quanto o revólver caiu no chão, mas ele levantou rapidinho e foi para dentro do portão da escola, tava pertinho, aí eu também saí correndo’, conforme se expressa. [...] ‘na hora eu fiquei com raiva, mas agora eu tô arrependido’. [...] que é viciado no uso de drogas, sendo cocaína e maconha, mas afirma não ter cometido nenhum desses crimes estando sob efeito de tais substâncias; que o declarante afirma que também foi autor das mortes de outras duas pessoas no Jardim Leblon.” [interrogatório na fase policial, Processo no 36]. “[...] os fatos da denúncia não são verdadeiros e que não confirma as suas declarações prestadas na fase policial, pois apanhou muito da polícia; que

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perguntado ao interrogado porque [nome da testemunha] apresentou aquela versão semelhante a do interrogando, este declarou que [nome da testemunha] também foi pressionada e as declarações dela são frutos dos agentes de polícia.” [interrogatório na primeira fase do rito do tribunal do júri, Processo no 36].

“O acusado, em seu interrogatório às ff. 136/138, disse que ‘(...) confessou a prática de homicídio porque estava sendo ameaçado de morte pelos policiais; que no dia dos fatos o declarante estava sozinho, num pagode na esquina da padaria da Vila São Tomaz, onde os fatos ocorreram’ [...]”. [interrogatório na primeira fase do rito do tribunal do júri, Processo no 43].

“A Defesa, no mesmo ensejo, requereu a impronúncia. Sustentou que embora provada a materialidade não restou demonstrada a autoria por parte do defendente. Acrescentou que o suposto reconhecimento na fase de inquérito carece de valor probante, pois as pessoas que dele participaram foram os mesmos policiais que desenvolveram as investigações. Aduziu, ainda, que o autor nega ter praticado o fato e que inexiste provas que possam apontá-lo como autor dos fatos.” [sentença de pronúncia, Processo no 101].

Segundo estudos de Lima (2009) e Vargas (2012), a confissão é, não raro, produto da prática da tortura sofrida pelos acusados na fase policial, o que está diretamente ligado com o caráter secreto dos procedimentos investigatórios seguidos pelos policiais em suas receitas práticas. Essa prática ilegal, por isso escondida, e tradicional (VARGAS, 2012) não é considerada real por quem está julgando o acusado, já que, embora ele diga que tenha confessado o crime por ter sido torturado na delegacia, ele não tem meios de “provar” que o que está dizendo é verdade. Diante disso, um limite de uma das metodologias que utilizo, a análise documental, é que os resultados obtidos acabam limitados por um jargão do campo do direito segundo o qual “o que não está nos autos não está no mundo”. Ainda assim, pude observar alguns trechos de confissão que foram reproduzidos pelos juízes em suas sentenças de pronúncia e percebi que esta é uma prática mais comum entre os incriminados por homicídio do tipo drogas/tráfico. Os trechos abaixo ilustram esta análise. Destaco, na leitura, a transposição do relato para a terceira pessoa do singular mesmo em um contexto no qual nitidamente a narrativa foi feita em primeira pessoa, já que se trata de uma confissão. No segundo exemplo, observam-se falas literais do acusado transcritas pelo escrivão. Estas são conjugadas com a expressão “conforme se expressa”: “que o declarante deu uma rasteira na vítima e quando ela caiu, a agrediu com uma pedra, desferindo golpes contra a cabeça dela; que o declarante desferiu muitas pedradas contra a vítima; que a vítima morreu rápido; que o declarante já assassinou umas quatro pessoas; que matar uma pessoa a mais ou a menos não altera nada na vida do declarante; que às vezes se arrepende do que fez e às vezes não; que caso o

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declarante saia da cadeia, matará o marido da vítima; que o declarante tem uns vinte ou trinta desafetos que ainda pretende assassinar; que os desafetos que cruzam o caminho do declarante são assassinados.” [trecho de interrogatório reproduzido na sentença de pronúncia, Processo no 49].

“QUE, o declarante mirou o revólver no rosto da vítima e efetuou os dois últimos disparos ‘ele tava caído com a barriga pra baixo e a cara de lado, eu mirei o revolver na cara dele e dei um tiro bem na boca dele e o outro eu num vi não, mas foi na cara também, aí o irmão dele apareceu lá na esquina e viu eu com o revolver na mão’, conforme se expressa; QUE, ‘eu ainda tentei dar mais tiro nele, aí eu vi que num saiu, eu subi o morro correndo, eu falei com o Maurício que os cara tinha dado tiro no irmão dele, eu falei que peguei o oitão e saí subindo’, conforme se expressa...” [trecho de interrogatório, Processo no 34]

“Quanto à preliminar de nulidade das provas produzidas no inquérito policial, há que ressaltar que o inquérito policial trata-se de procedimento administrativo, tendo por fim precípuo a formação de opinião do Ministério Público. Portanto, não apresenta cenário para a proclamação de nulidade de ato produzido durante o seu desenvolvimento. No que tange à alegação de ausência de autoria, visto que, como pode se depreender do art. 23985 do CPP, é considerado indício a circunstância conhecida e provada, que, relacionando-se com o fato, autoriza o juiz, por indução, a concluir a existência de outra ou de outras circunstâncias. Da análise atenta dos autos, é possível inferir, dos depoimentos das testemunhas, haver indícios suficientes a indicar ser o réu o autor dos fatos narrados na exordial [isto é, denúncia].” [sentença de pronúncia, Processo no 2, grifos meus].

Construindo seus accounts desta maneira, os juízes concluem suas sentenças de pronúncia informando a tipificação segundo a qual o acusado será submetido à decisão do conselho de sentença na sessão de julgamento. É neste momento que o formato-padrão se torna mais visível, já que eles se baseiam na regra de procedimento segundo a qual “a fundamentação da sentença de pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação” (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 41386, §1º). Fazem-no da seguinte maneira: “A materialidade do delito ficou comprovada pelo relatório de necropsia às fls. 24/25 do inquérito policial acostado nos autos. [...] As demais provas carreadas não trouxeram elementos para os autos capazes de desnaturar, nesta quadra, a pretensão ministerial. [...] Sendo a pronúncia um mero juízo de admissibilidade da acusação, adstrito à prova da existência da materialidade do delito e suficientes indícios da 85

“Considera-se de indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias” (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 239). 86 A correspondência no Código de Processo Penal anterior a 2008 é artigo 408. Apesar da numeração diferenciada, a redação da regra é muito similar: “Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos de seu convencimento”.

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autoria, deve-se evitar aprofundado exame da prova, a fim de não influir no convencimento daqueles que são os juízes naturais da causa. Nesta fase, os elementos indiciários coligidos para os autos não estão a indicar, sem sobressaltos de dúvidas, o acolhimento da tese defensiva de excludente de ilicitude.” [sentença de pronúncia, Processo no 26, grifos meus].

“A materialidade tem suporte no relatório de necropsia (fls. 64/66). Não podendo, pois, ser afastadas, de plano, autoria e materialidade, não há como impronunciar o acusado. No caso sub judice, restaram preenchidos os requisitos necessários para uma decisão de pronúncia [...]. Quanto às qualificadoras descritas na denúncia, sabe-se que somente devem ser arredadas do dispositivo da pronúncia quando manifestamente impertinentes e descabidas. No caso em pauta, as mesmas parecem evidenciadas nos motivos e nas circunstâncias em que se deram os fatos, razão por que restam mantidas para a apreciação dos Jurados. Ante o exposto, e por tudo o mais que dos autos consta, com fins no art. 408 do CPP, PRONUNCIO o réu [NOME], como incurso nas sanções do 121, §2º , incisos I e IV c/c art. 29, todos do CP, pela prática de homicídio duplamente qualificado contra a vítima [Nome], na data, local e circunstâncias descritos na Denúncia”. [sentença de pronúncia, Processo no 90, destaques do juiz].

“A análise atenta dos autos aponta a autoria dos fatos imputados ao réu [NOME] e este próprio, em juízo, confessou com segurança a prática do fato. A materialidade acha-se positivada no relatório de necropsia (fls. 26/27), onde diagnosticada a causa mortis: “Hemorragia externa por ferimento pérfuro-inciso no pescoço”. Quanto ao pedido da douta Defesa, não há como acolher tal súplica. A impronúncia só deve ocorrer quando não houver prova de existência do delito ou não existirem sequer indícios de autoria. Como visto, há indícios de autoria e a materialidade é inconteste, impondo-se a pronúncia. Relativamente à qualificadora, hei por bem mantê-la no dispositivo da pronúncia para exame e deliberação do Júri, por não se apresentar manifestamente improcedente. Por todo o exposto, deve a análise da matéria ser remetida, na íntegra, ao Júri, juiz natural da causa. Ante o exposto, e por tudo o mais que dos autos consta, com fincas no art. 408 do CPP, pronuncio o réu [NOME] como incurso nas sanções do art. 121, §2º, inciso IV, do Código Penal, pela prática de homicídio qualificado contra a vítima [NOME], na data e local descritos na denúncia, para que seja submetido, oportunamente, a julgamento pelo Egrégio Tribunal do Júri desta comarca.” [sentença de pronúncia, Processo no 45].

“A tese esboçada pela defesa do acusado [Nome], qual seja, de que o acusado agiu amparado pela excludente de ilicitude da legítima defesa, nesta fase também não merece prosperar, uma vez que se houver qualquer dúvida quanto à excludente ou justificativa, a solução é ‘pro societate’. Sendo a pronúncia um mero juízo de admissibilidade da acusação, adstrito à prova da existência da materialidade do delito e suficientes indícios da autoria, deve-se evitar aprofundado exame da prova, a fim de não influir no convencimento daqueles que são os juízes naturais da causa. Prospectando os elementos indiciários carreados para os autos, não vislumbro nesta fase, contornos de razoabilidade no sentido de se acolher a outra tese da defesa [...], ou seja, o decote das qualificadoras, mesmo porque é cediço o entendimento de que

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‘a exclusão da qualificadora só será justificada se estiver totalmente divorciada da prova’ (JM 116/252). [...] Assim sendo, acolho as qualificadoras requeridas pelo Ministério Público. POSTO ISSO, e por tudo o mais que dos autos consta, PRONUNCIO os acusados [NOMES], qualificados nos autos, para que se submetam a julgamento pelo Tribunal do Júri sob a acusação da prática do crime tipificado no art. 121, §2º, incisos I e IV, do CPB. Nego aos pronunciados o direito de recorrer em liberdade, uma vez que subsistem os pressupostos ensejadores para a manutenção das suas prisões preventivas.” [sentença de pronúncia, Processo no 125, destaques do juiz].

Os trechos anteriores servem para mostrar também como certos accounts podem ser desacreditados, seja porque os atos são considerados graves excedendo ao account oferecido, seja porque os motivos dados não são aceitos (SCOTT; LYMAN, 2008[1968]). Chamou-me a atenção, na leitura desses processos, que os accounts de defesa, nas alegações finais que antecedem a sentença de pronúncia apresentam mais de uma tese defensiva, demonstrando, com isso, que o sistema de justiça criminal brasileiro é uma espécie de “jogo de soma zero”, onde um ganha e um perde. A negociação e o acordo parecem ser, ao menos para o rito do tribunal do júri, inexistentes. Outra característica observada é que, como a defesa é obrigatória na instrução criminal judicial, esta usa todas as alternativas disponíveis para amenizar a derrota inevitável. Neste sentido, merece destaque a hiperbolização de alguns accounts de defesa, tal como pode ser observado no segundo trecho transcrito abaixo. Neste processo de um homicídio relacionado a questões de drogas/tráfico de drogas, onde houve a decapitação da vítima, a incriminação sugerida na denúncia foi: a) homicídio doloso, qualificado como motivação fútil e por meio cruel, que dificultou a defesa da vítima (artigo 121, § 2º., I e IV, Código Penal do Brasil); b) destruição, subtração ou ocultação de cadáver (artigo 211, Código Penal do Brasil) e; c) vilipêndio do cadáver ou de suas cinzas (artigo 212, Código Penal do Brasil). Este é um caso atípico em que a sentença do juiz não seguiu a denúncia em todas as acusações. “No mesmo ensejo processual, em sede de preliminar, a Defesa sustentou a nulidade do feito a partir do inquérito, por entender que houve irregularidades insanáveis na prisão em flagrante. Salientou que não foram cumpridos os requisitos legais do procedimento. Acrescentou, ainda, que este Juízo foi omisso quanto a tais irregularidades, que violaram não só a Lei Estadual como também garantias constitucionais tais como o devido processo legal, a ampla defesa, etc. Ainda em preliminar, salientou a ausência do relatório de necropsia, o que torna atípica a conduta do acusado. E que, em sendo acolhidas tais preliminares, fosse arquivado o presente feito. No mérito, a Defesa sustentou que não há provas suficientes para a condenação, e que a denúncia não tem qualquer relação com a tipificação dada. Acrescentou que para referendar-se uma acusação, mister que a autoria e a culpabilidade tornem-se incontroversas requereu a absolvição. Requereu também a

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absolvição sumária sustentando legítima defesa. Alternativamente requereu o decote das qualificadoras por entende-las manifestamente improcedentes. (...) Quanto à primeira não posso acolhê-la, eis que além de não vislumbrar qualquer irregularidade na prisão em flagrante - nem ofensa aos direitos e garantias individuais do acusado - insta salientar que, ainda irregularidades houvesse, tanto não eivaria de vício o processo subsequente. Principalmente porque não há que falar em nulidade de inquérito policial, procedimento esses estritamente administrativo. Da mesma forma, a alegação de ausência de curador ao então indiciado, menor de 21 anos. Se comprovado prejuízo, a consequência única poderia ser o relaxamento da prisão. De igual modo, não posso acolher a segunda preliminar, de ver-se que às fls. 107 consta conversão em diligência deste Juízo antes de prolatar a presente decisão, no sentido de se juntar aos autos as evidências materiais, inclusive o relatório de necropsia. Tais diligências foram devidamente cumpridas como se verifica às fls. 113/124. Destarte não há porque anular o processo. (...) Tais alegações não podem ser acolhidas. Sabe-se que o réu se defende dos fatos e não da capitulação. Ocorre que a fase de judicio accusacionis encerra um mero juízo de preliberação. Não há julgamento de mérito, de absolvição ou condenação e eventual condenação seria privativa do Tribunal do Júri. Também não há como absolver sumariamente o réu, tal decisão é condicionada a prova inequívoca e extreme de dúvida da legítima defesa invocada e tal prova não foi carreada nos autos. Quanto às qualificadoras, hei por bem atender os rogos da Defesa. Eis que, examinando atentamente os autos, não vislumbrei torpeza na conduta do réu “... executou a vítima porque pretendia puni-la com a morte o não pagamento de uma dívida de drogas...”. o que se depreende do contexto probatório é que o réu, a vítima e o irmão da mesma discutiram, entrando em luta corporal. O fato culminou numa troca de tiros entre réu e vítima, sendo que o réu saiu ferido com dois tiros e a vítima teve a vida ceifada. Também não há prova nos autos de que o réu agiu para assegurar a execução de outro crime.” [sentença de pronúncia, Processo no 21].

“[...] ora, de certo que o segmento corporal, cabeça, foi extirpado do resto do corpo, mas não podemos admitir que a este fato se atribua o status de um crime de destruição de cadáver posto que todos os componentes deste seguimento foram preservados. [...] O real significado do termo destruição refere-se a demolir, destroçar, fazer desaparecer. Isto não aconteceu no caso em tela. A cabeça mesmo retirada do seu local de origem, permaneceu intacta. A ocultação do cadáver também não merece ser acolhida. Se o acusado tivesse mesmo a intenção de ocultar o cadáver, não teria, como a própria denúncia narra, saído pelas ruas do Beco São José exibindo a cabeça da vítima como se fosse um ‘troféu’. [...] Muito bem. Temos que reconhecer forçosamente que não houve em momento algum ultraje ao cadáver da vítima praticado pelo acusado. O mesmo, desesperado com o que havia acontecido, vindo só depois a ter noção de que havia decapitado a vítima, apenas estava tentando se livrar daquele membro que estava em seu poder. Inclusive procurou a namorada para que lhe ajudasse a se livrar daquele pedaço de cadáver. [...] Requer a defesa o reconhecimento da legítima defesa como causa excludente de ilicitude e a consequente absolvição sumária do acusado. Alternativamente, o decote das qualificadoras por manifestamente improcedentes, conforme demonstrado. Quanto aos crimes de destruição, subtração ou ocultação de cadáver e o crime de vilipêndio a cadáver, a defesa requer a impronúncia do acusado por estes crimes, pelas razões demonstradas acima.” [alegações finais, Processo no 130].

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Pronunciados, os acusados são julgados pelo conselho de sentença, a sessão de julgamento, que é chamada simplesmente “o júri”. Os antropólogos têm se dedicado à observação dessas receitas práticas ao realizarem etnografias sobre este ritual. Um ponto comum entre esses estudos converge para a observação de que a decisão dos jurados no conselho de sentença advém de moralidades que são expostas por promotores e defensores segundo aspectos como drama ou o jogo (SCHRITZMEYER, 2001; FIGUEIRA, 2008), ou por um processo de acumulação social da violência, segundo o qual os acusados já chegam condenados porque compõem o tipo social dos incrimináveis e, portanto, dos condenáveis (MOREIRA-LEITE, 2006, 2008). Como já mencionado, não observei as sessões de julgamento relacionadas a esses incriminados. Mas pude perceber nas sentenças finais que a decisão tomada pelo conselho de sentença não demanda justificações, nem prestação de contas, ou seja, não demanda nenhum dos dois sentidos de accounts, seja no sentido de Scott e Lyman (2008[1968]), seja no sentido colocado por Garfinkel (1967). A decisão do conselho de sentença é descrita em poucas linhas pelo juiz-presidente nas sentenças finais. E, só após, ele passa a fixar a pena ao incriminado, redigindo o seu account, em primeira pessoa do singular, baseado em classificações sobre o acusado, tais como: culpabilidade, antecedentes, personalidade, conduta social e motivos. “Na conformidade da decisão do Conselho de Sentença que reconheceu a autoria, materialidade e letalidade, refutou as teses de legítima defesa putativa e do homicídio privilegiado, acatou as qualificadoras do motivo torpe e do recurso que impossibilitou a defesa da vítima e, finalmente inacolheu a atenuante da confissão espontânea, considero o réu [NOME] culpado do crime de homicídio qualificado e, por isso, incurso nas sanções penais do artigo 121, §2º incisos I e IV do CP, [...] passando por isso a impor-lhe a pena: Atendendo a culpabilidade [...], aos antecedentes (bons), a personalidade do agente (boa), a conduta social (sem notícias desabonadoras), aos motivos (injustificáveis, quaisquer que sejam, muito menos aqueles apresentado pelo réu em seu interrogatório em plenário; levado aqui em conta a torpeza reconhecida pelo Conselho de Sentença), as circunstâncias (graves pela própria natureza, mas que já se constituem em elementar do tipo legal), bem como atento ao comportamento natural da vítima, fixo a pena base de 14 (catorze) anos de reclusão, sendo que, ante a ausência de circunstâncias ou causas modificativas, concretizo a pena do réu em 14 (catorze) anos de reclusão, a serem cumpridos em Estabelecimento Penitenciário próprio, em REGIME FECHADO [...]” [sentença final, Processo no 106, destaques do juiz].

“Pelos senhores jurados, ao responderem os quesitos formulados, foi o acusado condenado por homicídio qualificado pelo recurso que dificultou a defesa do ofendido e ocultação de cadáver. Assim, passo a lhe aplicar as penas segundo as diretrizes do artigo 59 do Código Penal. Homicídio – A culpabilidade está marcada pelo dolo e alta reprovabilidade da conduta. Os antecedentes são imaculados, sendo primário. A conduta social e a

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personalidade não restaram demonstradas, motivo pelo qual não podem ser consideradas para efeitos de elevação da pena. O motivo é inerente ao delito. As circunstâncias foram reconhecidas para definição jurídica do fato; destacando que somente uma qualificadora objetiva foi reconhecida. As consequências também são inerentes ao delito. Não há que se falar em participação da vítima, que de forma alguma concorreu para o resultado. Pelo exposto, fixo a pena base em 14 (quatorze) anos de reclusão. Em razão da atenuante prevista no artigo 65, inciso I, do Código Penal, que de natureza preponderante, volto-a para o mínimo legal, ficando prejudicada a análise de outras. Não há circunstâncias agravantes. Ante a ausência de causas especiais de diminuição ou aumento de pena, transformo-a em final de 12 (doze) anos de reclusão. Ocultação [...] transformando-a em final de 01 (um) ano de detenção e 10 (dez) diasmulta. Fixo o regime fechado para o início do cumprimento das penas.” [sentença final, Processo no 70, destaques do juiz].

“Sua culpabilidade merece destaque negativo porque ele praticou um homicídio duplamente qualificado e, portanto, com maior reprovabilidade de sua conduta. Seus antecedentes já são desabonadores. Sua conduta social é desfavorável, com envolvimento, principalmente, com tóxicos. Não há dados seguros sobre sua personalidade. Os motivos estão ligados a uma das qualificadoras (torpe). As circunstâncias à outra (de inopino, mediante recurso que dificultou a defesa da vítima). Não há notícias nos autos de consequências extrapenais. O comportamento da vítima não teve influência. Por isso, atento ao critério norteador do art. 59 do Código, fixo-lhe a pena-base em 14 (quatorze) anos de reclusão. Pelas atenuantes reconhecidas [isto é, “coação resistível e confissão espontânea”], diminuo esta pena de 02 (dois) anos, sendo 01 (um) ano para cada. Não há agravantes. Não há causas de diminuição ou de aumento. Sua pena privativa de liberdade fica, então, definitiva em 12 (doze) anos. [sentença final, Processo no 5].

Mas o resultado final do processo de incriminação por homicídio doloso é o mesmo para todos os indivíduos acusados de cometerem este evento? De acordo com o apresentado no capítulo anterior, a análise considerando uma tipologia de homicídio doloso se mostrou profícua para mostrar que os indivíduos acusados de terem cometido homicídios relacionados a questões de drogas e/ou tráfico são relativamente mais condenados que os acusados por homicídios do tipo conflitos cotidianos. Consultando os “autos processuais” dos incriminados por homicídios relacionados a questões de drogas/tráfico de drogas e os “autos” dos incriminados por homicídios relacionados a conflitos cotidianos, pude qualificar a informação estatística apresentada no capítulo anterior e confirmar algumas hipóteses trazidas naquele momento. Através da análise documental, pude observar que os acusados por homicídios do tipo drogas/tráfico são presos ao longo do processamento pelo rito do tribunal do júri, permanecendo nesta situação até a sentença final.

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A constatação obtida pela leitura dos processos de que os incriminados por homicídio do tipo droga/tráfico permanecem presos ao longo de toda a instrução criminal pode ser vista como um resultado da reação social sobre os indivíduos que compõem o tipo social do traficante, do bandido, do marginal. A prisão em flagrante desses indivíduos é mais comum que entre os indivíduos que cometem o homicídio do tipo conflitos cotidianos. Outro ponto observado pela leitura desses processos, e que acompanha as análises anteriores, é que os incriminados por homicídios do tipo drogas/tráfico compõem um tipo social que deve ser vigiado e controlado pelo sistema de justiça criminal. Os relatos de acusação pública reforçam os antecedentes criminais e a periculosidade desses indivíduos, que são, por exemplo, “afeitos a práticas de outros crimes como venda de drogas e roubos à mão armada”, visando à prisão do acusado antes mesmo de ir a julgamento pelo evento em relação ao qual está sendo incriminado. Esses indivíduos parecem também não tentar se esquivar do processamento, o que pode ser observado pela maior recorrência das confissões, tal como pode ser lido em trecho já transcrito. Soma-se a esses fatores as características desses crimes, “os requintes de crueldade que dificultaram a defesa da vítima”. Com isso, os relatos de acusação pública qualificam a tipificação do homicídio doloso, e acrescentam a ela outros atos criminados, como formação de quadrilha e concurso material, principalmente. Diferentemente dos relatos de acusação pública relacionados aos incriminados por homicídios do tipo conflito cotidiano, onde a qualificação do ato é a futilidade, no caso dos processos dos incriminados por drogas/tráfico, é mais recorrente a qualificação da torpeza, dado as próprias características dessas mortes. “Segundo consta da peça informativa policial que a esta acompanha, os denunciados (...) associaram-se para a prática de tráfico de entorpecentes, delito este que era praticado, reiteradamente, nas proximidades das residências dos denunciados, os quais são vizinhos. (...) Devidamente conluiados e movidos pelo mesmo animus necandi os três denunciados, armados com as armas de fogo descritas no Auto de Apreensão de fls. 52, bem como no exame pericial acostado às fls. 95/97, compareceram à esquina das ruas (nomes), onde se desenvolviam as atividades ilícitas da quadrilha rival, e começaram a efetuar disparos contra todos os homens ali presentes, com a intenção de mata-los, em razão do entendimento de que eles fariam parte da quadrilha de “Bebinha”. Em razão dos disparos efetuados pelos três denunciados, a vítima [nome] foi atingida na nuca e por duas vezes no membro inferior esquerdo, sofrendo as lesões descritas no Relatório de Necropsia de fls. 93/94, causa eficiente de sua morte. Os denunciados, mediante os referidos tiros, atingiram também as vítimas [nomes de quatro vítimas], provocando as lesões corporais descritas nos Autos de Corpo de Delito acostados às fls. 122, 123 e 124 (...) somente não ceifando as vidas dos mesmos porque eles conseguiram fugir do local sendo imediatamente levados ao Hospital de Pronto Socorro onde receberam atendimento médico.

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Os crimes foram cometidos, todos, por motivo torpe, consistente em disputa por ponto de venda de entorpecentes, bem como mediante utilização de recurso que dificultou a defesa dos ofendidos, uma vez que os denunciados chegaram ao local do forma repentina e, sem que ninguém esperasse, começaram a efetuar os disparos que lesionaram as vítimas. Assim, tendo os denunciados incorridos nas sanções do artigo 121, §2º., incisos I e IV por uma vez e artigo 121, §2º., incisos I e IV, c/c art. 14, inciso II, ambos do Código Penal por quatro vezes, e artigo 14 da Lei 6.368/76, em concurso material, requer esta Promotoria de Justiça sejam os mesmos devidamente citados para interrogatórios e defesa que tiverem, ouvidas as testemunhas abaixo arroladas, cumpridas as demais formalidades da lei e, afinal, condenados nas penas que lhe couberem” [denúncia, tipo de homicídio: drogas/tráfico, Processo no 131].

“Como apurado, Vítima e Denunciado se encontraram casualmente em um bar estabelecido naquelas imediações, tendo Fubá [apelido do denunciado, grifos do documento] solicitado de [Nome da Vítima] um cigarro. Diante da negativa da vítima em atender seu pedido, movido por sentimento abjeto de retaliação, o Denunciado dirigiu-se a sua residência, (...) se apossando de uma faca de cozinha, retornando ao local da abordagem objetivando ceifar a vida de [Nome da Vítima]. Ao visualizar a Vítima, o Denunciado – depois de dirigir-lhe palavras desafiadoras sacou do instrumento pérfuro-inciso e a agrediu, restando a mesma atingida por dois golpes, suportando ferimentos no queixo e na região torácica, falecendo em decorrência de profusa hemorragia interna. (...) Assim agindo, o Denunciado praticou a dinâmica típica do delito previsto no artigo 121, §2º., inciso I, do Código Penal Brasileiro, requerendo o Ministério Público o recebimento da denúncia, com a respectiva citação do Denunciado para ser interrogado bem como para apresentar a defesa que tiver, informando-se as testemunhas abaixo arroladas para serem ouvidas em juízo, prosseguindo-se no feito até final decisão, pronunciando [Nome do Denunciado] pela prática do crime imputado, remetendo-lhe a julgamento pelo Egrégio Tribunal do Júri, onde se espera seja condenado nas sanções capituladas.” [denúncia, tipo de homicídio: conflitos cotidianos, Processo no 44].

Analisando as sentenças finais, pude qualificar um dos resultados do capítulo anterior: os incriminados por homicídios do tipo drogas/tráfico são mais condenados que os incriminados por homicídios do tipo conflitos cotidianos. Pude observar também que os incriminados por homicídios do tipo drogas/tráfico recebem penas superiores aos incriminados por homicídio do tipo conflito cotidiano. A análise comparativa entre os relatos de acusação pública para os incriminados por homicídio do tipo drogas/tráfico e os relatos para os incriminados por homicídio do tipo conflitos cotidianos fornece mais solidez aos resultados apontados no capítulo anterior. Essa comparação mostrou como os elementos que parecem determinar as condenações para esses tipos sociais são construídos pelos acusadores (e como esses elementos tentam ser desconstruídos pelos accounts de defesa). Condenados por homicídio doloso “dupla” ou “triplamente” qualificado, conjugado com outros eventos

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criminados no Código Penal, os incriminados por homicídio doloso do tipo drogas/tráfico recebem uma pena justificadamente maior que a pena referente a um incriminado por homicídio doloso “simples” ou com apenas uma qualificadora, a do motivo fútil, como são as tipificações para os homicídios do tipo conflito cotidiano. “Submetido a julgamento perante o Egrégio Tribunal do Júri, por unanimidade e maioria, em relação a todas as séries, reconheceram a autoria/materialidade, letalidade e o intento homicida, rejeitando, assim, a tese da negativa de autoria: bem como, em relação à primeira série, as teses desclassificatórias para homicídio culposo e lesão corporal seguida de morte. Por outro lado, em todas as séries, tanto por maioria quanto por unanimidade, acolheram as qualificadoras do motivo torpe, do perigo comum e do recurso que dificultou a defesa das vítimas; por último acolheram a agravante da reincidência e não reconheceram circunstância atenuante. CABE-ME, DESTA FEITA, FIXAR-LHE A PENA Posto que tenha agido de forma livre, consciente e sem que houvesse mínima justificativa para os atos que cometeu, ao que se soma que as vítimas não contribuíram para os resultados, não se tem prova alguma de que qualquer das demais circunstâncias judiciais lhe seja desfavorável. ANTE O EXPOSTO, julgo procedente a denúncia para CONDENAR o acusado [NOME], alcunhado de Magu, qualificado a fls. 02, às penas de 12 (doze) anos de reclusão, que aumento de mais 1 (um) ano em respeito ao art. 61, inciso I, CONCRETIZANDO-A em 13 (treze) anos, que será cumprida, inicialmente de regime FECHADO, em estabelecimento penal do Estado, como incurso no art. 121, §2º, incisos I, III e IV; bem como de 12 (doze) anos de reclusão para cada um dos três crimes na forma tentada, das quais reduzo de 8 (oito) anos, CONCRETIZANDO cada uma delas em 4 (quatro) anos, que serão cumpridas, inicialmente, em regime SEMI-ABERTO, também em estabelecimento penal do Estado, como incurso nas sanções do art. 121, §2º, incisos I e IV c/c o art. 14, inciso II, por três vezes, todos do Código Penal. CONDENO-O, mais, nas custas do processo. MANTENHO-O no lugar onde se encontra.” [sentença final, tipo de homicídio: drogas/tráfico, Processo no 93, destaques e grifos do juiz].

“O Conselho de Sentença decidiu que o réu cometeu um crime de homicídio qualificado por ter sido praticado por motivo fútil e mediante recurso que dificultou defesa do ofendido, atenuado pela confissão espontânea dando-o como incurso nas penas do art. 121, §2º, II e IV, do Código Penal, HOMICÍDIO QUALIFICADO. Em obediência à soberania dos veredictos do Júri, passo à fixação da pena: Culpabilidade: o réu tinha condições de entender o caráter ilícito de sua conduta e de se comportar de acordo com este entendimento. Antecedentes: o réu registrava antecedentes na época do fato. Conduta social: presume-se boa à falta de prova em contrário. A personalidade do agente é voltada para a prática de crimes como se observa nos autos. Motivo: o motivo para a prática do crime foram os desentendimentos entre réu e vítima acerca de questões de menor importância. Circunstâncias: o crime como ocorreu demonstra a disposição do agente para a sua prática. Consequências: foram graves, pois resultaram em sofrimento para a família da vítima. Comportamento da vítima: a vítima contribuiu para a prática do crime ao envolver-se em discussão com o réu. Isso posto, fixo-lhe a pena-base em 13 (treze) anos de reclusão considerando os seus maus antecedentes. Reconheço em favor do réu a atenuante da confissão espontânea, e reduzo a pena de 01 (um) ano, passando-a para 12 (doze) anos de reclusão. Não há agravantes a serem consideradas. Não há causas gerais ou especiais de diminuição ou de aumento da

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pena, pelo que fixo a pena em concreto e em definitivo em 12 (doze) anos de reclusão. [sentença final, tipo de homicídio: conflitos cotidianos, Processo no 132, destaques do juiz].

Em complemento a estas análises, busquei os processos cujo resultado foi a absolvição, no intuito de perceber se os elementos que parecem determinar as condenações estão ausentes nas absolvições. O processo que tomo como exemplo é o de um acusado policial militar que, em serviço, matara um indivíduo87. A tipificação contida na denúncia correspondia a homicídio por motivação simples (artigo 121, §2º, “caput”, do Código Penal do Brasil). Foi possível perceber, neste caso, que o relato da acusação baseou-se em argumentos curtos e pouco elaborados. Contrariamente, os accounts da defesa foram tão extensos que demandaram serem apensados ao processo. A defesa adicionou cartas e certidões do alto comando da Polícia Militar cujo teor era o de enaltecimento à bravura e ao profissionalismo do acusado. Paralelamente à extensão dos depoimentos das testemunhas de defesa, foi perceptível a ausência de depoimentos de testemunhas de acusação, desenhando um aspecto não observado nos demais processos analisados. Os accounts de defesa convergiram para o argumento de estrito cumprimento do dever legal e legítima defesa, o que foi acatado pelo conselho de sentença, que o absolveu. “A materialidade do delito ficou comprovada pelo relatório de necropsia às fls. 24/25 do inquérito policial acostado nos autos. (...) As demais provas carreadas não trouxeram elementos para os autos capazes de desnaturar, nesta quadra, a pretensão ministerial. (...) Sendo a pronúncia um mero juízo de admissibilidade da acusação, adstrito à prova da existência da materialidade do delito e suficientes indícios da autoria, deve-se evitar aprofundado exame da prova, a fim de não influir no convencimento daqueles que são os juízes naturais da causa. Nesta fase, os elementos indiciários coligidos para os autos não estão a indicar, sem sobressaltos de dúvidas, o acolhimento da tese defensiva de excludente de ilicitude, seja a legítima defesa ou o estrito cumprimento do dever legal. (...) Assim sendo, não vislumbro elementos de provas estremes de dúvidas quanto ao pleito da defesa. No mais, a tese esboçada pela defesa, qual seja, de que o acusado agiu amparado pelas duas excludentes de ilicitude, legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal, verifico que se houver qualquer dúvida quanto à excludente ou justificativa, a solução é “pro societate”. POSTO ISSO, é por tudo mais que dos autos consta, PRONUNCIO o acusado: [nome], qualificado nos autos, como incurso nas sanções do art. 121 caput do CPB, submetendo-o a julgamento perante o Tribunal do Júri Popular desta Comarca” [sentença de pronúncia, Processo no 26].

“[NOME], devidamente qualificado, foi pronunciado como incurso nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal Brasileiro, sob a acusação de ter, [data, hora, local] 87

Dos outros quatro processos consultados, dois referem-se a homicídio do tipo conflitos cotidianos e dois ao tipo caput.

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efetuado um disparo de arma de fogo, utilizando uma pistola Taurus, calibre 9mm, no. TRA 62797, contra a vítima [nome], causando-lhe as lesões corporais descritas no relatório de necropsia acostado às ff. 36/40 dos autos complementares em apenso que foram a causa de sua morte. Nesta data procedeu-se ao seu julgamento. O Conselho de Sentença acatou a tese defensiva da legítima defesa. Por isso, em obediência à soberania dos veredictos do Júri, fica o réu [NOME], ABSOLVIDO da imputação que lhe foi feita. Com o trânsito em julgado desta, oficie-se ao Instituto de Identificação, dando-se baixa na distribuição. Custas, como de lei. Publicadas nesta assentada de julgamentos, dou as partes por intimadas. Registre-se e cumpra-se” [sentença final, Processo no 26].

Uma percepção, que pode fundamentar uma hipótese de pesquisa, refere-se ao tamanho dos depoimentos das testemunhas. Pelo que pude perceber ao folhear os processos, os depoimentos das testemunhas de acusação preenchem mais folhas, ocupam mais espaço dentro de um processo. Isto se deve, provavelmente, ao peso diferenciado da acusação em relação à defesa no processo. O exemplo dado acima auxilia essa reflexão. Com base nas análises desses processos, pude notar, em um primeiro momento mais abrangente, que algumas palavras parecem ser escolhidas cuidadosamente tanto por acusadores quanto por defensores. Ao elaborar seus relatos, esses operadores reforçam a linguagem típica do meio jurídico, fazendo uso de um vocabulário alheio à linguagem cotidiana da sociedade brasileira. Assim agindo, os operadores do sistema de justiça não apenas delimitam um território especial e pouco acessível, mas passam a demarcar uma fronteira que nunca foi - e jamais poderia ser - invisível. Parece ser imprescindível separar, diferenciar categoricamente o mundo do direito do mundo comum, promovendo a realidade à outra dimensão. Parece ser preciso orientar as “pessoas comuns”, aquelas externas ao ambiente forense, sobre como se comportar nesse outro mundo. Não é por acaso que no rodapé dos mandados de intimação, sob a linha designada para assinatura do intimado, há a seguinte orientação em letras miúdas: “ao comparecer em Juízo, esteja munido de doc. de identificação e trajando vestimenta adequada ao ambiente forense.” [intimação de testemunha].

É através desta linguagem específica que o processo de incriminação é construído institucionalmente, através de accounts, tanto no sentido definido por Garfinkel (1967) como no sentido exposto por Scott e Lyman (2008[1968]). De um lado, as denúncias dos

170

promotores de justiça e, as sentenças dos juízes, devem ser vistos como uma maneira típica de relacionar eventos e indivíduos a categorias abstratas dos códigos (CICOUREL, 1968). São relatos construídos por meio do conhecimento típico adquirido na socialização profissional: determinados tipos de vítimas, certos tipos de cenários onde esses eventos costumam ocorrer (SUDNOW, 1965). De outro, as alegações da defesa e os interrogatórios dos acusados no sentido de produzir desculpas ou justificações. Nos accounts do tipo desculpas, o ator admite que o ato foi impróprio ou inadequado, mas nega ter responsabilidade sobre o mesmo. Nas justificações, o ator aceita a responsabilidade pelo ato, mas não o caráter pejorativo associado ao mesmo (SCOTT; LYMAN, 1968[2008]). Neste sentido, a incriminação no rito do tribunal do júri pode ser compreendida como o resultado de um processo construído entre os relatos da acusação pública e os accounts de defesa. Ao longo do processo de incriminação, na primeira fase do rito do tribunal do júri, vão sendo apresentados ao juiz os relatos de acusação pública e os accounts de defesa. Ao receber os accounts de defesa, o juiz “abre vistas” ao promotor de justiça, só tomando a sua decisão em relação aos accounts de defesa após a resposta do Ministério Público. Analisando esses processos, pude perceber que muito raramente o juiz apresenta decisão discordante dos relatos apresentados pela acusação. Desse modo, a incriminação parece ganhar subsídios quase que irreversíveis pelo fato de os juízes tenderem a decidir em conformidade com os relatos da acusação, o que se torna muito visível nas sentenças de pronúncia que formalmente só fazem reiterar a denúncia e preparar o processo para julgamento pelo júri. Talvez por essa razão, tenha sido possível perceber que a tipificação contida na denúncia é, na grande maioria dos casos analisados, mantida na sentença de pronúncia. Nesse sentido, a denúncia é o mais determinante da condenação que todas as etapas subsequentes do rito. Como já demonstrado, na sentença de pronúncia, o juiz toma sua decisão de acordo com o princípio do “livre convencimento motivado”. Mendes (2012) mostra como este princípio vem sendo atualizado pelos juízes e influenciando na reprodução da distribuição desigual de justiça. A existência deste princípio, sobretudo no rito que dá subsídio ao entendimento de que o sistema de justiça brasileiro seria de caráter misto, gera mais uma incoerência interna, e fornece bases para classificá-lo como plenamente inquisitório. Outro aspecto importante a ser observado é que os relatos expostos por escrito nas alegações finais, após a sentença de pronúncia, tanto pela acusação como pela defesa, são os mesmos que serão apresentados oralmente na sessão de julgamento. Como dito por um promotor de justiça da capital mineira entrevistado em agosto de 2007:

171

“tudo que é feito na sessão de julgamento já foi feito no papel. A gente chega lá já sabendo o que o outro lado vai falar. Não tem nada de novo, apenas temos que apresentar para os jurados”. [promotor de justiça, entrevista realizada em agosto de 2007].

Como venho argumentando, com base na análise mais geral sobre este conjunto de processos, a tipificação penal contida na sentença de pronúncia raramente se diferencia do apontado na denúncia. Logo, é possível dizer que a organização que determina o resultado final do processo de incriminação na primeira fase do rito do júri é a mesma que a inicia, o Ministério Público. A denúncia se mostra como a peça principal e o seu conteúdo se amplia na medida em que os relatos da acusação são acatados pelo juiz. Isso permite dizer que uma vez acusado publicamente de um desvio, principalmente quando a regra quebrada é a “não matarás”, dificilmente o indivíduo deixará de ser um “desviante puro” (BECKER, 2009[1963]). Uma vez acusado publicamente de ter cometido o evento criminado como homicídio doloso, o resultado da reação social será representado pela punição deste indivíduo e o cumprimento da pena pelo mesmo. As análises tecidas neste capítulo com base na análise documental dos processos judiciais de homicídio doloso mostram uma reação social diferencial sobre o grupo de indivíduos que compõem o tipo social do traficante e do bandido. Posso dizer que os condenados por homicídios do tipo drogas/tráfico permanecem presos ao longo de toda instrução criminal, já que é mais recorrente, nas sentenças de pronúncia, trechos dos accounts de defesa solicitando a liberdade provisória do acusado. Isso pode explicar o porquê de esses acusados receberem uma pena maior, que é fixada pelo juiz na sentença final. A fixação da pena pelo juiz é feita mediante um cálculo matemático-jurídico baseado, a meu ver, também no princípio do livre convencimento motivado. A decisão do conselho de sentença, quanto a absolvição ou condenação do réu, parece ser de caráter cerimonial, com o intuito de passar à sociedade a imagem de que a justiça é democrática, igualitária. O fato da decisão do conselho não demandar a produção de um account, em qualquer um dos sentidos (já que o account poderia ser demandado de cada jurado ou do conselho enquanto um instituto), é útil para pensar a este respeito. A reação social percebida com a análise desse material leva-me a pensar, em paralelo, no nível analítico da sujeição criminal, construído concomitantemente à incriminação. Uma vez que os relatos de acusação pública são construídos, tal como descrevi, gerando condenações e punições mais severas aos incriminados por homicídio doloso do tipo

172

drogas/tráfico, é possível pensar que o rito do tribunal do júri tipifica um grupo de indivíduos que se destaca dos “cidadãos de bem”, os considerados aptos a os julgarem. Este grupo de incriminados compõe o tipo social do traficante, do bandido, aqueles indivíduos jovens, negros e pardos, residentes em áreas periféricas das grandes metrópoles brasileiras (como Belo Horizonte)88 e considerados como propensos a cometer um crime, sobretudo um crime “hediondo” como o homicídio doloso. E certamente parece não ser coincidência que as vítimas de homicídio doloso sejam representadas pelos homens, jovens, negros e pardos, residentes em áreas periféricas das grandes metrópoles brasileiras (como o Rio de Janeiro)89, tal como pude observar quando fui aos locais de morte registradas como homicídio doloso.

88

Livro organizado por Cruz e Batitucci (2007) contém diversos estudos que indicam esses padrões. Ver especialmente cinco artigos escritos respectivamente por: Tavares dos Santos; Cano e Ribeiro; Soares, Batitucci e Ribeiro; Raizer e; Beato Filho e Marinho. Essa discussão também está contemplada em livro organizado por Barreira (2010), merecendo destaque o artigo de Cláudia Lopes Macclure. 89 Além de Soares (2003), os artigos de Emilio Viano e de Maria Fernanda Tourinho Peres tratam desta discussão em Cruz e Batitucci (2007).

173

PARTE III Mudanças institucionais-legais

174

Capítulo 6 - Mudanças na Polícia Civil no Rio de Janeiro Neste capítulo retomo as regras de procedimento correspondentes às práticas rotineiras dos peritos, bem como a criação da Divisão de Homicídios no intuito de refletir sobre possíveis influências que essas mudanças podem ou não estar exercendo nas taxas de elucidação dos inquéritos policiais de homicídio doloso. Uma das regras de decisão alteradas pela Lei n o 11.690/08 é sobre a realização do exame de corpo de delito bem como outras perícias. Pela regra anterior, as provas deveriam ser realizadas por dois peritos oficiais que poderiam não possuir diploma de curso superior. Na nova redação, o exame de corpo de delito e as perícias em geral devem ser realizadas por apenas um perito oficial, com diploma em curso superior. A meu ver, a novidade trazida no mesmo artigo é: “tratando-se de perícia complexa que abranja mais de uma área de conhecimento especializado, poder-se-á designar a atuação de mais de um perito oficial” (BRASIL, 2013, Código de Processo Penal, artigo 159, § 7º). Como destacado na Parte I desta tese, a Divisão de Homicídio foi criada em janeiro de 2010, nos moldes do Programa Delegacia Legal, sendo que um setor a diferencia das demais delegacias especializadas na investigação dos eventos criminados como homicídio doloso: o Grupo Especial de Local do Crime (GELC). Apresentei que o GELC é coordenado por um delegado adjunto que se dirige ao “local” junto com a equipe da perícia formada por três tipos de profissionais da polícia técnico-científica: o perito legista, o perito criminal e o papiloscopista. Neste sentido, é razoável pensar que um possível reflexo dessa nova regra de procedimento tenha sido a institucionalização, na cidade do Rio de Janeiro, deste formato de perícia, que abrange três áreas de conhecimento especializado. Na Parte I, mostrei como a criminação-incriminação é construída com base nas práticas rotineiras desses profissionais. Neste capítulo, observo os registros oficiais divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) nos últimos anos, e conjugo-os com dados coletados no campo etnográfico realizado na Divisão de Homicídios. O gráfico a seguir mostra uma tendência de queda aproximada de 38% no número de ocorrências classificadas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro como homicídio doloso para a capital fluminense, entre 2002 e 2010 (Gráfico 2).

175

Gráfico 2 – Rio de Janeiro: Registros de homicídio doloso produzidos pela Polícia Civil, na Capital, entre 2002 e 2010. 3000

2500 2409 2136

2204

2168

2125

2036

2000 Número absoluto

1847

1739 1498

1500

Variação no período: -37,8%

1000

500

0 2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

Fonte: Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro/Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP). Compilação dos dados: Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU/UFRJ).

A fim de atualizar essas informações, recorri à mesma fonte oficial e obtive, em abril de 2012, informações mais detalhadas para o período entre janeiro de 2009 a dezembro de 2011 quanto aos registros de mortes violentas90 e, em especial, de homicídio doloso.

Tabela 14 – Rio de Janeiro: Registros de mortes violentas e de homicídio doloso produzidos pela Polícia Civil, na Capital e no Estado, em 2009, 2010 e 2011. Unidade territorial

2009

2010

2011

Total

Variação no período

Mortes violentas (excluindo homicídio doloso) Estado

1.469

1.338

1.066

3.873

-27,43%

Capital

728

593

445

1.766

-38,87%

Capital/Estado (%)

49,6%

44,3%

41,7%

45,6%

Homicídio doloso Estado

5.326

4.407

4.002

13.735

-24,9%

Capital

1.915

1.492

1.326

4.733

-30,8%

Capital/Estado (%) 36,0 33,9 33,1 34,5 Fonte: Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro/Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), abril/2012.

90

Considerei como mortes violentas os seguintes registros: “autos de resistência”, roubo seguido de morte, encontro de cadáver e encontro de ossada. As lesões corporais seguidas de morte, bem como os homicídios culposos, não entraram na categoria “mortes violentas”, por não serem de competência da Divisão de Homicídios.

176

Os dados apresentados anteriormente mostram que, entre 2009 e 2011, foram registrados 3.873 eventos que foram classificados como mortes violentas no estado do Rio de Janeiro e 1.766 na capital do estado. No mesmo período, 13.735 mortes violentas foram classificadas como homicídio doloso em todo o estado, das quais 4.733 foram registradas na cidade do Rio de Janeiro. Entre 2009 e 2011, percebe-se uma diminuição do número de eventos registrados como mortes violentas e como homicídio doloso no estado e na capital, sendo que as taxas de variação percentual apresentam valores em torno de -25%. A próxima tabela contém o número absoluto e o percentual válido dos eventos que foram registrados como mortes violentas e como homicídio doloso, considerando os tipos de mortes violentas e os instrumentos utilizados nos casos de homicídio doloso, de acordo com a Polícia Civil, entre 2009 e 2011, para a cidade do Rio de Janeiro. Tabela 15 – Número absoluto e percentual de eventos classificados como mortes violentas (segundo tipos) e de eventos classificados como homicídio doloso (segundo arma utilizada): Polícia Civil, Cidade do Rio de Janeiro, 2009, 2010 e 2011. Tipos de mortes violentas e Tipos de homicídios

2009 2010 2011 Número Percentual Número Percentual Número Percentual Absoluto Válido Absoluto Válido Absoluto Válido Tipos de mortes violentas (excluindo homicídio doloso)

Total

“Autos de resistência”

451

62,0

341

57,5

220

49,4

Encontro de cadáver

190

26,1

185

31,2

156

35,1

531

30,07

Roubo seguido de morte

84

11,5

63

10,6

57

12,8

204

11,55

Encontro de ossada Total dentre as mortes violentas

3

0,4

4

0,7

12

2,7

19

1,08

728

100,0

593

100,0

445

100,0

1.766 100,00

1.012 57,30

Tipos de homicídio doloso (segundo arma utilizada) Homicídio (arma de fogo)

1.327

69,3

1.075

72,1

921

69,5

3.323 70,21

Homicídio (outros)

540

28,2

332

22,3

315

23,8

1.187 25,08

Homicídio (arma cortante)

48

2,5

85

5,7

90

6,8

Total dentre os homicídios

1.915

100,0

1.492

100,0

1.326

100,0

223

4.733 100,00

Fonte: Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro/Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), abril/2012.

A tabela anterior mostra que os “autos de resistência” são os principais tipos de mortes violentas registradas entre 2009 e 2011 (57,3%), apesar da queda na contabilidade oficial para esse tipo de morte violenta ao longo do mesmo período. As mortes classificadas como “encontro de cadáver” representam cerca de 1/3 de todos os registros e os roubos seguidos de morte, 11,5%. Os encontros de ossada representam pouco mais de 1% desses registros, apesar do aumento do número absoluto de registros desse tipo no período considerado.

4,71

177

Analisando especificamente os números para os eventos registrados como homicídios dolosos, vê-se que os provocados por armas de fogo são o principal tipo, somando, nestes três anos, 3.323 registros, o que corresponde a cerca de 70% do conjunto. Os homicídios cometidos por outros instrumentos somam 1.187 registros, ou cerca de ¼ dos registros, enquanto os homicídios cometidos por armas cortantes representam cerca de 5% de todos os registros de homicídios ocorridos na capital Rio de Janeiro, neste período. A tabela mostra, ainda, que há uma redução no número absoluto dos registros de homicídios provocados por armas de fogo, enquanto o volume de registro para os homicídios provocados por armas cortantes praticamente dobra ao longo do período91. Importante destacar algumas particularidades trazidas pelo Programa Delegacia Legal, tais como o acompanhamento mais atento por parte da Chefia da Polícia Civil quanto às informações produzidas por cada delegacia distrital inserida no Programa. Isso pode ser exemplificado pela política de metas, de acordo com a qual a produtividade de cada delegacia, mais especificamente de cada delegado, é medida pelo número de inquéritos relatados, aqueles em que há indiciamento de um suposto sujeito-autor92. As metas de produtividade estão ligadas a gratificações para os delegados e manutenção da titularidade dos mesmos, no caso das metas serem atingidas. Em um exemplo citado por Misse et al (2010), um policial precisava produzir dez inquéritos passíveis de relatoria por mês o que, segundo ele, era muito difícil principalmente dada a ausência dos laudos periciais (MISSE et al, 2010). Neste sentido, políticas de produtividade podem influenciar diretamente as práticas rotineiras desses policiais que, incentivados pelas gratificações e reconhecimento dentro da carreira, passam a operar segundo uma discricionariedade particular (BITTNER, 2003). Assim, eventos criminados considerados pelos operadores como de mais fácil solução, aqueles em que, por exemplo, o corpo da vítima é identificado no “local de crime” e, principalmente, quando os indícios de autoria são levados aos policiais por meio de testemunhas, são priorizados em detrimento dos casos tidos como mais difíceis, aqueles em que seria demandado um trabalho de investigação mais acurado (VARGAS; NASCIMENTO, 2010).

91

É possível que essa inversão da tendência histórica de preferência crescente pela arma de fogo tenha relação com a campanha do desarmamento, com a grande apreensão de armas de fogo nas últimas duas décadas e com o aumento do registro de crimes de violência doméstica. Não tratarei disso neste trabalho. 92 Política semelhante foi adotada também em outras regiões do Brasil, como observado em Belo Horizonte por Vargas e Nascimento (2010).

178

No caso específico da Divisão de Homicídios, a meta de produtividade a ser atingida por cada delegado assistente é medida não pelo número de inquéritos relatados, mas pelo número de vítimas. Dizendo de outro modo, mais importante que o número de inquéritos relatados à justiça é o número de vítimas a que esses inquéritos correspondem, no mínimo dez vítimas por mês. Uma consequência esperada de políticas de produtividade como a vista no Rio de Janeiro é, portanto, um aumento no número de inquéritos relatados, o que pode ser medido de modo abrangente pelas estatísticas oficiais, com a ressalva de que essas mesmas estatísticas não nos permitem qualificar esses inquéritos. Neste sentido, na próxima tabela estão apresentados os números e percentuais válidos segundo a “situação atual” em que os inquéritos das mortes violentas e dos homicídios dolosos se encontravam em abril de 2012, para a cidade do Rio de Janeiro, segundo ano de instauração do inquérito policial. A variável “situação atual” apresenta categorias que dizem respeito à instrução criminal na fase policial. São elas: 1. Registros de Ocorrências (RO): papel produzido pelos policiais do GI que originam os demais procedimentos internos à delegacia. É quando o evento é registrado pela Polícia como possivelmente um crime; 2. Verificação de Procedência da Investigação (VPI): na prática, representam procedimentos instaurados para avaliar a viabilidade de instauração do inquérito policial para um registro de ocorrência; 3. Prisão em flagrante: inquéritos instaurados a partir da prisão do acusado no momento do evento registrado como crime ou até 24 horas após o registro do mesmo; 4. Inquérito em andamento: corresponde aos inquéritos policiais para os quais as “diligências” ainda estão sendo realizadas pelo “sindicante do inquérito”, um dos policiais do GIC; 5. Inquéritos enviados à justiça: categoria que engloba os inquéritos enviados ao Ministério Público para pedidos de dilação de prazo quanto ao cumprimento das investigações; 6. Inquéritos devolvidos pela justiça: categoria correspondente aos inquéritos devolvidos

pelo Ministério Público com pedidos de realização de outras “diligências”, isto é, procedimentos pertinentes à investigação realizada pela polícia e;

179

7. Inquéritos relatados: aqueles em que a investigação policial permitiu indicar elementos

suficientes de materialidade e autoria e que, por isso, podem ser enviados ao Ministério Público com fins de oferecimento da denúncia. Tabela 16 - Rio de Janeiro: Situação em abril de 2012 dos procedimentos referentes a mortes violentas (incluindo homicídio doloso) e apenas a homicídio doloso instaurados na Capital em 2009, 2010 e 2011, número absoluto e percentual válido (*). Situação em abril de 2012

Registro de ocorrência (RO) Verificação de procedência da informação (VPI) Flagrante Inquérito em andamento Inquérito enviado à justiça Inquérito devolvido pela justiça Inquérito relatado Total das mortes violentas

2009 2010 2011 Número Percentual Número Percentual Número Percentual Absoluto Válido Absoluto Válido Absoluto Válido Mortes violentas

Total

103

3,9

76

3,6

49

2,8

228

3,52

532

20,1

311

14,9

240

13,6

86

3,3

91

4,4

75

4,2

982

37,2

632

30,3

870

49,1

2.484 38,30

745

28,2

411

19,7

75

4,2

1.231 18,98

131

5,0

475

22,8

340

19,2

946

14,59

51

1,9

71

3,4

103

5,8

225

3,47

2.630

100,0

2.085

100,0

1.771

100,0

1.083 16,70 252

3,89

6.486 100,00

Homicídios dolosos Registro de ocorrência 63 3,3 26 1,7 25 1,9 114 2,42 (RO) Verificação de procedência da 323 16,9 103 6,9 69 5,3 495 10,52 informação (VPI) Flagrante 40 2,1 52 3,5 52 4,0 144 3,06 Inquérito em 787 41,2 466 31,3 746 56,9 1.999 42,47 andamento Inquérito enviado à 562 29,5 357 24,0 49 3,7 968 20,57 justiça Inquérito devolvido 90 4,7 424 28,5 282 21,5 796 16,91 pela justiça Inquérito relatado 43 2,3 59 4,0 89 6,8 191 4,06 Total dos homicídios 1.908 100,0 1.487 100,0 1.312 100,0 4.707 100,0 dolosos Fonte: Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro/Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), abril/2012. *Desconsiderados os registros referentes a adolescentes infratores e outros procedimentos, todos os que não poderiam se transformar, por lei, em inquéritos.

A tabela mostra que a maioria dos procedimentos de mortes violentas e de homicídio doloso encontrava-se na fase de “inquérito em andamento”, em abril de 2012. Os números referentes a “inquéritos enviados à justiça” e “inquéritos devolvidos pela justiça”, ou seja,

180

aqueles inquéritos que se encontravam no chamado “pingue-pongue” (MISSE et al., 2010) entre a Central de Inquéritos e a delegacia, representam cerca de 37% para ambos os grupos. Os inquéritos relatados parecem ser uma boa medida para observar possíveis impactos da política de metas e, a tabela mostra que essa categoria corresponde a aproximadamente 4,0% de todos os registros nos dois conjuntos. Observação semelhante pode ser feita para os inquéritos abertos por “prisão em flagrante” do autor, o que, neste caso, implica o envio do inquérito diretamente aos juízes das varas Criminais, sem passar pela Central de Inquéritos. Em outro extremo, os procedimentos que ainda não se tornaram inquéritos, os que estão em VPI ou em RO, somam cerca de 20% nos casos de mortes violentas e pouco mais de 12% quando se observam apenas os inquéritos de homicídio doloso. Os dados permitem observar variações quanto ao número absoluto de alguns procedimentos entre 2009 e 2011. Não obstante o alto número de “inquéritos em andamento”, chama a atenção a queda no número de ROs (-60%) e de VPIs (-78%) para os eventos tipificados como homicídio doloso, no número de “inquéritos enviados à justiça” sem relatoria (-91%) e o aumento do número de “inquéritos relatados” à justiça com autoria (+107%). Note-se que essas alterações parecem ter como marco o ano de 2010 e se tornam mais visíveis em 2011 (Gráfico 3). Gráfico 3 - Rio de Janeiro: Situação em abril de 2012 dos procedimentos referentes a homicídio doloso instaurados na Capital em 2009, 2010 e 2011, número absoluto.

Fonte: Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro/Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), abril/2012.

181

Essas variações poderiam ser explicadas pela criação da Divisão de Homicídios? Ou elas podem ser explicadas pela tendência de queda no número absoluto de homicídios registrados ao longo dos últimos anos? Ou seria uma combinação de ambos fatores, ou seja, há menos ocorrências de homicídios e uma equipe de policiais mobilizada para trabalhar apenas com esse tipo de crime, o que levaria a um aumento da “produtividade” aqui medida, como já dito, pelo número de inquéritos relatados com autoria identificada ao Ministério Público? Tentando responder a essas perguntas, apresento no próximo gráfico os números de inquéritos de homicídio dolosos relatados em abril de 2012, considerando o mês de instauração dos mesmos. A hipótese que orienta essa análise considera os resultados apontados pela maioria dos estudos sobre fluxo do sistema de justiça criminal no Brasil, que destacam a morosidade do fluxo dos papéis ao longo dos anos do processo de sentenciamento. Desta maneira, espera-se que os inquéritos instaurados em janeiro de 2009, por serem os mais antigos, devem compor o conjunto com maior percentual de inquéritos relatados com autoria identificada, enquanto os inquéritos instaurados em dezembro de 2011, por serem os mais recentes, devem compor o conjunto com os menores índices referentes ao envio de inquéritos relatados, com autoria identificada ao Ministério Público (Gráfico 4). Gráfico 4 – Número de inquéritos de homicídio doloso relatados à justiça até abril de 2012, segundo o mês de instauração do inquérito.

Fonte: Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro/Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), abril/2012.

182

Os dados mostram que pouco mais de 2% dos inquéritos instaurados em janeiro de 2009 tinham sido relatados à justiça, com autoria indicada, até abril de 2012. Em contrapartida, cerca de 5% dos inquéritos instaurados em dezembro de 2011 haviam sido relatados à justiça com indicação de autoria até abril de 2012. Chama a atenção o valor de 12,2% referente aos inquéritos instaurados em agosto de 2011 terem sido relatados à justiça com autoria identificada até abril de 2012, bem como o valor de 10% correspondente aos inquéritos instaurados em outubro de 2011. O objetivo deste capítulo foi caracterizar, em termos estatísticos, o perfil dos inquéritos de homicídio doloso, principalmente quanto ao aspecto de fluxo dos papéis na fase de investigação criminal. O principal ponto refere-se à mudança observada, a partir de 2010, quanto ao número de inquéritos relatados à justiça com autoria identificada. Esse aspecto poderia estar atrelado a um novo modelo de gestão organizacional representado pela Divisão de Homicídios? Se sim, como isso vem ocorrendo? A título de complementação da análise desses dados oficiais, busquei, uma vez inserida na Divisão de Homicídios, contabilizar o volume de registros produzidos pelos operadores desta unidade de polícia com base (1) nos livros de registros dos peritos criminais e dos papiloscopistas e (2) nos procedimentos instaurados e registrados em plataforma própria da Polícia Civil, chamada de ROWeb. A descrição quantitativa ora apresentada reflete, portanto, um momento bem delimitado desta unidade, sendo que a coleta dos dados foi feita no dia 17 de abril de 2012. A ideia que orienta essa análise é inserir o trabalho dos peritos criminais no volume de trabalho da Divisão de Homicídios e, posteriormente, o trabalho dos papiloscopistas no trabalho da perícia. Ou seja, de todos os registros produzidos pela Divisão de Homicídios entre fevereiro e abril de 2012, em quantos deles os trabalhos da “perícia de local do crime” foram solicitados? Destes, quantos permitiram a realização do trabalho dos papiloscopistas? Desta forma, é possível começar a desenhar o fluxo do trabalho da perícia nos inquéritos de homicídios dolosos registrados pela Divisão de Homicídios. Entre 01 de fevereiro e 31 de março de 2012 foram registrados 326 “procedimentos” na Divisão de Homicídios, o que gera uma média de 5,43 procedimentos por dia (Tabela 17).

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Tabela 17 - Número absoluto e percentual válido dos procedimentos da Divisão de Homicídios, por tipo de ocorrência: Rio de Janeiro, Capital, fevereiro e março de 2012 (data da coleta: 17 de abril de 2012).

Tipo de Ocorrência Homicídio por arma de fogo Prisões2 Homicídio por outros instrumentos1 Outros procedimentos3 Latrocínio Homicídio por arma branca Desaparecimento Aborto Suicídio Encontro de ossada Sem informação4 Total

Números absolutos 151 63 58 17 9 8 8 5 3 2 2 326

Percentual Válido 46,3 19,3 17,8 5,2 2,8 2,5 2,5 1,5 ,9 ,6 ,6 100,0

Percentual Acumulado 46,3 65,6 83,4 88,7 91,4 93,9 96,3 97,9 98,8 99,4 100,0

1

Além dos registros "homicídios (outros)", categoria contém: homicídio (paulada) e homicídio (pedrada). Categoria inclui os registros: prisão; prisão por condenação; prisão preventiva e prisão temporária. 3 Categoria inclui os registros: encontro de ossada; furto; roubo; sequestro e cárcere privado; sigilo. 4 Um caso se refere a cancelamento do registro de ocorrência e o outro não continha a tipificação. 2

A Tabela 17 mostra que cerca de 2/3 (66,6%) de todos os procedimentos feitos pela Divisão de Homicídios, em fevereiro e março de 2012, foram classificados como homicídio doloso, sendo 46,3% destes atribuídos ao uso de arma de fogo, 17,8% ao uso de outros instrumentos e 2,5% ao uso de arma branca. Os eventos classificados como latrocínios, abortos e suicídios apresentam valores percentuais respectivamente iguais a 2,8%, 1,5% e 0,9% e também são de competência da Divisão de Homicídios. Chama a atenção o volume de procedimentos relacionado ao cumprimento de mandados de prisão (19,3%). Os desaparecimentos ocupam 2,5% de todo o conjunto. As outras ocorrências representam 5,2% de todos os registros produzidos pela Divisão de Homicídios nesse período. Destes 326 registros feitos na Divisão de Homicídios, quantos deles poderiam necessitar dos trabalhos da Perícia? Retirando (a) os registros referentes a procedimentos de outras delegacias de polícia e que foram encaminhados à Divisão de Homicídios bem como (b) os registros que não demandam trabalhos da Perícia, tais como prisões e desaparecimentos, cheguei a uma base de dados composta por 236 procedimentos nos quais os trabalhos da perícia seriam necessários, segundo a percepção dos operadores da DH. Esse

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volume gera uma média de 3,9 procedimentos por dia relacionados a eventos que podem ser criminados pela Polícia Civil como homicídio doloso. Em termos representativos, pode-se dizer, portanto, que os trabalhos da perícia “seriam necessários” em 72,4% de todos os procedimentos registrados pela Divisão de Homicídios nos meses de fevereiro e março de 2012. Consultando o livro de registros onde os peritos criminais anotam suas atividades, foi possível montar uma base de dados com 194 casos, o que permite dizer que o trabalho da perícia foi aplicado, de fato, em 82,2% dentre todos os procedimentos onde poderiam ser necessários, mostrando um déficit de 42 casos. Uma das vantagens de trabalhar na perspectiva da construção social do crime ao empreender análises estatísticas dos dados oficiais gerados pelas agências do sistema de justiça criminal é conjugar essas análises com o campo etnográfico. Desta maneira, contando com o auxílio de uma funcionária do Setor de Inteligência Policial (SIP), procedi a uma consulta via número de procedimento93 desses 42 casos no intuito de compreender esse déficit. Essa consulta detalhada mostrou que a maioria desses casos correspondia ou (1) a desmembramentos de registros em que, por exemplo, um dos autores possuía menos de 18 anos, casos que são remetidos à Justiça Juvenil ou (2) a vítimas que morreram após terem sido socorridas e levadas para o hospital, ocasiões em que o “local do crime” havia sido desfeito quando a notícia sobre a morte da vítima chegara à DH. Esses casos, chamados “hospital”, geram registros de procedimentos, mas não a presença da perícia no local do crime, uma vez que a notícia-crime chega a Divisão de Homicídios por comunicação do policial militar presente nos hospitais da cidade. Esses casos podem ser registrados inicialmente como tentativas de homicídio, sendo transferidos para a Divisão de Homicídios após a morte da vítima. Seguindo a ideia de desenhar o fluxo do trabalho de perícia nos inquéritos de homicídio, destes 194 registros em que a perícia da Divisão de Homicídios foi mobilizada,

93

Número de procedimento é o registro que identifica a ocorrência dentro da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Ele é composto por 8 algarismos acompanhados do ano de registro. Os três primeiros algarismos indicam a delegacia de origem do registro, sendo que as Especializadas iniciam com o número 9. Os cinco algarismos posteriores indicam o número do registro propriamente dito e é gerado em ordem crescente para cada delegacia pelo sistema informatizado da instituição. Assim, apenas como exemplificação, o número de procedimento 00n-00001/2012 indica o primeiro registro realizado na nª. Delegacia de Polícia no ano de 2012; e o número 90n-00001/2012 indica o primeiro registro realizado na Especializada correspondente ao número “n”, no ano de 2012.

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houve 47 ocasiões em que o trabalho dos papiloscopistas pode ser realizado, de acordo com o livro de registros desses profissionais (Figura 8). Figura 8 - Número absoluto de registros na Divisão de Homicídios, na Perícia Criminal e na Papiloscopia: Rio de Janeiro, Fevereiro e Março de 2012.

326 registros na Divisão de Homicídios

236 registros onde a Perícia pode ser necessária

194 registros na Perícia Criminal

47 registros na Papiloscopia

O objetivo até este momento do capítulo foi refletir sobre possíveis consequências que as mudanças implementadas por políticas de segurança pública, sobretudo as que se referem ao nível institucional, podem ter sobre os elementos que possivelmente determinariam as condenações dos sujeitos incriminados por homicídio doloso. Para responder a esta indagação, optei por observar o fluxo de papéis referente aos eventos criminados como homicídio doloso pela Polícia Civil na cidade do Rio de Janeiro, entre janeiro de 2009 e dezembro de 2011. Paralelamente, mostrei que houve uma redução no número de registros de homicídio doloso na capital fluminense desde 2002 até 2010, em torno de -38%, tendência esta que se manteve até dezembro de 2011. Mostrei que esta tendência também é observada para os outros tipos de mortes violentas, como “encontro de cadáver” e “autos de resistência”, mas que o número de homicídios cometidos por armas cortantes apresenta um padrão inverso, aumentando ao longo dos últimos três anos. Em abril de 2012, procedi à consulta dessas estatísticas para o trâmite desses papéis produzidos pela Polícia Civil e pude observar que a maioria dos procedimentos encontrava-se na fase de “inquérito em andamento”, fase esta que corresponde ao cumprimento das diligências internas à Polícia. Boa parte dos inquéritos instaurados encontrava-se no chamado “pingue-pongue”, entre delegacia e Ministério Público. Uma importante variação que os dados apresentam refere-se ao aumento no percentual de inquéritos relatados (+107%), o que ocorre mais pontualmente a partir de 2010, ano de criação da Divisão de Homicídios. Essa variação poderia ser explicada por dois fatores: (a) criação da DH e (b) queda no número de homicídios? Além do advento de uma unidade especializada em investigações de eventos que podem ser criminados como homicídio doloso,

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há uma queda no número desses eventos, o que parece contribuir para a melhoria da qualidade das investigações produzidas pelos operadores especializados nessas investigações. Essa reflexão ganha mais força ao observarmos que o percentual de inquéritos instaurados em dezembro de 2011 e relatados até abril de 2012 é superior ao percentual de inquéritos instaurados em janeiro de 2009 e relatados até abril de 2012. Uma vez dentro da DH, pude sistematizar as informações anotadas nos livros de registros dos peritos criminais e dos papiloscopistas e, assim, compará-las com as informações processadas pelo Setor de Inteligência Policial (SIP) na rede interna da Polícia Civil, chamada ROWeb, a qual, por sua vez, alimenta a base de dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), de onde obtive os dados mais gerais. A comparação desses registros se mostrou interessante principalmente ao perceber que o GELC não vai a todos os “locais de crime”, casos em que as vítimas são socorridas e levadas aos hospitais e vêm a morrer quando “o local” já fora desfeito, dado o tempo transcorrido entre o evento e a morte. A observação dos dados oficiais publicados pelo estado, em conjugação com a observação sobre como esses mesmos dados são produzidos dentro de uma unidade especializada criada recentemente traz, neste momento, mais reflexões que resultados prontos. Falo, portanto, de tendências que devem ser melhor estudadas daqui a alguns anos, quando as mudanças institucionais ora identificadas possam estar mais consolidadas.

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Capítulo 7 - Mudanças no Rito do Tribunal do Júri Neste capítulo, teço análises sobre como as regras de procedimento relativas ao rito do tribunal do júri estão sendo percebidas por promotores de justiça, defensores públicos e advogados criminalistas, juízes e serventuários da comarca do Rio de Janeiro, especialmente após a implementação das mudanças advindas com a Lei no 11.689/08. Em paralelo, apresento também os principais resultados trazidos pela observação das audiências de instrução e nas sessões de julgamento. Como já descrito na Introdução, ao longo dos meses de novembro de 2009 e fevereiro de 201094, foram observadas nove audiências de instrução e seis sessões de julgamento, nas quatro varas criminais de competência do rito do tribunal do júri da comarca do Rio de Janeiro. Foram realizadas também doze entrevistas com os operadores do direito, dentre juízes, serventuários, promotores, defensores e advogados criminalistas. O pouco tempo decorrido entre a vigência da legislação que traz as novas regras de decisão e a realização do campo de pesquisa, aproximadamente dois anos, permite apenas indicar tendências que poderão ser melhor investigadas daqui a algum tempo. Entretanto, o intuito de fazer esta discussão neste momento é refletir sobre como essas novas regras de decisão, se colocadas em prática pelos operadores, podem ou não influenciar na construção social e institucional do homicídio doloso. E, consequentemente, como essas novas práticas poderiam vir a modificar os elementos identificados nesta tese como possíveis determinantes das condenações e, em menor medida, das punições para certos tipos sociais. Uma primeira observação importante trazida pelos entrevistados, que foge à discussão sobre as novas regras de procedimento, mas que se insere na discussão sobre mudanças institucionais, refere-se a modificações na estrutura organizacional da justiça criminal da comarca do Rio de Janeiro. Recentemente, deu-se uma reorganização desta instituição, que foi pautada especialmente no discurso do acesso à justiça. Entende-se que a discussão sobre acesso à justiça relaciona-se à democratização da administração da justiça visando à universalização dos direitos humanos. Descentralizando a estrutura física da justiça, levando-a para as 94

Por ocasião do projeto Pensando o Direito: Os Novos Procedimentos Penais localizado no Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESeC) e fomentado pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, da qual participei ativamente (RIBEIRO et al, 2010).

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periferias, espera-se que a confiança na justiça por parte desta parcela da população seja ampliada (SINHORETTO, 2011). A descentralização da justiça criminal do Rio de Janeiro, de acordo com o discurso dos operadores entrevistados, deveu-se a uma iniciativa de tornar a “justiça mais próxima da população das regiões mais distantes e mais populosas da capital, além da tentativa de tornar a justiça mais célere e mais eficaz”. Neste sentido, a comarca do Rio de Janeiro se estrutura em um fórum central e dez fóruns regionais: Bangu, Barra da Tijuca, Campo Grande, Ilha do Governador, Jacarepaguá, Leopoldina, Madureira, Méier, Pavuna e Santa Cruz. No fórum central, há quarenta varas criminais e quatro varas criminais do rito do tribunal do júri. Em cada um dos fóruns regionais, há duas varas criminais, exceto as dos tribunais do júri. Segundo os operadores entrevistados, decorreram dessa descentralização alguns problemas, tais como a coação das vítimas, das testemunhas e o risco de fuga dos presos conduzidos aos fóruns quando da realização de interrogatórios, dentre outros. Uma vez que os fóruns regionais se localizam próximo à vizinhança das vítimas e testemunhas, a identificação das mesmas tornava-se ainda mais fácil, o que tendia a aumentar a sensação de insegurança e medo por parte dessas pessoas, a uma menor disposição para testemunhar. Do mesmo modo, os locais onde os fóruns regionais se encontram localizados mostram-se mais acessíveis a grupos de criminosos motivados a libertar o preso conduzido. Diante disso, os fóruns de Leopoldina, Ilha do Governador, Méier, Barra da Tijuca, Pavuna e Campo Grande não possuem mais varas criminais, apenas as varas cíveis, isto é, de âmbito do Direito Civil. As percepções dos operadores do Rio de Janeiro quanto a este assunto, bem como o retorno à centralização das varas criminais, juntamente com a não descentralização das varas criminais do rito do tribunal do júri, demonstram como este tipo de reforma não parece se adequar às querelas típicas do Direito Penal. Isto se deve ao fato de, no Brasil, o processo judicial para o acusado não ser uma escolha de negociação, mas um caminho obrigatório ao longo do qual ele terá que provar sua inocência (GRINOVER, 1998; LIMA, 2008, 2009). Justamente por não ser uma opção, o discurso sobre acesso à justiça parece não se aplicar à área do direito criminal, visto que a negociação inexiste: ou o acusado é culpado ou é inocente (SINHORETTO, 2011).

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Além disso, pode-se dizer que na área criminal, a lógica do contraditório é operada com mais força do que na área cível. Nesta, ao contrário daquelas, há possibilidade de serem estabelecidas conciliações entre os querelantes, ou aplicação de penas e medidas alternativas aos acusados, assemelhando-se mais à tipicidade da lógica adversarial (BAPTISTA, 2008; LIMA, 2009; MELLO; BAPTISTA, 2011). Neste capítulo, faço uma discussão sobre reforma do sistema de justiça criminal, que busca compreender como os operadores da comarca do Rio de Janeiro estão percebendo e adaptando-se, na prática, às novas regras de decisão advindas com o Novo Código de Processo Penal do Brasil, particularmente no que se refere à Lei no 11.689/08, que trata das regras de procedimento de âmbito do rito do tribunal do júri. Neste sentido, os dois quadros abaixo sintetizam as principais mudanças trazidas pelo advento das novas regras de procedimento previstas nesta reforma.

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Quadro 4 – Principais mudanças quanto às regras de procedimento da primeira fase do rito do tribunal do júri. Procedimento Penal Inquérito policial Oferecimento da denúncia a) Rejeição imediata da denúncia (Art. 395)

Antes da reforma

Permanece enquanto tal, devendo ser concluído em 10 dias para o caso de réu preso e em 30 dias para o caso de réu solto. Permanece enquanto tal, devendo ser realizada 5 dias após a distribuição do processo em caso de réu preso e em 15 dias em caso de réu solto. Diferenciavam-se os casos de não recebimento (por falta dos requisitos da inicial) dos casos de rejeição (por falta de condições da ação).

b) Recebimento da denúncia (Art.396)

Implicava citação do acusado, ainda que este estivesse em local incerto. Havia possibilidade de citação por edital quando o réu estivesse se esquivando de ser citado.

Efeitos da citação

Comparecimento do réu em juízo para interrogatório e apresentação da defesa prévia.

Efeitos da apresentação da resposta

Designação de Audiência de Prova Testemunhal.

Audiências

Uma para cada momento processual – iniciava-se com a audiência para oitiva de testemunhas de acusação, à qual se seguia uma audiência de testemunhas de defesa. Após as duas audiências, abria-se prazo para últimas diligências de ambas as partes, alegações finais de ambas as partes e entrega do processo ao juiz para conclusão.

Interrogatório do réu

5 dias após o recebimento da denúncia, era realizado apenas de maneira presencial.

Forma de interrogatório do réu Oitiva das testemunhas de acusação Oitiva das testemunhas de defesa Forma de inquirição das testemunhas Possibilidade de fracionamento da audiência

Alegações finais Sentença

Depois da reforma

Não se diferenciam mais os casos de não recebimento dos casos de rejeição. Citação do réu por hora certa, pessoalmente ou por edital. No caso de o réu estar se esquivando da citação, esta será realizada por hora certa. Não se admite a citação por edital de pessoa incerta. O réu poderá ser citado por edital, no prazo de 15 dias, quando não for encontrado por outros meios de citação. Apresentação de resposta escrita 10 dias após a citação ou, caso esta resposta não ocorra, nomeação de defensor público para apresentação da mesma. Absolvição Sumária (caso manifesta causa excludente da ilicitude do fato ou culpabilidade do agente; caso o fato narrado não constitua crime; caso extinta a punibilidade). Não sendo nenhum desses casos, o juiz receberá a denúncia e, no prazo de 60 dias, designará dia e hora para audiência. Concentradas na Audiência de Instrução e Julgamento (AIJ), na qual são ouvidos o ofendido, as testemunhas (de acusação e de defesa), peritos, assistentes técnicos e interroga- se o próprio réu. Nesse momento, podem ser realizadas ainda diligências como acareação e reconhecimento de pessoas. Por fim, abre-se espaço para sustentação de alegações finais, seguidas pelo proferimento da sentença pelo juiz. Último ato da Audiência de Instrução e Julgamento, sendo que, a partir da Lei 11.900/09, torna-se possível a realização do interrogatório do réu preso por videoconferência, em excepcionais condições.

Por intermédio do juiz

Inicia-se por intermédio do juiz, seguida de inquirição direta pelas partes.

20 dias (se réu preso) ou 40 dias (se réu solto) após a apresentação da defesa prévia

Primeiras a serem ouvidas na AIJ.

Logo após a oitiva das testemunhas de acusação.

Segundas a serem ouvidas na AIJ.

Por intermédio do juiz (repergunta)

Pelas partes.

Não existia porque as audiências já eram fracionadas.

Prazos sucessivos de três dias para acusação e defesa após o requerimento das últimas diligências pela defesa. Apresentada pelo juiz 10 dias após as alegações finais da defesa.

Pode ocorrer em casos de realização de diligências imprescindíveis; em casos de elevada complexidade ou em se tratando de mais de um réu – neste caso abrem-se prazos sucessivos de 5 dias às partes para o oferecimento de memoriais, após os quais se abre o prazo de 10 dias para a sentença pelo juiz. Apresentadas em audiências em prazos sucessivos de 20 minutos concedidos primeiro para a acusação e depois para a defesa. Apresentada pelo juiz em audiência logo após a sustentação oral das alegações finais da defesa.

Fonte: Código de Processo Penal (2013) e Ribeiro et. al (2010, p.20)

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Quadro 5 - Principais mudanças quanto às regras de procedimento da segunda fase do rito do tribunal do júri. Procedimento Penal

Antes

Intimação da sentença de pronúncia

Intimação pessoal do acusado, escusável apenas em caso de crime afiançável.

Preparação do processo para julgamento em plenário

Apresentação do libelo acusatório pela acusação, em 5 dias (prorrogáveis por mais 2), e intimação, no prazo de 3 dias, para a contrariedade do libelo pela defesa, também em 5 dias. Após isso, o juiz deve ordenar as diligências necessárias para saneamento de eventuais nulidades.

Desaforamento por excesso de prazo e reclamação para julgamento imediato

Poderia ser requerido o desaforamento se não ocorresse o julgamento em 1 ano desde o recebimento do libelo.

Instrução em plenário

Só era permitida a ausência do acusado em crimes afiançáveis. O interrogatório do réu era o primeiro ato da instrução, seguido pela oitiva das testemunhas de acusação e de defesa. Era permitida a leitura de quaisquer peças do processo. O uso de algemas pelo acusado era a regra. Os depoimentos das testemunhas deveriam ser reduzidos a escrito, de maneira resumida. Os debates previam 2 horas para a acusação, 2 horas para a defesa, meia hora para a réplica e mais meia hora para a tréplica. Em caso de mais de um réu, o tempo de acusação e defesa era acrescido de 1 hora, sendo elevados ao dobro o tempo da réplica e da tréplica.

Diligências essenciais durante a instrução em plenário

Se a verificação de qualquer fato essencial à decisão da causa não pudesse ser realizada imediatamente, cabia ao juiz dissolver o conselho de sentença, formulando com as partes os quesitos para as diligências necessárias.

Quesitos

A prescrição legislativa para sua formulação era menos diretiva e mais complexa.

Julgamento pelo júri

Preferencialmente em sala especial, por maioria de votos.

Depois Possível intimação por edital no caso de o acusado não ser encontrado, mesmo em caso de crime inafiançável (art. 420, parágrafo único). Extinção do libelo e contrariedade. Intimação das partes para arrolarem testemunhas (máximo de 5) e apresentarem provas e requerimentos em 5 dias (art. 422). Após isso, o juiz deliberará sobre as requisições das partes, determinará diligências saneadoras de eventuais nulidades e elaborará relatório sucinto do processo (art. 423). O desaforamento por excesso de prazo pode ser exigido, por comprovada sobrecarga de serviço, se o julgamento não puder ser realizado no prazo de 6 meses, contados do trânsito em julgado da decisão de pronúncia. Se, passado esse prazo, houver possibilidade de julgamento pelo mesmo tribunal, o acusado pode requisitar a realização imediata do julgamento (art. 428). Não é mais necessária a presença do acusado, mesmo em crimes inafiançáveis. Não implica, igualmente, o adiamento da sessão a ausência do querelante, salvo se justificada em ações exclusivamente privadas (art. 457). O interrogatório do réu passa a ser realizado após toda colheita de provas. Antes serão ouvidos o ofendido (se possível), as testemunhas de acusação e as de defesa, inquiridos diretamente pelas partes ou indiretamente pelos jurados. É permitida a leitura somente de peças que digam respeito a provas colhidas por carta precatória e as provas cautelares, antecipadas ou não repetíveis (art. 473). O uso de algemas pelo acusado é exceção, só permitida quando a segurança da sessão o faz necessário. O depoimento das testemunhas pode ser gravado. Os debates destinarão 1 hora e 30 minutos para a acusação, 1 hora e 30 minutos para a defesa, 1 hora para a réplica e mais 1 hora para a tréplica. Em caso de mais de um réu, o tempo de acusação e defesa será acrescido de 1 hora, sendo elevado ao dobro o tempo da réplica e da tréplica (art. 477). Se a verificação de qualquer fato essencial ao julgamento da causa não puder ser realizada imediatamente, o juiz presidente dissolverá o conselho, ordenando a realização das diligências necessárias que, na hipótese de se constituírem em produção de prova pericial, fará com que o juiz e partes nomeiem perito e assistentes técnicos e formulem quesitos, no prazo de 5 dias (art. 481). O legislador guia a ordem e maneira de formulação dos quesitos pelo juiz presidente, exigindo um quesito genérico de absolvição (art. 483). Prossegue sendo por maioria de votos, preferencialmente em sala especial, mas não é mais necessária a contagem de todos os votos, dando-se por encerrada a votação do quesito assim que mais de 3 jurados expressarem a mesma orientação (art. 483).

Fonte: Código de Processo Penal (2013); Ribeiro et al (2010, p.25)

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Uma vez expostas as principais mudanças advindas com a reforma de 2008, passo a descrever algumas práticas rotineiras dos operadores das varas criminais do rito do tribunal do júri. Ao longo do trabalho de campo, foi possível observar que os operadores das varas criminais dos tribunais do júri reservam dois dias na semana para as audiências de instrução e dois dias para as sessões de julgamento. O dia restante, geralmente uma sexta-feira, é dedicado ao trabalho de gabinete, isto é, aos procedimentos próprios do trabalho cartorial, tais como organizar documentos, agendar as audiências para a próxima semana, atender advogados dos acusados, dentre outros. Dado o tempo despendido para a realização de uma sessão de julgamento, cada vara criminal do rito do tribunal do júri realiza apenas um julgamento por dia, mas elenca três a quatro audiências de instrução para um mesmo dia. As audiências do rito do tribunal do júri são realizadas no mesmo espaço onde ocorrem as sessões de julgamento, os chamados “plenários do júri”. Os plenários dos tribunais do júri podem ser comparados a ambientes como teatro e igreja (SCHRITZMEYER, 2001; FIGUEIRA, 2008). A parte destinada ao público é separada da área onde acontece o “espetáculo” por uma grade baixa com duas portinholas laterais por onde entram as pessoas devidamente autorizadas, como os jurados escolhidos para compor o conselho de sentença, por exemplo. De frente para a “plateia” há uma espécie de bancada onde ao centro, num nível mais alto, localiza-se o juiz. Ao seu lado direito e abaixo, o local reservado ao Ministério Público. Ao lado esquerdo do juiz, localizam-se o serventuário responsável pela digitação das falas dos depoentes e o oficial de justiça, responsável pelo “pregão”, chamada das testemunhas pelos nomes, e condução das testemunhas até o local. Situados lateralmente, em clara oposição, dispõem-se o banco dos réus, onde permanecem o acusado e seu defensor, e de frente para ele, as sete cadeiras que devem ser ocupadas pelos jurados quando das sessões de julgamento pelo júri. Ao centro, uma cadeira e mesa onde as pessoas se sentam quando da tomada de depoimentos. Acima do juiz, um crucifixo com a imagem de Jesus Cristo. O desenho95 abaixo ilustra como é um plenário do júri.

95

Imagem ilustrativa do julgamento de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá e divulgada no Jornal Folha de São Paulo. Apesar de retratar a sala de plenário do Fórum de Santana, em São Paulo, é semelhante à sala de plenário dos tribunais do júri de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro.

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Figura 9 – Ilustração de uma sala de plenário do tribunal do júri. Juiz Acusação/Ministério Público

Escrivão

Conselho de Sentença Defesa/Indivíduo acusado Depoentes

Público

Ao fundo do “palco”, duas portas que se destinam aos “bastidores”: gabinetes do promotor, defensor e juiz, sala de testemunhas, sala de detenção e a sala secreta, onde os jurados votam individualmente, e em silêncio, às quesitações, respondendo sim ou não a cada uma das perguntas separadamente. Juízes, promotores e defensores são obrigados a falar no microfone e, em um dos plenários, há monitores de computador para que juiz, promotor e defensor possam acompanhar o que está sendo digitado pelo escrivão. Entende-se que a oralidade é, para o campo do direito, princípio norteador de um processo justo e democrático já que nela reside o meio pelo qual o juiz – e os jurados no caso do rito do tribunal do júri – pode “sentir” as partes, ao passo que a escrita é um instrumento que reproduz a frieza dos autos, em “preto e branco” (BAPTISTA, 2008). Esta observação de campo mostra como a oralidade caminha em paralelo com a escrita e como esta parece prevalecer sobre aquela, já que acusadores e defensores “vigiam” o quê, e como, o escrivão está reproduzindo no “preto e branco” o que foi “falado em juízo”. Diferentemente do que ocorre na fase de construção do inquérito policial (ver Capítulos 2 e 3), as audiências de instrução e as sessões de julgamento são públicas. Por isso, geralmente são observadas por parentes dos acusados, estagiários do curso de graduação em Direito e outros interessados no tema, pesquisadores como eu. Pude observar, em uma das audiências - na qual o acusado preso há seis meses teve seu pedido de liberdade “deferido”, isto é, aceito pela juíza - a emoção do irmão do réu quando a jovem juíza disse:

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“aceito o pedido de liberdade do réu. Expedir alvará de soltura! [e, virando-se para o acusado] Você irá passar o carnaval em casa” (Juíza).

De acordo com as novas regras de decisão, conforme mostrado no Quadro 4, assim que o juiz recebe a denúncia, a defesa possui dez dias para apresentar a chamada “defesa prévia”, por escrito. Posteriormente, o acusado passa a ser intimado a depor. Uma das alterações mais comentadas pelos operadores é a realização das audiências unas, ainda na primeira fase do rito do tribunal do júri, ou seja, antes da pronúncia. Antes da implementação das novas regras de decisão, marcava-se primeiro o interrogatório do acusado, depois se ouviam as vítimas, as testemunhas de acusação e, por último, as testemunhas de defesa. Cada audiência em um dia específico. Só então se elaboravam as alegações finais de acusação e defesa, em texto escrito, para posteriormente o juiz proferir sua sentença. Depois de 2008, a regra passou a dizer que todos os envolvidos devem ser ouvidos em um único dia, na seguinte ordem: vítimas, testemunhas de acusação, testemunhas de defesa e, por último, os acusados. Das audiências observadas referentes à primeira fase do rito do tribunal do júri, apenas uma ocorreu em sua completude. Trata-se do caso de um rapaz que estava sendo acusado de ter matado o próprio pai. Foram ouvidas as testemunhas de acusação e de defesa, os esclarecimentos do exame de corpo de delito, interrogatório do réu e as alegações finais do promotor e do defensor público de forma oral. Decorridas algumas horas, foi realizado todo o procedimento e o juiz pronunciou o réu ao julgamento pelo conselho de sentença, encerrando, assim, a primeira fase do rito. Em outro caso, foram ouvidas todas as testemunhas, interrogado o réu, mas não houve as alegações finais proferidas oralmente, nem a sentença do juiz, demonstrando que as práticas rotineiras dos operadores seguiam as regras de procedimento anteriores à Lei no 11.689/08. Atualmente, as audiências da primeira fase do rito do tribunal do júri geralmente não são concluídas no mesmo dia, dada a ausência de muitas testemunhas. A nova regra diz que enquanto não se ouvirem todas as pessoas de um grupo de envolvidos não se pode avançar nas demais oitivas. Como exemplo, em casos de tentativa de homicídio, se a vítima não comparecer à audiência, as testemunhas de acusação não poderão ser ouvidas, ainda que todas estejam presentes. Caso falte uma única testemunha de acusação, nenhuma testemunha de defesa poderá ser ouvida e, por fim, caso falte alguma testemunha de defesa o réu não poderá

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ser interrogado. Assim, o juiz é obrigado a remarcar a audiência do ponto onde ela parou, o que não ocorrerá antes de trinta dias, de acordo com o que foi observado em campo. Em um dos casos observados, foram arroladas quatro testemunhas de acusação, mas apenas três estavam presentes. As três testemunhas de defesa estavam presentes e não puderam ser ouvidas porque o promotor de justiça insistiu na quarta testemunha de acusação. A defensora pública tentou argumentar no sentido de que suas testemunhas estavam ali presentes pela segunda vez (a audiência já havia sido remarcada pela ausência da mesma testemunha em outro momento) e que estavam sendo ameaçadas de morte na comunidade onde residiam. O réu também estava presente, e o promotor fez uma contraproposta à defensora: caso ela desistisse de suas três testemunhas, ele abriria mão de ouvir a testemunha ausente e eles passariam então ao interrogatório do réu e às alegações finais. Diante da negativa da defensora, a audiência foi remarcada pela terceira vez. Em outro caso, todas as testemunhas de acusação, defesa e o próprio réu foram ouvidos, mas foi concedido prazo para as alegações finais serem feitas por escrito. O réu estava preso e lhe foi negado o alvará de soltura. Uma nova regra de procedimento trazida pela Lei no 11.689/08 postula que “não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”. Dentre os casos observados, em apenas três foi possível verificar o uso de algemas. No primeiro caso, eram dois rapazes ligados ao tráfico de drogas. O segundo caso era de um negro, alto, gordo, forte, que estava preso há seis meses. No momento da audiência, uma das testemunhas de acusação solicitou prestar depoimento na ausência do acusado, que já estava no plenário. Ele foi retirado do ambiente e reinserido assim que a testemunha terminou o seu depoimento. Mas, no decorrer da audiência, a juíza atendeu ao pedido do advogado de retirar as algemas dada a enorme dificuldade que o réu apresentava para assinar os depoimentos. Ele voltou a ser algemado apenas no final da audiência, para sair do plenário. Em outro caso, um senhor, réu primário, foi “absolvido sumariamente”, isto é, absolvido ainda na primeira fase do rito do tribunal do júri no momento da sentença de

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pronúncia - o que é muito raro - e, aparentemente, não havia motivos que justificasse ele estar algemado. Em duas audiências da primeira fase do rito do tribunal do júri, foi possível observar que alguns operadores continuavam realizando as perguntas ao juiz para que este as traduzisse para a testemunha ou o réu. Em um dos casos, a juíza fez algumas perguntas, mas em seguida retaliou a defesa: “por favor, faça o senhor mesmo as perguntas à testemunha”. O advogado passou, então, a dirigir as perguntas à testemunha. De quando em vez, a juíza ditava ao serventuário o que havia sido dito por ambos, advogado e testemunha, passando o relato para a terceira pessoa do singular e estabelecendo uma espécie de filtro dentre tudo o que havia sido dito pela testemunha. Desta observação conclui-se que como a juíza atendeu parte das mudanças das regras de procedimento, já que insistiu que o advogado perguntasse diretamente à testemunha, mas seguiu as regras de procedimento anteriores ao realizar a “interpretação autorizada do fato”, transpondo a oralidade para a escrita. O que se pode perceber é que o juiz não apenas reproduz ao serventuário o que é dito pelas pessoas, como reconstrói todo o relato, estabelecendo, segundo me disse um juiz, “uma linha de raciocínio lógico, com início, meio e fim”. Não raro, surpreendi-me com a impressão de que “não foi isso que a testemunha falou” diante da reprodução do juiz. Além disso, foi possível perceber, ainda, que o juiz faz um recorte, ressaltando apenas “aquilo que é relevante aos autos”, omitindo algumas situações narradas pelo depoente. Tal prática pode ser interpretada como o momento em que o juiz enaltece e reproduz, de fato, o seu poder simbólico, afinal, ele decide o que é ou não relevante constar nos autos do processo e, portanto, no mundo – lembrando o ditado do campo do Direito “o que não está nos autos não está no mundo”.96 Na opinião de um juiz: “Hoje em dia se tentou, isso a mim me parece saudável, se tentou introduzir no processo penal brasileiro o princípio da oralidade com sua consequência imediata, que é o princípio da imediação. O que é isso? Traduzindo, antes se dava muito mais valor ao que estava escrito. Porque quando você lê um depoimento escrito, não é a 96

O sistema de justiça criminal brasileiro se baseia na lógica do contraditório, uma espécie de “jogo de soma zero”, onde uma tese é declarada vencedora e a outra, vencida. Já o sistema de justiça estadunidense se baseia em lógicas adversárias de produção da verdade, onde se busca atingir o consenso entre as partes (LIMA, 2009; BAPTISTA, 2008; GRINOVER, 1998). A observação descrita mostra o quão problemático pode ser a importação de categorias jurídicas, já que são estabelecidas regras de decisão inerentes à lógica adversarial, típica da tradição de common law, em uma cultura onde prevalece a lógica do contraditório, típico da tradição de civil law (LIMA, 2008; 2009; BAPTISTA, 2008; FIGUEIRA, 2008).

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mesma coisa de você tá ouvindo aquele depoimento, naquela hora. Necessariamente o que o juiz transcreve do que a pessoa falou foi o que a pessoa falou. Isso é a questão da interpretação, né? O juiz ali, quando ele tá repassando, ele tá repassando a partir da sua pré-compreensão, dos seus pré-conceitos e tá produzindo uma coisa nova. A ideia é que valesse o que foi dito, o oral. Concentrar os autos pra tudo ser oral e pro juiz decidir ali no momento, com base no que ele ouviu ali, a percepção que ele teve direto. Quando você bota no papel, na realidade é como se a própria testemunha se transformasse numa prova documental. Você não se preocupa mais com o que a pessoa falou, a testemunha. Você preocupa com o que está no papel. Não necessariamente eu reproduzo o teor do... Isso é extremamente complicado. Muitos juízes, acho que a maioria, detestou isso. Pra você ter uma ideia, quando teve essa mudança, teve uma reunião aqui pra juízes pra explicar como é que ia ser. Um grupo de juízes do qual eu participo sugeriu que se gravassem essas audiências, em vez de ficar transcrevendo. Grava, depois, quando for recorrer, escuta. Os juízes narradores, de modo geral, com raras exceções, foram contra. Ah, porque vai dar muito trabalho ficar escutando. Isso é prova oral. Se não, você transforma prova oral em prova documental, mas você vai estar lendo documentos. Se tudo vira papel acaba não atendendo a finalidade que é da oralidade”. [Juiz]

Com base no Quadro 4 e nas observações das audiências e sessões de julgamento, merecem destaque as audiências unas, com nova ordem dos depoimentos, sendo que acusação e defesa fazem as perguntas diretamente às pessoas e não mais indiretamente, via juiz. Primeiramente são ouvidas as vítimas (se for o caso), as testemunhas de defesa, as testemunhas de acusação e, por último, os acusados. A realização das audiências unas na primeira fase do rito do tribunal do júri parece refletir a preocupação dos legisladores quanto ao aspecto da celeridade do sistema de justiça, já que as alegações finais de acusação e defesa devem ser feitas oralmente, logo após a tomada de depoimentos, seguindo a decisão do juiz quanto ao pronunciamento ou não do acusado. De outro lado, o fato de o acusado ser o último a ser ouvido nessas mesmas audiências parece indicar uma preocupação com o respeito pelas garantias dos acusados. Esses dois aspectos - efetividade e garantia - sempre permearam o campo do direito e podem ser entendidos, neste sentido, como um conflito constituidor deste campo, efetividade e garantias (GRINOVER, 1998; BAPTISTA, 2008; MENDES, 2012). Um ponto recorrente no discurso dos operadores é que as novas regras visaram dar mais celeridade aos processos. Mas, quais são os fatores que determinam um processo tramitar mais rápido que outro? Sobretudo quanto à primeira fase do rito, os operadores apontaram que os processos tendem a tramitar mais rápido quando todos os envolvidos comparecem às audiências. Diante disso, foi obtida maior celeridade?

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Uma hipótese que pode ser formulada com base neste campo, bem como nos resultados anteriormente apresentados nesta tese é: os casos que já andavam rápido antes passaram a andar ainda mais rápido depois da reforma, e os casos que ficavam emperrados permanecem emperrados. Isto porque o que ditaria a rapidez ou a morosidade do sistema de justiça criminal seriam fatores externos às novas regras, tais como a presença das testemunhas nas audiências, a qualidade dos laudos periciais e o reconhecimento do indivíduo como autor do crime. Mas, a esta altura, tal hipótese não pode ser averiguada, visto que a justiça criminal encontra-se ainda em adaptação frente às novas regras. Com base nas entrevistas realizadas, é possível dizer que os defensores consideraram positiva o novo formato das audiências, principalmente quando consideram a alteração da ordem em que o acusado é ouvido. Já alguns juízes se opuseram terminantemente a essa mudança. Os operadores em geral, no entanto, apontaram algumas dificuldades para o cumprimento das regras sobre este novo formato das audiências unas, especialmente com muitos envolvidos. Também o temor de proferir uma sentença sem refletir sobre o caso (no caso dos juízes) e o não comparecimento de testemunhas foram recorrentes em suas apreciações sobre as mudanças. As falas transcritas a seguir ilustram essa análise. “E outra coisa muito importante que o procedimento também trouxe de inovação foi o momento do interrogatório do acusado. Porque antes ele era o primeiro a ser ouvido. Era horrível, uma coisa absurda quando ele caía nas mãos de um juiz. Porque o juiz de uma forma, assim, velada, vamos usar um termo. E até conduzindo o interrogatório. Assim depois, com o interrogatório em mãos, a acusação fazia a sua confirmação, a sua afirmação, a sua argumentação. Agora não, a acusação tem que montar sua prova, a defesa vai... e ele vai ser o último a ser ouvido. Depois que todo mundo produziu a sua prova, aí ele vai dar a versão dele. Ah mas aí o réu, como dizem os desembargadores ou os juízes mais punitivos, “agora o réu pode tudo. Vai ouvir toda prova pra depois dar sua versão”. Aí é que entra a funcionalidade de advogado no processo. O processo não é pra punir, quer dizer, o processo não é pra dar uma resposta que sente a defesa social. Não dessa forma, o processo é um instrumento de defesa do acusado. Então ele tem que ser o último a ser ouvido. Ele tem direito de dar a versão que ele quiser, inclusive alterar os fatos. Por que não? É problema dele. O interrogatório é um ato de defesa. Não é um ato de prova, é um ato de defesa. Então ele pode, na defesa dele, da melhor forma possível, contar a versão dele. E a acusação é que [...] querendo ou podendo comprovar o que ela tá dizendo na denúncia. Essa inversão do procedimento eu acho positivo, considerando que o processo deveria ter e tem a funcionalidade de ser um instrumento de defesa dele, e não da sociedade. A sociedade pensa que não, o processo é pra garantir”. [Defensor Público] “Antes o interrogatório era feito no início da audiência e agora ele é feito por último. É uma coisa que eu achei horrível, entendeu? Porque antes te propiciava muito mais, o réu te comprometia muito mais com a gente, com a verdade, porque não sabia o que as pessoas iam dizer. Então ele não tinha uma história muito boa pra mentir ou pra contar. Agora ouvindo ele ali atrás você praticamente obriga ele a mentir porque

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ele está ouvindo todo mundo falar, então ele vê as brechas pra ele criar uma história, quando chega na vez dele falar ele: ah, eu não vou perder essa oportunidade de me favorecer aqui nessa história, né?. Então praticamente mais ninguém mais confessa, entendeu? As pessoas chegam e inventam histórias baseadas naquilo quê... Então se as pessoas derem uma brechinha a pessoa fala meia verdade, se a pessoa der uma brechona ele pega e mente de uma vez e ele se livra mesmo. Se as testemunhas, por uma razão ou por outra, faltarem, deixarem uma história capenga ele vai e se livra mesmo, entendeu? A oportunidade que ele não teria se fosse de primeiro. Então eu achei, nesse lado aí, uma coisa muito ruim isso, mas as pessoas assim dos direitos de garantia individuais eles privilegiaram essa parte das garantias que o réu tem e meio que esqueceu da sociedade nessa história, eu acho. Eu acho que à sociedade interessava mais a verdade e nessa realmente com essa intenção de ressaltar as garantias ali... por que pra te explicar isso melhor, ia ficar uma coisa muito prolongada”. [Juiz]

As observações sobre o novo formato da realização das audiências, juntamente com as análises das percepções dos operadores entrevistados, ilustram como adaptações podem ser problemáticas, principalmente se estas são importadas de uma tradição jurídica diferente da brasileira, com lógicas diferentes de produção da verdade. Na lógica adversarial da tradição de common law, o acusado não pode mentir sob pena de cometer o perjúrio e, por isso, durante a cross-examination, ele é o último a ser ouvido, e é consultado quanto à proposta negociada em plenário entre acusação e defesa. O juiz administra os procedimentos, de modo a garantir que as regras sejam devidamente seguidas pelos operadores, como em um jogo (GARAPON; PAPADOPOULOS, 2008; LIMA, 2009). Na lógica do contraditório, típica do sistema de justiça criminal brasileiro, ligado à tradição de civil law, é permitido ao acusado mentir, já que a Constituição Federal de 1988 garante que “nenhum indivíduo é obrigado a produzir provas contra si mesmo” (FIGUEIRA, 2008). Uma das críticas apresentadas pelos operadores vai ao encontro dessa análise, já que ela se refere ao fato de a reforma não ter “avançado o tanto desejado”, uma vez que as novas leis de 2008 poderiam ser vistas como um remendo, uma colcha de retalhos ao Código de Processo Penal, vigente desde 1941: “Qual o grande problema de toda reforma parcial? O que é reforma parcial? Reforma parcial é aquela reforma que vai sempre num ponto específico. Porque o ideal seria que qualquer código fosse um sistema coerente. E pra esse sistema ser coerente ele tem que ter um princípio unificador. Aquele princípio que dá coerência interna ao sistema. Nas reformas parciais você acaba ferindo esse princípio, porque você cria uma colcha de retalhos. Não necessariamente o que ta nesse pedaço, vai ser compatível com o pedaço que ta lá na frente. O grande problema dessa reforma parcial é esse motivo, a questão da coerência interna. Tanto é que hoje em dia já tem

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o projeto que tá no Congresso, de reforma total. Muda, bota abaixo esse código que é um código de inspiração fascista”. [Juiz]

Em relação às regras de decisão correspondentes à segunda fase do rito do tribunal do júri, marcada pelas sessões de julgamento, um ponto importante a ser dito refere-se à composição do conselho de sentença. São sorteadas vinte e cinco pessoas da sociedade civil de uma lista com nomes à disposição do Tribunal de Justiça. Desse conjunto, são escolhidas sete pessoas que irão compor o conselho de sentença. Serão alçados à condição de juízes temporários, não togados, a fim de julgarem seus pares. O juiz coloca todos os vinte e cinco nomes dentro de uma caixa, sorteando-os em seguida. À medida que os nomes são lidos, defesa e acusação podem rejeitar, cada um, até três pessoas. Recusa e aceite dependem de cada caso em julgamento, sendo que os operadores, promotores e defensores, possuem de antemão informações sobre o perfil sociobiográfico dos jurados, tais como profissão e idade, dentre outros fatores (CORREA, 1983; FIGUEIRA, 2008; LIMA, 2009). A composição do conselho de sentença, apesar de ser definida no momento da sessão de julgamento, é previamente montada pelos operadores. Em um deles, por exemplo, o réu apresentava limitações físicas e mentais. A defesa procurou escolher mulheres para compor “o júri”. Outro caso a servir de exemplo foi de um senhor que estava sendo acusado de um crime praticado na época da ditadura militar. Aqui, foram aceitas pessoas com mais idade, que tivessem vivenciado a época. Uma sessão de julgamento observada merece destaque como caso atípico, já que foi possível perceber alterações na rotina (SUDNOW, 1971[1967]). Na ocasião, o plenário ficou repleto de espectadores, a mídia estava presente, e foi montado todo um aparato de segurança para “garantir a paz” dentro do plenário. Trata-se da sessão de julgamento do caso que ficou conhecido como “Boate Baroneti”, onde o réu era acusado de matar o jovem Daniel Duque. A sessão durou mais de doze horas, tendo sido o acusado absolvido por unanimidade pelo conselho de sentença, que entendeu que o disparo fora acidental. Nessa sessão, foi possível verificar a presença de vários advogados de defesa. Outro ponto a ser destacado ainda sobre este caso refere-se à postura do promotor de justiça, que sustentou o pedido de absolvição do réu pelo fato de os depoimentos das testemunhas de acusação não serem

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consistentes. Em sua alegação final, disse: “a qualquer réu a lei assegura o benefício da dúvida. O único caminho para se fazer justiça é a absolvição”. Em outro julgamento, Ministério Público e Defensoria Pública argumentaram no mesmo caminho. Ambos pediram aos jurados que condenassem o acusado pelo crime de homicídio doloso, mas que respondessem negativamente às qualificadoras do crime. Ou seja, ambos pediram a condenação do réu por homicídio doloso simples. Esse caso, como o anterior, serve também para fazer pensar sobre a mudança quanto à função dos promotores de justiça advinda com a Constituição Federal de 1988, a parir da qual eles passam a ser vistos como defensores da sociedade, tida como hipossuficiente, e fiscais da manutenção da lei (ARANTES, 1999; SILVA, 2001; BAPTISTA, 2008; FIGUEIRA, 2008). Outra situação atípica observada foi a dissolução do conselho de sentença após a sessão de julgamento. Depois de mais de cinco horas de debate entre acusação e defesa, o juiz perguntou aos jurados se algum deles havia alguma dúvida quanto ao que foi exposto durante a sessão. Um dos jurados pediu para rever um vídeo que continha o depoimento da principal testemunha de acusação posto que ele não havia conseguido ouvir com nitidez o que o depoente havia falado. De fato, as condições sonoras do vídeo não eram favoráveis à compreensão. O juiz então concedeu um intervalo de trinta minutos para lanche e descanso enquanto o serviço técnico do Tribunal de Justiça tentava melhorar o áudio do vídeo. Passaram-se quarenta e cinco minutos e foi retomada a sessão. Mas, diante da impossibilidade de apresentação da prova com a devida qualidade, o juiz se viu obrigado a solicitar novas diligências no sentido de providenciar a transcrição total do depoimento e a inclusão de legenda ao filme. Deu-se a dissolução do conselho, sete horas após o início dos trabalhos. Em conversa posterior com o defensor e com o juiz, ambos reconheceram desanimados: “um dia inteiro jogado fora”. No julgamento futuro, seria escolhido outro conselho de sentença e todos os procedimentos seriam refeitos. A Lei no 11.689/08 trouxe algumas alterações que merecem ser destacadas: (1) o não uso de algemas pelo réu durante a audiência de instrução e principalmente durante a sessão de julgamento, (2) o respeito ao silêncio do réu não ser computado em seu prejuízo e (3) a não obrigatoriedade da presença do réu no momento do julgamento. Essas novas regras auxiliam a defesa? Elas visam garantir, respeitar os direitos do réu?

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Pode-se dizer que, em relação à sessão de julgamento, houve conformidade no discurso entre os operadores, que tendem a ver tais mudanças como positivas. Mas, estas agradaram principalmente a defesa. “Uma outra modificação sensacional, que foi muito boa não só pra defesa, mas pra própria sociedade por quê? O julgamento no tribunal do júri é feito pelo cidadão, é um leigo, não é uma pessoa que conhece o direito. Então essa pessoa que vai julgar, vai julgar o fato. Não julga direito, julga o fato. E a Constituição Federal consagra o direito que o réu tem de permanecer calado. O réu tem o direito constitucional de permanecer calado. Ele não é obrigado a produzir provas contra si mesmo. E antes da mudança da lei não havia nenhum dispositivo. O que a maioria dos promotores faziam durante o julgamento? O réu permanecia calado, aí chegava na hora dos debates: tá vendo, senhores jurados, o réu ficou calado. Quem é inocente vai se defender. Quem cala consente. Ele tá tendo a oportunidade de se defender, de mostrar sua inocência, mas não quer. Ou seja, jogado esse discurso para os jurados. E o que a lei fez agora? Qualquer menção ao direito que o réu tem de permanecer calado, porque é um direito constitucional, anula o julgamento. Ou seja, o silêncio, sendo um direito constitucional do réu, não pode ser utilizado contra o próprio réu. Isso era muito utilizado pelos membros do Ministério Público. E a grande falha da lei sabe, melhorou um pouco pra defesa. A outra mudança que eu achei que não houve, que tinha de ter sido feita era a exibição da folha de antecedentes criminais. Eu sempre defendi a tese de proibir a exibição da FAC. Por quê? Quem tá sendo julgado ali não é um homem, mas um fato praticado pelo homem. Então muitas vezes vem o promotor de justiça e apresenta a folha de antecedentes criminais do réu. Ou seja, quem tá sendo julgado ali não é o fato praticado pelo homem, mas sim o homem. Então eu sempre defendi essa tese de proibir a exibição da FAC. Foi uma falha do legislador. Ainda pode exibir a FAC. E alguns jurados acabam tendo pena desse homem e não julgam o fato, julgam o homem. Então a exibição da FAC eu acho que não é legal pra sociedade. Porque muitas vezes você tira um fato do julgamento e quem tá sendo julgado é o homem. Uma outra mudança boa da lei, isso eu achei muito bom e também vai ao encontro da Constituição. Por quê? O réu, que tem o direito constitucional de querendo, estar presente em todos os atos do processo. Se ele não quiser estar presente, ele também pode. Pronto, não quero, não quero estar lá presente. E antigamente os crimes inafiançáveis: a lei obrigava a presença do réu no dia do julgamento. Ou seja, o julgamento só era realizado com a presença do réu. Se ele estivesse foragido, se ele não tivesse sido encontrado, o julgamento não era realizado. O processo ficava suspenso. Era condição sine qua non o julgamento ser realizado com a presença do réu. Agora ele tem que ser intimado para, querendo estar presente. Se não quiser estar presente, ótimo, não precisa estar presente. Então muitas vezes isso vai acontecer e não interessa a presença do réu. Porque a presença física dele no dia do julgamento pode interferir”. [Defensor Público]

Outro ponto a ser destacado no que diz respeito à sessão de julgamento do rito do tribunal do júri refere-se ao tempo de fala dos operadores. Antes da reforma, eram duas horas de fala para cada parte, acusação e defesa e, posteriormente, mais trinta minutos para réplica da acusação e mais trinta minutos de tréplica para a defesa. Após a reforma, tem-se noventa minutos de fala para cada parte, sessenta minutos de réplica e sessenta minutos de tréplica. Quais os impactos dessa mudança, que influencia diretamente no jogo, já que altera a principal característica do ritual, a capacidade de oratória dos operadores? Especialmente,

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essa mudança desagradou os defensores públicos, tal como se percebe pela opinião abaixo. Para estes, a demanda por celeridade do processo de sentenciamento pode ter prejudicado a defesa do acusado, ou o respeito às garantias do réu. “Uma coisa que eu não gostei, que eu não achei legal, foi o tempo dos debates, o legislador diminuiu. Antigamente você tinha duas horas pra fala ministerial, duas horas pra defesa, réplica meia hora, tréplica, meia hora. Agora não, agora é uma hora e meia, uma hora e meia, uma hora e uma hora. Diminuiu o tempo da fala. E é obvio que a defesa vai voltar em tréplica se houver réplica. Então o MP mais ou menos quem define o tempo do debate. Uma hora e meia se ele quiser ele vai ter mais uma hora. Eu não tenho essa opção porque eu fico na minha tréplica defendendo da réplica dele. Antigamente não. Duas horas, duas horas você tinha meia hora de réplica, meia hora de tréplica pra falar um comentário, alguma coisa. Hoje não é uma hora e meia, uma hora. Então o MP pode deixar pra apresentar alguma prova, algum elemento já em réplica. Ele vai ter um tempo muito grande. Eu como defensor posso deixar alguma coisa pra tréplica? Não, porque eu vou depender da réplica. Então eu acho a mudança no tempo do debate eu não achei legal não, entendeu? Você praticamente dividiu os debates em quatro tempos. Uma hora e meia, uma hora e meia, uma hora, uma hora. Antes não eram duas horas, duas horas é o debate principal. Uma meia horinha pra falar alguma coisa, pra chamar atenção de um detalhe ou pra replicar ou pra treplicar. Isso aí eu acredito que tenha prejudicado um pouco a defesa, eu tenho essa noção”. [Defensor Público]

Outro ponto específico diz respeito a não haver mais a possibilidade de “protesto por novo júri”. Tal recurso era utilizado pela defesa, quando a pena consistia em vinte anos ou mais de privação de liberdade. O Código de Processo Penal dizia que em caso de pena igual ou superior a vinte anos o réu teria direito a novo júri. Com a nova redação, não há mais esse recurso. Paralelamente, um ponto de polêmica na reforma se refere à data de início da operacionalização de uma nova lei. Ou seja, a partir da data de sua promulgação, como proceder a casos que ocorreram antes desta data, mas que ainda estão tramitando no judiciário? Apenas para ilustrar, após a condenação de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá Nardoni foi justamente este o principal argumento colocado pelos advogados de defesa quando da apresentação do recurso. Condenados a penas superiores a vinte anos de cumprimento da pena em regime fechado, o argumento da defesa do casal foi de que o caso ocorrera antes da vigência da Lei no 11.689/08 e, por isso, os acusados deveriam ser julgados novamente conforme as regras anteriores, ou seja, vigentes no momento em que houve a agressão, março de 2008.97

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Segundo notícia da época: “O mesmo juiz, dez dias depois do julgamento, negou o pedido de recurso para um novo julgamento por júri popular e anulação da condenação, argumento defendido pela defesa com base no período anterior do caso à mudança no Código do Processo Penal, que extinguiu o chamado protesto por novo

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O recurso foi “indeferido”, isto é, não foi aceito pelo juiz. Este exemplo é bom para pensar sobre a manipulação das regras jurídicas para se atender às regras morais. Ou seja, o clamor social para punição desses dois acusados se mostrara tão imperativo que apenas a ideia de absolvição ou de desclassificação do crime parecia absurda. É possível elencar, consultando o Quadro 5, e com base nas observações das audiências de instrução e as sessões de julgamento, que as principais mudanças nas regras de decisão previstas para a segunda fase do rito do júri referem-se ao tempo de fala de acusação e de defesa, ao não uso de algemas pelo réu e à quesitação - sequência de perguntas dirigidas aos jurados que devem responder apenas “sim” ou “não” para cada uma delas - incluindo a pergunta “o réu deve ser absolvido?”98. A nova lei pôs fim ainda ao chamado “protesto por novo júri” quando o réu era condenado a vinte anos ou mais de cumprimento da pena em regime fechado. Os jurados devem receber cópia da sentença de pronúncia e “as partes”, sobretudo a acusação, não podem se valer desta sentença para argumentação. Ao que parece, a escrita, neste caso, continua se sobrepondo à oralidade. Além disso, a acusação não pode mais usar o silêncio do réu, direito dele, em seu prejuízo dizendo algo como: “está vendo, senhores jurados, quem cala consente. Ele é culpado”. As regras jurídicas podem ser distinguidas em regras primárias, vinculadas à substância, ou regras secundárias, referentes ao processo. As regras primárias são conhecidas como regras de incriminação e as secundárias, regras de decisão ou de procedimento. No Brasil, aquelas estão no Código Penal e estas, no Código de Processo Penal. O que o discurso dos operadores e as observações de campo permitem dizer é que as novas regras de decisão buscaram, de um lado, (1) responder ao desafio de consolidar a Constituição de 1988 no que tange ao respeito pela dignidade da pessoa humana, sobretudo no que se refere à garantia dos direitos civis e, de outro lado, buscaram (2) dar conta de uma

júri. O juiz Maurício Fossen seguiu a interpretação de que a alteração da legislação é aplicável para todos os casos, inclusive os anteriores.” (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Isabella_Nardoni). 98 Diz o artigo 483, Caput, do Código de Processo Penal: “Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre: I – a materialidade do fato; II – a autoria ou participação; III – se o acusado deve ser absolvido; IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação”.

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cobrança por parte da sociedade quanto à eficiência e efetividade do se fazer justiça, o que pode ser visualizado pela política de metas colocada pelo Conselho Nacional de Justiça99. Neste capítulo, foi discutido como os operadores do direito percebem e aplicam as novas regras de decisão modificadas em 2008. A questão de interesse a esta tese é como isso pode estar influenciando na construção das incriminações no que se refere aos possíveis elementos que podem determinar suas condenações e consequentes punições. Dado o pouco tempo decorrido entre a data de realização do campo de pesquisa e a implementação das novas regras de decisão, as análises das informações coletadas não me permitem apresentar resultados, mas antes apontar tendências que merecem ser aprofundadas em outra ocasião. Quanto as novas regras correspondem a mudanças nas práticas rotineiras de quem as opera é questão a ser respondida em futura investigação. Por enquanto, é possível dizer que as novas regras de decisão fazem emergir a dualidade conflitante constituidora do campo do direito: garantias do acusado e efetividade do processo de sentenciamento (GRINOVER, 1998). É possível dizer que a adaptação às novas regras de decisão vem encontrando maiores obstáculos e dificuldades na primeira fase do rito do tribunal do júri. Esta parece ter sido a que mais sofreu modificações, visto que as regras a ela relacionadas apresentavam caráter menos acusatorial e menos oral que a segunda fase. Diferentemente da primeira fase do rito, onde o juiz togado decide de acordo com seu livre convencimento sobre pronunciar ou não o réu ao julgamento popular, a segunda fase, marcada pela decisão tomada pelo conselho de sentença, já demandava o seguimento de algumas regras de decisão que correspondessem a aspectos como a oralidade e o respeito pelas garantias individuais do réu. As mudanças parecem ter visado ampliar a legitimação de todo o rito e, neste sentido, trouxeram para a primeira fase características importantes já presentes na segunda fase, principalmente a arguição direta das partes aos envolvidos, bem como a realização das audiências unas com apresentação imediata das alegações finais de acusação e de defesa.

99

Destaco, neste ponto, as 10 metas estipuladas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em fevereiro de 2009, cujo objetivo principal era “acabar com o congestionamento de processos e garantir a razoável duração do processo judicial”. Vale transcrever literalmente a Meta 2: “Identificar os processos judiciais mais antigos e adotar medidas concretas para o julgamento de todos os distribuídos até 31.12.2005 (em 1º, 2º grau ou tribunais superiores)” (in: www.cnj.jus.br, acessado em 23 de março de 2010).

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Mas até que ponto essas mudanças podem influenciar nos elementos que parecem determinar as sentenças condenatórias para os acusados de homicídio? Não obstante o pouco tempo decorrido entre a implantação das novas regras e a realização de minha pesquisa, acredito que a mudança na ordem em que testemunhas e acusados são ouvidos pode, ao contrário da perspectiva dos defensores aqui ouvidos, prejudicar o acusado. Mostrei no Capítulo 5 que os accounts de defesa são pouco considerados pelos juízes ao elaborarem seus relatos nas sentenças de pronúncia. Mostrei também que promotores de justiça e juízes tendem a interpretar a versão do acusado como uma história mentirosa. Esse tom de mentira que os operadores atribuem à fala do acusado pode vir a ser ampliada com o fato de ele falar após todas as testemunhas. Ainda quanto às mudanças da primeira fase do rito do tribunal do júri, o fato de as perguntas às testemunhas serem feitas diretamente pelo promotor e pelo defensor e não mais pelo juiz pode trazer mais clareza às audiências. Mas, como as falas continuam sendo transcritas pelos escrivães a partir de um ditado feito pelo juiz, que reordena a história de modo a dotá-la de sentido, creio que não influenciará nos determinantes que levam os juízes a pronunciar os acusados. Quanto à segunda fase do rito do tribunal do júri, apesar de ser uma mudança em respeito aos direitos dos acusados, não creio que permanecer sem algemas na sessão de julgamento pelo conselho de sentença possa influenciar nas decisões dos jurados. Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá Nardoni estavam sem algemas e foram condenados 100. Como vem mostrando Schritzmeyer (2012), os argumentos morais prevalecem no ritual do júri. E, como demonstrei também no Capítulo 5, a tipificação penal na qual os acusados são condenados não difere muito da tipificação penal contida na denúncia e mantida na sentença de pronúncia. Mas, dado o caráter da incomunicabilidade entre os jurados e o fato de o conselho de sentença não apresentar um account sobre sua decisão, esta é apenas uma percepção que será difícil demonstrar. De igual modo, não estou certa de que a inclusão da pergunta “o réu deve ser absolvido?” ao rol de quesitos trará algum impacto prático. Mas, como já chamei atenção ao longo deste capítulo, essas são reflexões a serem aprofundadas em outra oportunidade.

100

O mesmo ocorreu com o goleiro Bruno, condenado pela morte de Elisa Samúdio com pena fixada em 22 anos e 3 meses de reclusão, em 8 de março de 2013.

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Notas Conclusivas: A construção social e institucional do homicídio doloso O objetivo deste trabalho foi identificar elementos que podem determinar a condenação de incriminados por homicídio doloso. Uma possibilidade que se mostrou promissora ao desenvolvimento deste estudo foi tomar como ponto de partida duas perspectivas: uma positivista ou pós-positivista, que chamo de Criminologia, e outra que entende a realidade social como construída, que chamo de Sociologia do Crime. Na primeira linha, a realidade é entendida como coisa, como fato social. De acordo com essa perspectiva, o olhar sobre o homicídio é direcionado a compreender seus padrões contextuais, sua distribuição territorial, bem como as características sociodemográficas dos envolvidos. Dessa maneira, a elaboração de tipologias com fins analíticos, embasada nessas variáveis, mostra-se adequada. Metodologicamente, trabalha-se com o uso de estatísticas e testes de hipóteses. A outra perspectiva considera que os indivíduos, em interação, constroem e negociam o significado do evento. O intuito é compreender como o processo de construção confere a um evento uma realidade objetiva. Para tanto, o pesquisador observa como os indivíduos fazem uso de tipificações, teorias de senso comum e também geradas em ambientes profissionais. Em termos metodológicos, trabalha-se com a observação das rotinas práticas dos atores, com entrevistas e etnografias. Dadas as características do sistema de justiça criminal, dentre as quais destaco as três formas de verdades - o inquérito, o processo e o tribunal do júri -, considerei que, para identificar os determinantes de condenações, seria necessário observar a construção de cada uma dessas verdades. Por esta razão, a alternativa mais propícia ao desenvolvimento de meu estudo foi observar o homicídio como uma construção social e institucional. E, dentro dessa perspectiva, a abordagem etnometodológica se apresentou como a mais adequada, bem como o entendimento sobre a construção social do crime a partir dos níveis analíticos da criminação, incriminação e sujeição criminal. O primeiro momento da pesquisa foi, portanto, observar as receitas profissionais seguidas por policiais que compõem uma equipe de perícia voltada exclusivamente para a realização das chamadas “perícias de local do crime”. Através de etnografia em uma unidade policial especializada na investigação de homicídios e latrocínios, bem como realizando entrevistas com peritos e delegados, pude compreender como uma morte é criminada como

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homicídio doloso e como a incriminação começa a ser operacionalizada neste primeiro momento. Os eventos mais comuns, ou os “casos de rotina”, podem ser caracterizados por mortes que são tipificadas pelos peritos como “encontros de cadáver”, já que os corpos das vítimas são encontrados em locais diferentes daqueles onde ocorreu a morte, não há testemunhas, nem é possível identificar essas vítimas nesses locais, os quais são, geralmente, as vias públicas ou os terrenos ermos. A tipicidade desses casos pode ser percebida em função da duração em que a perícia é realizada, muito rapidamente. De outro lado, os “casos especiais” são aqueles em que os cadáveres estão nas residências ou em ambientes fechados, há testemunhas permitindo a identificação civil daquela vítima. A atipicidade advém do longo tempo dispendido na realização dessas perícias e, principalmente, da possibilidade de se iniciar o processo da incriminação. Essas vítimas fogem aos padrões observados nos casos típicos. Os cadáveres de homens negros, franzinos, maltrapilhos compõem as vítimas típicas. Seus semelhantes, vivos, são tipificados pelo staff como os “futuros clientes”. As regras de procedimento, ou regras de decisão, orientam que para a conclusão do inquérito policial, são necessários a comprovação da materialidade do fato e o indiciamento do suspeito. Tanto nos casos de rotina como nos casos especiais, o trabalho da perícia registra que um “encontro de cadáver” é correspondente a um “homicídio doloso” e não a outro tipo de morte. Entretanto, a possibilidade de identificação de um suposto sujeito-autor do evento só é determinada, no que diz respeito ao trabalho da perícia, nos casos especiais, os atípicos. Isso se explica, em parte, pelos padrões encontrados e descritos acima. Principalmente nesta unidade policial especializada, a construção do inquérito parece se basear no “diálogo criminológico” entre delegados e peritos, o qual posteriormente é transferido para o papel com vistas a atender as regras de procedimento. A incorporação do laudo, o relato do perito, no inquérito, é exigência para que este possa ser enviado ao promotor de justiça para dar prosseguimento à instrução criminal no judiciário. Isso é feito ainda que o laudo ateste aquilo-que-todo-mundo-sabe, pois não é difícil tipificar um homicídio através de uma linguagem cotidiana. O que o laudo representa é essa tipificação em uma linguagem especializada e, por isso, traduzida ao mundo jurídico. O aspecto cerimonial que atribuo aos laudos periciais na construção social e institucional do homicídio advém dessa observação. Os relatos produzidos pelos peritos

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servem como justificações que embasam as decisões dos delegados quanto a relatar um inquérito de homicídio e não um inquérito de outro tipo de morte. Se os relatos dos peritos nos casos de rotina não permitem a indicação de um suspeito, ou o caso será arquivado ou essa incriminação será construída com base nos depoimentos de testemunhas. O grande volume de homicídios, as dificuldades produzidas pelos padrões dessas mortes certamente influenciam a baixa capacidade de resolução/elucidação da polícia carioca. Isso pode explicar, em parte, a frequência alta de práticas cerimoniais, principalmente nos casos “típicos” e “rotineiros”, na atuação da perícia. Os inquéritos que são concluídos pelos delegados de polícia chegam aos promotores de justiça no Ministério Público. Diz as regras de procedimento que estes devem redigir as denúncias, inaugurando a instrução criminal no judiciário, e tornando a acusação pública. No caso da instrução criminal pelo rito do tribunal do júri, a incriminação se dá em duas fases. A primeira é encerrada pela sentença de pronúncia do juiz, quando ele decide por remeter (ou não) o acusado a julgamento pelo conselho de sentença, o júri. Essa fase caracteriza-se, principalmente, pela repetição das chamadas “oitivas” das testemunhas e do interrogatório do acusado, visto que esses procedimentos já ocorreram na fase policial. A diferença, agora, é que obrigatoriamente o acusado deve estar acompanhado de seu defensor, seja público ou constituído. Uma vez pronunciado, o acusado aguarda a data de seu julgamento pelo ritual do júri. Após a decisão tomada pelo conselho de sentença (júri), o juiz-presidente redige a sentença final mencionando a decisão do conselho e fixando a pena que deverá ser cumprida pelo condenado (ou a extinção da punibilidade, nos casos de absolvição). Para compreender como o processo de criminação-incriminação é transposto da polícia para o judiciário e como o processo de incriminação é construído ao longo desse rito, recorri a uma base de dados construída por mim em outra ocasião. Esse banco de dados é composto por variáveis legais, contextuais e individuais extraídas de denúncias e de registros da movimentação judicial dos processos de 154 indivíduos acusados de matar alguém intencionalmente, em Belo Horizonte, no período entre janeiro de 2004 e dezembro de 2005. Os estudos interessados na descrição da administração e funcionamento do sistema de justiça criminal no Brasil têm chamado a atenção sobre a inexistência de uma base de dados que torne possível a compatibilização entre os registros produzidos pelas organizações que o compõem: Polícias, Ministério Público, Judiciário e Sistema Penitenciário. Em razão dessa

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dificuldade, somada ao entendimento que a perspectiva da construção social da realidade faz sobre o uso das estatísticas oficiais, optei por trabalhar com esta base de dados própria. Decorridos 9 anos do início da instrução criminal no rito do tribunal do júri, cheguei a uma taxa correspondente a 92,7% de condenação. Dentre esses condenados, pouco mais da metade (57,7%) estava cumprindo a pena fixada pelo juiz na sentença final. Isolei variáveis legais, contextuais e individuais de modo a verificar se estas teriam alguma correlação com o resultado condenação e com o cumprimento da pena por parte do réu condenado. Com essas análises, observei que os fatores “homicídios cometidos pelo uso de arma de fogo” e “acusados responderem a outros processos além do aqui analisado” estão correlacionados com a sentença ser condenatória. Procedi a uma análise considerando uma tipologia construída segundo os critérios do que estou chamando de Criminologia, focando na comparação entre dois tipos: drogas/tráfico e conflitos cotidianos. Pude perceber que 96,5% dos indivíduos incriminados por homicídio doloso consumado relacionado a questões de drogas/tráfico foram condenados pelo conselho de sentença sendo que 68,9% destes indivíduos estavam cumprindo a pena fixada pelo juiz na sentença final. Dentre os 86,6% dos réus condenados por homicídios relacionados a conflitos cotidianos, 53,3% estavam cumprindo a pena estabelecida na sentença. Essas taxas permitem dizer que, uma vez denunciado, é quase certo que o indivíduo será condenado, principalmente se o acusado compuser o tipo social “traficante”. A fim de qualificar os resultados obtidos pelas análises estatísticas, consultei 130 dos 154 processos que compõem esse conjunto. Priorizei as sentenças de pronúncia redigidas por juízes no encerramento da primeira fase do rito do tribunal do júri, e as sentenças finais redigidas pelos juízes-presidentes após a decisão do conselho de sentença na sessão de julgamento. Tomei esses documentos como accounts. Os relatos feitos pelos promotores de justiça e pelos juízes, respectivamente nas denúncias e nas sentenças, são entendidos como justificações para a tomada de decisão em ambiente organizacional. E, de outro lado, os relatos da defesa, bem como as falas transcritas dos acusados, seguem o entendimento segundo a perspectiva das desculpas e das justificações. As sentenças de pronúncia se mostraram muito ricas ao meu problema de pesquisa, já que nelas estavam contidos trechos de: a) relatos de acusação das alegações finais redigidas

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por promotores de justiça, b) depoimentos de testemunhas e de interrogatórios dos acusados e c) relatos dos defensores públicos e constituídos extraídos das alegações finais da defesa. Pude observar que os laudos periciais são apenas mencionados pelos juízes como forma de constatarem a materialidade comprovada, sendo que o laudo mais valorizado é o de necropsia – pois é neste que reside a causa mortis – e não os de “perícia de local do crime”. Assim, os laudos periciais não acrescentam elementos às decisões dos juízes quanto ao pronunciamento do réu ao julgamento pelo conselho de sentença. Dessa maneira, os laudos construídos pela perícia cumprem uma função cerimonial também na fase judicial, já que não configuram como elemento determinante para a decisão do juiz quanto à indicação da autoria. Se os accounts dos juízes não são embasados pelos relatos dos peritos, eles o são no embate entre os accounts de acusação e os accounts de defesa. Para tanto, o juiz se vale de seu conhecimento jurídico sobre a doutrina e sobre as jurisprudências, além de transcrever trechos presentes nos “autos” para fundamentar o seu “livre convencimento motivado”. Observei que o account dado pelo juiz mostra como este se alia ao account do promotor de justiça, em conflito com o do defensor, que tem seu papel limitado pela falta de credibilidade dada ao seu relato, já que as regras de decisão não obrigam o réu a dizer a verdade. Observei que muito raramente o juiz apresenta decisão discordante dos relatos apresentados pelo promotor de justiça. Observei que a tipificação contida na denúncia é, na grande maioria dos casos analisados, mantida na sentença de pronúncia. Desse modo, a incriminação parece ganhar subsídios quase que irreversíveis pelo fato de os juízes tenderem a decidir em conformidade com os relatos da acusação. Assim, as sentenças de pronúncia reiteram a denúncia e o processo segue o rito até chegar ao julgamento pelo conselho de sentença, composto por sete cidadãos leigos que decidem pela condenação ou absolvição do acusado, segundo método de votação majoritária, sigilosa e silenciosa. Se condenado, o juizpresidente determina a pena a ser cumprida pelo acusado. Pude observar, pela análise dos relatos das sentenças finais, que as tipificações penais contidas nas denúncias quase sempre são as mesmas pelas quais os acusados são condenados. Se os laudos periciais, principalmente os laudos das perícias em local de morte registrada, cumprem uma função cerimonial desde o inquérito policial até a sentença final, passando pela sentença de pronúncia, a denúncia apresenta o account que será reproduzido ao longo das etapas do rito do tribunal do júri. Por isso, posso apontá-la como o mais

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determinante da condenação. Assim, a organização que inicia a instrução judicial, o Ministério Público, é a que determina o modo como a incriminação será concluída. Consultando esses processos com base na tipologia construída, posso dizer que a incriminação ganha mais força quando os acusados respondem por homicídios que podem ser classificados no tipo drogas/tráfico. A título de encerramento deste trabalho, apresentei mudanças de caráter institucionallegal que estão sendo instituídas atualmente na instrução criminal na polícia do Rio de Janeiro e na instrução pelo rito do tribunal do júri, em âmbito nacional. Não obstante o pouco tempo decorrido entre o advento dessas mudanças e as análises aqui empreendidas, é possível apontar que a criação da Divisão de Homicídios na cidade do Rio de Janeiro parece estar influenciando no aumento da taxa de elucidação para esses eventos criminados como homicídios. Entretanto, essa taxa pode ser ainda considerada baixa e correspondente ao valor das demais taxas encontradas em outras metrópoles brasileiras. As novas regras de decisão para o rito do tribunal do júri, implementadas desde 2008, parecem estar modificando procedimentos importantes no que se refere à preservação das garantias dos direitos dos acusados. Entretanto, dados os elementos que me permitiram apontar o determinante das condenações, não parece que essas novas regras poderão influenciar no resultado final do processo de incriminação no rito do tribunal do júri. Demonstrei, nesta tese, como o homicídio doloso é construído social e institucionalmente no sistema de justiça criminal brasileiro. Na fase policial, o material empírico aqui trabalhado contemplou a observação de práticas rotineiras dos peritos criminais no momento da criminação de uma morte enquanto homicídio, bem como a compreensão de elementos necessários à conclusão do inquérito policial. Na fase do rito do tribunal do júri, empreendi análise estatística sobre o fluxo deste rito bem como análise de conteúdo de processos de indivíduos denunciados. A articulação de diferentes metodologias com a abordagem etnometodológica permite-me afirmar que a denúncia é o principal determinante da condenação. E, em contrapartida, o laudo pericial cumpre apenas uma função cerimonial no processo de incriminação, bem como todos os accounts produzidos pela defesa do acusado.

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Anexos Anexo 1 - Descrições etnográficas: as perícias em locais de morte Caso no 2 18 de fevereiro de 2012, sábado de carnaval Horário de chegada ao local: 19:55 Horário de saída do local: 20:06

A mudança de postura da equipe da DH entre a saída do local anterior [bairro da zona sul da capital] e a chegada a este foi nítida. E, aos poucos, eu também mudava meu comportamento. Um ar de seriedade pairava dentro

da

viatura.

Silêncio

total.

Confirmei

mentalmente

algumas

instruções de segurança, como proceder em caso de tiroteio e, aos poucos, a tensão foi me contagiando. Pensei realmente que eu poderia morrer ou ser atingida por algum tiro. Mas, imediatamente, senti uma confiança muito grande nos três peritos que estavam comigo. Senti-me segura e protegida. Pensava: “tudo bem, estou fazendo o que tem que ser feito e está tudo certo”. Pensava também que, além do colete à prova

de

balas,

eu

estava

protegida

por

outros

dois

escudos

institucionais chamados SENASP e UFRJ. Com este pensamento desci da viatura e fui acompanhando o perito criminal. Por causa disso, fiquei mais próxima do cadáver. Estando perto do morto, estava mais perto dos peritos e, portanto, com mais chance de proteção. Não estava ao lado deles,

apenas

mais

próxima.

O

corpo

estava

dentro

de

uma

lixeira

pública, demarcada por folhagem colocada. Polícia Militar e Corpo e Bombeiros



estavam

no

local.

Muitas

pessoas,

muitas

crianças,

estavam muito próximas ao corpo. Com a chegada da Polícia Civil, a população se dispersou. Por pouco tempo. Logo eles voltariam a rodear o local. Observei o entorno. Percebi o posicionamento estratégico dos policiais: dois em uma extremidade da rua; dois na outra extremidade. A rua fechada nos dois lados pelas viaturas. Dois policiais do meu lado direito; dois policias do meu lado esquerdo, estes mais distantes que aqueles. Os três peritos e o delegado ao redor do corpo. Música ao longe,

uma

marchinha

de

carnaval:

“Cidade

Maravilhosa,

cheia

de

encantos mil, Cidade Maravilhosa, coração do meu Brasil”. Os bombeiros retiram o corpo da lixeira, com a ajuda dos peritos, e o fazem como se estivessem material

na

jogando sarjeta

o

lixo da

fora,

rua.

As

despejando pessoas

se

cuidadosamente aproximam

ainda

aquele mais,

inclusive as crianças, para ver o que parecia um boneco de pano,

227

velho, jogado no lixo por não ter mais serventia. Mais tarde saberia que o fato de o corpo apresentar aquela aparência molenga, além de outros fatores, indicava que havia mais de 24 horas de morte. A tática que usei para aliviar a tensão foi ficar com o caderno de campo e escrever

tudo

o

que

podia

observar.

Assim,

ocupava

minha

mente

descrevendo e me inserindo naquele cenário ainda muito novo e muito estranho. Na saída do bairro as viaturas pararam. Alguns policiais desceram e eu não entendia o que se passava. Isso me deixou tensa novamente,

mas

quando

o

comboio

retomou

o

seu

caminho,

logo

fui

voltando ao meu estado de normalidade. Não era medo o que eu sentia, era uma mistura de atenção redobrada, organização do pensamento quanto ao que fazer numa iminente troca de tiros.

Caso no 3 19 de fevereiro de 2012, domingo de Carnaval Horário de saída da DH: 03:15 Horário de chegada ao local: 04:00 Horário de saída do local: 04:14 Horário de chegada a DH: 05:02

Chegamos a uma das avenidas principais do Rio de Janeiro. Próximo a um canteiro central que demarca um local de retorno de veículos, o corpo de um homem negro, franzino, vestindo apenas bermudas. Uma folhagem demarca a localização do corpo. Como um dos policiais militares é o mais

afastado

do

corpo,

posiciono-me perto

dele

e

pergunto-lhe

se

poderia ser atropelamento. Ele responde: ‘Não, não mesmo. Fizeram o serviço em outro lugar e jogaram aqui!’. Este policial militar me perguntou sobre qual era a viatura que ‘estava no comando’ e quem era o delegado responsável [todos estavam uniformizados]. Eu indico a ele o delegado. Enquanto os peritos e o delegado tiram fotos do cadáver, ouço fogos de artifício ao longe. Carros passam pela avenida, diminuem a velocidade, as pessoas olham para a cena. Alguns carros insistem em passar pelo local. Esses carros são repreendidos pelos policiais que dizem, gesticulando acintosamente: ‘Volta, meu irmão, volta!’ ou ‘Pô, meu irmão, tá de brincadeira?!’. O corpo é recolhido pelos bombeiros em um saco plástico preto. Está finalizada a perícia de local.

228

Caso no 4 20 de fevereiro de 2012, segunda-feira de carnaval Horário de Saída da DH: 08:15 Horário de Chegada ao local: 09:35 Horário de Saída do local: 10:00

Chegamos a uma avenida de um bairro. Todo o comércio estava fechado. Viaturas da PMERJ e a do Corpo de Bombeiros aguardavam a chegada da PCERJ.

Fitas

amarelas

tarjadas

de

preto

circundavam

boa

parte

do

entorno do corpo. O cadáver de um homem estava coberto por um lençol. Era

possível

ver

apenas

os

tênis

de

cor

vermelha.

Ele

estava

na

calçada, próximo ao gradil de um córrego, abaixo de uma tenda. Todo o contexto

indicava

que

ali,

na

noite anterior,

havia

acontecido

um

movimentado carnaval de rua. Como o cadáver estava na rua, ‘não tinha trabalho para papiloscopista’ e eu fiquei ao lado deste profissional, conversando com ele, enquanto os peritos criminal e legista examinavam o corpo. Muitas pessoas próximas ao local, que se amontoavam perto da fita delimitadora do espaço. O perito criminal recolhe alguns objetos no chão. Os peritos retiram o lençol e, ao fazerem isso, as pessoas se aproximam ainda mais da fita. Eles examinam o corpo, retiraram os tênis do rapaz, perito criminal recolhe outros objetos pequenos do chão. Ao final do exame, eles entregam os tênis aos familiares. Em conversa na viatura, ‘a vítima era um ex-policial militar que atuava como

miliciano

naquela

região’.

Morrera

com

tiros

no

rosto

e

no

abdômen.

Caso no 5 20 de fevereiro de 2012, segunda-feira de carnaval Horário de Chegada ao local: 10:24 Horário de Saída do local: 10:39

Tratava-se de um terreno baldio à beira de uma estrada de terra, rodeado por um matagal. Junto a um depósito de lixo, ou popularmente um “lixão”, havia um carro queimado em sua totalidade e, dentro dele, um objeto amorfo, preto, o qual eu não conseguiria identificar como um corpo humano. O perito criminal e o legista mais o papiloscopista se dirigem

até

o

carro,

do

qual

ainda

se

via

fumaça

proveniente

do

incêndio. Eu me localizei no outro extremo da rua, em uma distância razoável até o carro. Não percebi grande trabalho no local. Depois do exame, o legista aproximou-se de mim convidando-me para ‘conhecer um microondas’,

explicando-me

que,

daquela

maneira,

seria

impossível

229

identificar o corpo. Quando perguntei sobre como poderia ser feito o processo

de

dificilmente

identificação ele

seria

daquele

corpo,

identificado.

ele

Nesses

me

casos,

respondeu o

trabalho

que da

Perícia é procurar alguma possibilidade de identificação, como uma prótese de titânio, por exemplo. Isso porque, a temperatura a que o corpo é submetido supera os 700ºC, já que os acusados jogam pneus sobre o corpo ateando fogo no carro em seguida. Segundo a explicação, o corpo sofre um processo de calcinação, que é quando todos os ossos se tornam cal, pó. Os legistas, nesses casos, procuram alguma marca de perfuração

provocada

por

arma

de

fogo,

principalmente

no

crânio.

Especificamente neste caso, não foi possível encontrar nenhuma prótese nem a perfuração. Diante disso, permanecemos no local por 15 minutos e seguimos para o local seguinte.

Caso no 6 20 de fevereiro de 2012, segunda-feira de carnaval Horário de Chegada ao local: 11:10 Horário de Saída do local: 11:45

O corpo estava às margens do córrego, abaixo do nível da rua, não sendo possível avistá-lo. Depois que o perito criminal fotografa como o

corpo

foi

encontrado,

o

primeiro

trabalho

seria,

então,

o

dos

bombeiros, que deveriam retirar o corpo e trazê-lo para a rua. Um dos bombeiros pega uma corda, o outro já havia descido até o córrego. Laçam o corpo com a corda, içando-o à superfície de modo que o exame fosse

possível.

branco,

de

onde

Neste

momento,

saíram

dois

estacionou homens

um

armados

carro com

modelo

fuzis.

Blazer,

Descobri,

posteriormente, que se tratava da chamada P2, policiais militares que trabalham

descaracterizados

(sem

uniforme

e

viatura)

a

fim

de

viabilizar a entrada nos bairros e a conversa com os moradores. Eles traziam informação de um provável autor, baseando-se no testemunho de familiares da vítima. Enquanto os bombeiros içam o corpo, o perito criminal caminha pelo gramado, observando o chão. Localizo-me distante do corpo, mas é possível perceber que se trata de um homem em torno de 60 anos, vestindo apenas uma bermuda. Os peritos examinam o corpo, o papiloscopista conversa comigo. Bombeiros recolhem o corpo. Nada é recolhido no local, nenhum projétil ou cartucho, indicando que ele fora ‘morto em outro local e o jogado ali’.

230

Caso no 9 Data: 27 de fevereiro de 2012, segunda-feira Horário de saída da DH: 09:08 Horário de chegada ao local: 10:05 Horário de saída do local: 10:45 Em um caminho estreito, de terra batida, seguem as viaturas. Ao final de uma rua, uma espécie de adro onde há um terreno baldio e um pouco de lixo. Na esquina, uma dezena de crianças com menos de 10 anos. Uma delas, ainda muito pequena, com aproximadamente 2 ou 3 anos. Um menino negro,

aparentemente

com

6

anos,

aponta,

olhando

para

a

primeira

viatura, um carro queimado. As viaturas param, os policiais afastam as crianças dizendo: ‘tem nada pra ver aqui não, vai brincar, vai’. Mas elas permanecem na esquina próxima, aglutinadas, uma sobre a outra, na disputa de um melhor lugar para assistir aos trabalhos da polícia. Trata-se de um carro queimado, com um corpo carbonizado dentro do porta-malas. O perito legista e o criminal se aproximam da carcaça do carro. Olham por sobre o vão [onde antes era vidro] da porta traseira e se afastam. Enquanto o perito criminal caminho ao redor do carro olhando para o chão, o perito legista se aproxima de mim e começamos a conversar. bombeiros

Ele

me

para

explica

que

eles

abram

que

é o

necessário

esperar

porta-malas

a

para,

chegada



sim,

dos eles

iniciarem os exames no corpo. Ele me explica que, em casos como este, o que o legista de local pode perceber é se há ou não buraco no crânio, o que indicaria perfuração à bala. Entretanto, com o calor a que

o

corpo

foi

submetido,

o

crânio

pode

estourar,

o

que

torna

impossível perceber se houve tiro. E finaliza: ‘não há muito o que fazer

nestes

casos.

Eu

vou

apenas

indicar

que

morreu’.

Enquanto

converso com ele, observo dois investigadores comerem sanduíches. Faz muito calor. Com a chegada dos bombeiros, não muito tempo depois, ele retorna ao carro e o corpo é retirado. É possível perceber uma massa amorfa, pequena, de uma cor escura, preto-amarronzado, de onde exala um cheiro forte, diferente de tudo o que já senti. Por esse motivo me é

impossível

descrever,

comparar

com

odores

mais

familiares.

Os

peritos legista e criminal fotografam, o delegado também. Conversam entre eles. O corpo é recolhido pelos bombeiros. Um investigador se aproxima de mim e aponta para pichações nos muros próximos indicando que esta é área controlada pelo Comando Vermelho. Ele me conta que os investigadores tocaram as campainhas das casas próximas e os moradores responderam não terem visto nada, que não estavam em casa durante a noite,

e

que

somente

pela

manhã,

quando

acordaram,

viram

o

carro

queimando e ligaram para a polícia. As crianças se afastam e voltam às

231

suas brincadeiras cotidianas. O perito criminal procura o número do chassi do veículo e o encontra abaixo do banco direito. Fotografa a placa do carro. Este será levado para a Delegacia Especializada de Roubos de Furtos de Automóveis, segundo me disseram.

Caso no 10 Data: 29 de fevereiro de 2012, quarta-feira Saída da DH: 12:53 Horário de chegada ao local: 13:35 Horário de saída do local: 14:04 O local é uma avenida de grande movimentação, em cuja margem há um córrego localizado em nível inferior. Após uma certa dificuldade para controlar o trânsito, atravessamos e chegamos à calçada próxima ao córrego. As viaturas do delegado adjunto e a do GI já se encontravam no local, porque eles haviam “feito um hospital” antes de esta notícia chegar a DH. Há manchas de sangue na calçada e comentários da equipe de investigadores de que o corpo ‘está lá embaixo’. O perito criminal fotografa o local, a avenida em duas posições diferentes, o corpo no local onde foi encontrado, à margem do córrego. Só então os bombeiros são autorizados a içarem o corpo. Um deles desce até a margem, o outro lhe passa uma corda. Eles puxam o corpo para a calçada e o exame é feito pelo perito criminal e pelo perito legista. Vejo que o homem está algemado com as mãos para trás. Essas algemas são retiradas e entregues ao papiloscopista, que lhes aplica o material, o pó preto. Após um curto tempo, ele responde ao delegado não ter encontrado nada, e as algemas são colocadas em um saco plástico. Após o recolhimento do corpo pelos bombeiros, o perito criminal me chama ao local onde se encontrava o corpo e me mostra as manchas de sangue. Ele me explica que, pelas ‘marcas de espargimento’, o corpo foi retirado de um carro, apoiado na calçada e jogado no córrego. E me conta que, para ele, era execução

porque

havia

marcas

nos

joelhos

dele

e

tiro

na

cabeça,

indicando que ‘o cara tava ajoelhado quando morreu’. As marcas de sangue no rosto também o levaram a determinar que o homicídio não ocorrera ali. E classificou o caso como “encontro de cadáver”. Em conversa posterior com o perito legista, ouvi opinião diferente. Para ele, o ‘cara foi executado ali mesmo e depois jogado no córrego’. Não havia mais de 8 horas de morte porque o corpo não estava completamente rígido

e

havia

hemorragia]

em

‘equimoses’[isto algumas

é,

extremidades

pequena do

mancha corpo.

provocada Em

função

por da

movimentação da avenida, este foi o primeiro caso em que fiquei muito

232

próxima do cadáver, pouco mais de 2 metros. Pude ouvir melhor os diálogos entre eles e vi o momento em que o delegado ligou para a Permanência da DH informado ser “PAF”, ou seja, homicídio provocado por projétil de arma de fogo. Um perito legista já havia comentado comigo sobre haver uma lista de quesitos pré-formulados na DH, cuja função seria a de agilizar o envio dessa lista ao IML. Assim, do local, o delegado avisa a Permanência e o atendente encaminha essa lista ao IML de modo que, antes de o corpo chegar ao médico legista para a necropsia, os quesitos já estejam em suas mãos.

Caso no 11 Data: 02 de março de 2012, sexta-feira Horário de saída da DH: 9:24 Horário de chegada ao local: 9:59 Horário de saída do local: 10:30 Chegamos a uma vila de aspecto cordial. Logo que chegamos, o perito me chamou a atenção para o fato de o local ‘estar acautelado, mas não preservado’,



que

o

trânsito

de

pessoas

estava

permitido

nas

imediações do corpo. Era um homem negro, muito magro, com cabelos compridos, vestindo apenas um short. Ao lado do corpo, um pedaço de pau, algo semelhante a um porrete, quebrado ao meio. Após as fotos da vila,

do

corpo,

iniciam-se

os

exames.

Faz

muito

calor!

O

perito

legista, findo o exame, explica-me que aparentemente foi ‘traumatismo craniano fechado por ação contundente, entre 6 e 8 horas de morte’. Os investigadores moradoras

tocam

disse

ter

as

campainhas

ouvido

gritos

das

casas

próximas

aproximadamente

às

e 4

uma horas

das da

madrugada. O perito criminal classifica como “homicídio” porque ali fora de fato o local do crime.

Caso no 12 Data: 02 de março de 2012 Horário de chegada ao local: 11:35 Horário de saída do local: 13:00 No deslocamento entre o caso anterior e este, o ar condicionado da viatura

parou

de

funcionar.

Soma-se

a

isso

mais

de

uma

hora

de

engarrafamento na Avenida Brasil. Fazia um calor impressionante dentro da viatura e o colete parecia pesar o dobro do normal. cansada.

Bebia

água,

muita

água.

O

local

para

onde

Sentia-me íamos

era

considerado ‘de tensão’, e os policiais tomaram a postura de praxe: fuzis apontados para as ruas. Chegamos a uma rua larga, onde havia uma

233

única sombra, a de uma árvore grande. O corpo estava no porta-malas de um carro estacionado sobre a calçada à frente de uma casa. A rua foi fechada

nos

dois

sentidos

e

o

“rabecão”,

a

viatura

do

Corpo

de

Bombeiros, estacionada atrás do porta-malas de modo a impedir a visão dos muitos curiosos que se aglomeravam na esquina mais próxima. O trabalho

da

Perícia

começou

pelo

papiloscopista.

Os

investigadores

tocaram a campainha da casa mais próxima ao carro e o morador atendeu dizendo que havia ligado para o Batalhão da Polícia Militar no dia anterior às 20h. A notícia só chegara a DH às 8h daquele dia. O carro estava muito empoeirado e nitidamente havia muitas digitais de muitas pessoas. Esse morador informou que muitas pessoas se debruçaram sobre os vidros tentando ver o corpo que estava ali dentro. O papiloscopista aplicou o pó nos lugares de praxe: vidros das portas, próximo às maçanetas das portas e em quase toda a superfície do porta-malas. Coletou

quatro

fragmentos.

Como

havia

um

projétil

preso

na

porta

traseira, o perito criminal me chamou e disse: ‘tá vendo isso aí? É muito provável que tenham apagado o cara aí dentro, na mala mesmo’. Quando o papiloscopista disse ao restante da equipe que o porta-malas poderia

ser

aberto,

verificaram

que

o

mesmo

estava

trancado.

Foi

necessário que o bombeiro utilizasse uma picareta para abrir a porta, o

que

ocorreu

trabalho

na

após alguns

parte

de

minutos.

dentro

do

O papiloscopista

veículo

e

lamentou

continuou não

seu

haver

um

material que permitisse a coleta de fragmentos nos volantes, os quais geralmente apresentam uma superfície porosa. Como eu não queria, nem precisava

para

os

fins

de

meu

trabalho,

ver

os

corpos

em

seus

detalhes, posicionei-me próximo da viatura, à frente do carro, sob o sol do meio-dia de um dia muito quente, no Rio de Janeiro. Se eu me posicionasse na única sombra disponível, onde se aglomeravam os demais policiais, ficaria de frente para o corpo. O exame foi longo, e boa parte dele realizado com o cadáver dentro do porta-malas. O perito criminal coletava em um saco plástico muitos projéteis e cartuchos. Uma mulher se aproximou da rua, foi amparada por moradores e sentada em uma cadeira. Chorava compulsivamente. Era irmã da vítima, segundo me disseram depois. Passado um tempo, o corpo foi retirado do portamalas pelos bombeiros, que o colocam sobre o saco preto. Aí é feito um exame

mais

demorado,

com

o

perito

legista

inserindo

palitos

nas

perfurações a fim de verificar a trajetória dos tiros. Após um longo tempo sob o sol quente, deixo meu caderno de campo dentro da viatura e atravesso a rua para próximo de um muro onde havia uma minúscula sombra. Encosto no muro, bebo um pouco d´água, o corpo é recolhido

234

pelos bombeiros e “guardado” no rabecão. Sinto um pouco de fraqueza, a cabeça pesa... ... Abro os olhos. Vejo coturnos a minha frente, calças pretas, pneus de carros da Polícia. Estou no chão, deitada de lado. Sinto meus braços e pernas duros, não consigo me mover. Retiram-me o colete, deitam-me de modo que o médico legista possa conversar comigo. ‘Você sabe quem sou eu?’, pergunta-me. Balanço a cabeça afirmativamente. Ele me pede para dizer seu nome e eu o faço. ‘Você sabe o que aconteceu?’. Respondo negativamente e pergunto: “eu desmaiei?”. Ele me diz: ‘Você já teve convulsão antes?’. “Não”, respondo. Sou levantada, ele me pega pelos pés, um bombeiro me pega por sob os braços. Sou levada para uma casa, onde me colocam sentada em uma cadeira. O médico limpa um ferimento em minha cabeça, sobre a sobrancelha esquerda. Limpa minhas mãos, que também estão feridas. Sinto dor no ombro esquerdo. Não sei o que aconteceu.

Recebo

um

copo

de

água

gelada

com

açúcar.

Tremo.

Mal

consigo firmar o copo em minha mão. O médico me pergunta se eu sei onde estou e o que estou fazendo. Respondo-lhe o bairro onde estou, com quem estou e do que trata a pesquisa. Falo meu nome. Sinto gosto de

sangue

em

minha

boca.

Mostro

a

ele,

que

me

informa

que

eu

provavelmente mordera em minha língua. Sinto uma aspereza em um dos dentes, canino inferior esquerdo. Sua ponta fora quebrada. Aos poucos vou me recompondo. Levanto-me, choro um pouco, agradeço, e cada um da equipe retorna às suas viaturas. O delegado se aproxima, pergunta se está tudo bem. O perito criminal me compra um suco. No caminho, o perito

legista

me



um

provável

diagnóstico:

hipoglicemia,

com

desidratação e um pouco de estresse emocional. Recomenda-me exames neurológicos e de sangue. Tranquiliza-me. Voltamos a DH. Almoçamos e eles me levam para casa.

Caso no 13 Data: 06 de março de 2012 Horário de saída da DH: 8:49 Horário de chegada ao local: 9:55 Horário de saída do local: 10:36 Seis dias depois voltei a DH. Seguindo a orientação do médico legista que estava comigo no incidente, passei a tomar hidrotônicos no lugar de

água

e

a

levar

uma

fruta

e/ou

uma

barra

de

cereais

para

me

alimentar na rua. Chegamos a uma estrada de terra, no meio da qual estava o corpo de um homem pardo. Uma concentração de moscas em torno de

sua

cabeça

e

aquele

odor

característico

que

ainda

não

consigo

235

descrever. Não há nenhuma referência nesta estrada. Por isso o perito criminal caminha do corpo até o poste de luz mais próximo, tomando notas em seu formulário. Como eu estou justamente ao lado deste poste, ele me diz que está contando seus passos e que ‘cada perito sabe o tamanho de sua passada’. Isso é necessário para posicionar o corpo quando não há nenhuma referência de localização, como ali. A passada dele é de 80 centímetros e ele contou 13 passos. Então, o corpo está posicionado

a

10,4

metros

do

poste

14158/08

daquela

estrada.

Ele

fotografa as imediações, o corpo mais distante e, depois, o corpo mais próximo a fim de fotografar a chamada “máscara cadavérica”, ou seja, a face da vítima. Volta à viatura juntamente com o perito legista e ambos pegam máscaras, toucas e luvas descartáveis. Aproximam-se do corpo,

espantam

as

moscas

com

as

mãos.

Como

não

é

suficiente,

o

bombeiro o faz com o saco preto de recolhimento de cadáver, fechado e dobrado. Iniciam os exames enquanto a delegada conversa com pessoas no local. Terminado o exame, os bombeiros recolhem o corpo. O perito legista

lava

as

mãos

no

carro

do

Corpo

de

Bombeiros.

Antes

de

entrarmos na viatura, eu pergunto a ele se é encontro de cadáver ou se é homicídio. Ele responde taxativo: ‘o local foi aqui mesmo. Vem cá pra você ver’. E sigo com ele até onde estava o corpo. Ali, ele me mostra o desenho das ‘manchas de sangue’ e, agachando-se, mostra-me a posição

em

joelhos, corpo.

que

a

a

forma

Dentro

da

vítima como

fora

ele

viatura,

executada.

caiu

e

o

conversando

Ele

fala

posterior com

das

marcas

reposicionamento

eles,

soube que

nos do

aquelas

pessoas eram familiares da vítima. Elas informaram que ele era usuário de drogas e pequeno ladrão da favela. Os familiares suspeitavam de acerto de contas da milícia, ou o que os policiais chamam de “limpeza de local”. Eles também informaram que tiveram notícia da morte às 16:30h

do

dia

anterior

e

que

começaram

a

ligar

para

o

190

imediatamente, mas só foram atendidos às 18:30h, quando comunicaram o fato. A notícia a DH chegou apenas às 8h do dia seguinte. Dentro da viatura,

o

perito

legista

liga

para

o

IML

informando

as

características do exame no local. Uma expressão por ele utilizada me chama

a

atenção,

“mancha

verde

abdominal”,

que

indica

o

tempo

de

morte. Neste caso, entre 16 a 18 horas de morte. Trata-se de uma mancha esverdeada que se forma na região próxima do intestino, que é onde ficam as bactérias de nosso organismo. É, por isso, o primeiro local a entrar em estado de putrefação após a morte.

236

Caso no 14 Data: 08 de março de 2012 Horário de chegada ao local: 11:26 Horário de saída do local: 11:39

No local anterior foi informado outro local em uma região considerada tensa pelos policiais, ou seja, região não pacificada ainda sob o controle do tráfico de drogas. Ao longo do caminho, eles receberam uma informação

de

que

os

traficantes

estavam

atirando

nos

policiais

militares que já estavam no local aguardando a chegada da Polícia Civil. Por isso, era necessário agilizar o translado. Sirenes ligadas, viaturas correndo, chegamos ao local. O corpo estava no porta-malas de um carro. A avenida é fechada nos dois lados. Vejo que os policiais saem e se encostam a um muro. Faço o mesmo e procuro ficar próximo a algum policial armado. Os bombeiros retiram o corpo do porta-malas rapidamente e o colocam na calçada, de modo que os peritos possam examiná-lo

mais

próximo

a

este

muro

e,

aparentemente,

com

mais

segurança. Tremo. Sinto meu coração acelerar. Novamente aquele peso na cabeça. Tenho receio de desmaiar novamente, como no meu último dia de acompanhamento. Paro de escrever no caderno. Mantenho minha atenção no ambiente. É preciso me manter atenta e, definitivamente, não posso ter outra convulsão no local. O exame é bem rápido, menos de 10 minutos. Decidem que o carro será examinado pelo papiloscopista no pátio da DH. Voltamos para as viaturas e saímos do local. Respiro aliviada. Na viatura, converso com eles. A vítima recebeu um tiro de fuzil na nuca e este ‘é um clássico encontro de cadáver’, diz-me o perito criminal. No pátio da DH acompanhei o trabalho do papiloscopista no carro. Ele coletou

quatro

fragmentos.

Uma

semana

depois,

no

seu

plantão

novamente, ele me disse que não havia ‘positivado’.

Caso no 16 Data: 10 de março de 2012 Horário de saída da DH: 00:20 Horário de chegada ao local: 00:54 Horário de saída do local: 1:44 Primeiro

caso

de

flagrante

que

eu

acompanhava.

Ainda

no

local

anterior, haviam comunicado sobre este caso, mas os peritos não haviam sido acionados porque se tratava de “hospital”. Entretanto, a vítima veio a falecer horas depois e o autor havia sido preso em flagrante. Diante disso, foi necessária a perícia de local, especificamente, a casa do autor. Quando chegamos ao local, a história já era sabida

237

pelos peritos. A filha do autor namorava um traficante da área e este não aceitava o recente término do namoro. Neste dia, o namorado foi à casa da família da namorada para buscá-la e levá-la de volta à boca de fumo. O pai chegou, deparou-se com ele em sua casa, os dois brigaram, e o pai atirou com seu revólver 38. Havia manchas de sangue nos dois sofás da sala, marca de tiro na parede. Na busca pelos projéteis, o perito criminal rasgou um dos sofás e conseguiu retirar dele dois. O autor estava detido na viatura da Polícia Militar. Quando saímos deste local, já em direção a outro, dois advogados já estavam presentes e todos iriam para a DH para serem ouvidos.

Caso no 17 Data: 10 de março de 2012 Horário de chegada ao local: 2:14 Horário de saída do local: 3:25 Entre o local anterior e este, o caminho percorrido era de um aspecto estranho. Minha tensão adveio, em grande parte, da tensão que pairou dentro da viatura, no semblante dos que estavam ao meu lado. Mas quando

chegamos

ao

local,

notei

ser

uma

rua

tranquila.

O

perito

criminal tirou fotos da rua, da casa. Na porta, vizinhos esperavam pela Polícia. Informaram que fora a esposa que achara o corpo, que estava

no

quarto

de

casal.

Entramos.

Perito

criminal

na

frente,

seguido do delegado, do perito legista, de mim e do papiloscopista. Era uma casa de classe média da zona oeste do Rio de Janeiro. No final do corredor, já se via uma poça de sangue no quarto do casal. Os policiais militares pareciam muito interessados e eu cedi o meu lugar na porta para eles. Afastei-me, ficando na sala de estar, acompanhando o papiloscopista que buscava fragmentos na escrivaninha. Havia uma hipótese de latrocínio, já que os cartões de banco da vítima, um rapaz bastante jovem, não estavam dentro de sua carteira. No quarto onde ele estava havia um berço de bebê. Na sala, fotos de um menino de pouco mais de 1 ano e da vítima ao lado da esposa. Ambos muito jovens, pouco mais de 20 anos. Como os vizinhos disseram que o som estava muito alto e que, por isso, eles não tinham ouvido nenhum barulho como disparos de arma de fogo, o delegado pediu ao papiloscopista que procurasse fragmentos no aparelho de som, mas nada foi encontrado. Ao sair do local, os familiares chegaram, inclusive a esposa, que parecia muito abalada.

Disse

desempregado.

que

o

marido

era

usuário

de

drogas

e

estava

238

Caso no 18 Data: 10 de março de 2012 Horário de chegada ao local: 3:41 Horário de saída do local: 4:25 O local era um bar. Entre as mesas, o corpo de um homem em torno de 50 anos. Para a perícia, neste local foram utilizadas algumas tecnologias de

iluminação.

Da

viatura

do

delegado

foi

ligado

um

holofote

que

iluminou bastante a rua e o bar. O perito legista utilizou também uma lanterna presa à sua cabeça. O perito criminal foi o primeiro a entrar no bar, que fora destrancado a pedido do delegado. Ele foi recolhendo as munições, contabilizando cerca de 10, entre projéteis e cartuchos. Após um tempo, o delegado, bastante participativo, perguntou ao perito legista se ele poderia ‘desfazer o local’, ou seja, alterar a posição das

mesas,

das

cadeiras.

No

momento

do

exame

do

corpo,

o

perito

legista pediu ao bombeiro que retirasse o corpo de dentro do bar e o levasse para a calçada, onde a iluminação era melhor. O exame então se deu ali, sobre o saco de plástico preto de remoção de cadáver. Havia muitas pessoas no local, mas nenhuma delas disse estar presente no momento, exceto uma funcionária do bar, que disse estar na cozinha e nada ter visto. Eu estava exausta. O dia estava quase amanhecendo. E uma lua cheia ainda insistia em iluminar a Cidade Maravilhosa.

239

Anexo 2 - Fluxograma: o processo de incriminação no rito do tribunal do júri

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