A contemporaneidade em Coriolano

September 6, 2017 | Autor: Renato Roque | Categoria: Classical Literature, Coriolanus, Coriolano
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A contemporaneidade em Coriolano

Volúmnia aos pés de Coriolano, Nicolas Poussin - 1652–1653 (circa)

Renato Roque Março 2014 Cultura Clássica II - FLUP

Sinopse Este trabalho apresenta um resumo da vida do herói lendário romano Coriolano, tomando como fontes principais o conhecido texto de Plutarco em Vidas Paralelas, dedicado a Alcibíades e a Coriolano, e a peça de Shakespeare sobre este general romano. Depois, a partir da pergunta “Como justificar tão grande interesse por uma personagem lendária de há dois mil e quinhentos anos?” colocamos e discutimos algumas razões que nos parece poderem justificar a atracção repetida pela personagem, ao longo da história, e compreender a forma como ela tem sido interpretada por diversos autores e criadores, o que nos permite concluir que a complexidade e as características ambivalentes e contraditórias de Coriolano o transformam numa enigmática figura e lhe permitem assim uma contemporaneidade surpreendente. Finalmente, tentamos identificar valores gregos e romanos presentes em Coriolano, a partir de algumas linhas paralelas entre ele e os guerreiros gregos e troianos na Ilíada, observando que a “arete” grega, como valor supremo no poema homérico, parece ter sido transformada na “fides” romana em Coriolano.

Índice 1.

Introdução e curta biografia de Coriolano

1

2.

As fontes

3

3.

Como justificar o interesse por uma personagem lendária de há dois mil e quinhentos anos?

7

4.

Os valores gregos e romanos na figura de Coriolano

10

5.

Bibliografia

13

A contemporaneidade em Coriolano “Have you felt anything in Coriolanus like you?” "Perhaps I have." Shirley, CHARLOTTE BRONTË1

1.

Introdução e curta biografia de Coriolano

O texto de Plutarco sobre Coriolano, escrito no início do século II, vai ser a nossa fonte biográfica fundamental para narrarmos a história deste herói complexo e ambivalente. São conhecidos outros relatos sobre Coriolano, tanto de autores romanos como de gregos, que nos contam um conjunto de episódios semelhantes, mas que também revelam algumas diferenças e até contradições entre si. Pela importância que desempenha na nossa cultura, pareceu-nos pertinente usar também, para além das fontes romanas e gregas, a peça Coriolano de William Shakespeare2, escrita no século XVII, que aliás teve como inspiração principal o texto referido de Plutarco. Esperamos desta forma poder alargar os horizontes da nossa reflexão a outros Coriolanos, que o Coriolano primevo contém em embrião dentro de si. Gaio (Gneu) Márcio Coriolano3 (em latim: Gaius Martius Coriolanus) terá sido4 um general da Roma Antiga que viveu no século V a.C. Ele é uma das muitas figuras que ajudaram a contar, em termos de lenda, a história da Roma Antiga, desde a idade do bronze até à época clássica, ou seja, desde o desembarque de Eneias no Lácio, até ao período conturbado da República. Este período abrange os descendentes de Eneias, Rómulo e Remo, a fundação de Roma, todos os reis latinos, sabinos e etruscos, dos mais de duzentos anos de monarquia, e por fim os primeiros séculos da República. Coriolano terá vivido precisamente nos primeiros anos da República, período de profundas transformações políticas e sociais. Esta instabilidade prolongou-se e marcou todo a República. A cidade de Roma sempre foi instável. Muitas vezes a unidade política foi conseguida mediante o início de uma guerra externa. A guerra desviava a atenção dos plebeus de suas próprias reivindicações e permitia aos patrícios exercerem seu poder de mando com mais tranquilidade. Foi o que ocorreu durante a nova campanha contra os Équos e Volscos pois a “...crescente exaltação da plebe levou as perturbações internas a serem causa de uma guerra no exterior, e por sua vez esta concorreu para fazer cessar as discórdias civis”. É interessante notar um certo padrão narrativo. Em nenhum momento Tito Lívio admite que as discórdias civis foram provocadas pela ganância dos patrícios ou por abusos cometidos pelos senadores. Fábio de Oliveira Ribeiro, Guerra e Política em Roma: anotações sobre "Ab Vrbe Condita Libri"

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Em diálogo sobre a peça Coriolanus de W. Shakespeare, entre Caroline Heldstone e Robert Moore, no romance Shirley de Charlotte Brontë, publicado em 1849. 2 Poder-se-á questionar termos utilizado o Coriolano de Shakespeare, texto do século XVII, como uma das fontes principais para este trabalho sobre uma lenda romana do século V a.C.. Mas teremos de reconhecer que, se hoje Coriolano continua a ser uma personagem popular, tal se deve sobretudo à tragédia do dramaturgo inglês, que é representada com frequência. Este foi, aliás, o motivo por que imediatamente escolhemos Coriolano da lista de lendas a tratar. Tínhamos visto a peça em 1999, no Rivoli, encenada por Jorge Silva Melo, e vimos recentemente no TNSJ uma encenação completamente diferente de Nuno Cardoso. Pareceu-nos por isso interessante juntar algumas reflexões em que realçamos alguns aspectos retirados da peça, que nos pareceram particularmente relevantes, que ressaltam de um Coriolano concreto, de carne e osso, que fala connosco, que vemos triste e alegre, que sentimos enraivecido com os tribunos da plebe ou terno com a mulher e com a mãe. 3 Coriolano pertenceria a uma ilustre família romana; seria descendente do rei sabino Anco Márcio. Etimologicamente o nome gentílico está ligado a Marte, deus da guerra. Gaio e Gneu aparecem como opção de nome próprio em diferentes autores, constituindo mais um motivo de mistério na personagem. 4 O tom de dúvida que o futuro composto “terá sido” coloca aqui logo no início da biografia e que encontraremos ao longo do texto em algumas frases relativas a Coriolano, pretende realçar o carácter lendário desta personagem, em cuja história de vida se misturarão história e lenda. De facto, como veremos ao longo deste trabalho, as muitas contradições, que as suas biografias ostentam, permitem questionar a veracidade da sua história.

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O primeiro feito atribuído a Coriolano por Plutarco é o de ter combatido com enorme bravura, ainda muito jovem, contra o rei Tarquínio-o- Soberbo, que fora expulso de Roma e que, aliado aos etruscos e a outros povos inimigos dos Romanos, procurara recuperar a cidade5. Era ainda um jovem quando participou na sua primeira campanha militar. Isso aconteceu na época em que Tarquínio, depois de ter reinado em Roma e de ter sido expulso, quis, na sequência de vários combates e derrotas, como que jogar os seus últimos dados. A maioria dos Latinos, assim como muitos outros Itálicos, uniram-se então a ele em campanha e tentaram recuperar Roma, não tanto para lhe agradar, mas sobretudo porque tinham medo e uma inveja cada vez maior dos Romanos, a quem pretendiam derrotar. Nessa batalha, que pendeu tanto para um lado como para o outro, Márcio, que por muitas vezes se revelou um lutador vigoroso aos olhos do ditador, viu um soldado romano cair perto de si e não o abandonou. Pelo contrário: pôs-se de pé diante dele, para o defender, lançando-se contra o inimigo e matando-o. Por ter saído vencedor, o general coroou-o entre os primeiros, com uma coroa de folhas de carvalho. Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

Poderá este episódio de um rei tirano que, depois de expulso da Urbe, se rebela contra Roma, ser considerado como um sinal premonitório do que haveria de suceder a Coriolano? De acordo com o relato de Plutarco, durante o processo politico que se seguiu à expulsão de Tarquínio-oSoberbo, caracterizado por inúmeras revoltas populares e pela consequente abertura do poder patrício à plebe, Coriolano nunca se terá coibido de manifestar abertamente e em público a sua posição conservadora, pelo que não era figura popular. Mas quando os Volscos atacam Roma, procurando tirar partido das divisões internas na cidade, Coriolano mostrou uma vez mais a sua valentia como soldado e terá sido determinante para a vitória dos Romanos. Plutarco descreve com grande pormenor os combates em Coríolos, onde Gaio Márcio terá merecido o epíteto de Coriolano6: Quando a multidão parou de aclamar e aplaudir, Comínio retomou a palavra e disse: «Concidadãos, não podeis obrigar este homem a aceitar estes presentes se ele não quer recebê-los. Mas ofereçamos-lhe algo que não pode recusar. Votemos e concedamos-lhe o uso do nome “Coriolano”, se é que as suas acções não lho outorgaram já, antes de nós.» Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

Márcio regressa a Roma como herói. Continuam as fricções entre patrícios e plebeus, agora sobretudo por falta de pão para o povo que morria de fome. A guerra contribuíra para a falta de alimentos na cidade. Neste contexto turbulento, Coriolano é um modelo de coragem para os patrícios, que procuram fazê-lo cônsul. Tendo sido aceite como candidato, é depois recusado pelo povo por influência dos tribunos da plebe. Despeitado, Coriolano não se terá coibido de continuar, de uma forma frontal e destemperada a manifestar as suas opiniões de antagonismo em relação a algumas das conquistas e das pretensões dos plebeus. Tendo finalmente chegado trigo a Roma, Plutarco relata como ele no Senado se opõe à sua distribuição à população esfaimada. «Sentarmo-nos para votarmos doações e distribuições, tal como fazem os Gregos mais democratas, é com certeza promover a desobediência para a nossa ruína comum» Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

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Shakespeare utiliza esta informação de Plutarco, como uma prova de bravura precoce. Na tragédia, no acto I, Volúmnia, sua mãe, exulta com os ferimentos do filho: Volúmnia - Terá grandes cicatrizes para mostrar ao povo quando reclamar o consulado. Na expulsão de Tarquínio recebeu sete feridas no corpo.(Acto II, Cena I) 6

Podemos encontrar uma explicação condicente em Tito Livio, ainda que menos espectacular. Um dos jovens soldados no acampamento mais destacados era Gneu Márcio, um jovem de bom juízo e sempre disposto à acção que mais tarde recebeu o sobrenome de Coriolano…A fama que Márcio ganhou eclipsou completamente a do cônsul… Tito Lívio, Ab Vrbe Condita (2,33)

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Aproveitando o entusiamo dos seus apoiantes, apesar da oposição sensata de patrícios mais velhos, continua o seu discurso inflamado perante o Senado e procura aprovar uma moção contra os tribunos da plebe. «Se formos sensatos, acabaremos com o seu tribunato, que corrói o consulado e divide a cidade, que já não é apenas uma como costumava ser, mas que se dividiu de tal modo que não voltaremos a estar em harmonia e em comunhão, como 7 não acabaremos de fazer mal uns aos outros, lançando mutuamente a discórdia entre nós.» Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

Perante tal afronta, os tribunos abandonam a sessão e incitam a plebe à revolta. O Senado consegue apaziguar o povo, mas este exige que Coriolano se retrate publicamente. Os tribunos levantaram-se e disseram que, uma vez que o senado mostrava sensatez, o povo cederia em tudo o que fosse justo. Mas exortaram Márcio a falar em sua defesa relativamente ao seguinte: podia ele afirmar que não desejava a ruína da constituição e a desunião do povo, ao incitar o senado a desobedecer ao seu apelo e, no fim de tudo, ao promover a guerra civil, por bater nos edis e tratá-los de forma ultrajante no foro e por levar os cidadãos a pegar em armas? Ao afirmarem isto, ou queriam humilhar Márcio publicamente (caso ele fosse levado pelo medo a reverenciar a multidão, o que seria contrário à sua natureza) ou a virar a ira do povo contra ele (caso ele agisse de acordo com a sua natureza, mantivesse o seu orgulho e revelasse o seu carácter). Era precisamente isto que esperavam, pois tinham avaliado o homem correctamente. Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

Aconteceu o que se esperava que acontecesse, pois Coriolano não foi capaz de deixar de dizer o que pensava e, depois de muitos tumultos que o seu discurso provocara, as duas partes acabaram por concordar em fazer um julgamento a Coriolano. Acabaria por ser condenado, acusado de traição. É forçado ao exílio. Irado contra a sua cidade, Coriolano decide juntar-se aos Volscos e ao seu inimigo de sempre Tulo Ácio8 para atacar Roma. Mas havia um tratado de paz entre os dois povos e foi necessário criar um pretexto para reiniciar hostilidades, convencendo os Romanos de que os Volscos se preparavam para atacar. Os Volscos que estavam em Roma para participarem nuns jogos foram expulsos e, por isso, sentindo-se ultrajados, fizeram exigências e a guerra deflagrou. Os Volscos, conduzidos por Coriolano, pareciam imbatíveis. Quando Roma parecia perdida, depois de várias tentativas de paz falhadas, uma embaixada da mãe e da esposa, acompanhadas por um grupo de matronas patrícias, consegue convencer Coriolano a não atacar a cidade. Por amor e fidelidade à mãe, Coriolano aceita tréguas9. Acusado então de traição pelos Volscos, Coriolano teria sido morto em plena assembleia volsca, por homens a soldo de Tulo, impedindo assim a sua defesa, que eles temiam.

2.

As fontes

Coriolano, uma personagem histórico-lendária de Roma, interessou vários historiadores da Antiguidade. A história de Coriolano foi, na Antiguidade, contada por vários autores e a personagem foi citada amiúde com intenções éticas e políticas. Mas o mais curioso é que a figura do general romano nem sempre foi usada com os mesmos objectivos, sendo umas vezes evocada como exemplo de heroísmo positivo, outras vezes como protótipo de negatividade pela traição que assumira contra Roma. Nuno Simões Rodrigues, Introdução a Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano de Plutarco 7

Plutarco apresenta no seu livro as palavras do próprio Coriolano, contribuindo assim para uma descrição viva e realista da personagem. Não existe consenso em torno do segundo nome de Tulo. Na versão do texto de Plutarco que usámos ele é chamado de Ácio. Shakespeare chama-lhe Tulo Aufídio, o que coincide com outras edições do texto de Plutarco. Um outro pormenor interessante é verificarmos que na história de Tito Lívio, Tulo é chamado Ácio Túlio; e quando se narra o exílio de Coriolano entre o Volscos, dá-se a entender que Coriolano não tinha nenhum ódio especial por Tulo, parecendo até que os dois se não conheceriam antes.

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Disfrutou da hospitalidade de Ácio Tulio, que era o homem mais importante nesse tempo entre os Volscos e inimigo de Roma. Tito Lívio, Ab Vrbe Condita, (2,35) Plutarco apresenta esta iniciativa das mulheres como de inspiração divina e por isso os Romanos teriam construído um templo a Fortuna Feminina no ponto onde Coriolano e a mãe se terão encontrado. Este episódio pode também ser apresentado como representativo da “pietas” romana 9

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Cícero10 terá sido o autor romano mais antigo a escrever sobre Coriolano, na primeira metade do século I a.C., mencionando-o em vários textos e sempre de uma forma pouco favorável. Tito Lívio conta a sua vida no segundo livro da sua história de Roma11, escrito por volta de 25 a.C., assim como Dionísio de Halicarnasso, historiador e crítico literário grego da Ásia Menor, no texto Antiguidades Romanas (livros VI, VII e VIII), publicado a 7 a.C. Os três autores são portanto quase contemporâneos e todos do século I a.C. Cícero, por exemplo, o autor mais antigo conhecido a referir-se a Coriolano, tem-no fundamentalmente como o protótipo do traidor e a imagem que definiu no século I a.C. manteve-se durante muito tempo e como modelo para vários outros autores antigos. Já Tito Lívio apresenta Coriolano como um dos heróis do passado romano, ainda que com uma história infeliz: um grande general mas um estadista falhado… Seguindo a linha liviana, Dionísio de Halicarnasso, nas suas Antiguidades Romanas, publicadas em 7 a.C., introduz Coriolano igualmente como uma das figura proeminentes do passado remoto de Roma. Em síntese, podemos afirmar que o Coriolano de Dionísio é um homem cuja vida acaba de uma forma trágica porque foi incapaz de conciliar os seus ideais éticos e políticos com as concepções da plebe maioritária. Nuno Simões Rodrigues, Introdução a Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano de Plutarco

Mas o texto clássico mais conhecido sobre Coriolano é o de Plutarco, na sua obra Vidas Paralelas, já do início do século II, que terá sido inspirado nos textos anteriores, o de Tito Lívio e sobretudo o de Dionísio de Halicarnasso. Um dos aspectos que ressalta imediatamente no texto de Plutarco é a sua abordagem racional, que o “obriga” a apresentar versões diferentes da mesma história, se elas existirem, ou a procurar apresentar as razões que poderão explicar cada acontecimento12, outro é a forma como descreve com muitos pormenores e com grande vivacidade muitos episódios, como por exemplo as guerra contra os Volscos, os conflitos em Roma no Senado que conduzem ao julgamento e à expulsão de Coriolano, as lutas deste ao lado dos Volscos e os acontecimentos ao mesmo tempo na cidade de Roma. Utiliza mesmo muitas vezes descrições que, não parecendo essenciais para a narrativa, acrescentam enorme realismo e colorido ao texto. Ao verem as mulheres correrem pela cidade de um lado para o outro e os velhos irem como suplicantes aos templos chorar e rogar, e que por todo o lado faltava a coragem e planos para se salvarem, reconheceram que o povo tinha razão. Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

Plutarco recorre também frequentemente ao discurso directo, conseguindo dessa maneira uma caracterização psicológica dos personagens, como neste episódio final em que Coriolano cede perante a mãe, depois de um longo e comovente discurso desta. «Que me fizeste tu, mãe?» gritou Márcio. Ele levantou-a, apertou fortemente a sua mão direita e disse: «Ganhaste! E esta é uma vitória afortunada para a pátria, mas fatal para mim, pois só por ti me vou daqui, derrotado.» Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano 10

Quis clarior in Graecia Themistocle, quis potentior? qui cum imperator bello Persico seruitute Graeciam liberauisset propterque inuidiam in exsilium expulsus esset, ingratae patriae iniuriam non tulit, quam ferre debuit, fecit idem, quod xx annis ante apud nos fecerat Coriolanus. His adiutor contra patriam inuentus est nemo; itaque mortem sibi uterque consciuit. De Amicitia, Cícero (XII. 40)

Tentativa de tradução do latim do texto de Cícero: Quem foi na Grécia mais ilustre e mais poderoso que Temístocles? Embora como general salvasse a Grécia da servidão na guerra persa e tivesse sido exilado por inveja, não suportou a injustiça da pátria ingrata, como deveria, e fez o mesmo que, vinte anos antes, fizera Coriolano entre nós. Não foi encontrado ninguém como aliado deles contra a pátria: por isso, um e outro se suicidaram. Esta versão diferente em Cícero da morte de Coriolano é mais um elemento de mistério que mereceria porventura alguma reflexão. 11 Tito Lívio conta uma versão da história de Coriolano, que no essencial Plutarco respeita, ainda que menos pormenorizada e menos dramatizada, no livro 2 da sua obra Ab Vrbe Condita, secções [2,33] a [2,52]. Tito Lívio terá sido o primeiro autor a contar a história de vida de Coriolano de uma maneira relativamente exaustiva, ano a ano, consulado a consulado, de 493 a. C a 487 a. C., descrevendo: os feitos militares, as lutas na cidade e a oposição à plebe, o exílio de Roma, a aliança com os Volscos, o cerco a Roma e a intervenção das mulheres. 12 O episódio relatado por Plutarco da estátua da Fortuna Feminina, construída para agradecer a salvação da cidade pelas mulheres, e que teria falado por duas vezes para dizer “Mulheres, é caro aos deuses o que me dedicastes”, é paradigmático da tentativa do autor de explicar racionalmente aspectos da história mais inverosímeis.

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As batalhas, onde participa Márcio (Coriolano), contêm descrições de realismo que parecem de quem as tivesse vivenciado. A cidade foi assim tomada e a maioria ocupou-se do saque e da pilhagem de riquezas. Então, Márcio gritou indignado que era ofensivo que enquanto o cônsul e os seus concidadãos provavelmente caíam e lutavam contra os inimigos, eles se preocupavam em enriquecer ou que sob o pretexto do enriquecimento fugiam do perigo. Não foram muitos os que fizeram caso, mas ele levou consigo os voluntários e seguiu pelo caminho que percebeu ser aquele pelo qual o exército avançara. A maior parte das vezes, exortava e convidava os que o seguiam a não desistirem. Outras vezes, orava aos deuses para que não o abandonassem em combate, pois chegara a oportunidade de partilhar o perigo com os seus concidadãos. Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

Talvez por isso, há muitos episódios, por exemplo toda a sequência das batalhas contra os Volscos, descrita por Plutarco, que parecem ter sido respeitados quase integralmente pelo drama de Shakespeare, por servirem perfeitamente à construção dramática. Podemos afirmar que Plutarco consegue com os métodos que utiliza uma vivacidade quase cinematográfica. Foi com certeza influenciado pelos Poemas Homéricos - onde encontramos as mesmas técnicas geridas de uma forma magistral - em especial pela Ilíada, que ele conhecia bem, ao ponto de citar vários versos do poema no seu texto, para suportar com a autoridade de Homero a ideia de inspiração divina em acontecimentos que a lógica tem dificuldade em explicar. Quando, a propósito dos grandes feitos e dos imprevistos, ele (entenda-se Homero) afirma e proclama: “Então, Atena, a deusa de olhos garços, inspirou-o” Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

Plutarco descobre, relativamente aos autores anteriores que nos apresentam Coriolano, uma abordagem inovadora da personagem, aparecendo como um ser humano complexo, cujos conflitos interiores e exteriores a conduzem da glória à morte por traição. Plutarco adopta o que foi já reconhecido como uma «terceira atitude», apresentando a personagem como uma figura de grandes potencialidades e capaz de atitudes positivas, mas também detentora de um carácter que chega a ser misantrópico e egoísta. Uma das primeiras frases escritas por Plutarco nesta Vita testemunha a perspectiva do seu autor: Este mesmo homem deu testemunho dos que acreditam que a natureza, ainda que nobre e boa, se for desprovida de educação, produz muitas coisas boas, mas também más, tal como acontece na agricultura, quando um terreno fértil é abandonado sem cuidados (1,3). Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano O que Plutarco traz de novo à caracterização psicológica de Coriolano é a complexidade do ethos do herói, ao humanizar a sua personalidade. Nuno Simões Rodrigues, Introdução a Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano de Plutarco

Para Plutarco Coriolano é um herói corajoso, obstinado, até magnânimo e bem-intencionado, a quem contudo falta a sociabilidade e a erudição, que só a cultura, entendida no sentido grego (paideia), pode dar. Ainda que a sua indiferença para com os prazeres, os sofrimentos e as riquezas fosse admirada, chamando-se a isso moderação, justiça e coragem, detestavam a arrogância e ingratidão que ele mostrava nas relações com os seus concidadãos, pois eram próprias de um oligarca. Na verdade, de todas as coisas boas que a benevolência das Musas dispensa aos homens, nenhuma é como a natureza quando cultivada pela razão e pela educação, que assim se submete à moderação e rejeita os excessos. Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

À coragem, Coriolano associa a nobreza e o desprendimento. Das muitas riquezas que tinham angariado, como armas, cavalos e homens, ordenou-lhe que tomasse para si um décimo de cada, antes de distribuir pelos restantes. Além disso, pela sua coragem, presenteou-o com um cavalo equipado. Márcio

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avançou por entre a aprovação dos Romanos e disse que recebia o cavalo e que agradecia os elogios do magistrado, mas que dispensava o que acreditava ser um pagamento e não uma honra, e que se contentaria com a sua parte. tal como cada um dos restantes. «Mas peço um favor especial», disse, «e suplico para que mo concedam. Entre os Volscos havia um hóspede que era meu amigo, um homem justo e sensato. Ele é agora um prisioneiro e, antes rico e feliz, é agora um servo. Dos muitos males que agora o afligem, bastar-me-ia evitar-lhe um: o de ser vendido.» Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

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A ambivalência, as contradições e o mistério da personagem mantêm-se até ao fim, como pressentimos quando Plutarco nos relata que, depois da sua morte lhe foram concedidas honras militares entre Volscos e em Roma o luto de dez meses da tradição. O Coriolano de Plutarco já é portanto uma personagem complexa e contraditória e por isso capaz de despertar o fascínio em Shakespeare e noutros autores até à contemporaneidade. Plutarco retrata Coriolano com os matizes de um carácter trágico-patético, latente na essência da personagem, que acabarão por proporcionar a Shakespeare a matéria-prima para uma das suas obras fundamentais Nuno Simões Rodrigues, Introdução a Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano de Plutarco

Shakespeare transforma Coriolano numa personagem viva – tal é o objectivo maior do teatro – que nos fala e que se nos mostra como uma pessoa real, com sentimentos e com emoções, mas manteve-se bastante fiel ao texto de Plutarco, conservando muitos dos episódios do texto original, porque encaixavam perfeitamente no dramatismo da peça. Mas Shakespeare também não teve pejo em alterar alguns factos, sempre que tal servia o desenrolar da acção: assim por exemplo transforma duas revoltas dos plebeus separadas por alguns anos14 numa única revolta: o motim que abre o primeiro acto da peça é simultaneamente por pão e por maior participação dos plebeus no poder, e também, com certeza por razões de dramaturgia, decide colocar o Senado no Capitólio e a eleição de Márcio logo a seguir à guerra contra os Volscos, o que não acontece em Plutarco15. Shakespeare foi buscar esta história a Plutarco, mas transfigurou-a à luz da Inglaterra do seu tempo. Não nos apresentou a história de Coriolano como Plutarco a transmitiu, mas fez dela uma alegoria da luta pelo poder em tempos de mudança histórica. Perdeu-se em rigor histórico, ganhou-se em valor dramático. Manuel Resende, Notas de Tradução de Coriolano - encenação de Jorge Silva Melo - Ensemble de Actores

Teremos, para terminar a discussão das fontes sobre Coriolano, de sobrelevar que todas são bastante tardias, pois todos os textos são escritos vários séculos depois de Coriolano ter vivido. E mais de mil e quinhentos anos separam o texto de Plutarco da tragédia de Shakespeare. Estas condicionantes levam-nos a perceber melhor a falta de rigor histórico que poderemos esperar desses textos, mesmo do de Plutarco16. O autor formulou a sua própria interpretação do carácter do herói e impô-la à sua versão dos acontecimentos. Para o efeito, ele dispensa o rigor histórico, preocupando-se mais com a construção psicológica das personagens. Por isso mesmo não serão de estranhar as referências historicamente menos correctas nas Vidas, simplesmente porque Plutarco dispensou a precisão cronológica, em benefício de outros aspectos que considerou mais importantes. Nuno Simões Rodrigues, Introdução a Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano de Plutarco

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Este episódio de desprendimento descrito por Plutarco é respeitado integralmente do texto de Shakespeare. Em Plutarco, a revolta de que resulta a nomeação dos tribunos da plebe acontece antes da guerra com os Volscos e os tumultos pelo pão acontecem depois. 15 Em Plutarco, depois da guerra há motins populares pelo pão, Plutarco descreve vários episódios associados, nomeadamente uma expedição de Coriolano à terra dos Anciates para saquear mantimentos. Só depois disto, Márcio concorre a cônsul e é recusado. Como verificamos Shakespeare, mantendo o essencial da história, alterou alguns factos. 16 Vários autores ressaltam incongruências históricas e contradições na narrativa de Plutarco, de que poderemos talvez destacar a identificação de Coríolos como cidade volsca, quando na realidade seria latina. Isto fez com que inclusive alguns, como é o caso de Salmon, defendam a teoria de que Coriolano era volsco. Teria sido a vaidade romana a transformar o volsco Gaio Márcio num romano e, por conseguinte, a derrota dos Romanos a consequência dos feitos de um romano. Nuno Simões Rodrigues, Introdução a Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano de Plutarco 14

Curiosamente, esta teoria parece ir de encontro a interpretações contemporâneas de Coriolano, como referiremos. O epíteto Coriolanus, que também significa nascido em Coríolos, pode ser igualmente fonte de polémica. 6

Reconhecemos portanto que os textos de Plutarco e de outros autores sobre Coriolano deverão ter sido desgastados pela erosão da tradição oral e moldados pela cultura e pelos valores da Roma pré-imperial ou Imperial17. Teremos por isso de assumir que o livro de Plutarco, nossa principal fonte biográfica, é muito mais um escrito político e literário do que um tratado histórico, apesar das bases históricas que contém, da sua abordagem racional e da sua preocupação em descrever com detalhe todos os acontecimentos, como salientámos.

3.

Como justificar o interesse por uma personagem lendária de há dois mil e quinhentos anos? Coriolanus may be not as “interesting” as Hamlet, but it is, with Antony and Cleopatra, Shakespeare’s most assured artistic success. And probably more people have thought Hamlet a work of art because they found it interesting, than have found it interesting because it is a work of art. It is the Mona Lisa of literature. T.S. Elliot, Hamlet and His Problems, 1919

O que torna Coriolano numa tal enigmática figura? Como justificar a forma como atrai tantos autores, mesmo no presente? Tal interesse, que observamos manter-se ao longo dos séculos, poderá começar por justificar-se por a história de Roma, no fim da monarquia e nos primeiros séculos da República, ser uma história tão rica em acontecimentos e tão diversificada em soluções e modelos políticos. O período, que segundo o historiador romano cobre 364 anos desde a fundação da cidade, é rico em experiências políticas e militares. Foram estas experiências que ajudaram a dar forma a Roma, preparando-a para crescer por séculos até finalmente entrar em decadência. As principais instituições da República foram criadas nestes 364 anos. Também foi neste período que o exército romano atingiu um grau de disciplina, profissionalização e maturidade sem igual na Antiguidade. Fábio de Oliveira Ribeiro, Guerra e Política em Roma: anotações sobre "Ab Vrbe Condita Libri"

Com paciência, vamos encontrando autores que se apropriaram de Coriolano. Poderíamos começar por destacar, pela sua importância, Maquiavel, que escreveu no século XVI uma de suas principais obras sob a inspiração dos dez primeiros livros de Ab Vrbe Condita de Tito Lívio, que nos narram a história de Roma desde a fundação até meados do século IV. O objetivo desta obra de Maquiavel era de extrair lições sobre a política e sobre a arte da guerra, a partir da própria História de Roma, tal como esta foi relatada pelo Paduano. Os que estudarem o que foi o inicio de Roma, seus legisladores e a ordem pública que instituíram, não se espantarão de saber que tantas virtudes tenham sido ali cultivadas durante séculos, e que aquela cidade se tenha tornado centro de imenso império. Maquiavel, Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio

Para Maquiavel, utilizando Tito Lívio como fonte, Roma foi capaz de encontrar um modelo político dinâmico, alicerçado num esquema jurídico equilibrado, que garantia os direitos fundamentais e as liberdades das várias classes e uma capacidade de adaptação à mudança sem violência extrema, possibilitando assim a sobrevivência da cidade e posteriormente a construção do império. E Coriolano é usado por Maquiavel como um exemplo paradigmático do sistema político a funcionar, possibilitando aos plebeus afastar um cônsul que não aceitavam. De facto, Tito Lívio e a Roma que ele descreve têm servido para muitos estudos sobre o sistema político romano. Uma das primeiras grandes lições de política referida no livro de Tito Lívio ocorreu no Interregno, em que os senadores “...compreenderam que era preciso oferecer espontaneamente o que iriam perder de qualquer forma.” A arte de dissimular é essencial para aqueles que pretendem governar homens. Afinal, sempre foi e sempre será preciso se manter aparentemente no controle da situação, mesmo quando a mesma fugiu ao controlo. Minimizar uma vitória fazendo-a parecer uma concessão pode ser tão útil quanto transformar a derrota numa vitória aparente. Fábio de Oliveira Ribeiro, Guerra e Política em Roma: anotações sobre "Ab Urbe Condita Libri"

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Tal fenómeno pode evidenciar-se muito claramente na forma como Vergílio na Eneida se serviu da história de Roma para alicerçar um paralelo entre Eneias/Rómulo e o imperador Augusto, contribuindo para fortalecer a convicção da sua essência divina, como herdeiro de Vénus e de Marte, mãe de Eneias e pai de Rómulo respectivamente.

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Era sobretudo esta arte da dissimulação que Coriolano recusava. Recusava-a porque não aceitava fingir ser o que não era. Coriolano permite assim hoje representar de uma forma acutilante o conflito universal entre a integridade pessoal e a necessidade de popularidade de quem aspira a ser líder. E que actual tal conflito se nos apresenta num mundo de democracia formal, tantas vezes esvaziada de princípios, onde a honra se ajoelha perante a necessidade de conquistar votos! Roma era então uma cidade cheia de crises e de contradições. Havia duas classes numa tensão permanente, o que provocava mudanças na relação de forças e no sistema político que a suportava. O crescimento territorial e as transformações políticas não foram capazes de resolver as disputas entre patrícios e plebeus. A cada iniciativa igualitária dos plebeus, a reação patrícia fazia a cidade retornar à sua tradição de predominância de uma classe sobre outra. Coriolano representa este caldo de transformação. Terá sido essa efervescência politica em Roma, no tempo de Coriolano, uma das condicionantes que atraiu Shakespeare, que pretendia com a peça fazer o paralelo com a Inglaterra do seu tempo, em que ocorriam revoltas violentas contra a apropriação de terras das comunidades, conhecidas como as Revoltas das Terras Médias (Midlands Uprising). Lendo a tragédia de Shakespeare verificamos imediatamente que ela contém um forte contorno político. It is, arguably, Shakespeare’s most political work and as such, has been used as a tool for political propaganda Laura M. Nelson , Appropriating Shakespeare: Coriolanus as 20th Century Propaganda

Assiste-se durante toda a peça a um contexto de luta acesa de classes. Este discurso de um cidadão romano, durante a revolta popular que abre logo o 1º acto, é esclarecedor. Cidadão – Bons cidadãos são os patrícios. A nós contam-nos como pobres cidadãos. O que sobra aos de cima já nos fartava a nós. Se quisessem ceder-nos os sobejos antes de se estragarem, ainda podíamos pensar que nos tratavam com humanidade. Mas somos-lhes demasiado caros: a penúria que nos consome, o estendal da nossa miséria, é o inventário onde assentam a sua fartura; o nosso sofrimento é o lucro deles. Tiremos desforço com estes fueiros antes que fiquemos magros como espetos. Que os deuses sabem que digo isto por fome de pão e não por sede de vingança. (Acto I, Cena I)

Coriolano é ele próprio uma amálgama de contradições: corajoso, leal, dedicado e fiel a Roma, é ao mesmo tempo avesso às transformações que diminuem o poder dos patrícios, mas, mesmo nessa sua tomada de posição conservadora, muitas vezes ressalta sobretudo uma oposição à mentira e à demagogia e à política feita de enganos e de traições. Mas como entender também o fascínio de Brecht pela figura de Coriolano? À primeira vista, uma leitura simplista do enredo, centrado numa figura militarista e aristocrática, pareceria tornar essa atracção difícil. Mas de facto Brecht trabalhou numa versão de Coriolano nos últimos anos da sua vida, em Berlim, com o Berliner Ensemble. A nossa incompreensão poderá recrudescer, sabendo que o Coriolano de Shakespeare foi uma peça chave na propaganda nazi durante dos anos da Reichskulturkammer de Goebbels. Coriolanus’s actual ambivalence about the politics it stages, its willingness to air each side’s case, made it suitable for appropriation and, via excision and addition, retooling into propaganda. Coriolanus, The New Cambridge Shakespeare. Introdução por Lee Bliss.

Por ser uma personagem complexa e contraditória, Coriolano, na sua ambivalência, permite leituras diversas, o que possibilitou o sucesso da peça, encenada em todas as épocas, e a exaltação de valores e de ideologias muito diferentes. A versão brechtiana introduziu mudanças na encenação, com o intuito de mudar o foco para os conflitos sociais e políticos que motivam a história. Brecht pretenderia também estabelecer um paralelo entre as revoltas populares na Inglaterra de Shakespeare e as revoltas que ele presenciava na RDA e que culminaram em 17 de Junho de 1953 numa grande manifestação contra a fome. Brecht’s Coriolan attacked the rulers that mistreated the people and forwarded the idea that the masses needed to remove corrupt leaders and promote their own agenda. The events of June 17 closely mirror the events of the Midlands Revolt in England in 1607….

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Scholars speculate that Plutarch, Titus Livius and Menenius Agrippa were identified as sources for the play to hide Shakespeare’s part in the riots… Brecht also downplayed his role in the June 17 events to prevent exposure to the Soviets. Laura M. Nelson , Appropriating Shakespeare: Coriolanus as 20th Century Propaganda

Assim a mudança mais evidente na versão de Brecht é a que ele introduz no papel desempenhado pelos cidadãos da plebe. São mais racionais, mais esclarecidos e vão ser eles que no fim lutam por Roma contra Coriolano. Mas Brecht tem o cuidado de não fazer de Coriolano uma personagem nefasta. Pelo contrário conserva a sua dignidade, acentua a sua cegueira e até a sua ingenuidade política. Em vez de ser visto como um fanático anti-democrata, como um aristocrata contra o povo, pode sentir-se quase como um esquerdista radical e ingénuo que se deixa levar pela paixão. A tragédia de Coriolano é essa: é substituído pelo povo. No senado, na cena final, um pedido de luto nacional pela sua morte é rejeitado. “Rejeitado” é a última palavra da peça. Coriolano não é a tragédia de um grande homem indispensável, para Brecht é a tragédia de um povo que tem um herói contra si. Júlia Correia, O interesse de B, Brecht por W. Shakespeare

Outra questão porventura presente no Coriolano de Brecht, na opinião de Júlia Correia, é a crítica implícita ao culto da personalidade do herói, que acabaria por justificar o seu banimento. Para alguns autores contemporâneos que interpretaram Coriolano é mesmo discutível dizer que Coriolano está contra o povo. Para esses autores, os tribunos da plebe podem ser vistos como condutores oportunistas de uma horda popular manipulável, e não como verdadeiros lideres populares, como se evidencia no filme muito recente de Coriolano de Ralph Fiennes (2012). Quer dizer então que Coriolano está contra o povo? Que povo? Os “plebeus” representados pelos dois tribunos, Bruto e Sicínio, não são trabalhadores explorados, mas sim uma horda lumpemproletária, a ralé sustentada pelo Estado; e os dois tribunos são manipuladores protofascistas dessa horda – citando Kane (cidadão do filme de Welles), eles falam pelo povo comum para que o pobre povo comum não fale por si mesmo. Se procurarmos o que representa “povo”, certamente o 18 encontraremos entre os volscos . Coriolano é uma máquina de matar, um “soldado perfeito”, e exatamente por ser um “órgão sem um corpo” é que não é fiel à sua classe e pode facilmente se colocar a serviço dos oprimidos – como ficou claro com Che Guevara, um revolucionário também tem de ser uma “máquina de matar”: “o ódio é um elemento de luta; o ódio implacável ao inimigo que nos impele para além das limitações naturais do ser humano e nos transforma em uma efetiva, violenta, fria e seletiva máquina de matar. Nossos soldados têm de ser assim; um povo sem ódio não pode derrotar um inimigo brutal.” Slavoj Zizek, Coriolano nosso contemporâneo

O Coriolano de Plutarco, de Shakespeare e mesmo de muitos autores contemporâneos continuam a emocionarnos porque são obras que para além de nos contarem uma história histórica-ficcionada rica em acontecimentos nos revelam em Coriolano, com as suas contradições e múltiplas dimensões, a complexidade da natureza humana. Para testar uma verdadeira obra de arte, basta perguntarmos como ela sobrevive à descontextualização, à transposição para um novo contexto. Talvez a melhor maneira de definir um clássico seja dizendo que ele funciona como os olhos de Deus em uma imagem religiosa: não importa a nossa posição no recinto, a imagem sempre parece estar olhando para nós. Slavoj Zizek, Coriolano nosso contemporâneo

E continuam a emocionar-nos também porque, quer Plutarco quer Shakespeare, foram capazes de construir, em torno de uma história fascinante e universal, objectos estéticos que nos deslumbram. Por isso Coriolano pode ser tão inspirador e tão desafiador para os criadores contemporâneos, na visão de contemporaneidade de Giorgio Agamben.

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Seria interessante discutir esta interpretação ligada à hipótese defendida por Salmon de que Coriolano seria volsco. 9

Pertence realmente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com ele, nem se adapta às suas exigências e é por isso, nesse sentido, inactual. Mas, justamente por isso, a partir do seu afastamento e do seu anacronismo, é capaz de perceber e de captar o seu tempo melhor do que os outros. ... A contemporaneidade é, assim, uma relação singular com o nosso próprio tempo, que a ele adere e dele se distancia em simultâneo. ... Os que coincidem demasiado plenamente com a época, que concordam perfeitamente com ela, não são contemporâneos, porque, justamente por isso, não conseguem vê-la.

Giorgio Agamben, em ensaio O que é o Contemporâneo - Nudez

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A riqueza psicológica de Coriolano, a sua ambiguidade, as contradições pessoais, sociais, culturais e políticas em que se move propiciam terreno fértil para a produção de personagens que rompem com o seu tempo, que não “coincidem demasiado com a época em que são criadas”. Coriolano parece conter todos os ingredientes para poder estar à frente deste e de todos os tempos e assim poder ser apropriado pelos contemporâneos de todas as épocas. Os Coriolanos, que tantos autores moldaram ao longo de séculos, como metáforas dos acontecimentos dos seu tempo, desde Shakespeare a Brecht, a Ralph Fiennes ou à companhia Beijing People's Art Theatre de Pequim, parecem ser disso prova suficiente.

4.

Os valores gregos e romanos na figura de Coriolano Dulce et decorum pro pátria mori Horácio, Odes (II,2,13)

Foi em Shakespeare que a possível ligação de Coriolano à epopeia homérica se tornou evidente para nós. Tendo lido a Ilíada há pouco tempo, as cenas vivas de batalhas em palco, na encenação recente de Coriolano, que vimos no TNSJ, recordaram-nos a vivacidade dos combates no poema homérico. Pareceu-nos que estávamos com Coriolano, em muitos aspectos, na presença de um guerreiro primitivo da Ilíada, de um Diomedes, de um Ajax ou de um Aquiles. E ficámos felizes ao confirmar que outros pensavam o mesmo: O carácter de Coriolano parece ter sido igualmente moldado sobre os aspectos marciais e irascíveis do Aquiles épico, de uma forma que acaba por contribuir para a justificação do seu desaire como estadista. Efectivamente, a ira de Coriolano assemelha-se em muito ao amuo do herói homérico. Tal como as virtudes do arquetípico Aquiles são uma desgraça para os seus inimigos, também Coriolano se revela um adversário invencível para os inimigos de Roma e posteriormente para a própria cidade. Nuno Simões Rodrigues, Introdução a Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano de Plutarco

Este lado guerreiro primitivo também pode ser intuído em Plutarco. Como situar então Coriolano no contexto homérico? Tal como os guerreiros da Ilíada, é no campo de batalha que Coriolano busca a excelência, a “arete” dos Gregos. Mas Coriolano, ao contrário dos guerreiros gregos, nunca se preocupa com o prémio. Os prémios, que para os Gregos eram o reconhecimento pelos outros dessa excelência, é desdenhado por Coriolano. Plutarco frisa por mais de uma vez o desdém de Coriolano pelos prémios, como naquele episódio acima transcrito, onde o general Comínio pretende premiá-lo pela sua valentia contra os Volscos, oferecendo-lhe um décimo do saque. E Coriolano orgulha-se mais uma vez do seu desprendimento quando se apresenta a Tulo: “Não ganhei nenhum outro prémio daqueles muitos trabalhos e perigos senão o nome, marca da minha inimizade para convosco.” Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

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A palavra “contemporâneo” é hoje perigosa, um falso amigo, pois pode ser usada para significar coisas muito diferentes. Identificamos pelo menos três significados muito distintos: 1. o que é do nosso tempo; 2. uma atitude artística de ruptura das fundações da arte, tal como ela era até ao modernismo; 3. o significado que lhe é dado por Agamben de estar à frente do seu tempo. É por isso necessário em qualquer texto clarificar qual o sentido em que a palavra “contemporâneo” se utiliza. Aqui estamos a usá-la com o sentido que Agamben lhe atribui. 10

Ao contrário de Aquiles que se revolta (a cólera funesta de Aquiles) quando Agamémnon lhe retira o prémio, prova da “time”, Coriolano revolta-se quando os tribunos lhe chamam traidor de Roma: a fidelidade (fides) a Roma é para ele o valor maior. Mesmo o facto de Coriolano se revoltar contra Roma pode ser interpretado como uma defesa da “fides”. De facto, como afirma M.H. Rocha Pereira o seu livro Estudos de Cultura Clássica II “Esta fides é um juramento que compromete ambas (sublinhado nosso) as partes na observância de um pacto bem firme”, como ela comprova com o verso de Énio nos Anais “Recebe e dá a fides e forja uma aliança bem firme”20. A mesma “fides”, que justifica a heroicidade de Coriolano, pode assim explicar a sua revolta, por Roma a ter quebrado. Shakespeare acentua esse lado de guerreiro primitivo, ao afirmar no seu texto que Coriolano é um soldado e não valoriza a palavra, sobretudo a palavra adornada, persuasiva. A determinada altura, perante um dos tribunos da plebe, Coriolano afirma “Contudo, eu, que os golpes não abalam, de palavras fujo. Não me adulastes; logo, não feristes.” Curiosamente, esta ideia é contrariada mais do que uma vez no texto de Plutarco, como quando descreve a apresentação de Coriolano perante os Volscos. Assim que foi chamado, Márcio discursou para a multidão, revelando-se não menos capaz com as palavras [do que na guerra], quer pela sua inteligência quer pela notável coragem. Por isso, foi designado juntamente com Tulo comandante plenipotenciário para a guerra. Plutarco, Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano

A personalidade de Coriolano é em Plutarco e Shakespeare profundamente marcada pela figura austera da mãe, que também pode ser lida como um símbolo corporizado da sua fidelidade aos valores romanos. Muitas foram então as batalhas e as guerras levadas a cabo pelos Romanos. Mas não houve uma sequer de que ele regressasse sem uma coroa ou um outro prémio honroso. Enquanto para outros a meta a alcançar era a excelência, para ele a meta era a alegria da mãe. Esta, quando o via coroado ou ouvia os aplausos que lhe dirigiam, abraçava-o e chorava de alegria, o que ele considerava o maior valor e o enchia de felicidade. Ibidem

Em Shakespeare, este guerreiro indomável e desinteressado pelos prémios, que Plutarco nos apresenta, assume carácter de relevo21. As modificações que podemos identificar na história de Coriolano na versão de

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.Accipe daque fidem foedusque feri bene firmum. Coriolano revela ao longo de toda a peça de Shakespeare uma coragem sem limites e uma atracção física pelo combate, em particular contra o seu grande adversário volsco Tulo. Coriolano – Meio com meio andasse o mundo às turras/ E ele do meu lado, eu desertara/ Só para o combater. Ele é leão/ Que de caçar me orgulho (Acto I, cena I) Várias vezes na peça, Coriolano frisa com determinação o desprezo pelos prémios em troca da sua valentia e da dedicação a Roma. Quando Comínio, chefe das tropas romanas lhe diz para escolher o que pretende do saque, depois da vitória sobre os Volscos ele responde: Coriolano – Agradeço, general./ Não consigo porém que meu peito aceite/ Paga pela minha espada; recuso isso/ E só pretendo a parte que pertence/ A todos que assistiram na empresa (Acto I, Cena IX) Perante a oferta de um lugar de cônsul tenta desde o início a escusa, De notar que aqui a história diverge de Plutarco, onde esta aversão e recusa do lugar de cônsul não aparece. Coriolano - Querida mãe,/ Antes quero servi-los a meu modo / Que ao seu os comandar. (Acto II, Cena I) Sendo forçado a aceitar o lugar, o Coriolano de Shakespeare mostra o seu desconforto, como noutras passagens da peça, perante elogios públicos: Coriolano - Perdoai-me/ Mas antes as minhas feridas se abrissem de novo/ Do que ouvir com as fiz. (Acto II, Cena II) Na peça, mais uma vez fugindo ao texto de Plutarco, Coriolano recusa mostrar as feridas ao povo, como era costume para provar a heroicidade: Coriolano - Peço-vos por tudo,/ Poupai-me a tal costume pois não posso/ A túnica vestir e descoberto/ Instar a que me dêem seus sufrágios/ Por mor das minhas feridas. Consenti/ Que o não faça. (Acto II, Cena II) Orgulhoso , Coriolano recusa-se a pedir desculpa aos tribunos da plebe. Menénio - Pedir desculpa pelo que fizeste. Coriolano – A eles? Não consigo fazê-lo ante os deuses./ A eles o farei? (Acto III, Cena II) Finalmente, renitente, aceita usar as “palavras bastardas”, as “falas de cor e coladas só à língua”, como lhe aconselhara a mãe e dispõese a vestir a “alma de rameira” que a mãe lhe oferece. Coriolano — Pronto! Tem de ser!/ Some-te meu carácter! Que entre em mim/ Uma alma de rameira!(Acto III, Cena II) No entanto, enquanto a mãe tem uma percepção política, em Shakespeare Coriolano é quase só um homem de acção, sem ambições de lugares políticos. Depois de ter encolerizado os tribunos da plebe e arriscado perder o lugar de cônsul, que lhe fora prometido, a mãe procura fazê-lo reconsiderar. Coriolano - Porque me quereis mais brando? /Quereis que seja / Falso ao que sou? Volúmnia - Senhor, senhor./ O teu poder deveras ter firmado/ Antes de o esbanjar. (Acto III, Cena II) 21

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Shakespeare relativamente ao texto de Plutarco parecem ter sido pensadas para intensificar o efeito dramático em torno do protagonista. Fazendo o paralelo de Coriolano com Aquiles, poderíamos também estabelecer uma relação entre Tulo e Heitor e entre Volúmnia e a deusa Tétis. Parece haver assim na lenda de Coriolano e na tragédia de Shakespeare a revisitação da epopeia. Seguindo a análise da influência épica no desenho do perfil de Coriolano, Tulo é uma espécie de Heitor … Volúmnia, alter-ego da Tétis homérica, é uma metáfora da própria Urbe Nuno Simões Rodrigues, Introdução a Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano de Plutarco

Parece-nos no entanto, em face do que apresentámos, que estamos na presença de um guerreiro distinto do herói grego. Esta diferença traduzirá a distância entre o que significava ser grego ou ser romano na Antiguidade. Enquanto os Gregos prezavam sobretudo o indivíduo e a liberdade individual, e portanto valorizavam a sua imagem perante a comunidade (“time”), os Romanos assumem como valor supremo a fidelidade à pátria, o indivíduo sempre ao serviço de Roma e do Império, que o verso de Horácio, que usámos como epígrafe deste capítulo, tão bem sintetiza e que já Tito Lívio sintetizara: É virtude romana agir e sofrer. Tito Lívio, Ab Vrbe Condita

A “arete”, como valor central da aristocracia grega, parece assim ter sido transformada na “fides” romana22.

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Em rigor poder-se-ia afirmar que o valor romano mais identificável com a “arete” grega é a “virtus”. É verdade, mas aqui apenas pretendemos relacionar os dois valores que nos parecem ser o leitmotiv dos heróis gregos e romanos respectivamente.

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5.

Bibliografia 1. AGAMBEN, Giorgio, Nudez, tradução de Miguel Serras Pereira, Relógio de Água, 2010 2. BLISS, Lee, Coriolanus-The New Cambridge Shakespeare. Edited by Lee Bliss, Cambridge University Press, 2000

3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17.

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