A Coréia do Norte desafia o Mundo entre Crises

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A Coréia do Norte desafia o mundo entre crises Carlos Frederico Pereira da Silva Gama1 By the time your sun is rising there Out here it's turning blue The silver rocket's coming And the cherry trees of Pyongyang I'm leaving Blur, “Pyongyang” 2016 começou turbulento e quente. Em 6 de Janeiro, a Coréia do Norte fez o quarto teste nuclear de sua história – supostamente, de sua primeira bomba termonuclear (bombas que produzem uma fusão de átomos, com maior poder explosivo que as bombas tradicionais). O terremoto artificial de 5.1 graus na escala Richter foi detectado na vizinha Coréia do Sul e também no Japão, EUA e Rússia. Informações referentes ao teste nuclear foram imediatamente questionadas por outros governos. Para os EUA, não se trataria de uma bomba termonuclear. Ainda que placas tectônicas tenham sido movidas, o controle das informações num dos países mais fechados do globo dificulta avaliar o teste. As ações bombásticas da Coréia do Norte são cuidadosamente planejadas para obter impacto máximo, conduzidas da forma mais confrontacional possível. Elas se tornaram instrumento de barganha indispensável num país considerado ameaça por diversas grandes potências que buscaram, por décadas, asfixiar o regime, limitando seu acesso a determinados recursos. A escassez levou os norte-coreanos a desenvolver uma variação do socialismo que busca a autossuficiência (juche). Em 1994, a Coréia do Norte interrompeu negociações com os EUA que envolviam desmantelar o seu programa nuclear em troca de auxílio econômico. Em 1999, lançou um míssil intercontinental que sobrevoou o Japão (sob protestos de outros estados), o que faria novamente em 2006. Em 2003, a Coréia do Norte se retirou do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). Em 2005, Kim Jong-il anunciou o domínio da tecnologia do enriquecimento do urânio. Às vésperas da eleição de um antagonista para Secretário-Geral da ONU – o sul-coreano Ban Ki-Moon – a Coréia do Norte realizou seu primeiro teste nuclear, em Outubro de 2006. O governo da China foi avisado do teste e por intermédio chinês, os EUA receberam a notícia com incredulidade. Apesar de ter provocado um terremoto de 4.9 graus, George W. Bush considerou o teste um fracasso. Negociações foram interrompidas com o grupo das seis partes (criado após a saída da Coréia do Norte do TNP e que inclui também Coréia do Sul, EUA, China, Japão e Rússia). A ONU impôs sanções ao regime de Pyongyang, que persistem desde então. Em Maio de 2009, Kim Jong-il conduziria um segundo teste nuclear, desafiando o recém-empossado presidente dos EUA Barack Obama. A bomba foi significativamente mais potente que a de 2006 (causando um sismo de 5.3 graus). As negociações foram novamente interrompidas e o Conselho de Segurança da ONU condenou a escalada nuclear na península coreana.

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Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT)

Em Fevereiro de 2013, a Coréia do Norte conduziria mais um teste nuclear – supostamente de um artefato miniaturizado, com impacto similar ao do teste de 2006. A explosão nuclear seria um gesto de afirmação do novo líder do país, Kim Jon-un – e trouxe, por meses, turbulência à região. Em todas essas ocasiões, o regime norte-coreano ameaçou desconsiderar o armistício de 1953 com a Coréia do Sul e acenou com o rompimento das negociações internacionais sobre seu programa nuclear. 2016 não trouxe emoções inéditas à mais militarizada zona do globo – a península coreana. Os testes nucleares da Coréia do Norte trazem consigo imagens poderosas. Projetam ameaças sobre sua vizinha mais próspera e o Japão. Para consumo interno, reafirmam a “coesão nacional” e o “pulso firme” do jovem ditador. A ascensão tecnológica norte-coreana – de rudimentares reatores nucleares nos anos 1980 para, possivelmente, a bomba H – traz à tona memórias perturbadoras da Guerra Fria. Relíquias dantes relegadas aos discursos nacionalistas do presidente russo Vladimir Putin emitem sinais perturbadores. Os olhos da comunidade internacional leem “guerra” na enigmática face de Kim Jon-un. Uma vez aberta, a caixa de Pandora não se fecha facilmente. Duas janelas de oportunidade para aliviar as sanções impostas a Pyongyang se abriram em 2015, por iniciativa de Barack Obama: a normalização de relações diplomáticas com Cuba e o acordo que congelou o programa nuclear do Irã. O governo Obama se mostrou pragmático o suficiente para se reaproximar – no espaço de poucos meses – de inimigos históricos dos EUA. O teste nuclear norte-coreano busca forçar os EUA a rever as sanções. O país agiu dessa forma em 2006: após a explosão, prometeu desativar a usina de Yongbyon e permitir inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica, em troca de auxílio econômico e 50.000 toneladas de petróleo. A iniciativa norte-coreana difere das ações de Cuba e Irã para lidar com sanções lideradas pelos EUA. Mesmo com apoio velado de uma China cada vez mais relevante, a retórica das armas nucleares no último ano de governo Barack Obama pode ser um tiro n’água, com desdobramentos perturbadores. Testes nucleares em sequência com tecnologia crescentemente sofisticada aumentam a desconfiança da comunidade internacional. A Coréia do Norte conseguiu enganar, por 20 anos, a comunidade internacional. Será que outros países não serão tentados a fazer o mesmo? Para o Irã – país que assinou recentemente um tratado para congelar seu programa nuclear – o timing dos testes norte-coreanos foi o pior possível. O país sofre os impactos do rompimento diplomático com a Arábia Saudita e seu envolvimento em guerras civis na Síria, Iraque e Iêmen. Fiador da negociação com Teerã, Obama está em fim de mandato. Não há garantias de que o futuro governo – ou um Congresso hostil, dominado pela oposição – manterá o acordo nos patamares vigentes. O novo teste nuclear da Coréia do Norte no ocaso da gestão Ban Ki-Moon desmoraliza a Organização das Nações Unidas e mostra a inutilidade das sanções impostas em 2006 (salvo para aprofundar o abismo de miséria da população norte-coreana, como no Iraque pós-1991). Além de apressar o fim de gestão, a bomba de Pyongyang ocupa a agenda de um Conselho de Segurança já pressionado contra as cordas do “estado” islâmico/ISIS/Daesh na Síria. Com a China no centro das atenções na península coreana, o frágil equilíbrio de forças na bombardeada Síria pode ser comprometido. A Coréia do Norte desafia as relações internacionais em diversos sentidos. A violenta comunicação ritualizada dos testes nucleares inviabiliza interpretações consagradas da ordem internacional.

O mundo em que vivemos não é uma anarquia onde apenas grandes potências importam. Esse recado não é exclusividade norte-coreana: foi dado recentemente por potências médias como Turquia, Irã, Arábia Saudita e Israel, além de integrantes do grupo BRICS. Tampouco vivemos num mundo no qual o triunfo inevitável da globalização aproximou os povos e domesticou estados desviantes rumo ao progresso. Um desconfortável mix de inesperado e nostalgia, sem continuidades, anuncia que a Guerra Fria já não mais existe e que o mundo globalizado liberal se mostrou efêmero. A Coréia do Norte tem potencial para afetar relações internacionais em lugares distantes. Mas esse poderio é apenas uma fração do que estados emergentes podem fazer. E dentro dos emergentes há assimetrias impressionantes (tais como o declínio relativo da Rússia frente à lenta ascensão chinesa). Um mundo globalizado com múltiplos centros de poder no qual coexistem precariamente normas não-liberais e um multilateralismo em declínio é um mundo entre crises. Nele está a Coréia do Norte.

17/01/2016

A CORÉIA DO NORTE DESAFIA O MUNDO

PARA TODA LUTA, ARTE­SE A redefinição do corpo da mulher pelas lentes de Zanele Muholi 1/1 ALLA CORÉIA DO NORTE DESAFIA O MUNDO 08/01/2016 às 3:17 pm ­ por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama

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By the time your sun is rising there Out here it’s turning blue 
 The silver rocket’s coming
 
 And the cherry trees of Pyongyang
 I’m leaving Blur, “Pyongyang”

Blur - Pyongyang Ong

2016 começou turbulento e quente. Em 6 de Janeiro, a Coréia do Norte fez o quarto teste nuclear de sua história – supostamente, de sua primeira bomba termonuclear (bombas que produzem uma fusão de átomos, com maior poder explosivo que as bombas tradicionais). O terremoto artificial de 5.1 graus na escala Richter foi detectado na vizinha Coréia do Sul e também no Japão, EUA e Rússia. Informações referentes ao teste nuclear foram imediatamente questionadas por outros governos. Para os EUA, não se trataria de uma bomba termonuclear. Ainda que placas tectônicas tenham sido movidas, o controle das informações num dos países mais fechados do globo dificulta avaliar o teste. As ações bombásticas da Coréia do Norte são cuidadosamente planejadas para obter impacto máximo, conduzidas da forma mais confrontacional possível. Elas se tornaram instrumento de barganha indispensável num país considerado ameaça por diversas grandes potências que buscaram, por décadas, asfixiar o regime, limitando seu acesso a determinados recursos. A escassez levou os norte­coreanos a desenvolver uma variação do socialismo que busca a autossuficiência (chamada ideologia ‘juche’).

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A CORÉIA DO NORTE DESAFIA O MUNDO

Reportagem da TV sul­coreana sobre teste da bomba de hidrogênio da Coreia do Norte Em 1994, a Coréia do Norte interrompeu as negociações com os EUA que envolviam desmantelar o seu programa nuclear em troca de auxílio econômico. Em 1999, lançou um míssil intercontinental que sobrevoou o Japão (sob protestos de outros Estados), o que faria novamente em 2006. Em 2003, a Coréia do Norte se retirou do Tratado de Não­Proliferação Nuclear (TNP). Em 2005, Kim Jong­il anunciou o domínio da tecnologia do enriquecimento do urânio. Às vésperas da eleição de um antagonista para Secretário­Geral da ONU – o sul­coreano Ban Ki­Moon – a Coréia do Norte realizou seu primeiro teste nuclear, em Outubro de 2006. O governo da China foi avisado do teste e por intermédio chinês, os EUA receberam a notícia com incredulidade. Apesar de ter provocado um terremoto de 4.9 graus, George W. Bush considerou o teste um fracasso. Negociações foram interrompidas com o ‘grupo das seis partes’ (criado após a saída da Coréia do Norte do TNP e que inclui também Coréia do Sul, EUA, China, Japão e Rússia). A ONU impôs sanções ao regime de Pyongyang, que persistem desde então. Em Maio de 2009, Kim Jong­il conduziria um segundo teste nuclear, desafiando o recém­empossado presidente dos EUA Barack Obama. A bomba foi significativamente mais potente que a de 2006 (causando um sismo de 5.3 graus). As negociações foram novamente interrompidas e o Conselho de Segurança da ONU condenou a escalada nuclear na península coreana.

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A CORÉIA DO NORTE DESAFIA O MUNDO

North Korea Nuclear Test

Em Fevereiro de 2013, a Coréia do Norte conduziria mais um teste nuclear – supostamente de um artefato miniaturizado, com impacto similar ao do teste de 2006. A explosão nuclear seria um gesto de afirmação do novo líder do país, Kim Jong­un – e trouxe, por meses, turbulência à região. Em todas essas ocasiões, o regime norte­coreano ameaçou desconsiderar o armistício de 1953 com a Coréia do Sul e acenou com o rompimento das negociações internacionais sobre seu programa nuclear. 2016 não trouxe emoções inéditas à mais militarizada zona do globo – a península coreana. Os testes nucleares da Coréia do Norte trazem consigo imagens poderosas. Projetam ameaças sobre sua vizinha mais próspera e o Japão. Para consumo interno, reafirmam a “coesão nacional” e o “pulso firme” do jovem ditador. A ascensão tecnológica norte­coreana – de rudimentares reatores nucleares nos anos 1980 para, possivelmente, a bomba H – traz à tona memórias perturbadoras da Guerra Fria. Relíquias dantes relegadas aos discursos nacionalistas do presidente russo Vladimir Putin emitem sinais perturbadores. Os olhos da comunidade internacional leem “guerra” na enigmática face de Kim Jong­un. Uma vez aberta, a caixa de Pandora não se fecha facilmente.

Duas janelas de oportunidade para aliviar as sanções impostas a Pyongyang se abriram em 2015, por iniciativa de Barack Obama: a normalização de relações diplomáticas com Cuba e o acordo que congelou o programa nuclear do Irã. O governo Obama se mostrou pragmático o suficiente para se reaproximar – no espaço de poucos meses – de inimigos históricos dos EUA. O teste nuclear norte­coreano busca forçar os EUA a rever as sanções. O país agiu dessa forma em 2006: após a explosão, prometeu desativar a usina de Yongbyon e permitir inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica, em troca de auxílio econômico e 50.000 toneladas de petróleo. A iniciativa norte­coreana difere das ações de Cuba e Irã para lidar com sanções lideradas pelos EUA. Mesmo com apoio velado de uma China cada vez mais relevante, a retórica das armas nucleares no último ano de governo Barack Obama pode ser um tiro n’água, com desdobramentos perturbadores. Testes nucleares em sequência com tecnologia crescentemente sofisticada aumentam a desconfiança internacional. A Coréia do Norte conseguiu enganar, por 20 anos, a comunidade internacional. Será que outros países não serão tentados a fazer o mesmo? Para o Irã – país que assinou recentemente um tratado para congelar seu programa nuclear – o timing dos testes norte­coreanos foi o pior possível. O país sofre os impactos do rompimento diplomático com a Arábia Saudita e seu envolvimento em guerras civis na Síria, Iraque e Iêmen. Fiador da negociação com Teerã, Obama está em fim de mandato. Não há garantias de que o futuro governo – ou um Congresso hostil, dominado pela oposição – manterá o acordo nos patamares vigentes. O novo teste nuclear da Coréia do Norte no ocaso da gestão Ban Ki­Moon desmoraliza a Organização das Nações Unidas e mostra a inutilidade das sanções http://noo.com.br/a­coreia­do­norte­desafia­o­mundo­entre­crises/

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A CORÉIA DO NORTE DESAFIA O MUNDO

impostas em 2006 (salvo para aprofundar o abismo de miséria da população norte­coreana, como no Iraque pós­1991). Além de apressar o fim de gestão, a bomba de Pyongyang ocupa a agenda de um Conselho de Segurança já pressionado contra as cordas do “estado” islâmico/ISIS/Daesh na Síria. Com a China no centro das atenções na península coreana, o frágil equilíbrio de forças na bombardeada Síria pode ser comprometido.

A Coréia do Norte desafia as relações internacionais em diversos sentidos. A violenta comunicação ritualizada dos testes nucleares inviabiliza interpretações consagradas da ordem internacional.  O mundo em que vivemos não é uma anarquia onde apenas grandes potências importam. Esse recado não é exclusividade norte­coreana: foi dado recentemente por potências médias como Turquia, Irã, Arábia Saudita e Israel, além de integrantes do grupo BRICS. Tampouco vivemos num mundo no qual o triunfo inevitável da globalização aproximou os povos e domesticou estados desviantes rumo ao progresso. Um desconfortável mix de inesperado e nostalgia, sem continuidades, anuncia que a Guerra Fria já não mais existe e que o mundo globalizado liberal se mostrou efêmero. A Coréia do Norte tem potencial para afetar relações internacionais em lugares distantes. Mas esse poderio é apenas uma fração do que estados emergentes podem fazer. E dentro dos emergentes há assimetrias impressionantes (tais como o declínio relativo da Rússia frente à lenta ascensão chinesa). Um mundo globalizado com múltiplos centros de poder no qual coexistem precariamente normas não­liberais e um multilateralismo em declínio é um mundo entre crises. Nele está a Coréia do Norte.

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