A CRIAÇÃO DE VARAS ESPECIALIZADAS EM ASSUNTOS INDÍGENAS

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Disponível em http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2014/03/26/varas- specializadas-terao-preferencia-no-julgamento-de-acoes-civis-publicas, acesso em 31.07.2014.
Ob. Cit. p. 379.
GABBERT, Wolfgang. "Los Julgados indígenas en el sur de México" In CHENAUT, Victoria; GÓMEZ, Magdalena; ORTIZ, Héctor; SIERRA, María Teresa (Coords.). Justicia y Diversidad en América Latina. Pueblos indígenas ante la globalización. México/Ecuador, Ciesas/Flacso, La Casa Chata, 2011, pp. 443-463.
Ob. Cit.
BELTRÃO, Jane Felipe; LIBARDI DE SOUZA, Estella; MASTOP-LIMA, Luiza de Nazaré; FERNANDES, Rosani de Fatima. "Povos indígenas, narrativas e possibilidades de diálogo frente ao 'humanismo' etnocêntrico" In CANCELA, Cristina Donza; MOUTINHO, Laura; SIMÕES, Júlio (Orgs.). Raça, etnicidade, sexualidade e gênero em perspectiva comparada. São Paulo, Terceiro Nome, 2014. No prelo. P. 10.

Ob. Cit. p. 59


A CRIAÇÃO DE VARAS ESPECIALIZADAS EM ASSUNTOS INDÍGENAS: UMA AÇÃO POSITIVA PARA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DOS POVOS INDÍGENAS.

PEDRO BENTES PINHEIRO NETO.
Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UNIDERP e IBDP. Pós-graduado em Direito Administrativo e Administração Pública pela Escola Superior de Advocacia do Pará / PA. Professor de Direito Processual Civil da Universidade Estácio de Sá - Unidade Belém / PA. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro Fundador da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP).

RESUMO: O artigo analisa a criação de varas especializadas em assuntos indígenas como ação positiva para efetivação dos direitos humanos dos povos indígenas.

Os temas relativos aos povos indígenas, suas reinvindicações, seus costumes, culturas e tradições, não é algo tratado no cotidiano do direito positivo brasileiro, sobretudo no campo processual. O tema é específico, requer conhecimento elementar de antropologia, assim como dos tratados e decisões dos tribunais internacionais sobre a matéria.
Como forma de melhorar a aplicação desses direitos, a proposta do artigo é refletir sobre as linhas gerais para criação de varas especializadas ao julgamento de assuntos indígenas, com a criação de um procedimento especial, onde sejam garantidos os direitos elementares das comunidades indígenas, sobretudo no que concerne à sua efetiva participação no processo.
Em realidade, a proposta aqui desenvolvida refletiria o cumprimento de uma obrigação positiva do estado de garantir a efetiva tutela dos direitos de livre determinação, desenvolvimento, participação, consulta e consentimento, garantidos pela Convenção 169 da OIT.
Em razão do disposto no Art. 5º, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, os pactos internacionais de proteção de direitos humanos, vigentes até o advento da Emenda Constitucional 45/2004, possuem status de normas constitucionais de aplicação imediata, e na hipótese de se apresentarem conflitantes com regra inscrita na própria Constituição, deve ser dada primazia à norma que melhor proteger o direito da pessoa humana.
Esta questão foi formalmente superada em face do decreto nº 5.051, publicado no diário Oficial em 20-04-2004, seção I, p. 1, que determina a execução e o cumprimento da Convenção 169 da OIT.
Por conseguinte, a criação de varas especializadas e de um procedimento processual adequado (diferenciado) seria uma tentativa de harmonizar os direitos dos povos indígenas, com a soberania do Estado e dos demais cidadãos submetidos à jurisdição nacional.
Sendo assim, existem dois fundamentos que possibilitam a criação das varas especializadas. Vejamos.
O primeiro fundamento é a Convenção 169 / OIT, que garante --- e impõe aos estado o dever de efetivar --- o direito dos povos indígenas de definir suas prioridades e o modelo de desenvolvimento, direito do seu território, com sua existência, integridade física e cultura. Ao lado desses direitos, existem as garantias processuais, que correspondem ao direito ao devido processo e à proteção judicial, previstas expressamente na convenção. Vejamos:
ARTIGO 9º
1. Desde que sejam compatíveis com o sistema jurídico nacional e com direitos humanos internacionalmente reconhecidos, os métodos tradicionalmente adotados por esses povos para lidar com delitos cometidos por seus membros deverão ser respeitados.
2. Os costumes desses povos, sobre matérias penais, deverão ser levados em consideração pelas autoridades e tribunais no processo de julgarem esses casos.
ARTIGO 10
1. No processo de impor sanções penais pre-vistas na legislação geral a membros desses povos, suas características econômicas, sociais e culturais deverão ser levadas em consideração.
ARTIGO 12
Os povos interessados deverão ser protegidos contra a violação de seus direitos e deverão poder mover ações legais, individualmente ou por meio de seus órgãos representativos, para garantir a proteção efetiva de tais direitos. Medidas deverão ser tomadas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em processos legais, disponibilizando-se para esse fim, se necessário, intérpretes ou outros meios eficazes.

De fato, a convenção prevê uma norma programática e uma verdadeira obrigação positiva do Estado de adotar medidas que "deverão ser tomadas para garantir que os membros desses povos possam compreender e se fazer compreender em processos legais, disponibilizando-se para esse fim, se necessário, intérpretes ou outros meios eficazes".
No final do dispositivo do art. 12, existe uma cláusula geral de efetivação, quando prevê "outros meios eficazes". Portanto, a criação de varas indígenas especializadas tem evidente previsão legal.
A medida também é interessante considerando o contexto de judicialização dos direitos econômicos, sociais e culturais, sendo que as comunidades indígenas têm cada vez mais buscado socorro no poder judiciário para resolver seus litígios, seja contra os cidadãos-não-índios, seja contra empresas ou, sobretudo, contra o próprio estado.
Sobre este fenômeno, destaca Malcolm Langford: "Nas últimas duas décadas, temos testemunhado uma mudança radical. Os DESC parecem haver sido, em parte, resgatados das controvérsias em que estavam imersos, em especial em relação à sua legitimidade, legalidade e justiciabilidade, além de terem recebido, em muitas jurisdições, um lugar de maior destaque no que se refere às atividades de advocacy, no discurso de direitos e na jurisprudência".
Christian Coutis pontua que a Corte Constitucional colombiana, na sentença T-704/06, teve oportunidade de decidir sobre o dever do estado em desenvolver ações positivas para possibilitar o efetivo gozo dos direitos pelos povos indígenas. Vejamos o comentário do doutrinador:
"O tribunal aponta que o Estado está obrigado a desenvolver ações positivas para o pleno gozo desses direitos pelas comunidades indígenas, enfatizando a estreita relação entre o gozo de direitos econômicos, sociais e culturais e o gozo do direito à subsistência e identidade cultural. Isso se traduz na obrigação de dar às comunidades indígenas, em especial àquelas mais desatendidas, os recursos necessários para satisfazer tais direitos. Destaca também que, apesar da existência de regimes descentralizados de repartição de competências em um Estado, regem os princípios de coordenação, subsidiariedade, concorrência e solidariedade – de acordo com os quais todas as entidades territoriais envolvidas têm responsabilidade em assegurar que os recursos cheguem efetivamente às comunidades indígenas."
Neste ângulo, a garantia de prestação de tutela jurisdicional adequada e efetiva, é obrigação citada por Abramovich, quando afirma que "o Estado pode cumprir sua obrigação fornecendo serviços à população, de forma exclusiva ou em modalidades de garantia mista que incluam, além de um aporte estatal, regulamentações que contemplem os cidadãos afetados por restrições, limitações ou obrigações", como, por exemplo, a adequada distribuição da jurisdição, que é igualmente um relevante serviço público.
Possibilitar a existência de um processo efetivo é uma comprovação de efetivo cumprimento das obrigações estatais. À propósito, é um dos elementos do que Laura Pautassi chama de "processo de integración transversal", que seria a "aferição do grau de compromisso estatal em matéria de satisfação de direitos, o que compreende todas as políticas públicas, todos os programas, todas as medidas de governo, de modo que permite incorporar no desenvolvimento aquilo que os indicadores ou os sinais de progresso não captam a priori, mas que se integra dentro de um plano de ação estatal em direção à satisfação dos direitos humanos" (tradução livre).
Portanto, este seria um indicador interessante de que o Brasil, através dos esforços dos poderes legislativo, executivo e judiciário, estão cumprindo com suas obrigações.
É correta e perceptível a afirmação de Malcolm Langford, ao citar Gauri e Brinks, que os tribunais "atuam como "atores pró-majoritários", no sentido de que "suas ações estreitam a brecha existente entre os anseios sociais amplamente compartilhados e políticas incompletas ou embrionárias por parte do governo; ou, ainda, entre as ações de empresas privadas e os compromissos políticos assumidos".
Em outras palavras, a distribuição adequada da jurisdição, com procedimentos específicos para os conflitos indígenas é a aplicação pura da Convenção 169 da OIT e dos anseios de concretização dos direitos humanos no campo processual.
É isso que recorda RAQUEL YRIGOYEN FAJARDO, quando afirma que, no campo processual, os direitos obrigam os estados a não tomar decisões que possam afetar os povos indígenas sem implementar o diálogo, participação e consulta prévia.
E a partir daí é possível expor o segundo fundamento para criação de varas especializadas, que é justamente o princípio do devido processo legal, previsto expressamente na CF, Art. 5º, XXV, que traz a garantia da existência de um processo adequado para proteção de cada direito. Aliás, é este o fundamento para a existência de diversos procedimentos especiais na legislação brasileira: dar a tutela específica cada tipo de direito, isto é: proteger de forma diferenciada os direitos diferenciados.
Afinal, como lecionam os professores José Miguel Garcia Medina, Fábio Caldas de Araújo e Fernando Fonseca Ganjardoni:
Devem as regras processuais guardar simetria com as regras de direito material, vale dizer, os direitos materiais devem comportar uma dimensão processual adequada a garantir sua eficácia, o que impõe reconhecer a existência de um direito subjetivo ao processo adequado (due processo of law), ao qual corresponde o dever do Estado de realizar eficazmente os direitos através do processo.
Tem-se, assim, que a existência de um direito material implica automática correlação, no plano do processo, de procedimento adequado. Nãos sendo assim, se estaria diante de situação paradoxal: o direito material seria previsto abstratamente, mas seria irrealizável concretamente.
No direito brasileiro, são múltiplas fórmulas legislativas que procuram ajustar-se a um número igualmente variado de problemas oriundos do direito material. Procedimentos especiais são previstos no CPC e em leis extravagantes para este fim"
À propósito, não é uma novidade a criação de varas especializadas; para conflitos especiais, existem varas do trabalho, de família, do comércio, trânsito, de violência doméstica, sem contar com todos os procedimentos especiais listados expressamente no Código de Processo Civil.
Destaque-se, que a criação de varas indígenas seria para tratar exclusivamente questões que envolvessem, de fato, temas relacionados às práticas, usos e costumes dos índios. Portanto, seria de competência da justiça federal, por aplicação da CF, Art. 109, XI, que afirma ser dos juízes federais a competência para processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas. Isso sem contar com o parágrafo 5º, que prevê a federalização do litígio quando houver grave violação dos direitos humanos ou obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos.
Na justiça federal, também já existem varas especializadas em meio ambiente, previdenciário, fiscais, etc, que obedecem os procedimentos processuais das leis esparsas que regem a proteção do direito material relacionado.
Por outro lado, no campo penal, o STJ editou a Súmula 140 do STJ, que dispõe: "Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima", porém não há vara específica e muito menos procedimento para garantir a participação efetiva das comunidades indígenas.
O próprio STF ainda não tem consenso sobre os casos de competência da Justiça Federal, mas já pacificou que: "o deslocamento da competência para a Justiça Federal somente ocorre quando o processo versar sobre questões diretamente ligadas à cultura indígena e ao direito sobre suas terras, ou quando envolvidos interesses da União". Confira-se
EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DISPUTA DE TERRAS INDÍGENAS. CRIME PATRIMONIAL. JULGAMENTO. JUSTIÇA ESTADUAL. COMPETÊNCIA. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS DO ARTIGO 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. INOBSERVÂNCIA. REVOGAÇÃO. RECURSO PROVIDO. 1. O deslocamento da competência para a Justiça Federal somente ocorre quando o processo versar sobre questões diretamente ligadas à cultura indígena e ao direito sobre suas terras, ou quando envolvidos interesses da União. 2. Tratando-se de suposta ofensa a bens semoventes de propriedade particular, não há ofensa a bem jurídico penal que demande a incidência das regras constitucionais que determinam a competência da Justiça Federal. 3. Prisão preventiva restabelecida pelo Tribunal de Justiça, mediante recurso do Ministério Público, com base em fatos estranhos à acusação. Inobservância dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal. Revogação. 4. Recurso parcialmente provido.
(RHC 85737, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 12/12/2006, DJe-152 DIVULG 29-11-2007 PUBLIC 30-11-2007 DJ 30-11-2007 PP-00129 EMENT VOL-02301-02 PP-00333)
A ausência de uma lei e/ou procedimento processual que determine os casos de competência, gera confusão na própria jurisprudência que tem dificuldades para distinguir quais são as causas onde estão envolvidos direitos indígenas e quais as abrangidas pelo direito comum.
Contudo, quem tem o conhecimento específico sobre a cultura indígena, para definir o que é e o que não faz parte do arcabouço cultural indígena?
Ou seja, não existe qualificação e muito menos preocupação em se adequar o direito indigenista às composições das lides. Por outro lado, na instalação de varas especializadas, o operador do direito, obrigatoriamente, tem que conhecer não só o direito indigenista, mas também, as peculiaridades que envolvem esses povos, através da qualificação de seus agentes: Juízes, Promotores e defensores no arcabouço de normas que disciplinam o direito de povos indígenas.
Nesse sentido, merece citação o clamor de Wilson Matos, índio residente na Aldeia Jaguapiru / MS, advogado, pós-graduado em Direito Constitucional, Presidente do Comitê de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas de MS:
"Mas, avocar tais normas em socorro do indígena em peças processuais suscita embargos de declaração, já que simplesmente é ignorada pelos nossos tribunais notadamente os de 1ª instancia, o que tem contribuído consideravelmente para aumentar o numero de detentos indígenas nas penitenciárias do nosso Estado. Mais de uma centena de indígenas estão hoje na prisão, verdadeira "universidade" do crime, e, em algum tempo estarão voltando ao seio da comunidade trazendo consigo outros costumes, que passam à ensinar aos outros membros da comunidade, tornando-se assim, agentes eficazes do etnocídio cultural dos nossos povos nas minúsculas reservas, já devastada pela violência, fome, desnutrição, preconceito e racismo e sem perspectiva de vida que fatalmente culmina com o suicídio dos nossos jovens. Varas especializadas já!!!" (disponível no site: http://diarioms.com.br/varas-especializadas-de-atendimento-aos-indios-ja, visualizado em 31.07.2014).
Parece, com isso, que existe uma demanda da própria comunidade indígena, para instalação das varas especializadas.
E o grito não aparenta ser em vão. O Senado Federal tem projetos de lei que onde Varas especializadas terão preferência no julgamento de ações civis públicas. Trata-se do PLS - PROJETO DE LEI DO SENADO, Nº 472 de 2013, do Senador Pedro Taques.
Esse instrumento jurídico permite assim defender direitos relativos ao meio ambiente, à segurança pública e a outras áreas, bem como proteger os interesses de grupos sociais ameaçados (como, por exemplo, os índios).
A proposta ainda é tímida, mas compreende o conteúdo substancial do devido processo legal.
O relator do projeto senador Ciro Nogueira (PP-PI), que recomendou a aprovação da proposta, fez ressalva interessante no seu parecer.
"Como os servidores atuantes nessas varas – os magistrados, inclusive – já possuem experiência e o cabedal de conhecimentos específicos indispensáveis à solução ótima da lide, tende-se a um ganho de eficiência e, por conseguinte, diminuição dos custos no processamento das ações civis públicas"
Percebe-se, que a intenção do projeto é justamente deixar servidores que conheçam a realidade para julgar as causas e, com isso, prestar uma tutela jurisdicional justa, adequada e efetiva.
Afinal, cada povo indígena tem uma forma de resolver seus conflitos. Como pontua RAQUEL YRIGOYEN FAJARDO, existe um princípio de que os povos indígenas tem igual dignidade a todos os povos e culturas, para controlar suas instituições e determinar livremente suas formas de vida e modelo de desenvolvimento. Trata-se de um novo modelo que tutela o direito indígena, superando a ideologia colonial de minoridade ou incapacidade indígena.
Dentro desta linha como prever procedimentos especiais e varas indígenas, que representem verdadeiros mecanismos adequados de resolução de conflitos entre atores Estados-povos-empresas?
É necessário pensar e adequar, pois os processos judiciais são longos, custosos, e os membros da classe indígena sofrem discriminação dos funcionários. Não existem tradutores, e muitos indígenas, não raro, são encarcerados e privados de seus bens sem saber o porquê. Além do fato de se sentirem intimidados no ambiente judicial, excessivamente formal, etc...
E mais, como bem aponta WOLFGANG GABBERT, não raro, as comunidades indígenas, por estarem distantes dos grandes centros estabelecem sua forma própria de regulação dos conflitos, que diferem da prática oficial e, portanto, consideradas ilegais em muitos casos.
O exemplo do sul do México é algo que pode servir como parâmetro para pensar em uma solução.
Na segunda metade dos anos 90, os estados do sul do México, com uma população considerável, reconheceram em suas Constituições ou legislações seu caráter pluricultural e os direitos dos povos indígenas de desenvolver e fortalecer seus sistemas normativos de resolução de conflitos.
Como forma de avançar, incorporaram novas formas de jurisdição à nível local. Apesar de compartilhar a mesma finalidade declarada, essas novas instituições tem estruturas e lógica de funcionamento totalmente diferentes, como relata WOLFGANG GABBERT, em uma caprichada pesquisa, onde os dados por ele coletados são utilizados como referência neste artigo.
O autor estuda o caso de quatro comunidades diferentes, onde existem formas de resolução de conflitos, obedecidas as peculiaridades de cada local. São quatro estados: Oaxaca, Chiapas, Quintana Roo y Campeche.
Trata-se da efetivação dos direitos dos povos indígenas de desenvolver e fortalecer seus sistemas normativos de resolução de conflitos.
Depois de analisar, cautelosamente, o modo de funcionamento de cada estado mexicano, de acordo com a pesquisa de Wolfgang, é possível extrair importantes características e práticas, que poderiam muito bem ser aplicadas para criação de um procedimento processual adequado em varas especializadas em assuntos indígenas no Brasil. Vejamos, exemplificativamente, sem qualquer pretensão de exaurir o tema:
O estabelecimento órgãos de representação do povo indígena (respectivamente à etnia), cujos membros devem ser eleitos pelos seus membros, conforme seus diversos usos, costumes e tradições. Seria uma espécie de amicus curiae, cuja presença seria indispensável nos processos.
Deve haver sempre um tradutor para que o indígena possa falar na sua língua nativa, sem se sentir oprimido.
É importante a existência de se convocar um grupo, para que, pelo menos uma vez ao ano, se analise temas relacionados com os usos, costumes e tradições do povo indígena.
A lei também poderá prever a instalação de uma procuradoria de assuntos indígenas, tendo conhecimento específico sobre os temas, usos e costumes das comunidades indígenas da região.
O órgão de corregedoria deve ser composto por um magistrado de assuntos indígenas, representantes dos centros indígenas, para vigiar o desempenho dos juízes tradicionais.
A forma de investidura dos juízes e o conteúdo programático do concurso deve contemplar os temas específicos de direito internacional que trata dos direitos indígenas, assim como as decisões das cortes internacionais e as lições elementares de antropologia jurídica.
Os membros das comunidades indígenas devem participar do processo de elaboração do certame e processo seletivo.
Os candidatos a magistrados devem viver no território onde se instalará a vara e conhecer os usos e costumes.
O procedimento poderá ser informal, mas documentado na forma escrita, inclusive com tradução para o idioma indígena, garantido o contraditório e todos os meios de provas e recursos inerentes.
A execução da decisão deve ser acompanhada pelo órgão de representação indígena.
As audiências poderão se realizar na aldeia ou em território neutro, para que os indígenas não se sintam intimidados pela infra-estrutura.
É necessário haver sempre encontros e reuniões entre os juízes, para que haja o intercâmbio de ideias, o reconhecimento de problemas comuns, e propostas para aprimoramento do sistema.
À guisa de conclusão, estas adaptações ao procedimento fomentariam uma tendência à unificação da prática jurídica em sua comunidade, mesmo que se diferenciem do direito do estado.
Portanto, penso que a criação das varas especializadas seria um ponto de harmonia entre o próprio dilema entre a diversidade cultural e os direitos humanos, que trazem à tona o problema do preconceito via falso humanismo.
Como afirmam Beltrão, Libardi de Souza, MastoP-Lima e Fernandes: "estamos diante de um 'humanismo' etnocêntrico assustador, que se configura como racismo – e, como tal, passível de punição", em seguida conclui: "O dilema, portanto, não está na (im)possibilidade de conciliação entre Direitos Humanos e diversidade cultural, mas no desrespeito à diversidade cultural que informa atitudes discriminatórias e racistas, fundadas em um 'humanismo' etnocêntrico, incapaz de promover o diálogo".
É exatamente em respeito à diversidade cultural, que é necessária a presença de seus representantes no processo de modo que haja uma solução harmônica, pelo menos no que concerne à forma de resolução de conflito. Isso significa dizer que, nesses casos, o procedimento deve ser ultra flexível e permitir a mudança prévia, desde que acordada pelas partes.
Poderia se pensar na adaptação do procedimento, como se faz na arbitragem, onde os detalhes dos procedimentos são decididos previamente pelas partes, que aceitarão a decisão que for tomada, desde que sejam obedecidos os consensos prévios relacionados à participação das partes, do julgador e, sobretudo, a garantido do devido processo legal substancial, que corresponde ao direito de influenciar o julgador.
Por exemplo, uma comunidade indígena e um fazendeiro poderiam acordar previamente como vai se processar seu litígio, quais os pontos que deverão ser analisados pelo julgador, onde se realização as provas, quem serão as pessoas ouvidas, etc., sujeitando-se à decisão final, semelhante como ocorre com arbitragem.
É indispensável incluir os indígenas no processo de elaboração das dos procedimentos processual, através de órgãos representativos, inclusive no legislativo e no judiciário.
Obviamente, que a proposta da criação de varas especializadas, encontraria o problema da diversidade de das ações que abrangem os direitos indígenas. Haveria, no caso concreto, problemas relativos ao conflito de competência em razão da matéria.
É o que exporá Christian Courtis, quando afirma que é ampla a variedade de ações: "por exemplo, a Convenção 169 foi invocada em ações de inconstitucionalidade, em ações de amparo ou tutela constitucional, em controvérsias entre poderes, em ações político-eleitorais, em ações de nulidade em matéria contencioso-administrativa, em ações civis ordinárias (nas quais são discutidos assuntos de propriedade ou despejo, por exemplo), em ações penais, em ações que tramitam no foro agrário, entre outras".
Por fim, sem qualquer intenção de esgotar o tema, este artigo apresenta apenas uma proposta a se pensar, considerando todo o contexto de judicialização dos direitos e os tratados internacionais que garante a participação e consentimento dos indígenas nos assuntos de seu interesse.



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