A criação da «terceira coisa». Um exemplo do efeito placebo na arte do ator

June 23, 2017 | Autor: António Branco | Categoria: Estudios teatrales, A PREPARAÇÃO DO ATOR, Formação de Ator, Estudos de Teatro
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A CRIAÇÃO DA \TERCEIRA COISA]: UM EXEMPLO DO EFEITO PLACEBO NA ARTE DO ATOR António Branco Centro de Investigação em Artes e Comunicação/Universidade do Algarve

Resumo A criação de uma personagem teatral é um processo longo e complexo, ao longo do qual o ator vai incorporando a personagem – o que significa «ir metendo a persona­ gem (as suas circunstâncias, as suas caraterísticas, as suas ações) dentro de si», mis­ turando­a com as suas próprias emoções, memórias e experiência de vida, com vista ao nascimento de uma «terceira coisa». Esse processo apresenta semelhanças evi­ dentes com o que acontece a um paciente cujos sintomas desaparecem graças à ad­ ministração de um placebo. Em ambos os acasos, o poder da mente, totalmente liberta do seu lado consciente, defensivo e reservado, provoca consequências psico­ ­fisiológicas: no paciente, a cura; no ator, a transubstanciação. Por isso, talvez hou­ vesse vantagens na integração de atores experientes em projetos de investigação sobre o efeito placebo. Palavras­chave Personagem; imaginação; incorporação; transubstanciação; literacias artísticas

A finalidade do presente trabalho é a de examinar a utilidade do conceito médico de «placebo» para a descrição e compreensão de aspetos essenciais do processo pelo qual passa o ator na criação e no desempenho de uma personagem, à luz daquilo a que chamo «uma conceção de matriz stanislavskiana da arte do ator» ̶ querendo com isso designar uma perspetiva da criação teatral que assume e desenvolve o legado principal de Constantin Stanislavski (v. Whyman 2011)1. A este propósito subjaz uma dupla intenção pedagógica: por um lado, junto do pú­ blico leigo, a de contribuir para aprofundar a compreensão do que está implicado no que esse público vê acontecer ao ator em palco; por outro, junto daqueles que pretendam obter formação teatral na perspetiva identificada, a de tornar mais claro o que os espera e o que se espera deles. Em ambos os casos, trata­se de por ao serviço de comunidades não especializadas do ponto de vista teatral conheci­ mento obtido em contexto especializado, procurando usar um discurso capaz de traduzir o mais universal e simplesmente possível saberes complexos originados na experimentação artística. Sendo o teatro uma atividade que só se concretiza cabalmente em ambiente de partilha pública, ela é geradora de infindáveis e muito diversificados modos de apropriação individuais, culturais, sociais. Por isso, o pre­ sente trabalho também vai ao encontro do aprofundamento das literacias artísti­ 1

Nomeadamente, a exigência da autenticidade no jogo teatral, que, noutro texto, identifiquei como «via do jogo autêntico», por oposição à «via da imitação» (Branco 2011: 147­156).

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cas (v. Kindelan 2012), assim concorrendo para uma aproximação mais eficaz entre os polos da receção e da produção, a saber, entre o discurso público sobre o ator e a realidade (técnica, ética e estética) dos seus procedimentos de criação. Começo por recordar a definição comum de «placebo»: «medicamento inerte ministrado com fins sugestivos ou psicológicos, que pode aliviar padeci­ mentos unicamente pela fé que o doente tem nos seus poderes» (Infopédia 2003­ 2013). A definição médica afina alguns dos elementos presentes na definição anterior: «Briefly defined, a placebo is any treatment (including drugs, surgery, psycho­ terapy, and quack terapy) that is used for its ameliorative effect on a symptom or disease but actually is ineffective or is not specifically effective for the condi­ tion being treated» (Shapiro & Shapiro 1997: 1).

Chama­se «efeito placebo» às consequências benéficas produzidas nos pa­ cientes pelo uso de placebos. Não existe consenso na comunidade científica sobre esta matéria. Relativa­ mente ao uso de placebos na pesquisa clínica, há estudos que comprovam a efi­ cácia do efeito placebo em percentagens muito significativas da população, por exemplo na cura de depressões (v. Kirsch 2009), e o seu contrário (v. Bloom 2010). Relativamente à prescrição, existem posições defensoras do placebo, por motivos terapêuticos, e posições contra o placebo, por motivos éticos e deontológicos. Estas últimas consideram o placebo um engano ou uma mentira. O debate dura há muito (sobretudo desde a publicação de um célebre artigo de Henry K. Beecher, em 1955) e é muito controverso e complexo (v. Shapiro & Shapiro 1997: 175­189). Não é finalidade deste trabalho participar nesse debate: não tenho conheci­ mentos que me permitam, do ponto de vista médico, refutar ou defender qualquer dessas posições. Admitamos, contudo, que o efeito placebo existe com um elevado nível de eficácia num número significativo de pacientes, conforme defende Kirsch (2009). Se assim for, tal hipótese conduz necessariamente a outra, não menos in­ teressante: a de que, em certos indivíduos, o poder da mente é de tal modo forte que consegue transformar o corpo. Suspendo, agora, esta questão, a que regres­ sarei adiante, para me dedicar a assuntos relacionados com a arte do ator. A arte do ator envolve operações muito complexas. E compreende­se que assim seja: é que, diferentemente do que acontece em todas as outras artes, o ator é criador e criatura, é ao mesmo tempo sujeito e objeto. Na corrente teatral em que ensino e faço teatro (baseada, como referi, numa matriz stanislavskiana), essa complexidade advém dos seguintes aspetos: por um lado, para criar o ator usa as suas próprias emoções, as suas memórias mais profundas, em suma, a sua vida; por outro, tem de adequar essas emoções, essas memórias, essa vida a um roteiro (a história que se conta) e a uma personagem exterior a si. Por isso, a atriz Manuela de Freitas (uma das mais importantes atrizes portuguesas representati­ 402

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vas dessa corrente) diz que a personagem teatral não é nem a pessoa do ator nem a personagem inventada pelo autor, mas «uma terceira coisa» que resulta da fusão dessas duas realidades iniciais: «Partindo do princípio que eu sou toda a gente e que tenho em mim todas as personagens, eu, Manuela de Freitas, vou ao encontro daquela personagem e a uma certa altura gera­se uma terceira coisa. Por isso fala­se em criação.» (Fadda & Cintra 2004: 50)

Segundo essa perspetiva, a criação da personagem obriga, pelo menos (e de um modo simplificado), aos seguintes passos: 1. O ator tem de analisar e compreender bem as circunstâncias históricas, fi­ losóficas, religiosas, políticas, sociais, etc., da peça e da personagem, bem como as características psicológicas, físicas, morais, etc., da segunda (v. Stanislavski 2008b: 37­59)2; 2. O ator tem de ir experimentando e escolhendo, ao longo dos ensaios, as partes da sua «memória afetiva» que melhor se adequam às caraterísticas da peça e da personagem (v. Stanislavski 2008b: 195­228); 3. O ator tem de pôr em ação a sua imaginação para, a partir de si, dar vida a uma personagem originalmente feita de palavras (v. Stanislavski 2008b: 37­85). Nesse processo moroso, a imaginação cumpre uma função primordial: é ela que permite acoplar os elementos pessoais encontrados pelo ator (por meio de reflexão e estudo, de exercícios, de improvisações) ao contexto ficcional da peça e da personagem. Sem essa estruturação da imaginação e da experiência de vida do ator, conscientemente orientada pelas coordenadas contextuais da peça e da personagem, não estaríamos perante um processo artístico, mas, sim, diante de uma espécie de «caos confessional fantasioso», como recorda Grotowski: Without a fixed score a work of mature art cannot exist. That’s why a search for discipline and structure is as inevitable as a search for spontaneity. Searching for spontaneity without order always leads to chaos, a lost confession because an inarticulate voice cannot confess. (Schechner & Hoffman [1967]: 55)

A imaginação é tão importante no processo de criação do ator que há quem considere que ela pode e deve ser ginasticada, tal como o atleta faz com os seus músculos: destaco a professora e atriz americana Stella Adler3, o encenador inglês Peter Brook ou a encenadora francesa Ariane Mnouchkine, entre muitos outros. 2

A este propósito, veja­se também o testemunho de Vasily Toporkov sobre o modo de ensaiar de Sta­ nislavski (1998). 3 Veja­se a seguinte firmação de Stella Adler: «You’ve imagined it. Therefore it exists» (2000: 66).

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Na origem da defesa do papel fulcral da imaginação na criação da verdade da per­ sonagem, está o ‘sistema’ desenvolvido por Stanislavski, como se depreende do seguinte trecho: The actor above all must believe in everything that is going on around him, and most of all in what he himself is doing. Only the truth can be believed.Yo must continuous believe in this truth, find it and to do that you must develop an ar­ tistic receptivity to truth. But people say: ‘Enough! How can there be truth when everything on stage is lies, fake: the sets, the papier mâché, the colours, make­up, costume, props, wooden swords and goblets, etc.? Can this be truth?’ Of course, I am not talking about that kind of truth but of another kind, the truth of my feelings, mental and physical, the truth of the inner creative fire that is seeking to find expression. External truth is not important to me in itself but the truth of my attitude to this or that event onstage, to the objects, sets, my fellow actors playing the other roles, to their thoughts and feelings… […] In precisely the same way as a child believes in the existence of its doll and the life in it and around it. When the [magic] ‘if’ appears, the actor is transported from real life into another life that he has built in himself. Once he believes in it, he can begin to be crea­ tive. Truth onstage is what an actor can sincerely believe in, and even a blatant lie become truth for it to be art. (2008a: 260­261).

O papel da imaginação é tão decisivo para Stanislavski que ele4 responde assim a um aluno que lhe pergunta o que deve fazer o ator que não tenha ne­ nhuma: «Develop it, or give up the stage. Otherwise you will fall victim to directors who will replace your imperfect imagination with their own. Then you will stop being an independent artist and become a mere pawn.» (2008b: 63) À medida que vai construindo o edifício imaginário inspirado nas circunstân­ cias e caraterísticas da personagem e que o vai misturando com a sua própria vida, dizemos que o ator vai incorporando5 (literalmente, «passando para dentro do corpo») aquelas circunstâncias e aquelas caraterísticas. Aliás, existe um exercício com o nome de «Incorporação» (sumariamente descrito em Branco 2011b: 36­37), que operacionaliza o «se mágico» de Stanislaksvi, condensando em 30­40 mns. o trabalho paciente, rigorosa e intuitivamente realizado pelo ator ao longo de meses de ensaios para criar a «terceira coisa» de que falava Manuela de Freitas. 4

Na realidade, quem responde é o«heterónimo» Tortsov, já que a obra mais importante de Stanislavski é construída no modo romanesco, cabendo ao «professor Tortsov» a função de transmitir aos alunos os saberes desenvolvidos por Stanislavski nos seus laboratórios. 5 Esta palavra é uma tradução possível de «embodiment», conceito muito usado pelos especialistas de língua inglesa para designar um dos processos mais importantes do ‘sistema’ stanislavskiano su­ mariamente descrito na citação anterior.

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Para que o ator consiga chegar a bom porto (o que significa concluir com su­ cesso a incorporação da personagem), é necessária a íntima colaboração entre duas dimensões essenciais do trabalho de criação: a dimensão apolínea, baseada na análise consciente da peça e da personagem, como ficou dito – e sem a qual o resultado final não seria criação, mas alienação; e a dimensão dionisíaca, baseada na interpretação que o inconsciente faz desses dados – e sem a qual o resultado final não seria artístico, mas produto do intelecto6. Para esse processo de incorporação da personagem também concorre o tra­ balho do encenador: as indicações e os estímulos que ele vai fornecendo orientam o ator nos caminhos da criação, alimentam a sua imaginação, permitem­lhe a com­ paginação do seu trabalho interior com as necessidades «exteriores» do espetá­ culo. É que, a partir de certa altura, o ator deixa de poder olhar «de fora» para a personagem e para o espetáculo, já que a incorporação só se efetiva cabalmente quando, referindo­se à personagem, o ator deixa dizer «ele» ou «ela», para passar a dizer «eu»7. Nesse momento, o ator passa a depender quase inteiramente8 do encenador – que assim se transforma no «olho externo do ator» ou no «espetador profissional», como lhe chama Grotowski (2007b). Ora, para abdicar dessa sua instância observadora, o ator tem de confiar totalmente no encenador: na visão que ele tem da globalidade do espetáculo, mas também de aspetos particulares do desempenho do ator. E podem ser elementos tão simples como estes: confiar que o encenador não o deixa repetir­se, recorrendo a clichés; acreditar que o en­ cenador não se contentará com um desempenho mediano ou insatisfatório; não ter medo de arriscar, por acreditar que o encenador será sempre capaz de fazer, de entre as múltiplas possibilidades criadas pelo ator, as escolhas (estéticas, éticas, políticas, etc.) que melhor sirvam o espetáculo; atribuir ao encenador a função de dar coerência e universalidade ao caos do plano individual da criação; etc. Mas do grau de confiança do ator no encenador também depende a sua decisão de se «deixar ir», o que significa mergulhar inteiramente no lado dionisíaco, como ex­ plicou Manuela de Freitas em resposta ao investigador9: 6

Peço os adjetivos «apolíneo» e «dionisíaco» emprestados a Nietzsche (1995: sobretudo caps. 1, 2, 8, 10 e 25). 7 Noutras conceções da arte do ator, este nunca diz «eu» para se referir à personagem. Veja­se, a título de exemplo, o seguinte excerto de um testemunho de Diogo Infante: «Ao olhar para trás, o maior gozo que tive foi quando consegui criar personagens que tivessem quase uma identidade própria, de que falo na terceira pessoa, em que me revejo muito pouco, onde sou apenas um invólucro, um empréstimo» (Borges 2005: 32). Nesse âmbito, é paradigmática a posição assumida por David Mamet, num livro que pode ser considerado um feroz libelo contra a «matriz stanislavskiana» (1997). 8 Digo «quase inteiramente», porque resta ao ator uma instância de vigilância a que se chama «com­ panheiro seguro» (v. Branco 2011a: 78­84). 9 A pergunta tinha sido: «Julga ser possível na arte performativa que o actor se deixe diluir da tal modo no todo cénico que, por momentos, se veja privado da individuação e se torne não já num artista mas seja ele a própria obra de arte, experimentando um êxtase que se apodera do ser total que não é já o actor mas o todo, transfigurado na personagem que representa?» (Marques 2010: 67)

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Este deixar­se ir comporta que o actor, mediante dados exercícios, seja capaz de sair de si, abandonar durante breves instantes o seu eu consciente, defensivo, reservado e racional e deixar­se tomar pela cólera ou pela dor que o personagem deveras sente, por sua mediação. É na busca desta autenticidade que o actor, aproveitando esse momento privi­ legiado, sai de si, em termos dos mecanismos de auto­domínio, na busca intros­ pectiva da sua própria dor, do seu próprio ciúme e amor, que darão intensidade à personagem e a tornarão autêntica. (Marques 2010: 76)

Para que esse estado de êxtase dionísiaco, a que Grotowski chama «transe» (1991: 37­38), seja artisticamente enquadrado, é necessário que o ator se entre­ gue «nos braços do encenador» e se deixe conduzir por ele, o que não pode ocor­ rer enquanto o «eu consciente, defensivo, reservado e racional» do ator estiver ativo. Daí a premência de que o encenador seja possuidor de um sólido código deontológico e de um conjunto de valores eticamente irrepreensíveis: é que, na­ quele momento de rendição, o encenador passa a poder mexer com as suas mãos na alma do ator, «revolvendo­a até às entranhas», como diria Fernando Amado (citado por Manuela de Freitas em Gouveia 2011: 6). Na realidade, todos os en­ volvidos no processo de criação teatral sabem que só quando «a alma [do ator] é revolvida até às profundezas, ela reclama, em troca, a verdade total – toda a ver­ dade humana» (Amado 1999: 130). Acabo de usar a expressão «mexer com as mãos» consciente de que ela re­ mete para o significado etimológico do verbo «manipular»: na realidade, a relação (amorosa e mutuamente consentida) que ator e encenador estabelecem entre si com vista à criação da personagem pode ser vista como um processo de mútua manipulação e de interpenetração. O ator manipula o encenador com a sua força criadora (assim negociando com ele um caminho criativo), mas também o ence­ nador manipula o ator, conduzindo­o na direção necessária. São essas duas ten­ dências, umas vezes antagónicas, outras, cúmplices, que provocam a interpenetração a que atrás me referi: a experiência tem­me dito que a base da direção de atores é o exercício «Eu sou o outro» (v. Branco 2011b: 32), ou seja, a mais perfeita sintonização que pode haver entre dois seres humanos. Tal como escreveu Grotowski, falando do trabalho do encenador/diretor de atores: O que procuramos no ator? Indubitavelmente: ele mesmo. Se não o procuramos, não podemos ser­lhe de ajuda. Se não nos desperta curiosidade, se ele não é para nós algo de essencial, não podemos ajudá­lo. Mas procuramos nele tam­ bém nós mesmos, o nosso «eu» profundo, o nosso si. (2007a: 181)

Ora, a propósito dessa cumplicidade entre ator e encenador, que resulta em combate e colaboração e é realizado em nome do objetivo comum da criação ar­ tística, qualquer encenador intelectualmente honesto terá de confessar que, fre­ 406

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quentemente, o encenador tem de enganar o ator (tal como médico faz com o paciente a quem prescreve um placebo) – mas que o encenador o faz sem sombra de remorso ou sentimento de culpa, porque o plano ético em que tal acontece não é o dos Costumes, mas o da Arte. Ao longo do processo de criação ou das sessões de espetáculos, existem mui­ tas circunstâncias que proporcionam esse comportamento do encenador. Refiro algumas das mais importantes: para combater inseguranças do ator, o que inclui ajudá­lo a ultrapassar bloqueios de criatividade; para produzir ajustamentos na imagem externa da personagem, sem que o ator disso se torne consciente; para ocultar do ator o significado visível do que ele está a fazer em cena (por exemplo, quando omite o nível de desnudamento que certo gesto, certo movimento, certa cena produzem) ou, pelo contrário, para resguardar o significado pessoal desse mesmo nível de autorrevelação de um certo voyeurismo do público; para o pro­ teger de comentários imprudentes ou despudorados de espetadores; em suma, para garantir que o ator não regresse ao seu «eu consciente, defensivo, reservado e racional» (v. supra) ou para estimular a sua criatividade na direção pretendida. Para além dos já enunciados, outros elementos contribuem para reforçar no ator a convicção (ou a fé) de que, a partir de certo momento do processo de cria­ ção, ele e a personagem são uma e a mesma coisa: o figurino; os adereços e o ce­ nário; a iluminação; a própria convicção dos restantes atores que com ele contracenam; a engrenagem da história contada pela peça e que passa a ser o guião da vida vivida no palco. A ação conjugada de todos os fatores a que me referi é capaz de provocar elevados níveis de convicção no ator e, consequentemente, a sua transformação física, fenómeno a que gosto de chamar «transubstanciação», consciente das co­ notações da metáfora, que aproxima Teatro e Religião, na senda do que defendia Fernando Amado: As afinidades entre o teatro e a religião provêm de que uma e outra procuram exprimir e transmitir a verdade humana, e, por caminhos diversos, desprezando o acidental e o passageiro, e tentando agarrar os valores eternos, põem em vi­ bração as raízes do ser, e desta maneira abrem campo à comunhão das inteli­ gências. (1991: 132­133)

Pode­se, assim, considerar que a transubstanciação do ator na «terceira coisa» (a fusão de uma parte de si com a personagem criada pelo autor da peça) é o efeito provocado pela autoadministração voluntária de um placebo compósito com a seguinte constituição: — os elementos recolhidos durante o processo de análise; — os elementos produzidos pela imaginação do ator, ao longo do es­ tudo e dos ensaios; — os estímulos e as orientações do encenador/diretor de atores; 407

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— a contracena; — na fase final, o cenário, os adereços, o figurino, as luzes, etc. Convém, agora, recordar a etimologia do substantivo «placebo»: trata­se da primeira pessoa do singular do verbo «placeo, placere» no futuro do indicativo («agradarei», «darei prazer»). E em ninguém como no ator o placebo cumpre essa função de «confortar o paciente», proporcionando­lhe benefícios psicofísicos ape­ nas por via da sugestão. Por isso, quem trabalha com atores na perspetiva que descrevi compreende bem a relevância dos estudos clínicos realizados no âmbito da chamada «mind­body medicine» e os resultados positivos já alcançados por ela no tratamento do cancro e de outras doenças graves, como aqueles que são apresentados por Simonton­Atchley & Sherman (2005). Concluo. Não sei se o efeito placebo é cientificamente comprovável no campo tera­ pêutico, numa dimensão estatisticamente significativa. Não sei sequer se é ética e deontologicamente aceitável prescrever placebos a pacientes. Mas sei que existe um fenómeno na arte do ator muito semelhante ao efeito placebo – e que, no Teatro, é ética e deontologicamente legítimo (e necessário) «prescrever» e «tomar placebos». A beleza inigualável desse processo de criação é que, no caso do ator, ele ainda tem de se esquecer de que, afinal, as substâncias que tomou eram iner­ tes e quimicamente inativas, porque foi apenas o poder auto e hetero­sugestivo do placebo sobre a sua mente que provocou a transformação do seu corpo e da sua alma na «terceira coisa». Por tudo o que ficou dito, parece­me que os estudos clínicos sobre a relação entre mente e corpo na cura de doenças poderiam ganhar com a integração de atores muito experientes nesses projetos de investigação: quem sabe, através dessa participação, se pudesse compreender melhor algumas das capacidades hu­ manas que os atores desenvolvem para o exercício da criação teatral, extraindo­se dessa experiência instrumentos e técnicas que pudessem ser usados em ambiente clínico.

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