A construção de um ponto de fuga autêntico como possibilidade de resgate da narratividade

June 14, 2017 | Autor: Luciano Mattuella | Categoria: Psychoanalysis, Historia del Arte, Psicanálise
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A construção de um ponto de fuga autêntico como possibilidade de resgate da narratividade Luciano Mattuella1 Resumo: o presente texto procura apresentar, de modo sucinto, o que pode ser entendido como uma crítica estética ao cenário contemporâneo, uma colocação em questão deste estado de coisas construído pelo empenho do projeto da Razão em sua dimensão de anestesia do singular e do particular: abolição do mistério e da intimidade em troca da superexposição e da visibilidade saturada. Partimos de um rápido recorrido sobre a da noção de perspectiva - traçamos, assim, paralelos entre o modo como o homem constituiu sua versão da realidade e como representou o mundo em suas manifestações artísticas visuais. Percebemos, desta forma, que o modus operandi da Razão teria como marca registrada a proposição de um mundo destituído de ponto de fuga autêntico, ou seja, trata-se de uma apresentação de realidade esgotada em imagens e conceitos sem profundidade, descansados sobre uma falsa ilusão de pluralidade de sentidos. Buscar a abertura deste ponto de fuga autêntico seria, portanto, um resgate da potência da narratividade e, consequentemente, suspensão da violência. Palavras-Chave: Estética, Narratividade, Perspectiva, Visibilidade.

A construção de um ponto de fuga autêntico como possibilidade de resgate da narratividade She looks like the real thing She tastes like the real thing My fake plastic love But I can't help the feeling I could blow through the ceiling If I just turn and run And it wears me out, it wears me out It wears me out, it wears me out2 (Radiohead, Fake Plastic Trees)

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Psicólogo (UFRGS), psicanalista, especialista em Atendimento Clínico - Psicanálise (UFRGS), mestre em Filosofia (PUCRS), doutor em Filosofia (PUCRS - estágio doutoral na Université de Strasbourg / França). Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Professor da Faculdade Cenecista de Osório (FACOS). 2

“Ela parece com a coisa real / Ela tem o gosto da coisa real / Meu falso plástico amor / Mas eu não posso evitar o sentimento / Eu poderia explodir pelos ares / Se eu simplesmente me virar e correr / E isso me cansa, e isso me cansa / Isso me cansa, isso me cansa”. (tradução livre do autor)

A crítica como tensionamento da forma visual

Pensar uma verdadeira crítica do contexto contemporâneo implica, parece-nos, interrogar a própria possibilidade de crítica que ainda temos. Em outros termos: ainda nos é dado criar pontos de opacidade no discurso que sustenta nossos tempos, fazer fissuras na imagem tão bem acabada que a Razão e o capitalismo tardio nos legou como herança? Esta imagem, teria ela pontos de fuga autênticos, ou seja, profundidade em que o império do visual se esgota e na qual pode surgir a palavra em sua potência criadora e, por isso mesmo, verdadeiramente crítica - palavra como suspensão da violência visual? Ou estamos completamente tomados pela beleza da completude, da forma perfeita de uma realidade cujo conteúdo é achatado em detrimento do esplendor da aparência? Neste sentido, a constatação de Jean Baudrillard é precisa - afirma ele que, nos dias de hoje,

Não existe relevo, perspectiva, linha de fuga onde o olhar corra o risco de perderse, mas um ecrã total onde os cartazes publicitários e os próprios produtos, na sua exposição ininterrupta, jogam como signos equivalentes e sucessivos. (Baudriallard, 1981, p. 98) Vivemos em um mundo em que o olhar não encontra limites, é sem intervalos. Contínuo de imagens que se sucedem sem sentido (o excesso de informação como mecanismo de obscurecimento do sentido), nossa realidade acaba por limitar-se à tautologia de um olhar que nunca se perde: sempre há algo a ser visto, tudo está à disposição do olhar. O controle do olhar é mais eficaz dos modos de amortecimento do pensamento, pois ali onde se poderia supor um espaço de raciocínio, de crítica, encontra-se uma imagem bem engendrada que faz ameniza o permanente choque, substituindo-o. Desta forma, uma crítica que se julgue propriamente efetiva precisa tensionar a forma de modo radical - desde a sua raíz, sua sustentação -, e não apenas se contentar em desfazer-se em uma caricatura de crítica: precisa ter como preocupação a

artificialidade da imagem que se oferece como panacéia e supor um sentido mais-além do visual. Operar pela via de uma crítica frágil, de um “como se” fizesse crítica, é uma forma de manutenção da violência do visível. Ainda além: dizer que o mundo é deste modo e que não há nada mais a se fazer, contentar-se com sua forma, é gozar da posição cínica3, figura atual que condensa em si a desesperança em uma outra narrativa possível do mundo; o cínico é aquele que se basta com os significados já dados do mundo silêncio da palavra e do dizer, conivência com o silêncio dos enunciados repetidos à exaustão4. Uma crítica que apenas faz vezes de crítica pode trazer ao mundo um tãosomente ilusório desequilíbrio, mas nunca incita à responsabilidade, como nos alerta Guy Debord, em seu livro La Société du Spectacle: “À aceitação (...) daquilo que existe pode também se adicionar como uma mesma coisa a revolta puramente espetacular: isto traduz o simples fato de que a insatisfação ela própria se torna uma mercadoria (...)” (Debord, 1992, p.55). O imperativo da visibilidade abarca em seu escopo inclusive a crítica à sua operação - trata-se de uma espécie de auto-engendramento que mortifica a palavra em sua vertente de narrativa, relegando-a apenas ao papel de mantenedora do conteúdo vazio e da forma estável. Assim, uma posição crítica, no sentido forte, precisa se ocupar permanentemente em perguntar-se se não está somente a serviço da “revolta puramente espetacular” de que fala Debord. Desta forma, o efeito mais valioso da crítica é a restituição de uma posição de enunciação, princípio de uma narrativa - colocação em ato da palavra em sua dimensão de suspensão da violência, uma vez que abertura para o novo e ainda não dito: resgate do dizer que agita o mundo e questiona a sua forma supostamente acabada. Uma crítica que vá para além do cinismo, portanto, faz irromper no mundo um ponto de fuga autêntico. Tratemos disso, então, iniciando com uma pequena história da

3 A este 4

respeito, cf. SAFATLE, 2008.

Como se estivemos vivendo em um eterno déjà vu. Para mais a este respeito, convidamos o leitor a cf. o nosso artigo A literalidade e a lei infame em Franz Kafka, citado nas referências, ao final.

idéia de perspectiva; posteriormente, pensemos o que significa poder colocar em perspectiva o discurso contemporâneo da visibilidade.

Breve história da perspectiva

Portanto, gostaríamos de dar seguimento a este escrito resgatando uma palavra que serviu como disparadora de nossa reflexão: perspectiva. Para alguém que se ocupa com o estudo do âmbito da estética ou mesmo da filosofia da arte, é impossível passar desapercebido por este termo, um conceito tão importante na história das artes visuais. Como sabemos, entretanto, o recurso da perspectiva é uma construção razoavelmente nova no transcorrido histórico da humanidade. Grosso modo, pode-se dizer que a representação pictórica alternou, no desenrolar da história, períodos de predomínio do simbolismo – ou seja, as imagens em sua vertente propriamente representativa, aludindo a um outro contexto não presente na materialidade do quadro – e períodos de, apressadamente falando, realismo – em que se procurava uma mímese tão perfeita quanto possível do chamado “mundo exterior”. Naturalmente, os momentos da história da arte mais afeitos à similitude com o mundo geraram um conjunto mais agudo de estudos na área da perspectiva. Desta forma, a civilização egípcia, dada ao simbolismo, e ainda muito distante da técnica de perspectiva, precisava produzir imagens em que o faraó, por exemplo, era diversas vezes maior do que os súditos, associando, assim, a representatividade social ao tamanho da figura. As imagens careciam da dimensão de profundidade, pelo menos se nos ativermos ao plano meramente concreto da imagem (aquilo da imagem que aparece, que se dá a ver). Eram, por assim dizer, bi-dimensionais. Já os gregos, afeitos como eram à matemática, ao cálculo e às ciências do espaço, produziram obras com rudimentos de perspectiva, utilizando um recurso que hoje em dia chamamos de escorço, ou seja, o mecanismo de desenhar em tamanhos menores figuras que se encontram mais ao fundo de uma ilustração e em tamanhos maiores aquelas mais próximas do observador. Em contraste com o período egípcio, a diferença de tamanho não representava uma desigualdade na função social ou na hierarquia do

povo, mas sim procurava mimetizar o modo como o olho humano interpreta o mundo. Era a chamada falsa perspectiva. A Idade Média novamente apresenta uma arte de cunho nitidamente simbolista, em cujas representações não havia a preocupação com a exatidão visual ou mesmo com a imitação do mundo – a idéia de um todo coerente em si não fazia questão para os pintores da época. Talvez isto se deva à atribuição de um olhar organizador não ao homem, mas a Deus, e seria por demais ousado, à época, pelo menos, da parte do homem procurar ver o mundo como se fosse Deus. A arte medieval seria assemelhada a uma prece feita de tinta e pedra. Muito diferente do cenário que encontramos na época renascentista, em que novamente o homem se pensa em um lugar central no mundo. Não por acaso é durante o Iluminismo que se consolida nas artes uma primeira teoria sistemática sobre a perspectiva, demonstrada, por volta de 1413, por um arquiteto italiano chamado Filippo Brunelleschi. Este estudioso percebeu que, quando pintava em espelhos os contornos dos reflexos de cúpulas das catedrais, as linhas tendiam todas para um ponto no horizonte. Era o primórdio do conceito-chave de ponto de fuga. Curiosamente, Brunelleschi precisou das catedrais para matematizar a percepção de mundo - apreensão do sagrado pelo humano. A utilização do ponto de fuga permite uma ilusão bastante convincente de profundidade. Hoje em dia, temos a possibilidade de elaborar imagens com não apenas um, mas diversos pontos de fuga, aproximando-nos cada vez mais da reprodução daquilo que o olho humano vê - ou julga ver - da realidade dita concreta.

Levinas e a insuficiência da imagem

Ora, fazendo uma leitura superficial desta rápida história da perspectiva, poderíamos pensar que o desenvolvimento da Razão ao longo dos milênios tenha permitido ao homem um acesso muito mais fidedigno, por falta de palavra melhor, ao mundo, uma apropriação mais total da realidade - um caminho na direção do encontro do espírito consigo mesmo, seguindo a intuição hegeliana. Entretanto, nossa proposta é de que a humanidade não construiu modos mais confiáveis de acesso ao mundo, mas

sim miragens mais verossímeis, dotadas de tão-somente um aspecto de realidade. Se tomarmos como exemplo a pintura figurativa, veremos que o esforço humano tratou de encontrar formas mais astutas de convencer o observador de que o quadro se sustenta em três dimensões, o que obviamente não é o caso. Trata-se de um trompe l’oeil, para usar um termo técnico da área da arte, ou seja, um “engano do olhar”. Mas por que somente um aspecto de realidade? A resposta é apenas aparentemente simples: apesar da tentativa humana de mimetizar a realidade, a arte visual não tem outra alternativa a não ser oferecer uma imagem bidimensional do mundo - a dita terceira dimensão sendo tão-somente uma ilusão escópica. Esta é uma afirmação apenas preliminar e logo veremos por que ela é parcialmente insustentável, mas, de todo mundo, podemos já situar o cínico nesta terceira dimensão que é apenas aparente, artifício resultante de uma pirotecnia do discurso fóbico à verdadeira crítica. O cínico contenta-se com a imagem de uma crítica. Para alguns pensadores da estética, inclusive, o próprio do fazer artístico seria justamente esta substituição das coisas por imagens - esta linha de raciocínio podemos ler no importante artigo do filósofo lituano Emmanuel Levinas intitulado La réalité et son ombre, de 1948. Trata-se de uma dura crítica anti-estética na qual o autor, de modo quase platônico, exila os artistas da pólis, uma vez que estes, ao proporem um mundo de ilusão, estariam se eximindo das responsabilidades e da seriedade de uma realidade destroçada pelo mau uso da razão 5. Em seu livro De l’existence a l’existant (Levinas, 2004), também do final da década de quarenta, Levinas mantém a crítica anti-estética, desta vez tratando também da arte moderna, a arte abstrata. Para ele, a abstração traria consigo uma espécie de excesso da materialidade do mundo, uma desordem primordial que - como a arte figurativa - também convidaria a uma ausência do peso da realidade, mas agora porque convocaria o observador a uma apreciação meramente sensível e esgotada em si mesma, vetorizada na direção de uma espécie de enclausuramento estético. Por que não dizer, uma forma de anestesiamento estético, por mais paradoxal que pareça? Se na arte figurativa o fator que sustenta a alienação é a potência de beleza - ou 5 A este

respeito, cf. LEVINAS, 2007.

seja, de completude, de silenciamento da forma bela -, na arte abstrata é a própria rudeza do material utilizado, o sem-sentido do informe. Tanto a beleza quanto o informe relegam ao homem a sina do desamparo frente ao que Levinas chama de noite do mundo, ou seja, aquela dimensão mais-aquém da realidade, ainda antes da entrada do ser em um mundo, um bolsão temporal repleto de imagens das coisas. Imagens, e não palavras: eclipse da narratividade. Entretanto, é impossível compreendermos o real escopo do pensamento de Levinas sem levarmos em consideração a época em que o filósofo escreveu estes textos citados. Ainda às beiras do holocausto, é inteligível e bastante aceitável que um pensador judeu se oponha de modo tão veemente a qualquer discurso ou agenda que proponha um modo fechado e único de ver o mundo, que insinue uma despreocupação com a morte do próximo justamente em época, para citar Levinas, “que se pode ter vergonha [do gozo estético] como de festejar em plena peste” (Levinas, 2007, p. 125). O comportamento do artista é carregado do impulso de sair do mundo, uma concepção muito importante e que permite uma reviravolta no posterior pensamento estético de Levinas: à medida que a Segunda Guerra se distancia no tempo, Levinas passa a posicionar-se de modo diferente com relação à arte e à estética. O que antes era entendido como uma posição alienada do artista com relação aos problemas do mundo passa então a ser pensado como um modo privilegiado de questionar as enrijecidas significações da realidade, de atestar a insuficiência do conceito em dar conta do real: a vida é maior do que a imagem da vida (do que sua representação, para usarmos um termo caro à história da Filosofia). Uma vez que a arte pode fazer vezes de apontar para o inefável da alteridade do mundo, ela é elevada à dignidade de possibilidade de evasão de um mundo resolvido em sua ilusória lógica auto-referente. Mais terríveis do que os horrores noturnos são as quimeras do dia da razão, resplandecendo belamente, como diz Levinas, em sua “indiferença, frio esplendor e silêncio” (Levinas, 1994, p. 210). Ali onde tudo pode ser visto abdica-se do mistério, do enigma de uma existência que seja única e portadora de uma profundidade verdadeira; de um ponto de fuga legítimo, em outros termos. Mais

ainda: abdica-se de uma narrativa própria e singular, condição sine qua non para qualquer crítica no sentido forte do termo.

Walter Benjamin e a realidade de vidro

Já falamos da imagem, mas também a eficácia do conceito é a mesma daquela da perspectiva renascentista - uma tentativa ardilosa de apresentar como mundo uma representação de mundo. No fim das contas, todo conceito, por sua fixidez de significado, acaba por se assemelhar a uma imagem. E aqui reencontramos a crítica antiestética de Levinas, mas agora em uma abordagem atualizada e interpretante do contexto contemporâneo. A arte substitui, sim, a coisa pela sua imagem, mas justamente por isso opera desde uma potência crítica da lógica auto-referente, uma vez que explicita a falência do projeto que busca substituir a profundidade do humano por uma ilusória profundidade conceitual. O teórico, referenciado à tirania da visão - tudo ver através da luz da Razão -, apara as arestas do mundo, substituindo o particular da vida singular pelo universal da vida hipotética. Impossível não nos remetermos a Walter Benjamin quando pensamos sobre a íntima relação entre visibilidade e mundo contemporâneo. Em seu ensaio Experiência e Pobreza, no qual se pergunta pela possibilidade de o homem estabelecer uma relação autêntica com o mundo e com sua história, Benjamin sugere não ser “por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa” (Benjamin, 1994, p. 117), ou seja, um suporte deficiente para a marcação de algo que testemunhe de uma singularidade. Benjamin ainda afirma que as “coisas de vidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral inimigo do mistério” (Benjamin, 1994, p. 117). Retornamos, portanto, ao argumento de que a visibilidade excessiva é, paradoxalmente, o que obscurece a possibilidade de um verdadeiro olhar. Que as coisas de vidro não tenham aura é um diagnóstico de muita acuidade dos sintomas sociais que enfermam a contemporaneidade. Uma época obcecada com a transparência, com o tudo saber, com a abolição do mistério - mesmo que aquele mistério cotidiano, da intimidade de si consigo - transforma o próprio do humano em

objeto de estudo e procura apaziguar os ânimos e evitar os desvios. Neste sentido, acompanhamos a reflexão da psicanalista Maria Rita Kehl, e de tantos outros pensadores, ao afirmarmos que o grande mal-estar contemporâneo encontra lugar na relação do sujeito com a temporalidade (e na suspensão desta pelo imperativo da visibilidade). Como em Farenheit 451, livro de Ray Bradbury, as nossas paisagens passam ao lado como borrões multicoloridos e amorfos - a velocidade da visão desfaz a alteridade do mundo em formas absolutamente destituídas de nitidez - cúmulo da abstração justamente ali onde a precisão é almejada. O mundo é substituído pela sua imagem (borrada), como testemunha Clarisse, personagem do romance:

Às vezes acho que os motoristas não sabem o que é grama, ou flores, porque nunca param para observá-las. (...) Se a gente mostrar uma mancha verde a um motorista, ele dirá: “Ah, sim! Isso é grama!”. Uma mancha cor-de-rosa? É um roseiral! Manchas brancas são casas. Manchas marrons são vacas. Certa vez, titio ia devagar por uma rodovia. Ele estava a sessenta por hora e o prenderam por dois dias. Isso não é engraçado? E triste, também? (Bradbury, 2007, p.21) Clarisse pergunta pela possibilidade de parar, de ter um tempo para si, de andar devagar, de relacionar-se com um tempo interno, suspenso da pressa do dia-a-dia, uma forma de resistência ao tempo sem tempo em que tudo tem quer ser visto antes, tudo tem que ser previsto. É caro para Clarisse - e para todos nós, acreditamos - um tempo que resgate a profundidade do humano em seu mistério, em sua recusa a elucidar-se por completo. O vidro é pura transparência, é o tempo transfigurado em espaço, sem ponto de fuga possível, uma vez que ignora a linha do horizonte. Clarisse é como aquela criança que explicita a nudez do rei: aponta para o absurdo do mandamento do tudo fazer, do fast service, da produtividade desenfreada. A alucinação desenfreado dos homens sem história, suspensos em uma simulação de história, homens despossuídos da palavra enquanto criadora de uma narrativa de si. A arte, em sua potência crítica, permite um outro olhar sobre o mundo, uma atenção às coisas ínfimas e singulares - permite, assim, a abertura de um espaço narrativo. Toda obra de arte é um convite à sensibilidade: anterior ao conceito e à

imagem, um possível ponto de partida de uma crítica. Neste sentido, uma obra de arte inflige sobre a superficial profundidade do mundo uma operação de, retornando à Levinas, obliteração, ou seja, essa possibilidade de fazer pequenas feridas na fria aparência da realidade esgotada em conceitos e imagens. Segundo Levinas, a arte de obliteração denuncia a “indiferença leviana do belo e (...) faz lembrar as usuras do ser” (Levinas, 1990, p. 12), o que é o mesmo que afirmar que a arte permite a construção de um ponto de fuga diferente daquele da época renascentista (e da nossa época, aliás), para-além da bela fantasmagoria teórica. Em outros termos, como gostaria o filósofo Ernst Bloch, a arte de obliteração permite que no verniz tão finamente talhado da realidade se encontre uma pequena rachadura, esperança de respiro do singular e do único (Bloch, 2005, p. 328) - um ponto de fuga autêntico.

Referências Bibliográficas

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação, Lisboa: Antropos, 1981. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia, Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. BLOCH, Ernst. O princípio esperança, vol 1. Rio de Janeiro: EdUERJ : Contraponto, 2005. BRADBURY, Ray. Farenheit 451. São Paulo: Editora Globo, 2007. DEBORD, La Société du Spectacle. Paris: Gallimard, 1992. LEVINAS, Emmanuel. De l’existence a l’existant. Paris: J. Vrin, 2004. ________________. De l’oblitération. Paris: Editions de la Differénce, 1990. ________________. La réalité et son ombre. in. Les Imprevus de l’histoire. Paris: Fata Morgana, 2007. ________________. Totalité et Infini: essai sur l’éxteriorité. Paris: Kluwer Academic, 1994.

MATTUELLA, Luciano. Correio da APPOA - Psicanálise e Ficção, Porto Alegre, no. 202: A literalidade e a lei infame em Franz Kafka, pp. 93-100, junho de 2011 (disponível em www.appoa.com.br). SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

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