A criação do corpo em articulação com a estética fílmica: modalidades de agenciamento da linguagem cinematográfica pelo ator
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A criação do corpo em articulação com a estética fílmica
Modalidades de agenciamento da linguagem cinematográfica pelo ator
Rejane Kasting Arruda
A CRIAÇÃO DO CORPO EM ARTICULACÃO COM A ESTÉTICA FÍLMICA Modalidades de agenciamento da linguagem cinematográfica pelo ator
Rejane Kasting Arruda Doutoranda na Escola de Comunicação e Artes -‐ Universidade de São Paulo Atriz, encenadora e professora de atuação para cinema
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Nossa hipótese é que o agenciamento da linguagem cinematográfica pelo ator não se circunscreve à representação da diegese. Tecida por imagens, esta se apresenta como uma modalidade de construção plástica junto a outras, como, por exemplo, a plástica do corpo. A imagem de Lilian Gish em “The Wind” (Sjöstrom, 1928)1 – em meio ao imenso cabelo e misturada aos gestos – implica uma plasticidade emaranhada a certos significantes (ordem da linguagem). Mas se, por um lado, as suas formas se instalam como signos articulados a ação dramática, por outro, restam ao sentido da ação. E nos deparamos, assim, com um jogo calcado nas ambiguidades e substituições dos significantes, que, por sua vez, circulam em torno de um núcleo resistente: o que o espectador não consegue capturar. O semblante de Gish é erigido pela tensão: as linhas do rosto abruptamente se abrem para o que o marcou (o medo do vento, do homem); o olhar, ora encontra-‐se decomposto nos objetos, alienígena (de modo que a atriz perde a conotação de humana), ora repousa delicadamente sobre as imagens do mundo. Em leitura, surge a cadeia: desconfiança, desalento, timidez, tristeza – implicando também o não dito em torno do qual circulam estes significantes, pois uma leitura não dá conta da grafia do corpo. O pêndulo entre os minúsculos gestos e uma espécie de abscesso (os olhos abandonam o corpo mortificado): é a especificidade de sua produção corporal que credencia a atriz como agente da estética do filme. Trata-‐se de um agenciamento que podemos perceber também em “Uma Mulher sobre Influência” (Cassavetes, 1974), com Gena Rowlands. A produção corporal se inscreve no universo diegético ao evocar ações articuladas, neste caso, a uma questão (que se apresenta como porta de entrada): Mabel é mãe, é esposa, é dona de casa, mas, Mabel é também louca? 1
O filme trata de Letty (Gish) que, ao hospedar-‐se com o primo, se depara com uma terrível ameaça: a tempestade de vento que (tal como os pássaros de Hitchcock) assume aspecto perturbador e, pouco a pouco, toma a dimensão do trágico. Para que Letty continue lá, é preciso que se case. Esta é a condição imposta pela esposa do seu primo -‐ que percebe a relação de carinho entre eles. Letty então se casa -‐ resistindo, no entanto, ao amor. Quando o marido viaja, é atacada por um homem do vilarejo, que acaba por ela assassinado. Em meio à tempestade, Letty cede à vertigem que lhe toma o corpo e que só cessa com o retorno daquele que a tomou como esposa.
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Mantendo-‐nos suspensos entre o não e o sim, tecemos uma cadeia de apostas; e um dos pontos de incidência do trabalho de Rowlands é a construção do sentido das ações de Mabel – evocado através dos seus gestos, que deixam, por sua vez, entrever a ambiguidade da sua construção. Isto na medida em que significantes são inscritos no discurso fílmico – e rearranjados a cada instante. Quando conseguimos juntá-‐los e ler o sentido de uma ação, para além da plasticidade implicada, está aquela “espécie de região destampada” por onde a vida se intromete insuportável: o ponto onde incide a angústia. E a maestria da atriz está no escriturar despudorado deste afeto no corpo. O agenciamento da linguagem cinematográfica pelo ator depende, assim, da articulação entre três ordens: o que escutamos no ato de leitura (interpretação), que depende da “linguagem” (os significantes) e a partir do qual tecemos “uma plástica” (imagem, sentido); e “o que não capturamos” (provocando a angústia ou o espanto diante da produção no corpo). Rowlands é despudorada no deixar-‐se levar pelos excessos e jeitões. E assim, podemos ler: Mabel. Mabel é louca! Vemos o sentido da loucura de Mabel nas “birutices da carne de Rowlands”. O agenciamento estaria nesta passagem. É possível detalha-‐la: do trejeito (da irrupção na carne) ao sentido da ação que brota, dando-‐nos a chance de pensar: “O que é isso?” E ver, ainda, surgir “outra coisa”, tornando-‐nos testemunhas da ambiguidade do que escutamos do discurso fílmico: “Ah! Mabel olha dentro da boca do homem que canta à mesa! Mabel quer ver como o som é produzido! Não vai beijá-‐lo, mas, por um instante, eu pensei isto, eu vi isto!” Há um jogo de substituições, que começa com o não sentido do gesto, passa pelo duplo-‐sentido (são duas coisas ao mesmo tempo) e cai na unidade do sentido. Bem antes do proferir da fala da atriz, estes materiais são evocados pelo corpo; e se substituem no discurso fílmico. Através de um “jeitão” ou estilo que não tem, previamente, um sentido -‐ e por onde se aventura, ao deixar irromper o afeto (a partir de palavras implicadas “no seu jogo”, nos bastidores, na estrutura da sua prática) -‐ o ator dedica-‐se a um trabalho do qual o discurso fílmico é efeito. “Não existe personagem e agora vamos jogar”: a preocupação do mestre russo Constantin Stanislavski era que os atores articulassem a sua produção à diegese. 4
Lançando mão de subtextos, monólogos interior, situações paralelas, memória emotiva, esquemas de ações-‐físicas (ou seja, com o seu próprio material), ele deveria emprestar vida à personagem. Eugênio Kusnet evidencia esta operação quando diz que o ator evoca a “segunda instalação” (ficção) com a “primeira instalação” (o seu contexto). Ou seja, o ator ficcionaliza as suas ações. Abre-‐se a porta, então, para a formulação de modalidades específicas deste jogo. A apropriação da situação de representação para evocar a diegese está presente em “O Grande Chefe” (Lars Von Trier, 2006). O ator Jens Albinus utiliza-‐se da dinâmica de bastidor que é tematizada no filme. A articulação com a diegese implica uma semântica do preenchimento do tempo entre gestos e falas na medida em que estes se articulam aos cortes e aos enquadramentos. O filme começa com Kristopher (Jens Albinus) memorizando a fala “Eu sou o presidente da empresa”. Ele interpreta um ator contratado para representar “o grande chefe” (Svend), um personagem fictício, criado pelo verdadeiro dono da empresa: Ravn (Peter Gantzler). Ravn manteve “o grande chefe” virtual (falando por email com os funcionários) até que, a fim de vender a sua empresa, necessitou da presença física do “grande chefe” (e neste momento, contrata Kristopher). Escolhas instantâneas estão implicadas no percurso de Kristopher. A operação empresta um caráter de “não cálculo” às ações da personagem Svend. Por exemplo, ao necessitar revelar o seu nome completo sem, no entanto, possuir a informação: “Vocês podem me chamar de Kristopher” (ele assume o seu próprio nome). “E por que nós lhe chamaríamos de Kristopher?”, diz o funcionário, “o seu nome é Svend E.” Kristopher improvisa: “Isso mesmo, o meu nome é Svend”. E o funcionário: “E o que significa o E?” Ele não sabe dizer. Precisaria, então, inventar o sobrenome do “grande chefe” em um momento de improviso. A borda entre o personagem Svend e o ator Kristopher ganha contorno no filme de Lars Von Trier, explicitando um jogo que geralmente é velado. Se os atores têm informações 5
diversas, se há algo que um sabe e o outro não, quando isto irrompe, a reação é “no próprio contexto”. Flagrada, evoca a ação ficcional e é “como se” o personagem agisse. Ou seja, a plasticidade de um “real” é desenhada a partir das relações sociais onde, de fato, o sujeito-‐ator está inserido. Assim, a atuação parece “natural” (termo problemático, já que se trata, propriamente, da construção de um jogo). O brilho da cena em que Kristopher se encontra o comprador deve-‐se ao seu mau humor e à contrariedade diante fala do outro: “Eu sou o presidente da empresa” (o comprador diz, justamente, o que ele havia decorado para dizer). Se a espontaneidade da surpresa implica o desconhecimento de Jens Albinus ou se o ator de Trier sabia do roteiro e joga com o desconhecimento “de Kristopher”, não temos como saber. Mas, de qualquer maneira, para o comprador da firma (que nada sabe da farsa) aquela é a reação “de Svend” (o personagem inventado) – e não de Kristopher (o ator contratado). Lars Von Trier potencializa os “momentos de não saber” de Kristopher (por exemplo, quando ele precisa falar de informática, um assunto sobre o qual nada sabe). Uma sucessão de ações aparece articulada aos cortes: Kristopher está sentado; um corte e aparece em pé; outro e está novamente sentado. Ele observa a reação dos funcionários, balança a cabeça, respira, pensa, espera. Uma semântica de ações costura o tempo entre as falas, significativas a partir da situação-‐dada. O procedimento faz aparecer esta outra cadeia (de ações), articulada a um pensamento interno do personagem, não dito – que sustenta a construção corporal, tomando o tempo e o espaço. O corpo, quando lido, diz coisas que não estão na fala dos atores. Os arroubos de “pseudo-‐irritação” se desenham, na diegese, como uma estratégia para disfarçar este “não saber”; e alcançam a dimensão do cômico quando Kristopher desfia a série de adjetivos: “Estão horríveis, estão um xixi, estão uma lavagem de porco” (referindo-‐se aos números da empresa). O silêncio é estendido, abrindo espaços para o que o ator faz. Na última cena, esta escansão ganha o estatuto de paródia quando Kristopher brinca de adiar, a cada instante, a assinatura do contrato (chegando a “fazer aviãozinho” com a caneta). Ele sacode a bochecha, como os atores costumam fazer antes de entrar em cena, e pede silêncio ao 6
recinto: “Não ouço direito o personagem. Quais são seus valores morais? Assinaria ou não a venda? Eu não tenho a menor pista. Há simpatias e antipatias guerreando” (e aponta o dedo para o ar, como se escutasse o seu pensamento). Em certos momentos, esta escansão implica o transbordamento da emoção, por exemplo, quando Ravn diz a Kristopher: “Subjulgue-‐os!” (a fala encharcada de voracidade e energia). Em outros momentos (por exemplo, quando Kristopher apanha do funcionário), o tempo é esvaziado de emoção. Há um pêndulo entre as explosões e o vazio emocional -‐ a partir do qual podemos ler o que não é dito pelo personagem (e sim pelo filme ou pelo ator). Aparece uma semântica da atuação, já que, tanto os tempos de distanciamento, relaxamento, distensão e distração, quanto os de “tomação emocional”, se dão a ler. O ator, inscrito na linguagem e encenando os efeitos que, no corpo, esta produz, veicula, na obra, algo excedente. Com o efeito do que escapa ao discurso fílmico, ele agencia o jogo de ambiguidades na construção do sentido. Isto, na medida em que o seu trabalho se estabelece como ruptura. Colocando o discurso sempre em cheque, a cada instante, o ator o produz como devir, instável. Já Ema Thompson em “Tinha que ser Você” (Joel Hopkins, 2009) evoca a plástica de uma cotidianidade articulada a certa representação da realidade (evocada no discurso fílmico). A leitura da ação foge ao controle da atriz. O agenciamento da poética não está na criação da narrativa ou no sistema de representações, mas na formalização corporal -‐ que estabelece a ideia de autenticidade, de pessoa única e humana, imersa no aprisionamento do seu cotidiano, do seu destino, de sua vida. Algo na tessitura do corpo de Thompson evoca um “eu comigo” permeado de estranhamento, deste tal “reconhecer-‐se de novo e de novo”. E, se este se inscreve como material de um discurso fílmico é porque a atriz está perfeitamente inscrita em certa poética que implica a plasticidade do cotidiano. O agenciamento da linguagem cinematográfica aparece na medida em que a atriz se inscreve em certa poética que o antecede. 7
Mas há um “algo a mais” que a película captura e está posto no corpo através da irrupção do afeto. Este “algo a mais” opera uma espécie de brilho que fascina o espectador. Podemos dizer que “Tinha que ser você” trata de uma filha, solteirona, que vive uma relação viciada com a mãe, pois está sempre a colocando a par da sua rotina e encontros. Esta seria uma interpretação, mas pouco importa a hipótese de uma sinopse, e sim o que é tecido no corpo da atriz a partir da irrupção do afeto em torno destes significantes. Isto na medida em que, como dissemos, a atriz se inscreve na poética que a antecede e se sustenta através da presença de uma plasticidade do cotidiano. A primeira cena se passa na cozinha. Thompson brilha com o coloquialismo da fala e gesto, que não é rompido nem mesmo no conflito com a mãe. Ou seja, o conflito é evocado dentro da plasticidade de um cotidiano, sustentada pelo coloquialismo de Thompson. Uma farpa de cá e outra de lá, as duas se abraçam. A cena termina com a mãe dizendo “Eu sou horrível” sem, no entanto, sublinhar o drama. O abraço está permeado de cansaço, déjà vu, repetição. A suspensão de uma cadeia de ações (na diegese) implica um “deixar rolar o tempo” (no contexto da recepção) enquanto as substituições operam uma tentativa de leitura. A partir de um gesto simples (como ler com a cabeça apoiada na janela do ônibus) imaginamos sobre o encontro, substituindo as imagens em recepção. Na ação seguinte, Kate cumprimenta o homem, tira o casaco, bebe. De repente, novamente a suspensão destas ações com o sorriso: a captura do afeto. O seu corpo não é sustentado pela descrição formal (detalhamento do desenho das suas bordas), mas o improviso articula signos: o jeito de sentar, sem as pernas cruzadas ou qualquer outra denotação de feminilidade, um despojamento lido por nós (introduzidos que estamos nas cadeias da ficção). Quando fala ao telefone, um displicente gesto de coçar o nariz; mexe na bolsa ao conversar com a amiga. Há música nos gestos, revezamento, ritmo, bem como na voz, cuja embocadura implica imprecisão e vulnerabilidade -‐ deixando-‐se quebrar, irregular, instável. 8
O deparar-‐se com o enigma do outro está posto no corpo seja com o desajeito, a timidez, o constrangimento, a precipitação, a alegria, a esperança, a decepção, o cansaço, a tentativa forçada da relação, o abandono. Seja qual cadeia escutamos, há um afeto posto no corpo que suspende o gesto. Está aí o “estar diante de si e reconhecer-‐se de novo e de novo” que, no trabalho do ator, implica um agenciamento na medida em que esta suspensão se inscreve na diegese: com os olhos preenchidos de pensamento (para, por fim, brotar o esgar do choro), lá está Kate sentada na tampa da privada. Algo parecido está posto em Margarita Kherékova de “O Espelho” (Tarkovski, 1975): o bailado do corpo imprime certa displicência em relação à presença da câmera; uma “sujeira” cotidiana é levada ao extremo, fazendo com que a leitura de uma “atriz representando” seja totalmente diluída (o que prontamente reverbera a tese de Tarkovski de que o ator deve viver ao invés de representar). A atriz é flagrada alheia à câmera, cujo olhar invade seus gestos displicentes. Há uma espécie de desprezo. Um “corpo sujo” oferece resistência à leitura da situação de representação, ou melhor, à inscrição, no discurso, de que ali está a atriz representando um papel. A “sujeira cotidiana” cumpre o papel de resistência à leitura da elaboração formal (apesar desta, obviamente, estar presente). A atriz esfrega os olhos, massageia a testa. Não “dona do tempo“ (pois quem o esculpe é o diretor), mas “escrava da espera”: pela fala cujo insight ainda veio ou pelo “corta!” (que finalizará aquele plano). O “viver o momento” (e o amor à instantaneidade da revelação de uma incidência viva) depende do jeito do ator lidar com esta espera. Poderíamos dizer que a docilidade com a qual Kherékova submete o seu corpo à “sujeira” do cotidiano se limita a momentos sem o texto. Poderíamos pensar que a fala planejada a amarraria em uma cadeia artificialmente preparada (indo contra a suposta vertigem do “não sei o que vai acontecer”). No entanto, o despojamento do seu “corpo sujo” se intensifica na conversa com o marido (uma cena difícil com um longo texto). Há uma situação ficcional – “circunstâncias dramáticas” (Tarkovski, 1998) – e certos significantes em jogo. No entanto, é o corpo que, impregnado desta “cotidianidade suja”, se revela 9
como a verdade de um jogo extremamente elaborado. É a dedicação profunda a pequenas e insignificantes “coisas fora do script” que respondem ao “o ator tem de existir com autenticidade” de Tarkovski. Isto na medida em que a atriz se impregna de certo bailado entre as partes do corpo que deixa capturar: mão com testa, dedos com olho, braço com rosto. A atriz deixa à mostra o cocuruto desfocado, coça os olhos com o dedo mindinho, estala a língua, enquanto dispara palavras que atingem o alvo sem muito alarde: “O que quer da sua mãe? E ela quer te ver como uma criança outra vez?”. Observamos o manejar de um jogo de enquadramentos plásticos (corpo, fala), com o qual o ator agencia o que, da linguagem, está para além da ficção: “uma das” plásticas possíveis deste jogo. Na hipótese de Tarkovski, o ator vive. Se a personagem surge na montagem (e não cabe ao ator compreender o roteiro), poderíamos dizer que o que o ator vive é “a situação de representação” com a qual, por analogia, evoca e cria a verossimilhança na ficção. São modalidades de agenciamento fundamentadas no corpo como suporte de um excesso. Excesso que se inscreve no discurso fílmico, evocando a diegese e se estabelecendo como material do filme na medida em que há articulação entre o que escapa (e promove a instabilidade do discurso) e o que capturamos em leitura. O ator maneja um jogo de substituições dos significantes implicados na poética que o antecede. O que resta deste jogo retorna como o seu estilo. De maneira que o seu agenciamento, mais do que representar a narrativa, implica a articulação destas três ordens: sentido, linguagem e estilo. ***
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