A CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO PARA A FORMAÇÃO DO CIDADÃO: LIBERDADE, VIOLÊNCIA E O RECONHECIMENTO COMO FUNDAMENTO DA ÉTICA

July 16, 2017 | Autor: Felipe Bambirra | Categoria: Bullying, Filosofia do Direito, Educação, Responsabilidade Civil
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A CONTRIBUIÇÃO DO DIREITO PARA A FORMAÇÃO DO CIDADÃO: LIBERDADE, VIOLÊNCIA E O RECONHECIMENTO COMO FUNDAMENTO DA ÉTICA

Felipe Magalhães Bambirra 1 Resumo: No presente artigo refletimos sobre o fenômeno da violência física e simbólica na escola, e como o Direito poderia auxiliar na compreensão da liberdade e na consequente limitação das formas de violência escolar. Recorreremos, para tanto, ao auxílio da compreensão da liberdade, do Direito e da necessidade do reconhecimento. O caminho trilhado pelo Direito no Ocidente é o da superação da violência, inicialmente entendida como violência física, mas, contemporaneamente, atenta-se também para a violência simbólica, e, em especial, aos impactos que podem gerar no desenvolvimento da pessoa. SUMÁRIO: I. Introdução; II. A Violência Física e Simbólica na escola; III. As facetas da Liberdade; VI. A Ética e o Direito; V. Desafios contemporâneos à Educação e ao Direito; VI. Referências bibliográficas.

I. INTRODUÇÃO Em tenra idade já nos é ensinado duas regras de ouro, que “a minha liberdade termina onde começa a do outro”, ou, ainda, que “não devo fazer com o outro aquilo que não gostaria que fizessem comigo”. Ambos os adágios provêm as bases racionais da justificativa à pergunta: “por que não posso fazer isso?”. Afinal, a mera resposta “porque não” não é satisfatória

Professor substituto, Mestre e doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Bolsista da CAPES/REUNI. Representante discente no Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Vice-presidente para a região sudeste da Federação Nacional dos Pós-Graduandos em Direito (FEPODI). E-mail: [email protected] 1

face à curiosidade das crianças. Além disso, uma tal resposta reveste-se de autoritarismo e não é satisfatória, sendo capaz também de gerar duas consequências nefastas, conforme o contexto: a criança aceita o argumento de autoridade sem questioná-lo, o que é indesejável na medida em que tende a formar uma consciência a-crítica; ou tem-se uma série infinita de “por ques”, sem se chegar a qualquer conclusão edificante. Certamente o reconhecimento do outro como igual a mim e o seu corolário, o respeito ao próximo, são fundamentos da Ética, e relacionam-se diretamente ao que se tem considerado como a limitação da liberdade individual em face do outro e da coletividade. O ambiente escolar, dos primeiros anos até o fim do segundo grau, apesar de ser o locus da educação para o crescimento e formação de pessoas e cidadãos, em razão de múltiplos fatores, não raras vezes é também um ambiente hostil. Além de espelhar a violência da sociedade em que se inserem, as escolas são também potenciais geradoras de violência, pois acolhem indivíduos em formação, com uma pré-compreensão a ser posta defronte outras, valores a serem questionados, e num momento que a criança e o adolescente experimentam transformações sociais e biológicas. Sabemos que a citada regra de ouro da Ética não pode ser assimilada e compreendida senão quando vivida e experimentada. E essa experiência se realiza diante do outro, com todas as semelhanças e diferenças que ele possui. A violência, nesse contexto, é sempre uma possibilidade, que pode aparece de múltiplas formas, desde a violência física, a mais crua, mas, também a violência simbólica, que ocorre por uma ação deliberada, a exemplo de se ressaltar as diferenças de modo negativo, quanto também por certa omissão, ao se ignorar o outro, excluindo de grupos e brincadeiras. A violência física continua sendo parte s de nossa sociedade, não só nas manchetes de jornais que invadem às casas diariamente, mas é um componente cotidiano da vida, muitas vezes despercebido – e onde a

violência é ainda não notada tende a ser mais perigosa. Só no final do último século a violência física deixou de fazer parte dos recursos “pedagógicos” à disposição dos educadores, a exemplo da famosa palmatória e outras punições disciplinares, como ajoelhar-se no milho, ainda na década de 70 comum nas escolas, sobretudo católicas. No seio da família também persistem agressões – seja como instrumento de “punição educativa” em relação aos filhos, ou como outras espécies de violência doméstica 2. Empiricamente é possível observar avanços em direção à limitação da violência física, principalmente porque se trata de uma violência visível, palpável, e, uma vez considerada indesejável, torna-se mais simples de ser debelada. A violência simbólica, porém, é mais sofisticada, não salta aos olhos imediatamente, e pode se esconder em todos os meandros da linguagem: olhares, risadas e também no silêncio. O fenômeno da violência é parte constitutiva do desenvolvimento da consciência, pois é uma forma de auto-afirmação, de se dizer o que se é, na medida em que se diz o que não se é. Surge a necessidade de se afirmar aquilo que se é a partir da negação do diferente, recorrendo-se a violência para diminuí-lo e se auto promover. Ocorre que, nesse processo, o outro, na medida em que é negado, sofre prejuízos consideráveis, talvez traumas que levará para toda a vida.

Causou grande polêmica o envio pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 14 de julho de 2010, do Projeto de Lei n. 2.654/2003, de autoria da então Deputada Federal Maria do Rosário. O projeto ficou conhecido como “Lei da Palmada”, pois visa tornar proibida a aplicação de qualquer espécie de castigo corporal às crianças, mesmo os moderados, por qualquer pessoa, ainda que parentes ou pais. O argumento que causou maior discussão não foi uma suposta “interferência do Estado” na educação das crianças, posto que isso não é nenhuma novidade, mas a falta de condições de educar das famílias, que chegam ao ponto de não ter qualquer autoridade em relação aos filhos. Os problemas que afloraram e foram identificados – como principais queixas de especialistas – no processo são múltiplos, como a falta de tempo para conviver com as crianças, uma vez que tanto o homem quanto a mulher costumam trabalhar a maior parte do dia, entregando, consequentemente, a terceiros a educação; a incapacidade de saber o momento adequado de dizer não em relação a condutas indesejadas, mas também, sobretudo, a dificuldade de incentivar a criança e o adolescente a enfrentar os desafios que a vida colocam. V., por exemplo, CALLIGARIS, Contardo. Educar Frustando? In: Folha de São Paulo, 16 de dezembro de 2010, p. E10, em que o autor retoma o tema para criticar a idéia de que é a frustração que promove a educação. 2

O objetivo do presente artigo é refletir sobre o fenômeno da violência física e simbólica na escola, e como o Direito poderia auxiliar na compreensão da liberdade e na consequente limitação das formas de violência escolar. Para tanto, no tópico II abordaremos o problema da violência no ambiente escolar; no tópico III buscaremos fornecer uma compreensão do que seja a liberdade contemporaneamente, sob o prisma filosófico-jurídico; no tópico IV trataremos da relação entre Direito, Ética e Liberdade; e, por fim, no tópico V apresentaremos as conclusões de nossa reflexão. Recorreremos, para tanto, ao auxílio da compreensão da liberdade e do Direito em dois pensadores, G.W.F HEGEL e JOAQUIM CARLOS SALGADO. II – A Violência Simbólica na Escola A violência simbólica nas escolas ganhou significativa relevância nos últimos anos, e vem sendo tratada, sobretudo, com o nome de Bullying 3, uma palavra de derivada de bully (valentão, briguento), de origem inglesa, e que não encontra tradução adequada para o Português. O grau de exclusão em determinados locais chegou a ser tão alto que, combinado com o fácil acesso às armas, liga-se diretamente a catástrofes ocorridas em escolas, a exemplo das americanas, que veio a se repetir em nosso país: adolescentes de várias idades que entraram em sala de aula e outros ambientes

Segundo a literatura especializada, “o bullying constitui-se em uma subcategoria bem delimitada de agressão ou comportamento agressivo, caracterizado pela repetitividade e assimetria de forças”, com a intenção de “causar dano físico ou moral em um ou mais estudantes que são mais fracos e incapazes de se defenderem. A provocação é repetida e tem um caráter degradante e ofensivo, sendo mantida apesar da emissão de sinais claros de oposição e desagrado por parte do alvo”. Afirma-se, ainda, que “o bullying caracteriza-se por atos repetidos de opressão, tirania, agressão e dominação de pessoas ou grupos sobre outras pessoas ou grupos, subjugados pela força dos primeiros” As agressões podem ser físicas, mas também “verbais, com a utilização de apelidos, insultos, comentários racistas, homofóbicos, de diferenças religiosas, físicas, econômico-sociais, culturais, morais e políticas. Podem também assumir uma forma mais indireta, como a exclusão social ou o isolamento”, cf. BANDEIRA, Cláudia de Moraes; HUTZ, Claudio Simon. As implicações do bullying na auto-estima de Adolescentes. In: Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, V. 14, N. 1, Janeiro/Junho de 2010, p. 131-138, p. 132. 3

promovendo uma chacina, e, ao final, suicidam-se. Mas esses fatos são apenas o apogeu da crise. A questão tem sido tratada de modo adequado pela Medicina e Psicologia, como um real problema de saúde pública, cujos esforços envidados em sua solução poderão render, no futuro, um excepcional aumento na qualidade de vida e, inclusive, diminuir outros problemas sociais conexos 4. O bullying é um fenômeno mundial, e, pode-se dizer, esteve durante muito tempo presente no ambiente escolar, sendo desconsiderado pelos educadores ou, muitas vezes, até considerado normal. Os dados de várias pesquisas, realizadas em muitos países, dependem da definição de bullying, de difícil caracterização. Todavia, segundo TRAUTMANN, numa pesquisa realizada em 2004 envolvendo 113.200 estudantes de 25 países diferentes, mostrou que o os índices de alunos que praticaram bullying variava de 9%, na Suécia, a 54% na Lituânia. A média de vítimas no universo pesquisado foi de 11%, e de agressores 10% 5. No Brasil recentemente também foi realizado um estudo transversal, em todos os Estados da Federação, incluso o Distrito Federal. A pesquisa abrangeu um universo de 1.453 escolas brasileiras, alcançando 2.175 turmas do 9º ano do ensino fundamental, resultando num universo de pesquisa de mais de 70 mil estudantes, distribuídos em escolas públicas e privadas. Os resultados são aqui também alarmantes. Cerca de 5,4% dos estudantes reportaram ter sofrido bullying sempre ou quase sempre nos últimos 30 dias; 25,4% foram raramente ou às vezes vítima de bullying. O 4 LOPES, A. A. N., Bullying - Comportamento agressivo entre estudantes. Jornal de Pediatria, 81(5), 164-172, apud BANDEIRA, HUTZ, As implicações do bullying, cit., in: op. cit., p. 132.

TRAUMANN, Alberto M. Maltrato entre pares o “Bullying”: una visión actual. In: Revista Chilena de Pediatria. V. 79. N. 1. Enero-Feberero, p. 13-20, 2008, p. 14. V., também, Olweus D. Bullying at school: What we know and what we can do. Blackwell Publishing, 1993; e NANSEL et all. Cross-national consistency in the relationship betweenbullying behaviors and psychosocial adjustment. Archives of Pediatrics and Adolescent Medicine 2004;158: 7306. 5

local com maior índice de bullying foi Belo Horizonte, e não houve diferenças quantitativas em relação às escolas públicas e privadas 6. Os índices são elevados e evidenciam um problema sério e crônico. Não é nosso objetivo, aqui, estabelecer um perfil psicológico de agressores e vítimas, e apresentar um rol de ações a serem implementadas em caso de ocorrência de bullying. A pretensão é buscar elaborar apontamentos sobre o tema a partir da ótica do Direito, e, mais especificamente, da Filosofia do Direito. Afinal, a questão da liberdade deita as suas raízes na origem do Direito e do agir perante o outro. Ao final, faremos algumas propostas para atacar o problema, essas sim, podendo ser entendidas como profilaxia. III. AS FACETAS DA LIBERDADE Liberdade é um conceito complexo, em regra associado à possibilidade de se fazer aquilo que se quer. Portanto, aquele que faz o deseja, que pode realizar a sua vontade, é livre, e mais livre será quanto mais puder fazer o que tem vontade. A partir dessa definição abstrata, poderia-se fazer várias afirmações, que demonstram a plurivocidade do conceito: um adulto é mais livre que uma criança, pois pode fazer aquilo que quer sem pedir permissão; por outro lado, uma criança seria mais livre que os seus pais, pois tem à sua disposição todo o tempo, sem precisar de preocupar com o trabalho e as contas para pagar. Essa caracterização de liberdade, como se pode notar, evidentemente é simplória, apesar de ser comumente

ensinada

dessa

maneira.

Levando

a

sério

o

conceito

apresentado, logo se chega à conclusão alcançada por muitos: ninguém é realmente livre, na medida em que ninguém pode fazer tudo aquilo que quer na hora que deseja, ou seja, realizar a sua vontade removendo todos os MALTA, Deborah Carvalho et al . Bullying nas escolas brasileiras: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) - 2009. Ciência e saúde coletiva, Rio de Disponível em Janeiro, 2010. . Acessado em 19 de dezembro de 2010. doi: 10.1590/S1413-81232010000800011. 6

obstáculos que se apresentam. Imediatamente, conclui-se que a liberdade não existe, ao menos no mundo humano. É a partir de raciocínios análogos ao apresentado que o Direito foi, durante muito tempo, considerado um limitador da liberdade humana, limites esses – diriam os contratualistas iluministas, a exemplo de Hobbes e Locke – imprescindíveis à convivência em sociedade. Seriam indispensáveis, portanto, para se refrear os instintos ou a maldade humana, intrínsecos a nós. Examinando o desenvolvimento do conceito de liberdade na consciência – mais sob o prisma de uma consciência histórica que individual, é verdade – HEGEL 7 notou que essa liberdade abstrata é apenas um momento da liberdade, que, ao longo da história, foi se complexificando. Um momento, porém, necessário, ou seja, constitutivo do próprio desdobramento da liberdade. A liberdade é alcançada quando se reconhece que o outro é, em sua essência, em tudo igual a mim, apesar de suas especificidades – no caso, acidentais. E, consequentemente, a ação humana tem que ser pensada não somente nos limites da categoria do eu quero, mas também considerando o querer do outro, um nós queremos. Esse patamar de liberdade, em que passa a considerar a si um eu que é um nós, apesar de nos parecer evidente, não foi plenamente reconhecida até antes da Revolução Francesa. As diferenças de pertencimento às famílias ou a determinados locais, a cor, a religião e vários outros aspectos do ser-humano eram apontados como diferenças essenciais, ou seja, capaz de levar uma diferenciação e desigualdade tão marcantes que a importava apenas a liberdade de alguns. Desse modo, não era aceita como sendo de todos, de modo pleno.

Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. 7

Esse movimento, denominado dialética do reconhecimento 8, acontece tanto na consciência individual quanto se expressa também na história. Na consciência individual, através da negação do outro e do próprio eu, o homem é capaz de alçar um patamar de compreensão a partir do qual se sabe igual ao seu semelhante, e reconhece nas instituições como o Estado e o Direito não uma limitação à sua liberdade, mas a liberdade em si, na sua máxima expressão. Visto pelo ângulo histórico, ou seja, esse reconhecimento completo como efetividade histórica, o filósofo alemão aponta a Revolução Francesa como sendo o momento crucial, pois na medida em que exsurge a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, declara-se, politicamente (e, posteriormente, juridicamente) a igualdade de todos os homens, independentemente de sua nacionalidade, e a sua comunhão de direitos inalienáveis, pelo simples fato de serem homens. E a grandeza da Declaração está exatamente em, apesar de fruto de uma revolta num país europeu bem determinado – a França – ter elaborado uma declaração, a partir de princípios éticos consagrados na história do Ocidente, não só para eles próprios, mas compreendendo e abarcando toda a humanidade. SALGADO, em seu A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo 9, na esteira de HEGEL, afirma que os Direitos Fundamentais, tais como construídos no Estado Democrático de Direito, sobretudo no século XX, é o pleno reconhecimento do conceito de liberdade, não como uma liberdade unilateral, que se confunde com o poder, mas como liberdade bi ou

A dialética do reconhecimento é tratada por HEGEL originalmente na Fenomenlogia do Espírito [HEGEL, Fenomenologia do Espírito, cit., p. 135 et seq,]. Para a compreensão do seu impacto no Ocidente, v. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Senhor e Escravo: uma parábola da Filosofia ocidental. In: TOLEDO, Cláudia; MOREIRA, Luiz (Org.). Ética & Direito. São Paulo: Loyola, 2002, p. 183-202. Uma excelente explicação da dialética do reconhecimento, com profundidade e clareza, encontramos em BROCHADO, Mariá. A Dialética do Reconhecimento em Hegel. In: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz Borges. Hegel, Liberdade e Estado. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p. 87-103.

8

SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo: Fundamentação e aplicação do Direito como Maximum Ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 9

multilateralizada 10. Uma vez considerados relevantes no plano políticojurídico, determinados valores passam a ser pelo Direito garantidos, não ficando o seu cumprimento ao alvedrio de terceiros. Vale lembrar que essa foi uma conquista extremamente importante da segunda metade do século XX, pois, antes, direitos sociais essenciais à vida, como à alimentação, à saúde e assistência médica, à moradia, ao trabalho e outros, apesar de reconhecidos, não eram exigíveis. E a nota caracterizadora do fenômeno jurídico é exatamente a possibilidade de reivindicar, de exigir o cumprimento do direito declarado. É interessante notar que o primeiro conceito de liberdade apresentado, o “fazer o que eu quero”, não pode ser simplesmente considerado errado. Ele é parte necessária para o desenvolvimento rumo a patamares superiores de compreensão da liberdade e de si próprio. E envolve, em determinados momentos, a negação do outro para afirmação do eu, podendo conter – mas não necessariamente – a violência, física e simbólica. Evidentemente, a educação 11, principalmente a básica, engloba um

processo

que

tem

também

como

finalidade

percorrer

esse

desenvolvimento da consciência, para fazer chegar a ela o conceito mais refinado da liberdade, não no sentido de uma compreensão filosófica desse conceito, mas a sua experiência e vivência, a sua percepção imediata. Por isso, a Escola e os professores desempenham um papel fundamental, e devem saber desse papel de forma refletida, vale dizer, é preciso que tenham ciência de como se dá a descoberta e o ensino da liberdade, compreendendo a violência como uma de suas possibilidades, para então poderem intervir com

10

Cf. SALGADO, A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 1.

Sem dúvida, partimos aqui de uma compreensão de educação que não se limita aos modelos tradicionais – denominados como empirista ou racionalista – e tem a pretensão de formar o cidadão integralmente, para todos os aspectos de sua vida. Em relação às abordagens de ensino, v. MIZUKAMI, Maria das Graças Nicoletti. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986. 11

precisão. Evita-se, assim, danos para as crianças, que podem ter graves consequências no futuro. VI. A ÉTICA E O DIREITO Um dos grandes prejuízos culturais, cujas raízes se estendem até nós, foi a identificação, por grande parte dos estudiosos e durante um tempo significativo, do Direito com a técnica jurídica. O Direito, segundo essa corrente,

denominada

de

modo

geral

como

positivista

ou,

mais

especificamente, normativista 12, identificar-se-ia com a lei posta, seja pelo parlamento ou por qualquer outro órgão ou autoridade, e com aquilo que os autorizados pelo ordenamento jurídico decidem, a exemplo do juiz ou administrador público. O objeto de conhecimento do cientista do Direito, do Jurista, seria, portanto, a compreensão dessa lei posta, do ordenamento jurídico. Aspectos históricos, sociais, psicológicos, éticos ou axiológicos não estariam no escopo do Direito, sendo campo de pesquisa de outras áreas, a saber da História, Sociologia, Psicologia, Filosofia etc. As razões para essa visão pode ser resumida pela influência da Modernidade, do Iluminismo e da secularização ocorrida no período, o que exigiu uma busca cada vez maior de uma espécie de conhecimento que fosse seguro, inclusive na seara jurídica, livre principalmente da subjetividade e dos valores religiosos. A solução foi amputar o Direito, e menoscabar aquilo que a lógica formal não dá conta com a precisão almejada, como é o caso de se pensar sobre os valores. De fato, não se pode negar que o Direito seja isso, a lei posta. Porém, desconsiderar todos os demais aspectos que envolvem a confecção, interpretação e aplicação da norma, como se fossem algo estranho a ela, significa, sem dúvida, segmentar a realidade jurídica. E essa divisão, feita Segundo Miguel Reale, o normativismo é uma espécie de explicação unilateral ou reducionista da realidade jurídica, pois não integra elementos que seriam essenciais ao Direito: “Para ele, a ordem jurídica positiva não só é o único Direito existente, como também basta-se a si mesma, tendo em si mesma a sua razão de valer, como Técnica Social específica e organização da coação”, cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 477

12

de modo inconsequente, chegou ao ponto de justificar normas que, ao contrário de promoverem o bem estar do ser-humano e as suas potencialidades, serviram para destruí-lo, como foi o nazismo. Após as notícias aterrorizantes dos horrores perpetrados durante a II Grande Guerra Mundial, os juristas voltaram a revolver os escombros do Direito. Passaram a buscar conhecer, de modo seguro e sem medo, a importância e centralidade que a Ética e, sobretudo os valores, possuem para o Direito. MARIÁ BROCHADO, em A Eticidade do Direito 13, demonstra exatamente a presença da Ética e dos valores, de modo intrínseco, no cerne do fenômeno jurídico. SALGADO, por sua vez, sustenta que o Direito contemporâneo contem o plexo axiológico mais importante de uma dada comunidade, na medida em que seu fundamento e objetivo final (o alfa e o ômega) é a realização dos direitos fundamentais, consagrados nas Constituições da maioria do países, e, ressalta-se, dotados de exigibilidade 14. Um importante jurista francês, ALAIN SUPIOT, afirma que o homem contemporâneo é um homo juridicus. Não porque simplesmente percebeu e quis ressaltar a judicialização da vida, proporcionada pela exigibilidade de direitos

sociais,

transindividuais

e

difusos,

somados

à

crescente

acessibilidade ao Poder Judiciário, mas porque notou que se o homem constrói o Direito, é também constituído por esse, num fenômeno dialético. Pensa, no seu cotidiano, a partir de categorias jurídicas, age segundo valores que são também valores jurídicos, tem consciência de que as ações humanas são direta ou indiretamente reguladas pelo Direito 15- 16. V. BROCHADO, Mariá. Consciência Moral e Consciência Jurídica. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 13

14

SALGADO, A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo, cit., p. 8-18.

15 SUPIOT, Alain. Homo Juridicus: Ensaio sobre a função antropológica do Direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Afirma o autor que “fazer de cada um de nós um ‘homo juridicus’ é a maneira ocidental de vincular as dimensões biológicas e simbólica constitutivas do ser humano. O Direito liga a infinitude de nosso universo mental à finitude de nossa experiência física, cumprindo em nós uma função antropológica de instituição da razão”, SUPIOT, Homo Juridicus..., cit., p. X-XI.

Ora, se não só a Ética, mas também o Direito tornaram-se tão importantes para a vida em sociedade, percebe-se um nítido descompasso em relação ao sistema de ensino, que não acompanhou esse desenvolvimento e cegou-se para as contribuições que o Direito possa trazer para a formação humanística. Não é mais factível que verdadeiros cidadãos sejam formados sem um destaque para a relevância do Direito, compreendido não apenas como uma norma proibitiva ou punitiva – mas exatamente como a efetivação da liberdade. Para sanar o descompasso, não é suficiente a criação de uma disciplina cujo conteúdo se refira a essas questões, mas incentivo em pesquisa nas Universidades, no intuito de elaborar materiais e métodos para o ensino jurídico em escolas de modo didático, interessante e produtivo. Se menosprezarmos o impacto que uma política educacional que leve o Direito a sério é capaz de gerar, dificilmente daremos um passo adiante da barbárie17.

V. DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS À ÉTICA E AO DIREITO Nos pontos anteriores, buscamos justificar a necessidade de uma reforma no sistema educacional, tornando-o apto a enfrentar desafios a partir do desenvolvimento recente e de ponta alcançados ela pesquisa de ponta em Filosofia do Direito. Decerto, isso seria uma abordagem

16 Ressalta-se, também, a interessante fundamentação dada à moral e à justiça por Schopenhauer. Para o filósofo, é o compadecer, a compaixão, ou seja, o sofrer com [o outro], que está na base do fenômeno moral. Apesar da conhecida querela de Schopenhauer com Hegel, parece-nos que o processo de reconhecer o outro como igual é compartilhado por ambos: “Manifestamente, só por meio do fato de que o outro se torne de tal modo o fim último de minha vontade como eu próprio sou [...] Isto exige porém que eu me identifique com ele, quer dizer, que aquela diferença total entre mim e o outro, sobre a qual repousa justamente meu egoísmo, seja suprimida pelo menos num certo grau. [...] é o fenômeno diário da compaixão, quer dizer, a participação totalmente imediata, independente de qualquer outra consideração, no sofrimento de um outro e, portanto, no impedimento ou supressão deste sofrimento, como sendo aquilo em que consiste todo o contentamento e todo o bem-estar e felicidade” [SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001, apud CARDOSO, Renato César. A Idéia de Justiça em Schopenhauer. Belo Horizonte: Argumentum, 2008, p. 109. 17

Referenciar o Sérgio Buarque.

diferenciada para se tratar do problema da violência na escola e, porque não dizer, na sociedade. E as benesses de uma reforma dessa magnitude seriam capazes de forjar cidadãos com uma nova mentalidade, empreendendo um salto qualitativo no que tange à capacidade de se compreender e, assim, compreender o outro e a sociedade. Põe-se, para tanto, desafios a várias esferas governamentais. É necessário, como dito, investimentos, em primeiro lugar, incentivar e elaborar pesquisas sobre o tema, incluindo uma metodologia de preparação dos profissionais que lidam com estas questões, incluso nessa categoria professores de disciplinas regulares (como Matemática, Física, Biologia), mas também de professores capazes de ensinar uma disciplina específica, a ser criada. É importante, também a elaboração de materiais didáticos, que consigam transmitir as informações e construir o conhecimento desejado e necessário, de forma didática. Em seguida, uma vez elaborada a metodologia e materiais, necessário é efetivamente formar professores qualificados. E então, chega-se ao objetivo primário: a universalização de uma formação para a cidadania, voltada à compreensão das instituições estatais e dos princípios jurídicos, tanto em escolas privadas como públicas 18. Em curto prazo, é importante que as lideranças escolares estejam cientes de que é sua responsabilidade criar e manter um ambiente de aprendizagem

pautado

não

simplesmente

em

valores

éticos,

mas

constitucionais e, portanto, jurídicos. Se a violência física já foi debelada da maior parte das instituições de ensino, a violência simbólica é ainda comum, e as instituições de ensino não podem se omitir, pelo contrário, devem observar atentamente a atitude dos alunos, verificar se ocorre discriminação Salienta-se que tais idéias tem sido profundamente discutida pela Prof. Dra. Mariá Brochado, em sede de pesquisa acadêmica, envolvendo alunos de graduação e pósgraduação, tanto da Faculdade de Direito quanto da Faculdade de Educação da UFMG. Além disso, encontra-se em franca expansão o programa de extensão Paidéia Jurídica, cujos objetivos estão em consonância com a pesquisa realizada. Professores da rede pública das escolas de Minas Gerais tem recebido treinamento para lidar com questões atinentes aos Direitos Humanos, em programa de aperfeiçoamento elaborado com a participação do Governo Federal (Mec/Universidade Aberta do Brasil). 18

ou rejeição de algum indivíduo ou grupo, e atacar a causa, da maneira adequada. Caso nenhuma ação seja tomada, é de se esperar o agravamento do problema, podendo ser objeto de litígio judicial, tendo em vista a responsabilidade jurídica da escola e os possíveis danos, morais e materiais, cometidos por alunos dentro de seu recinto. Uma vez que a educação em instituições privadas é uma delegação de serviço público, é de se esperar que também o Estado possa ser subsidiariamente responsabilizado por danos ocorrido em e por alunos de escolas particulares. V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANDEIRA, Cláudia de Moraes; HUTZ, Claudio Simon. As implicações do bullying na auto-estima de Adolescentes. In: Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, V. 14, N. 1, Janeiro/Junho de 2010, p. 131-138. BROCHADO, Mariá. A Dialética do Reconhecimento em Hegel. In: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz Borges. Hegel, Liberdade e Estado. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. BROCHADO, Mariá. Consciência Moral e Consciência Jurídica. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. CALLIGARIS, Contardo. Educar Frustando? In: Folha de São Paulo, 16 de dezembro de 2010, p. E10. CARDOSO, Renato César. A Idéia de Justiça em Schopenhauer. Belo Horizonte: Argumentum, 2008. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. MALTA, Deborah Carvalho et al . Bullying nas escolas brasileiras: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) - 2009. Ciência e saúde coletiva, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em . Acessado em 19 de dezembro de 2010. doi: 10.1590/S1413-81232010000800011. MIZUKAMI, Maria das Graças Nicoletti. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986. NANSEL et all. Cross-national consistency in the relationship betweenbullying behaviors and psychosocial adjustment. Archives of Pediatrics and Adolescent Medicine 2004;158: 730-6. OLWEUS D. Bullying at school: What we know and what we can do. Blackwell Publishing, 1993 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo: Fundamentação e aplicação do Direito como Maximum Ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. SUPIOT, Alain. Homo Juridicus: Ensaio sobre a função antropológica do Direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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