A CRIMINALIZAÇÃO DA RUA: UM ESTUDO DE IMAGEM DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NA SOCIEDADE E NA MÍDIA TELEVISIVA DE VITÓRIA DA CONQUISTA

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA DEPARTAMENO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO

LUCAS EDUARDO LIMA DANTAS

A CRIMINALIZAÇÃO DA RUA: UM ESTUDO DE IMAGEM DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NA SOCIEDADE E NA MÍDIA TELEVISIVA DE VITÓRIA DA CONQUISTA

VITÓRIA DA CONQUISTA 2014

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LUCAS EDUARDO LIMA DANTAS

A CRIMINALIZAÇÃO DA RUA: UM ESTUDO DE IMAGEM DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NA SOCIEDADE E NA MÍDIA TELEVISIVA DE VITÓRIA DA CONQUISTA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado junto ao curso de Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Orientador: Prof. Ms. José Luís Caetano da Silva

VITÓRIA DA CONQUISTA 2014

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LUCAS EDUARDO LIMA DANTAS

A CRIMINALIZAÇÃO DA RUA: UM ESTUDO DE IMAGEM DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NA SOCIEDADE E NA MÍDIA TELEVISIVA DE VITÓRIA DA CONQUISTA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado junto ao curso de Comunicação Social, com habilitação em jornalismo, pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Orientador: Prof. Ms. José Luís Caetano da Silva

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________________ Prof. Ms. José Luís Caetano da Silva (DFCH/UESB)

____________________________________________ Prof. Dr. Marcos Antônio Assis Lima (DFCH/UESB)

____________________________________________ Prof. Dr. Francisco Carlos Cardoso da Silva (DFCH/ UESB)

VITÓRIA DA CONQUISTA 2014

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AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus, por permitir chegar neste momento com vida e saúde e ter estado sempre ao meu lado durante este importante período. Agradeço a toda minha família, que me apoiou me incentivou e nunca desistiu de mim. Gostaria de agradecer especialmente aos meus pais, Eduardo e Vilma, e dizer que sem o apoio e a força deles, certamente poderia não estar aqui hoje. Aos meus avós, João e Marieta, que também tanto me apoiaram e me ajudaram a tomar decisões importantes na vida, contribuindo para que eu viesse a me tornar um indivíduo responsável. Agradeço todos os dias pela presença dos meus avós na minha vida. Agradeço a minha avó Ivani, que me acolheu em Vitória da Conquista quando aqui cheguei para iniciar esta jornada. Ao Movimento Estudantil, quero demonstrar minha imensa gratidão por tudo que pude aprender, e agradecer pela formação política, social e humana que este veio me proporcionar durante o período que nele estive inserido. Agradeço a todos os companheiros de luta por todos os momentos vividos. Aos meus amigos, queria dizer que sou grato por todo o apoio e pelas amizades cultivadas nesses quatro anos. Em especial, agradecer a Raí Amorim por todos os momentos que passamos juntos, sendo uma das amizades que levarei para além destes últimos anos. À Thiago Rodrigues, por me conhecer mais de perto e ser compreensivo e amigo. À André Thibes, Ana Paula Marques, Caio Amorim, Gabriela Couto e Joslei Sandro (Mathias), amigos que compartilharam comigo grandes alegrias dentro e fora do ambiente acadêmico. Agradeço aos meus professores, que contribuíram para a minha formação crítica e profissional. Em especial agradeço ao Professor Marcus Lima, pela oportunidade concedida a mim como bolsista de iniciação científica; ao professor Francisco Cardoso pelo apoio e pela ajuda concedida, que foi de suma importância para minha vida acadêmica; ao professor Zé Duarte, pelas inúmeras conversas e debates, pelos ensinamentos passado e pela boa amizade que construímos durante o curso. Um agradecimento de forma muito carinhosa para minha namorada, Gabriella da Costa, por sempre me apoiar, me aconselhar e me amar, tanto quanto a amo. Destacar sua participação direta na construção da ideia deste projeto como também a sua disposição para me apoiar e me dar força para a conclusão deste. Por fim, o agradecimento mais que especial ao meu orientador José Luís Caetano da Silva. Queria deixar clara a minha imensa gratidão e felicidade por esses 4 anos de aprendizado, mas não somente o aprendizado crítico e profissional, e sim o aprendizado para a vida. Durante

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esses 4 anos, ele agiu não apenas como um orientador, mas também como uma figura paterna. Agradeço por tê-lo encontrado aqui nessa universidade, e será sempre a minha maior referência acadêmica.

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“Deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer.” (Chico Science)

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RESUMO A presente pesquisa busca discutir acerca da temática relacionada a População em Situação de Rua (PSR), dividindo em três pilares principais para que se possa compreender sua relação e sua condição dentro da sociedade. Como ponto de partida, a Política Nacional de População em Situação de Rua é discutida buscando entender a visão imprimida pelo Estado a respeito do referido grupo. Após os debates sobre pastoralidade e as análises de resultados oferecidos pela lei, partir-se-á para a relação da PSR com os veículos de comunicação e a maneira que sua imagem é difundida por estes. Para respaldar o estudo, a pesquisa analisou o conteúdo noticioso dos telejornais da TV Sudoeste, emissora afiliada da Rede Globo, com o objetivo de demonstrar de que forma este grupo é retratado pela mídia local. Por fim, uma breve discussão sobre o discurso do morador e o seu lugar de fala, assim como o ato de caminhar sobre a cidade como outra forma de discurso. PALAVRAS CHAVE: População de Rua; Direitos Humanos; Ocultar mostrando; Pastoralidade; Retóricas Ambulatórias.

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ABSTRACT This research aims to discuss on the theme related to Population Homeless (PSR), dividing into three main pillars so you can understand their relationship and their status within society. As a starting point, the National Population Policy for Homeless is discussed in order to understand the vision printed by the State in respect of that group. After that, discussions on pastoral care and the analysis results provided by law, shall break up the relationship to the PSR with the media and the way your image is diffused by them. To support the study, the research analyzed the news content of the news programs of TV West, affiliate of Globo Television, in order to demonstrate how this group are showed by the local media. Finally, a brief discussion of the speech resident and your place of speech, as well as the act of walking about the city as another form of speech. KEYWORDS: Homeless people; Human Rights; Hide showing; Pastorality; rhetorical street.

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LISTA DE ABREVIAÇÕES

BATV – Bahia TV BAMD – Bahia Meio Dia CREAS POP – Centro de Referência e Assistência Social População de Rua LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social MDS – Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome MEC – Ministério da Educação MJ – Ministério da Justiça MNPSR – Movimento Nacional de População em Situação de Rua MS – Ministério da Saúde MTE – Ministério do Trabalho e Emprego ONG – Organização Não Governamental PSR – População em Situação de Rua RAPS – Rede de Atenção Psicossocial SDH/PR – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................11 2. A POLÍTICA NACIONAL DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA..........................................................................................13 2.1 O MORADOR DE RUA PARA O ESTADO: A CONSTRUÇÃO DE UM PERFIL DA PSR PARA POLÍTICAS PÚBLICAS..................................16 2.2 GOVERNAMENTALIDADE E PATERNALISMO: A POLÍTICA NACIONAL COMO FERRAMENTA PASTORAL DO ESTADO......................20 2.3 PROPOSTAS E RESULTADOS DA POLÍTICA NACIONAL DE POPUAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA.........................................................25 2.3.1 2.3.2 2.3.3 2.3.4 2.3.5 2.3.6

DIREITOS HUMANOS...........................................................................26 TRABALHO E EMPREGO......................................................................27 ASSISTÊNCIA SOCIAL..........................................................................27 SAÚDE.....................................................................................................28 EDUCAÇÃO............................................................................................29 CULTURA................................................................................................30

3. A COBERTURA MIDIÁTICA SOBRE A PSR........................................................31 3.1 ANALISES E DEFINIÇÕES TÉORICAS SOBRE O TELEJORNALISMO........................................................................................35 3.2 A AUSÊNCIA DA POPULAÇÃO DE RUA NO TELEJORNAL DA TV SUDOESTE....................................................................38 3.2.1 3.2.2

A INVISIBILIDADE DENTRO DO TELEJORNAL...............................39 O “OCULTAR MOSTRANDO” ..............................................................42

4. POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: A REPRESENTAÇÃO DO INDIVÍDUO NO MEIO SOCIAL...............................44 4.1 A RETÓRICA DISCURSIVA DA PSR: O LUGAR DE FALA E O DISCURSO COMO FERRAMENTA DE APODERAMENTO........................46 4.2 A RETÓRICA DO ESPAÇO.................................................................................51 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................55 6. REFERÊNCIAS..........................................................................................................57 7. APÊNDICE..................................................................................................................61

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1. INTRODUÇÃO

Discutir acerca de grupos em situação de risco é sempre uma tarefa delicada. É necessário estar sempre atento não só as denominações, mas aos argumentos usados para defender o tema. O tema da população de rua se comporta como um segmento dentro das discussões já existentes no que tange a situação de pobreza. Comum à área de estudo em Direitos Humanos, vemos que as abordagens relacionadas a comunicação ainda se apresentam de forma singela, logo que a temática só começou a ter visibilidade dentro do campo de estudo da comunicação nos últimos 10 anos. A necessidade de colocar em pauta a temática da PSR dentro da comunicação, se dá pela justificativa de tentarmos inserir mais temas voltados para a grande área das ciências sociais – área da qual pertence a comunicação – nas discussões do jornalismo, ressaltando a sua função principal, o serviço à sociedade. Problematiza-se este tema também para analisarmos como o jornalismo enxerga o referido grupo, e de que forma ela o enquadra. Este trabalho tenta expor as diferentes visões acerca da PSR. Em primeiro momento, se estrutura uma análise sobre a visão do Estado, usando a Política Nacional de Inclusão Social para População em Situação de Rua como elemento definidor do pensamento institucional, logo que se trata de uma política de Estado, ao invés de ações governamentais. Apresenta-se os pilares em que a Política é elaborada e posteriormente, análises questionando seu caráter pastoral e paternal com a população de rua. Em seguida, partir-se-á para a abordagem midiática, onde se analisa a maneira que os veículos de comunicação tratam a questão dos moradores de rua na mídia. Fazendo uma abordagem local, foi feita uma pesquisa a respeito do agendamento de notícias nos telejornais da TV Sudoeste, emissora afiliada da Rede Globo de televisão, com o objetivo de detectar o discurso adotado pela mídia local no tratamento destes acontecimentos, ou, a ausência deste em relação a PSR, que de certa maneira também pode ser caracterizado como uma forma de discurso. Ao fim, constrói-se uma discussão sobre o discurso do próprio morador, explanando sobre a sua relevância dentro da sociedade, a partir das reflexões com relação ao seu lugar de fala dentro da sociedade. Outro fator a ser observado são as ações práticas deste indivíduo como a formação de um outro discurso, o discurso prático, o ato de caminhar como forma enunciativa no espaço da cidade. Os métodos escolhidos para proceder com a série de análises e estudos propostos por esta pesquisa foram selecionados de acordo com a adequação do tema e situação específicos,

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de forma em que a metodologia escolhida possa adquirir o máximo de informação possível que seja relevante para a pesquisa. Com ponto de partida, o estudo e pesquisa bibliográfico se faz base para os conceitos teóricos nos quais este projeto se baseia. Será traçada uma trajetória de estudo linear partindo das esferas maiores para as mais especificas, de forma que a coesão do texto e a linha de pensamento fiquem claras. No capítulo referente as questões ligadas a Estado e políticas públicas específicas para o grupo estudado, teremos como base de análise autores que discutam a máquina estatal em sua relevância e necessidade perante a sociedade, e que discutam a maneira paternalista de governar, no caso das políticas voltadas para a PSR. Para as análises práticas de campo, a metodologia usada neste projeto será de estudo de caso. Por estudo de caso entende-se um estudo que representa uma investigação empírica e compreende um método abrangente, com a lógica do planejamento, da coleta e da análise de dados. Pode incluir tanto estudos de caso único quanto de múltiplos, assim como abordagens quantitativas e qualitativas de pesquisa. Magda Maria Ventura, define estudo de caso como O estudo de caso como modalidade de pesquisa é entendido como uma metodologia ou como a escolha de um objeto de estudo definido pelo interesse em casos individuais. Visa à investigação de um caso específico, bem delimitado, contextualizado em tempo e lugar para que se possa realizar uma busca circunstanciada de informações. (VENTURA, 2007, p.384)

Logo, serão realizadas pesquisas nesse quesito através de análises sobre Telejornais locais exibidos pela TV Sudoeste, durante 1 mês, sendo 15 dias de cada edição, selecionando conteúdos voltados para o tema abordado. A escolha do telejornal em questão como objeto de pesquisa se dá pelo fato de seu alcance ao nível regional, à medida que outro meio e veículo de comunicação não consiga ter sua abrangência e credibilidade.

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2. A POLÍTICA NACIONAL DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

Criada em 2008, durante o governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, a Política Nacional de Inclusão Social da População em Situação de Rua surgiu com o objetivo de formular de maneira mais detalhada um plano de métodos e ações. O objetivo era servir de manual ou cartilha para as instituições públicas em suas diferentes esferas (federal, estadual e municipal) com relação as atividades relacionadas com a População em Situação de Rua. A Política Nacional se coloca ainda hoje como uma medida pioneira que veio para orientar o modo do agir governamental junto a PSR. No entanto, algumas outras medidas contribuíram para que esta tenha vindo a ser desenvolvida. No Brasil, o primeiro registro de leis que regulamentem atividades ligadas a assistência social oferecida por algum governo data de 1993, com a criação da LOAS, Lei orgânica de Assistência social. A lei veio regulamentar de forma mais clara os artigos 203 e 204 da Constituição, reconhecendo agora a assistência social como uma política pública de Estado. No entanto, diante deste cenário da nova lei, a PSR não estava incluída no grupo qual se considerava como dependente de assistência do Estado. Os grupos beneficiados pela lei eram: Idosos, criança e adolescente carentes e pessoas com algum tipo de deficiência. Apenas em 2005, A LOAS sofre uma alteração com a obrigatoriedade de inclusão da formulação de programas de amparo também para a População em Situação de Rua, por meio de lei 11.258/05. Este acontecimento talvez, pode ser visto como o marco inicial, o embrião do que seria, 3 anos depois, o empurrão para o desenvolvimento de uma política especifica para a PSR. O texto da Política Nacional é estruturado da seguinte maneira: embasamentos teóricos, caracterização do grupo dentro da população de rua, princípios, diretrizes e ações estratégicas a serem tomadas pelos respectivos setores do poder público. A lei visa garantir alguns elementos que, para um cidadão comum seria algo intrínseco a sua condição social. Porém, pelo processo de degradação dentro da sociedade, ou de mortificação (GOFFMAN, 1961), alguns direitos básicos como moradia, cultura, educação, para este segmento social, se coloca como algo mais difícil de ser adquirido. Adentrando o corpo do texto, faremos uma apresentação dos principais conceitos existentes nesta, traçando análises a respeito dos conceitos defendidos pela Política no que tange a definição de População em situação de Rua, que tipos de indivíduos podem ser inseridos no termo e métodos de caracterização de um perfil deste indivíduo.

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De início, é caracterizado como PSR a população que faz da rua seu espaço principal de sobrevivência e de ordenação de identidades (BRASIL, p.3). A definição inicial da Política é abrangente, logo que vários grupos sociais podem ser inseridos dentro da definição dada. Coloca dentro dela todos as pessoas que, além de morarem na rua, usam esta como espaço de trabalho e transito contínuo. Da maneira colocada, PSR pode ser caracterizada, além dos indivíduos residentes na rua, pessoas que passam maior parte do seu dia no ambiente público, sem necessariamente tê-lo como moradia. Ao contrário, a Pesquisa Nacional de População em Situação de Rua, feita em 2007 para a formulação da Política em 2008, usa de um conceito mais fechado para definir a PSR, onde a característica principal seria residir não só a maior parte do tempo no ambiente público, mas também ter a rua e/ou os albergues como local de descanso e de demais afazeres pessoais (alimentação, descanso, higiene pessoal). Adiante, se defende que a rua não deve ser vista apenas como um local de transito, mas também de construção de identidades: A rua não deve ser vista como um local de circulação entre espaços privados, uma espécie de limbo entre situações reconhecidas, mas como um espaço em si, tão abarcador e produtor de realidades como qualquer outro. Estar na rua é ocupá-la, não como violação do espaço limpo e vazio. É preciso descontruir a bipolaridade ontológica entre normal e anormal colocada para pessoas em situação de rua, considerando a produção e reprodução de identidades sociais. (BRASIL, 2008, p. 4)

Aqui podemos ver com mais facilidade como conceitos convergem a um discurso de rehumanização deste morador dentro da sociedade. Reforça a ideia da rua como um local de residência, de território capaz de produção de identidade, e não apenas como um espaço de transição entre locais de funções distintas (residência, local de trabalho, áreas de lazer, etc.). Afirma também o processo de construção de uma identidade da rua, combatendo um processo semelhante ao que Erving Goffman denominou como mortificação do ser, dentro das Instituições Totais, os ambientes de internação e privação social. Por Instituição total, entendese Pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada. (GOFFMAN, 1961, p.11)

Em comparação as citações acima, podemos perceber que o morador de rua em parte se assemelha com as características usadas pelo autor para descrever o ambiente de uma Instituição Total. No caso da PSR, esta separação social se coloca como um elemento simbólico e paradoxal: apesar de estarem em um ambiente público, a PSR é separada da sociedade, tida

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como excluída socialmente, tendo seu reconhecimento indenitário negado, logo que não se faz uma diferenciação entre os moradores. A Política Nacional vem de certa maneira combater essa postura, que até pouco tempo era uma prática do Estado, que não reconhecia a PSR como um grupo social. Ao esclarecer mais esse processo de negação das identidades, podemos denominar como um resultado do processo de mortificação sofrido pelos moradores de rua. Goffman descreve situação parecida se tratando de novos pacientes em hospitais psiquiátricos. O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo que se tornou possível por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas Instituições Totais, começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu Eu é sistematicamente, mortificado. (GOFFMAN, 1961, p.24)

O fortalecimento das identidades proposto pela Política Nacional, faz com que que o morador de rua pode vir não só a construir, mas reconhecer o espaço em que está inserido como seu habitat. A lei também provoca no que tange a não rotular o indivíduo apenas como um morador de rua, entendendo o processo de formulação dessas “identidades” como foi dito. Reconhecer o ser como morador de rua é uma designação ligada ao espaço em que este se insere, mas não o reduz. Reafirma-se assim, a importância dos laços construídos pela PSR em seu ambiente comum, a lei defende a reintegração desses indivíduos a suas redes comunitárias e familiares, sem necessitar de um distanciamento da rua. A presente política faz parte do esforço de estabelecer diretrizes e rumos que possibilitem a (re)integração destas pessoas às suas redes familiares e comunitárias, o acesso pleno aos direitos garantidos aos cidadãos brasileiros, o acesso a oportunidades de desenvolvimento social pleno, considerando as relações e significados próprios produzidos pela vivência do espaço público da rua. (BRASIL, 2008, p.4)

O fato de integrá-lo novamente a determinadas relações não o obriga a sua retirada do território da rua, traçando uma perspectiva deste morador para com o seguinte espaço. No entanto, ao usar o termo “(re)integração”, dentro do corpo do texto, surge a possibilidade de ambiguidade na interpretação. Nem sempre para estar na rua seja necessário a quebra dessas relações que a lei propõe restaurar. Outro conceito interessante é a maneira que são colocadas as relações familiares dentro do contexto da (re)integração. A família, enquanto modelo tradicional, é colocada como um elemento essencial de recuperação, deixando claro os ideais paternalistas e pastorais desta política de Estado.

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O objetivo da Política Nacional é estabelecer diretrizes e rumos que possibilitem a reintegração destas pessoas às suas redes familiares e comunitárias (BRASIL, p.4), além de tentar desconstruir os preconceitos já existentes dentro do meio social com relação a visão da sociedade sobre a PSR, como forma de humanizá-lo diante dos processos de criminalização sofridos no âmbito social. A Política Nacional se estrutura em dois eixos principais. Um eixo define as ações das estâncias federativas no âmbito municipal, estadual e federal no atendimento as demandas da população. O segundo eixo diz respeito a interdisciplinaridade e intersetorialidade desta política na atuação com a PSR, com relação à outras instituições e movimentos da sociedade civil. Para aplicação dos conceitos desenvolvidos pela lei, além do desenvolvimento das atividades por ela descrita, o Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome realizou, em 2007 a Pesquisa Nacional Sobre a População em Situação de Rua, uma espécie de censo voltado para os moradores de rua, a fim de conhecer as realidades existentes no Brasil, como também a atual condição destes indivíduos, com o objetivo de traçar um perfil comum dentro da População em Situação de Rua.

2.1 O MORADOR DE RUA PARA O ESTADO: A CONSTRUÇÃO DE UM PERFIL DA PSR PARA POLÍTICAS PÚBLICAS

Como já foi dito, o crescimento da preocupação do poder público em relação a População em Situação de Rua se apresenta como um elemento contemporâneo de discussão dentro destas esferas institucionais. A modificação da Lei Orgânica de Assistência Social em 2005 pode ser observada como início de políticas públicas posteriores, e consequentemente, da formulação da Política Nacional. Realizada pelo Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome, a pesquisa tinha como objetivo traçar um perfil da população de rua no Brasil, para servir como base instrumental e de dados para o desenvolvimento do plano estratégico e de ações apresentado em 2008. Para realização da pesquisa, foram apresentados inicialmente conceitos e postulados para ajudarem a definir o objeto de estudo de forma clara como também o campo em que ele estaria inserido. De início, vejamos a definição usada pela pesquisa sobre a PSR:

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Grupo populacional heterogêneo, caracterizado por sua pobreza extrema, pela interrupção e fragilidade de laços familiares e pela falta de moradia convencional e regular. São pessoas compelidas a habitar logradouros públicos (ruas, praças, cemitérios, etc.), áreas degradadas (galpões e prédios abandonados, ruínas, etc.) e, ocasionalmente, utilizar abrigos e albergues para pernoitar. (BRASIL, 2008, p.8)

A pobreza extrema se coloca aqui, como aspecto definidor latente, predecessor dos demais citados. Demais aspectos nesta pesquisa, necessitam de um maior respaldo teórico e argumentativo, pelo fato de não serem gerais e sempre presentes como denota a pesquisa. A pesquisa detectou um total de 51.922 pessoas vivendo em situação de rua. Na época, Vitória da Conquista não se encaixava nos quesitos populacionais de análise, sendo excluída da pesquisa. No entanto, em pesquisa realizada em 2012, foram detectadas um total de 118 pessoas vivendo em situação de rua no município, totalizando um total de 0,034 %, porcentual abaixo da média nacional, de 0,061%. Em comparativo com Feira de Santana, cidade do interior do estado que foi incluída na Pesquisa Nacional, Conquista apresenta um número menor de população de rua em relação ao total da população, logo que Feira de Santana apresenta percentual de 0,041%, um total de 228 pessoas. No âmbito nacional, é importante salientar que os dados apresentados dizem respeito aos indivíduos residentes na rua com idade acima de 18 anos. As pesquisas foram realizadas nas grandes capitais e no Distrito Federal, além das cidades com mais de 300 mil habitantes. A justificativa para a seleção desses municípios baseou-se no argumento de que: Os municípios mais populosos e as capitais concentram maiores recursos, serviços e possibilidades. Assim, tendem a ser mais procurados por pessoas em situação de vulnerabilidade que necessitam de oportunidade de empregos e condições favoráveis para a sua sobrevivência. (BRASIL, 2008, p.9)

Segundo a pesquisa, o levantamento de campo foi separado de duas formas: Censitário e amostral. Para o levantamento censitário foi desenvolvido um questionário composto de 29 perguntas, enquanto o amostral foi constituído de 62 perguntas. O trabalho de campo da pesquisa foi realizado pelo período noturno, justificando que a população já estava acomodada nos pontos de pernoite que foram mapeados anteriormente. Para facilitar o contato com este grupo em situação de risco, os pesquisadores contaram com a participação de educadores sociais e alguns moradores de rua na fase de abordagem e entrevista, tendo assim uma pequena taxa de recusa (13,4% dos moradores abordados). A pesquisa contou com um efetivo total de 1.479 pessoas em campo, sendo 55 coordenadores, 269 supervisores, 926 entrevistadores e 229 apoiadores. A pesquisa não foi realizada em períodos que pudessem provocar um deslocamento incomum dos moradores de rua, como feriados e períodos de festas, prevenindo de possíveis distorções nos resultados.

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Os dados apresentados mostraram que em média, a População em Situação de rua integra um total de 0,061% do total da população das cidades estudadas. Indicando logo de início, a pesquisa mostra que o perfil da maioria da População de Rua é do sexo masculino (82%), possui idade entre 25 e 44 anos (53%). Com relação a raça, observa-se um desnível entre as etnias na rua: 29,5 % brancos e 67% se declaram negros, reafirmando a matriz étnica nacional, onde 53% da população é declarada negra. Os aspectos relacionados a educação demonstram que uma maioria expressiva dessa população sabe ler e escrever, tendo cursado o primeiro grau. Os dados demonstram uma pequena parcela relacionada a moradores de rua também incluídos durante o período das pesquisas no ensino formal e profissionalizante:

Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, Meta/MDS, 2008.

Perguntados sobre o local onde costumam dormir, 69,6% dos moradores afirmaram que tem a rua como local principal. Outros 22,1% costumam dormir em albergues, e 8,3% alternam entre os dois ambientes. Com relação as preferências entre os locais de descanso, 46,5% manifestaram a preferência por dormir na rua, contrastando com 43,8% que optaram pelos albergues. Dos dados referentes aos moradores que tem o albergue como lugar preferido para repousar, 67,6% justificam sua resposta apontando a violência como o fator preponderante nesta escolha. Um dado importante diretamente relacionado é o de número de homicídios de População em Situação de Rua nos últimos anos: De acordo com dados da Secretária de Direitos humanos da Presidência da República, entre os anos de 2010 e 2014, 835 assassinatos foram registrados contra a população de rua em todo o país (BRASIL, 2014). Ao analisar os moradores que preferem dormir na rua, 43,9% apontaram a falta de liberdade nos albergues como principal agravante, tendo o horário (27,1%) e o uso de álcool e drogas (21,4%) como demais fatores. Em relação a esses dados, a pesquisa aponta que apenas

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35,5% justificou o uso de algum tipo de droga como justificativa de se encontrar em situação de rua. No tocante a aspectos relativos a ocupação desta população, a pesquisa apresentou um dado importante, contrapondo a visão que certos setores da sociedade tenta difundir em face deste moradores: A população em situação de rua é composta, em grande parte, por trabalhadores: 70,9% exercem alguma atividade remunerada. Destas atividades destacam-se: catador de materiais recicláveis (27,5%), flanelinha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%). Pedem dinheiro como principal meio para a sobrevivência apenas 15,7% das pessoas. Estes dados são importantes para desfazer o preconceito muito difundido que a população em situação de rua é composta por “mendigos” e “pedintes”. Aqueles que pedem dinheiro para sobreviver constituem minoria. Deste modo, a maioria tem, ainda que não estejam exercendo no momento: 58,6% dos entrevistados afirmaram ter alguma profissão. Entre as profissões mais citadas destacaram-se aquelas vinculadas à construção civil (27,2%), ao trabalho doméstico (4,4%) e à mecânica (4,1%). (BRASIL, 2008, p.12)

Os dados apresentados na citação acima desconstroem os argumentos que reforçam pontos de vista preconceituosos sobre a PSR e demonstram os elementos pejorativos contidos nos termos usados para definição desta, como “pedinte” ou “mendigo”, que semioticamente, são usados com intenção de reduzir o indivíduo a uma condição inferiorizada dentro da estrutura social. São alocados geralmente em setores de atividades informais, logo que a maioria não possui documentação necessária. O estudo mostra que 24% desta população não possui quaisquer tipo de documentação básica, inviabilizando não apenas em fatores relacionados ao trabalho, mas também o acesso a programas governamentais e o direito ao voto. Dentre os entrevistados, 61,6 % não possuem título de eleitor, 59,9% carteira de trabalho, 57,4% não tem registro de CPF, 49,2% certidão de nascimento ou de casamento e 40,7 % não portam carteira de identidade. Apenas 21,9% da PSR possui todos os documentos mencionados na pesquisa. Ao comprovar esses obstáculos de inserção no mercado formal, a pesquisa relatou que durante sua aplicação, apenas 1,9 % dos entrevistados que estavam trabalhando possuíam uma ocupação com carteira assinada. Referindo-se a programas governamentais, constatou-se que a grande maioria desta população não tem acesso aos benefícios oferecidos pelo governo: 88,5% não participam de nenhum programa governamental de assistência social. Entre os que recebiam algum tipo de benefício, destacaram-se aposentadoria (3,2%), Bolsa Família (2,3%) e Benefício de Prestação Continuada (1,3%). Após os dados oferecidos pela pesquisa de campo realizada, a conclusão exposta pelo estudo foi que

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O olhar atento sobre a realidade desse público permite concluir que as pessoas que vivem em situação de rua sofrem todas as formas de violação de seus direitos humanos, utilizando-se de diferentes estratégias para sobrevivência. Propor políticas públicas nessa área requer identificar algumas dessas estratégias. (BRASIL, 2008, p. 13)

A partir dos dados expostos pela Pesquisa Nacional o Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome pode traçar um perfil genérico do morador em situação de rua, no intuito de partir desse pressuposto para formulação da Política Nacional a posteriori. Logo, fazendo uma síntese das análises chegamos ao seguinte perfil: Homem, negro, alfabetizado, exercendo algum tipo de atividade informal remunerada, sem documentos e direito ao voto, não participando de nenhum programa governamental de assistência social e claro, tendo a rua como principal local de descanso. Os dados expostos pela pesquisa e trazidos para este ensaio, servirão mais a frente, para ajudar na análise das notícias veiculadas pelo telejornal local da TV Sudoeste – da Rede Bahia, afiliada da Rede Globo no estado – no que tange as temáticas voltadas para a População em Situação de Rua. Ainda neste capitulo, construiremos análises referentes ao caráter das ações propostas pela Política Nacional, explicitando como o viés de pastoralidade se encontra inserido. Outra perspectiva a ser abordada dentro deste contexto é o conceito de “estado de polícia” desenvolvido pelo filosofo francês Michel Foucault, acusando ser o método adotado pelos estados modernos nas relações entre o poder governamental e a sociedade, denominado por Foucault como “Governamentalidade”.

2.2 GOVERNAMENTALIDADE E PATERNALISMO: A POLÍTICA NACIONAL COMO FERRAMENTA PASTORAL DO ESTADO

A partir do pressuposto da organização do Estado Moderno, demonstrar-se-á como este apresenta características pastorais no que diz respeito às práticas de governo, através de suas ações e desenvolvimento das políticas públicas setorializadas. Explicitaremos como a Política Nacional de Inclusão Social para a População em Situação de Rua foi pensada dentro deste conceito, através da análise da base argumentativa, comparando com conceitos desenvolvidos por Michel Foucault acerca da pastoralidade das políticas de Estado e também do modus operandi de governo que o filosofo denomina Governamentalidade. De início, é interessante provocarmos a discussão acerca dos modelos de Estado atual. Apresentaremos os conceitos elaborados por Foucault como base do argumentativa para

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analisar o Estado nos dias de hoje, sobre o pilar do Estado de Polícia (FOUCAULT, 1981), defendido por ele. A partir do século XVI o Estado vem se transformando e agregando novas responsabilidades. Denominado por Foucault por arte de governar, o autor define o papel do governo dentro deste modelo: Problemática do governo das almas e das condutas; tema da pastoral católica e protestante; problema de governo das crianças, problemática central da Pedagogia, que aparece e se desenvolve no século XVI; enfim, problemas do governo dos estados pelos príncipes. Como governar, como ser governado, como fazer para ser o melhor governante possível, etc. (FOUCAULT, 1979, p. 277-278)

De acordo o argumento acima, Foucault explica que dentro deste novo método de governar, atribuições que antes diziam respeito e eram de responsabilidade de outras áreas e instituições, agora são competência ligadas ao Estado. Com este remodelamento estrutural em relação a arte de governar, o Estado se incide ainda mais na vida da sociedade, retratando parte do poder das demais instituições – poder efetivo, de ações práticas – colocando-as no patamar de simbolismo dentro da sociedade. Esta “arte de governar” tenta sintetizar a política de governar, além de tentar unir quesitos como a moral e a economia. Ao citar instituições que obtiveram um caráter simbólico e tiveram seu poder sobre a sociedade reduzido, temos a Igreja. Hoje, O poder religioso não possui mais a influência que detinha dentro da máquina do Estado na Idade Média. A inquisição, julgamento realizado pelo Clero católico baseado nos dogmas de sua religião, ilustra de forma concreta o poder que se encontra em mãos da Igreja. No entanto, o caráter pastoral da igreja de “guiar o rebanho”, foi incorporado também pelo Estado. Com relação a esta apropriação feita pelo Estado do modelo pastoral proveniente da Igreja Católica, Foucault explica que Por um lado a concentração estatal, por outro a dispersão e dissidência religiosa: é no encontro destes dois movimentos que se coloca com intensidade particular do século XVI, o problema de ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo, com que método, etc. Problemática geral do governo em geral. (FOUCAULT, 1979, p. 278)

A partir deste momento, pode-se entender com mais clareza a remodelação do Estado em relação a pastoralidade. O Estado iniciou assim, um processo para se infiltrar mais na vida dos indivíduos. Este, que antes tinha a preocupação de manter sua soberania diante do povo e dos territórios a sua volta, reformula-se com o objetivo de governar a população. Se anteriormente o governo da conduta era característica da igreja, com esta transformação, cabe agora ao Estado esta tarefa. Acerca do novo modelo adotado, Foucault completa:

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Governam-se coisas. Mas o que significa esta expressão? Não creio que se trate de opor coisas a homens, mas de mostrar que aquilo a que o governo se refere é não um território mas sim um conjunto de homens e coisas. Essas coisas, de que o governo deve se encarregar, são os homens, mas em suas relações com coisas que são riquezas, os recursos, os meios de subsistência, o território em suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade, etc.; os homens com suas relações com outras coisas que são os costumes, os hábitos, as formas de agir ou de pensar, etc.: e finalmente, os homens com suas relações com outras coisas que podem ser os acidentes ou as desgraças como a fome, a epidemia, a morte, etc.: que diz respeito as coisas entendidas como a imbricação de homens e coisas temos a confirmação em uma metáfora que aparece em todos esses tratados: o navio. (FOUCAULT, 1979, p.282)

Talvez a característica principal desta nova forma de governar o Estado seja a gestão sobre os indivíduos: o dizer o que fazer e o que não fazer, o amparo e o estabelecimento da maneira como deve se dar as relações com as coisas. Tal paradigma difere do modelo desenvolvido por Maquiavel, onde o soberano governa sobre o território, a extensão do reino, enquanto o guiar dos indivíduos encontra como dever exclusivo da igreja. Sobre o conceito desenvolvido por Maquiavel, Foucault afirma: O príncipe Maquiavélico é, por definição, único em seu principado, e está em posição de exterioridade, transcendência, enquanto que nesta literatura o governante, as pessoas que o governam, as práticas de governo são, por um lado, práticas múltiplas, na medida em que muita gente pode governar: o pai de família, o supervisor de convento, o pedagogo e o professor em relação à criança e ao discípulo. Existem, portanto, muitos governos, em relação aos quais o do príncipe governando seu Estado é apenas uma modalidade. Por outro lado, todos estes governos estão dentro do Estado ou da sociedade. (FOUCAULT, 1979, p.280)

Na estrutura atual do Estado, Michel Foucault defende a existência de três tipos de governos, que compõe uma espécie de pirâmide hierárquica. Tais esferas se relacionam e se interligam de maneira ascendente e descendente, proporcionando o funcionamento deste novo mecanismo que seria o Estado Moderno. Em sua base, estaria colocado o governo individual ou o governo de si mesmo, que diz respeito a constituição ética e moral do sujeito. Acima estaria o governo da família, que representaria a mediação das relações familiares e o manejo de uma economia política existente no contexto, que ditaria as regras desta convivência. No ápice, estaria como denominado por Foucault, a ciência do bem governar (FOUCAULT, 1979), que diria respeito à política e como já dito, as técnicas de governo. Conforme Foucault apud. La Mothe Le Voyer no sentido de explicar tais processos, “aquele que quer governar o Estado, deve primeiro saber governar sua família, seus bens, seu patrimônio” (FOUCAULT, 1979, p.281). Logo, seguindo processo de continuidade ascendente dentro desta lógica, o governante deve ser um indivíduo que sirva de exemplo a sociedade, não

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só como um bom político, mas sim como um bom sujeito de acordo com os padrões estabelecidos pela ordem social vigente. Ao postular no que se refere ao processo de continuidade descendente, afirma que “quando o Estado é bem governado, os pais de família sabem como governar suas famílias, seus bens, seus patrimônios e por sua vez os indivíduos se comportam como devem”. (FOUCAULT, 1979, p.281) Importante salientar a presença dos elementos pastorais dentro do discurso, explicitado mais claramente em referência aos modos de governar e a relação simbólica construída entre eles. Ao seguir a lógica deste processo, qualquer tipo de disfunção ou desvio dentro desta linha decrescente, talvez venha a demonstrar um sistema falho ou um Estado deficiente em alguma dessas esferas. Logo, para garantir o bom funcionamento destes mecanismos, surge o conceito de polícia defendido por Foucault. A ferramenta de polícia se encontra inserida dentro da estrutura do Estado para garantir o seu funcionamento de acordo com os argumentos discutidos. A Governamentalidade, conforme Foucault, é justamente esta técnica de dizer o que compete e o que não compete ao Estado; como este deve ser estruturado e como deve agir dentro do sistema social. São táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve ou não competir ao Estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal, etc.; portanto o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir das táticas gerais da Governamentalidade. [...] Esta Governamentalidade só pode adquirir suas dimensões atuais graças a uma série de instrumentos particulares, cuja formação é contemporânea da arte de governo e que se chama, no velho sentido da palavra, o dos séculos XVII e XVIII, a polícia. Pastoral, novas técnicas diplomático-militares, e finalmente a polícia: eis os três pontos de apoio a partir de que se pôde produzir este fenômeno fundamental na história do Ocidente: a governamentalização do Estado. (FOUCAULT, 1979, p. 292-293)

A política pastoral por si já pode ser colocada como uma forma de polícia. Um modelo para manter o cidadão favorecido sob as vistas do Estado, fazendo com que este diga como o indivíduo deve agir, pensar, fazer e viver dentro da sociedade. Da mesma maneira, aponta também o que não se deve fazer, o que segundo o Estado, será bom ou ruim para esse indivíduo. Dentro do cenário das políticas desenvolvidas com esse caráter paternal, e neste caso analisando a Política Nacional – logo que esta se encaixa nas definições apresentadas por Foucault acerca da pastoralidade e nos conceitos de ação a serem descritos – vamos nos ater a maneira como são elaborados os métodos de ação, expressando de forma prática seu viés intervencionista.

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Uma das características principais contida neste tipo de política pública é o que Foucault chama de “poder individualizante” (FOUCAULT, 1981, p.79). Esta modalidade de poder seria uma maneira de orientar os indivíduos, separadamente, para reinseri-los dentro dos padrões existentes na sociedade. Uma forma de poder centralizado, que seria a política em aplicação prática, mas de forma fragmentada, tratando um por um, e não o grupo. A autor define que Refiro-me, na realidade, ao desenvolvimento de técnicas de poder orientadas para os indivíduos e destinadas a dirigi-los de forma continua e permanente. Se o Estado é a forma política de um poder centralizado e centralizador, denominemos pastorado ou poder individualizador. (FOUCAULT, 1981, p.79)

O nome Pastorado ou Pastoralidade deriva do sentido dado a palavra em relação ao pastor de ovelhas. Da mesma maneira que o pastor preza pelo seu rebanho, alimentando, cuidando e o guiando, a pastoralidade na forma do Estado busca ter controle sobre suas “ovelhas”, executando ações semelhantes. O caráter religioso também está incutido dentro deste sentido, logo que na religião o sacerdote é visto como o pastor que conduz seus fiéis a salvação, alertando-os das tentações do mundo e apontando para o caminho a se seguir para o paraíso bíblico. O Estado vela pelas suas ovelhas. A política Nacional de População de Rua é um claro exemplo disso. Propõe a salvação do morador em situação de rua. A lei propõe a inclusão do morador dentro dos programas sociais criados pelo governo como forma de assistência social. O direito a moradia, a saúde, a educação são outros pontos que a lei garante oferecer para este indivíduo. Assim, o Estado assume o papel de tutor, e o morador, de tutelado. Porém, existe uma problemática dentro deste modelo de tutela, logo que assume um caráter dualístico. Para aqueles moradores que aceitam serem tutelados pelo Estado, existe a garantia de direitos e benefícios, entretanto, se optar pela opção de não se adequar as definições impostas por este – como por exemplo, abandonar a rua – estes benefícios não são mais certamente garantidos. O morador pode ser enquadrado de outras maneiras dentro do sistema social, sendo às vezes considerado irregular perante a lei. Foucault retrata tal situação onde ocorre uma polarização a partir da análise do pastorado cristão: O pastorado cristão associou estreitamente essas duas práticas. A direção consciente de um lado, constituía um lação permanente: a ovelha não se deixa conduzir, apenas para transpor com sucesso alguma passagem difícil; deixava-se conduzir a cada segundo. Ser guiado era um estado; quem tentasse fugir disso estaria fatalmente perdido. O eterno ditado popular: quem não de se deixa guiar, murcha feito folha morta. (FOUCAULT, 1981, p.87)

Para a População em Situação de Rua, nesse caso, só existem dois caminhos a serem escolhidos: ou se deixam inserir nas políticas públicas para poderem usufruírem dos direitos e

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dos benefícios garantidos por ela, ou continuam sendo marginalizados e criminalizados nas ruas, quando não são tidos como invisíveis. O viés da Política Nacional é trabalhado como uma salvação do ser, reintegrá-lo a sociedade e retira-lo do estado de morte social ou processo de mortificação. (GOFFMAN, 1961) Para manter este modelo da política pastoral, é necessário a instauração da doutrina de polícia. O termo polícia neste contexto, denomina Foucault, se refere a “uma tecnologia governamental específica do Estado: domínios, técnicas, objetivos em que o Estado intervém”. (FOUCAULT, 1981, p. 92) Tendo a Política Nacional como uma ação do Estado sobre determinado grupo de indivíduos, podemos considerar que sua aplicação prática se coloca como a instauração de um estado de polícia sobre esses indivíduos, velando e policiando-os. Logo, pode ser claramente caracterizada como paternalista, pastoral e de certo modo, interventora. Caracterizado viés de raiz pastoral da Política Nacional, partir-se-á para analise prática da lei, analisando os resultados obtidos propostos pelo plano de ações estratégicas, constando que já está em vigor há cinco anos.

2.3 PROPOSTAS E RESULTADOS DA POLÍTICA NACIONAL DE POPUAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

Trataremos aqui de expor os resultados da Política Nacional de População de Rua, partindo do plano de ações proposta por esta em diversas vertentes de atuação como direitos humanos, trabalho e emprego, desenvolvimento urbano e habitação, assistência social, educação, saúde e cultura. Iniciaremos a exposição destes quesitos separadamente, apresentando os pontos principais do plano de ações da lei e por conseguinte, os resultados alcançados ao longo destes cinco anos de vigência, obedecendo uma ordem de análise que parte da esfera macro (nacional) para micro (municipal). Os dados apresentados a seguir foram obtidos junto aos ministérios do governo, a nível nacional, e a Secretaria de Desenvolvimento Social da prefeitura municipal de Vitória da Conquista, em âmbito municipal.

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2.3.1

DIREITOS HUMANOS

A respeito das políticas a serem desenvolvidas para o fortalecimento dos direitos humanos e segurança da PSR, a Política Nacional elenca quatro pontos principais para nortearem a execução das ações a serem desenvolvidas. São os pontos:

1.

2.

3.

4.

Capacitação dos operadores de direito do Estado (especialmente da força policial) quanto aos direitos humanos, principalmente àqueles concernentes à população em situação de rua, incluindo nos cursos de formação conteúdos sobre o tema; Fortalecimento da Ouvidoria para receber denúncias de violações de Direitos Humanos em geral, e especialmente dos direitos das populações em situação de rua; Responsabilização e combate à impunidade dos crimes e atos de violência que tem essa população como público-alvo, ampliando, assim, a possibilidade de que a rua seja um espaço de maior segurança; Oferta de assistência jurídica e disponibilização de mecanismos de acesso a direitos, incluindo documentos básicos às pessoas em situação de rua, em parceira com os órgãos de defesa de direitos. (BRASIL, 2008, p.16)

De acordo com os documentos oferecidos pela Secretária de Direitos Humanos da Presidência (SDH/PR) e do Ministério da Justiça, já foram implementadas medidas que combatem a violência contra a PSR, através de uma ação conjunta entre poder público federal, estadual e municipal. Segundo a SDH, foram desenvolvidas ações como a instalação do serviço Disque Direitos Humanos com atendimento específico para a população em situação de rua (Disque 100) para denúncias de violações de direitos; a instalação de comitês municipais e estaduais de acompanhamento e monitoramento da política para a população em situação de rua e articulação política junto a estados e municípios. Até setembro de 2014, foram instalados 21 comitês, sendo 16 municipais, 04 estaduais e 01 distrital. O Ministério da Justiça informou que em 2011, publicou a portaria MJ n° 53, que instituiu o grupo de trabalho para tratar da capacitação de profissionais e gestores de segurança pública para atuação relacionada às pessoas em situação de rua. No mesmo ano, dentre outras ações de capacitação foi elaborada a Cartilha atuação policial na proteção dos direitos humanos de pessoas em situação de vulnerabilidade, que possui capítulo específico sobre Abordagem da População em Situação de Rua. Foram previstas a impressão e distribuição de 35 mil exemplares para os anos de 2013 e 2014. Em 2013, o MJ inseriu uma linha de financiamento específica para apoio a projetos de enfrentamento à violência contra a população em situação de rua e populações vulneráveis no montante de até R$ 21 milhões de reais. O “Brasil Mais Seguro”, programa executado também

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pelo Ministério da Justiça, tem atuado para solucionar todos os casos de homicídios contra pessoas em situação de rua nos estados onde foi implementado.

2.3.2

TRABALHO E EMPREGO

No que se refere a ações inclusivas no mercado de trabalho, foram enumeradas oito metas que visam a capacitação e a garantia de emprego à PSR. Como pontos principais podemos elencar: 1.

2.

Inclusão da população em situação de rua como público-alvo prioritário na intermediação de emprego, na qualificação profissional e no estabelecimento de parceria com a iniciativa privada e com o setor público para a criação de novos postos de trabalho. Promoção de oficinas de economia solidária, centradas no fomento e na capacitação, a partir de recortes regionais, com o apoio do Ministério do Trabalho e Emprego. (BRASIL, 2008, p.17)

A respeito das proposições estabelecidas baseada nos dois pontos principais acima descritos – que priorizam a capacitação do morador e sua inclusão no mercado – o Ministério do Trabalho e Emprego, MTE, apresentou dados referentes apenas ao fomento de cursos de capacitação, porém nenhum dado referente a ações de garantia de emprego do morador e posteriores direitos trabalhistas. O MTE informou que por meio dos Editais de Chamada Pública SENAES-MTE n° 03/2013 e n° 02/2014, para organizações da sociedade civil em capitais e regiões metropolitanas, foram disponibilizados R$9.500.000,00 (nove milhões e quinhentos mil) para projetos de fomento à economia solidária como estratégia de inclusão socioeconômica e de autonomia da população em situação de rua. Foram contempladas pelos recursos capitais e regiões metropolitanas, seguindo o critério do alto índice de presença dessa população estabelecido pelo MTE, foram elas: Belo Horizonte, São Paulo, Salvador, Fortaleza, Porto Alegre, Curitiba e Brasília.

2.3.3

ASSISTÊNCIA SOCIAL

As medidas relacionadas a assistência social se colocam, dentro da conjuntura de ações proposta pela Política Nacional, como as mais emergenciais e importantes no trato com os moradores de rua. Sete pontos foram elaborados inicialmente para se desenvolver tais ações tendo o Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome, junto com a Secretaria de Direitos

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humanos da Presidência da República e as administrações regionais seus principais executores. Os pontos apresentam as seguintes propostas: 1.

2.

3. 4. 5. 6. 7.

Estruturação da rede de acolhida de acordo com a heterogeneidade e diversidade da população em situação de rua, reordenando práticas homogeneizadoras, massificadoras e segregacionistas na oferta dos serviços, especialmente os albergues; Produção, sistematização de informações indicadores e índices territorializados das situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social acerca da população em situação de rua; Inclusão de pessoas em situação de rua no Cadastro Único do Governo Federal para subsidiar a elaboração e implementação de políticas sociais; (Grifo nosso) Assegurar a inclusão de crianças e adolescentes em situação de trabalho na rua no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil; Inclusão de pessoas em situação de rua no Benefício de Prestação Continuada e no Programa Bolsa Família, na forma a ser definida; Conferir incentivos especiais para a frequência escolar das pessoas inseridas nos equipamentos da Assistência, em parceria com o Ministério de Educação; Promoção de novas oportunidades de trabalho ou inclusão produtiva em articulação com as políticas públicas de geração de renda para pessoas em vulnerabilidade social. (BRASIL, 2008, p.18-19)

Como ressaltado, o ponto referente a inclusão da PSR em programas de governo se apresenta de forma estratégica para o funcionamento da lei e base para alcançar demais metas. O Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome em 2011, iniciou a Instalação e manutenção de estruturas de acolhimento e Centros Pop (Centros de Referência Especializados para a População em Situação de Rua). Já O Governo Federal, vem desenvolvendo ações específicas no âmbito do Plano “Brasil sem Miséria” para população de rua, com investimentos previstos de R$ 160 milhões até o fim deste ano. Segundo dados do Relatório de Informações Sociais do MDS, em julho dezembro de 2014 estavam cadastradas 27.852 pessoas em situação de rua, destes 20.621 eram beneficiários do Programa Bolsa Família. Vitória da Conquista é uma das cidades que foram contempladas com a implementação do CREAS POP, centro especializado nas questões referentes a População em Situação de Rua. Nesta unidade, um total de 118 moradores foram atendidos, algumas delas já incluídas nos programas sociais do governo, como o programa Minha Casa Minha Vida e o Bolsa Família.

2.3.4

SAÚDE

A respeito das políticas de saúde, o cerne das propostas dizia respeito a garantia do direito a saúde para os moradores em situação de rua, como o fortalecimento dos Centros de Atendimento Psicossocial, CAPS, para agir em relação as questões ligadas a Saúde Mental e uso de álcool e demais drogas. De acordo com o Ministério da Saúde, uma das ações

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desenvolvidas para a cumprir as metas estabelecidas foi a criação dos Consultórios da Rua, que tem sua atenção voltada apara a melhoria da saúde dos moradores. Hoje existem cerca de 90 consultórios em funcionamento. O Consultório na Rua é um equipamento integrante da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que objetiva ampliar o acesso da população em situação de rua à rede de atenção e ofertar, de maneira mais oportuna, atenção integral à saúde.

2.3.5

EDUCAÇÃO

No setor educacional, as formulações focaram na questão da alfabetização dos moradores de rua, como na inclusão destes em programas já desenvolvidos para o resto da população. Outro quesito importante se refere a inclusão da temática da população de rua em discussões nas escolas de ensino regular como forma de expor e debater mais sobre o tema com o objetivo de tornar o assunto mais visível para os estudantes, para avançar talvez, na diminuição do preconceito. São os pontos: 1.

2. 3.

4.

5.

6.

7.

8.

Promoção da inclusão das questões de igualdade social, gênero, raça e etnia nos currículos, reconhecendo e buscando formas de alterar as práticas educativas, a produção de conhecimento, a educação formal, a cultura e a comunicação discriminatórias, especialmente com relação à população em situação de rua; Constituição de grupos de estudo que discutam maneiras de a educação ser feita em meio aberto, sem necessidade de deslocamento até as escolas; Oferta regular de educação de jovens e adultos, especialmente no que se refere à alfabetização, com facilitação de ingresso em sala de aula em qualquer época do ano; Oferta de incentivos à assiduidade escolar para a população em situação de rua, tais como uniformes e materiais escolares gratuitos, facilitação do transporte de ida e volta da escola, fornecimento de alimentação, etc.; Inclusão da população em situação de rua nos programas de apoio ao desenvolvimento de atividades educacionais, culturais e de lazer em escola aberta, especialmente nos finais de semana; Inclusão do tema população em situação de rua, suas causas e consequências, como parte dos debates sobre essa realidade nacional nas redes de ensino de todo o País. Adequação dos processos de matrícula e permanência nas escolas às realidades das pessoas em situação de rua, com a flexibilização da exigência de documentos pessoais e de comprovantes de residência. Promoção de políticas de Inclusão Digital para pessoas em situação de rua.

Sobre as ações desenvolvidas, o Ministério da Educação apresentou documentos informando que no período entre 2009 e 2013, o Programa Brasil Alfabetizado (PBA) atendeu um total 9.162 alfabetizandos cadastrados como catadores de materiais recicláveis. Ainda de acordo com o Ministério, no período entre 2012 e 2013, foram cadastrados como pessoas em situação de rua, 424 alfabetizandos em 15 estados por meio do fortalecimento de ações intersetoriais entre o MEC/SECADI e Secretaria de Direitos Humanos. A partir de agosto de 2014 iniciaram turmas exclusivas para população em situação de rua do Programa Nacional de

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Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC-Pop Rua), totalizando 980 vagas no município de São Paulo e no Distrito Federal com perspectiva de expansão para 2015. A respeito do ponto que inclui as discussões acerca da PSR nas salas de aula, não existem dados não deliberações do Ministério no que se refere ao cumprimento da decisão, que pode ser considerada como uma ação de longo prazo para a desconstrução de estigmas e preconceitos em relação a imagem da PSR. 2.3.6

CULTURA

Apesar de constar um plano de metas voltadas para o oferecimento de cultura para a População em Situação de Rua e fomento de atividades ligadas a esta população, nenhum dado foi disponibilizado pelo Ministério da Cultura. As metas elaboradas na Política Nacional apontam para a difusão da cultura e a difusão de atividades culturais por parte da população de rua. Das áreas contempladas pela Política Nacional, a área da cultura, pela insuficiência de dados e informações, se coloca como a que menos avançou na questão de elaboração de políticas públicas especificas. As discussões dirigidas até aqui tiveram o objetivo de demonstrar a existência de um grupo social caracterizado como residente em logradouro público, logo, População em Situação de Rua. Posteriormente, se preocupou em apresentar o modelo da política adotada especificamente para tratar de tais questões referentes a estes indivíduos e por conseguinte, seu viés delineador de caráter pastoral, traço presente no modelo político vigente no período atual. Por fim analisou-se a ações desenvolvidas como maneiras de pôr à prova a eficácia ou fracasso deste modelo ao longo do período que já está em vigor. O recorte para a cidade de Vitória da Conquista, por mais singelo que tenha se apresentado até aqui, serviu para poder afirmar a presença de pessoas em situação de rua no município. Este argumento ira nos servir posteriormente para entender o lugar que esta população possui dentro do quadro midiático local, a partir da análise do telejornal de maior audiência da região, o BATV, de TV Sudoeste, emissora da Rede Bahia, filiada de Rede Globo de Televisão. Sobre este assunto, iremos debruçar nossa atenção no capítulo a seguir.

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3. A COBERTURA MIDIÁTICA SOBRE A PSR

Buscar-se-á neste momento, discutir acerca dos fatores referentes a População em Situação de Rua quando se trata de meios e veículos de comunicação. Será analisado como este grupo é tratado dentro do meio tele jornalístico, ou talvez, como não é tratado, no processo paradoxal de expor a sua ocultação. Ao buscarmos notícias que se referem a PSR dentro dos grandes veículos de comunicação – entendendo os grandes grupos corporativos de comunicação – podemos perceber que, geralmente, existe um agendamento já construído para notícias que digam respeito a esta temática. Uma espécie de molde, onde as notícias sobre a PSR são colocadas, tendo sempre um desfecho semelhante. Consequentemente, os acontecimentos construídos pela mídia também são muito semelhantes, dando a ideia de que os fatos relatados são parte do cotidiano destes grupos. Para definirmos a questão relacionada ao acontecimento, Berger et.al explica a relação tecida entre o acontecimento social e o que a autora define como acontecimento jornalístico: [...] percebe-se a existência de no mínimo dois “tipos de acontecimentos”, o acontecimento experienciado no cotidiano e o acontecimento jornalístico. O primeiro, pensado pela História, a Filosofia e as Ciências Humanas, tem sido objeto de estudo e investigação, tangenciando reflexões que perpassam uma relação com o tempo, objetivo e/ou (inter)subjetivo. Corresponde à emergência e as afetações do acontecimento na realidade tangível e em suas reverberações cognitivas. Já o segundo, localiza-se principalmente nas reflexões dos estudos de jornalismo, ou em textos em que o acontecimento midiático ilustra a natureza da sociedade contemporânea. Diz respeito à construção do acontecimento em forma de notícia ou das linguagens jornalísticas que constroem o acontecimento. (BERGER; TAVARES, 2010, p.122)

Maurice Mouillaud Discute apresentando a ótica dada ao leitor para enxergar estes acontecimentos. Mouillaud defende que “nós não vemos o mundo real, o que vemos é o mundo que os meios de comunicação enxergam, o que varia é a posição do olhar sobre a realidade e a moldura colocada (MOUILLAUD, 2012). Logo, entende-se que a partir do acontecimento social puro é que a mídia inicia o seu processo de construção da notícia, originando assim o acontecimento jornalístico, que repercute da mídia para a sociedade, caminho inverso trilhado pelo acontecimento social. Interessante notar que há uma seleção dentro do acontecimento social para se originar o acontecimento midiático. Acerca dessa seleção, Nelson Traquina apud. Leal postula que “as notícias são o resultado de um processo de produção definido como a percepção, seleção e transformação de uma matéria-prima (os acontecimentos) num produto, as notícias (LEAL, 2012, p. 463).

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Pode-se se analisar dois processos semelhantes dentro da conjuntura apresentada: o primeiro se refere ao processo de construção das notícias, refutando totalmente a Teoria do Espelho, que defende as notícias como representação fiel da realidade e os jornalistas como cães de guarda desprovidos de elementos e aspectos ideológicos e culturais. O segundo, de maneira mais objetiva, é em relação ao processo de seleção dos fatos, e o questionamento que fazemos acerca desta seleção: Porque relatar esses acontecimentos dessa forma? Para responder a questão e entender como se dá o processo de construção da notícia, podemos avaliar tais situações, usufruindo do uso da teoria construcionista do jornalismo e de outra teoria ainda mais importante nesse cenário, que seria a teoria do newsmaking, expondo os critérios de noticiabilidade, também chamados de valores-notícia. Antes de iniciarmos a discussão acerca das teorias, é interessante analisarmos alguns exemplos presentes na mídia para que possamos desenvolver as análises de forma mais clara. Para esta exposição sucinta, foram selecionadas Três notícias de forma aleatória, que abordam a temática da População em Situação de Rua. A análise se restringirá apenas a manchete e ao lead, com o objetivo de identificar o motivo para o acontecimento ter recebido atenção da mídia. Antes de partimos para a análise, é importante ressaltar como o erro na classificação da PSR se encontra de forma incorreta em uma das notícias, onde no texto da manchete os moradores de rua são classificados como mendigos, termo pejorativo colocado em desuso pelo próprio Movimento Nacional de População em Situação de Rua (MNPSR), e pelo poder público, por entender que tal designação degrada o morador de rua enquanto ser humano. São as notícias:

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Fonte: uol.com.br

Fonte: Jornal O Globo

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Fonte: Jornal O Dia

Como se pode ver o caráter espetacular se faz presente em todos os três exemplos dados acima. A notícia não traz apenas uma informação, traz algo fora do comum, que não representa uma ação cotidiana ou elemento que compõe a vida social. Podemos ver aqui de forma clara, que os três acontecimentos passaram por um processo de alocação classificatória para serem caracterizados notícias e ganharem visibilidade. Esta alocação pode ser definida como os critérios de noticiabilidade que são adotados para caracterizar um fato relevante ou não, no que diz respeito a sua exposição e transformação em notícia. Definida a noticiabilidade como o conjunto de elementos através dos quais o órgão informativo controla e gere a quantidade e o tipo de acontecimentos, de entre os quais há que selecionar as notícias, podemos definir os valores/notícia (news values) como uma componente da noticiabilidade. Esses valores constituem a resposta à pergunta seguinte: quais os acontecimentos que são considerados suficientemente interessantes, significativos e relevantes para serem transformados em notícias? Antes de se examinar em pormenor a sua articulação, é necessário fazer algumas considerações gerais sobre o seu papel. (WOLF, 1999, p. 195)

Porém, é importante salientar, no exemplo da PSR, existem um grupo de critérios que são relevantes perante outros que não são levados em consideração. Analisando as notícias apresentadas podemos expor os seguintes valores-notícia: 1) na primeira notícia os principais critérios de noticiabiliade exposto dizem respeito a exoticidade do acontecimento, como algo extraordinário (fora do comum, não competente as ações rotineiras), e também como uma situação de mal-estar social relatado pelo grupo – classificado como “mendigos” – com relação a ação do poder público, a prática de higienização social, como a própria notícia descreve. 2) A notícia publicada pelo jornal O Globo, expõem uma situação também incomum, a morte de três pessoas por descarga elétrica. O fato destas pessoas serem moradores de rua se encontra em segundo plano, não como objeto principal da matéria. Entretanto, o que vale ressaltar é o espaço dado a este dentro dos veículos de comunicação, que tem visibilidade principalmente quando

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fazem parte de situações inusitadas, relacionadas a morte e criminalidade. 3) a informação publicada pelo jornal O Dia chama um pouco mais de atenção de início por ser um fato ocorrido fora do país, eliminando critérios relacionados a localidade, diferente das demais que poderiam entrar na classificação “nacional”. Esta também tem como um dos critérios de noticiabilidade o fator exótico e extraordinário, de uma ação incomum por parte de um funcionário do Estado (o policial), condenando uma ação de caridade baseada no viés dos direitos humanos e solidariedade. Outro elemento que deve ser discutido é a pouca visibilidade dada as ações desenvolvidas especificamente para estes grupos em situação de risco, seja por parte do Estado, pela iniciativa privada ou pelo terceiro setor, as Organizações Não Governamentais (ONGs). Para não generalizar as discussões, é durante o inverno e o mês de dezembro, por conta do natal, se torna mais comum a produção de notícias com relação ao frio e a fome em relação aos moradores de rua, já que as ações sociais desenvolvidas por igrejas e ONGs se intensificam, sob a alegação de assistência que vem junta com preceitos religiosos. Logo, fica exposto que o ato de noticiar acontecimentos a respeito da População em situação de Rua, na maioria da vezes, não representa uma cobertura pautada nos preceitos básicos do jornalismo, de interesse público e interesse do público em primeiro momento, e sim e interesses comerciais destes meios que visam o sensacionalismo como maneira de atrair o público por meio da espetacularização dos fatos, e em alguns casos, uso da imagem dos desfavorecido para promoção de campanhas sociais que deem o status de solidário e preocupado com os problemas sociais para o meio.

3.1 ANALISES E DEFINIÇÕES TÉORICAS SOBRE O TELEJORNALISMO

Antes de iniciarmos a análise do objeto de estudo, os telejornais exibidos pela TV Sudoeste, traçaremos uma breve discussão acerca de alguns temas voltados para o modelo telejornalístico e o processo de construção das notícias neste. A respeito do telejornalismo, Coutinho e Mata discorrem: Os noticiários de de TV atuaram como um lugar de referência para os brasileiros como bem avaliam Alfredo Vizeu e João Carlos Correia. [...] A compreensão de modernização de acordo com o modelo implantado envolvia a transmissão simultânea dos mesmos conteúdos e das mesmas imagens por todo país, o que envolvia também a difusão da imediata de informações, noticiosas e/ou “educativas”, em um raciocínio claramente desenvolvimentista, perspectiva defendida pelos ideólogos do regime militar. (COUTINHO; MATA, p.233)

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Logo, a ligação com rede nacional fez com que o telejornalismo adquirisse esta posição de privilégio em visão do imaginário coletivo. Conceitos de credibilidade e imparcialidade principalmente, são difundidos a todo tempo por estes meios, como forma de autopromoção. Não demonizando o papel do telejornalismo dentro desta conjuntura, mas é necessário afirmar a forma como a ferramenta da concessão pública é a vezes usadas para construir imagens sobre a realidade, às vezes simulacros. Simulacros estes que reforçam os processos de segregação social, a partir da criminalização dos grupos inseridos no contexto social, entre eles, a PSR. A respeito da criação de simulacros dentro da produção jornalística, Águeda Cabral afirma que os jornalistas, Manipulam a realidade. Eles escolhem um fato e não outros. Desde a pauta e seus direcionamentos, transformam um acontecimento em notícia, dando um viés próprio. [...] Constroem simulacros do real para contar novidades. A notícia é um simulacro do real, um relato possível, entre tantos, do real. (CABRAL. 2010, P.146)

No entanto, existe uma grande contradição que é apresentada por Ester Hamburger, onde a autora coloca que Enquanto a segregação social, econômica, e cultural segmenta e divide a sociedade brasileira, a televisão acena a possibilidade de conexão, mesmo que virtual (HAMBURGER, 1998)

Com relação a questões ligadas a superficialidade na produção de notícias que envolvem problemas sociais, Patrick Champagne (1997), sociólogo francês membro do Centro Europeu de Sociologia da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da França analisa este acontecimento, colocando no olhar jornalístico, em primeiro momento, a justificativa desse fato. Mesmo se a observação atenta da vida comum nesses subúrbios com seus problemas cotidianos, for mais esclarecedora, a maioria dos jornalistas tendem a se concentrar na violência, o mais espetacular, e por isso, excepcional. A mídia fabrica, assim, para o grande público, que não está diretamente ligado a uma apresentação e uma representação dos processos que enfatizam o extraordinário. (CHAMPAGNE, 1997, p.68)

Ao Reafirmar o pensamento difundido por Champagne, Águeda Cabral reforça, contando que na sociedade atual Temos o entretenimento de que o jornalismo é construído pela realidade, mas também atua, em alguma medida, na construção dessa própria realidade. O jornalismo não é o espelho do real, ou seja, não reproduz o real, é uma interpretação social do real. (CABRAL, 2010, p.141)

Pierre Bourdieu, Sociólogo francês, autores de livros como “A miséria do mundo” e “Sobre a televisão”, pode protagonizar este tipo de acontecimento na televisão. Em 1996

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realizou dois programas pela TV première, como uma “intervenção de ensino” para criticar a TV. Fez uma crítica também voltada para a questão do “extraordinário”: Os jornalistas, grosso modo, interessam-se pelo excepcional para eles. O que pode ser banal para outros poderá ser extraordinário para eles ou o contrário. Eles se interessam pelo extraordinário, pelo que rompe com o ordinário, pelo que não é cotidiano – os jornais cotidianos devem oferecer cotidianamente o extra-ordinário, não é fácil [...] Daí o lugar que conferem ao extraordinário ordinário, isto é, previsto pelas expectativas ordinárias: incêndios, inundações, assassinatos, variedades. (BOURDIEU, 1998, p.28)

Na esfera organizacional, dentro da comunicação, isso se materializa na posição do diretor de jornalismo, que realiza uma espécie de filtragem do que pode ou não ir ao ar, e de que forma serão apresentadas a notícias. Já no âmbito do profissional jornalista, o filtro e o direcionamento proposital sofrido pela notícia parte do olhar do jornalista, escolhendo, como Champagne afirma acima, o que lhe é mais latente ao olhar. Adelmo Filho defende que os jornalistas tomam parte de apenas uma parcela da realidade social existente: Os jornalistas tomam conhecimento de parte da realidade social e a transformam em realidade midiática. [...] Eles simplificam o mundo social, organizando (em lide, narrativas e Gêneros), representando, construindo, re-arrumando o mundo dos fatos (GENRO FILHO, 1986; SPONHOLZ, 2009. p. 141)

Ao Discutir novamente sobre os critérios de noticiabilidade e a hierarquia existente dentro do jornalismo, interessante observar como é feita a seleção das notícias, que decide o que irá ser veiculado e quais critérios serão adotados. De forma que assim, alguns fatos se tornem mais relevantes que outros dentro da sociedade, como apresentado em exemplos anteriores. O agendamento pauta o pensamento coletivo de forma temporária, as rodas de conversas, o que será e o que deve ser discutido. Bruno Souza leal discorre sobre o tratamento diferenciado dados as notícias. Assim as notícias se configuram como um produto – o que implica no processo de racionalidade e técnica – intimamente associado a estratégias que supõe enquadramentos e critérios de noticiabilidade, variáveis que os jornalistas e veículos utilizam para decidir o que merece ou não aparecer na mídia como notícia. (LEAL, 2009, p.188)

Mais à frente, o autor destaca este modelo de hierarquia dentro do agendamento de notícias através dos níveis existentes dentro de um veículo de comunicação: Nota-se, portanto, que a mídia promove uma hierarquização de temas e o estabelecimento de graus de relevância para os diferentes assuntos. A hierarquia pode ser prescrita pelo editor-chefe de cada veículo, mas ela não é nem pode ser predeterminada dessa forma, pois o agendamento advém dos movimentos sentidos nas ondas que ressentem as demandas. (LEAL, 2009, p.195-196)

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Já com relação ao acontecimento real e o acontecimento jornalístico, Leal traça uma relação entre este conceito e o agendamento de notícias. No Caso da PSR e sua não veiculação recorrente na mídia – a não ser em casos “extraordinários” – podemos observar um filtro deste agendamento como forma de não colocar o respectivo assunto ou fato na pauta recorrente de discussão social. No caso de quando a questão relativa a PSR é abordada, existe de certa forma, uma dilatação do real, ou uma adaptação para o editorial do veículo. Leal discute concluindo que o jornalismo Em alguma medida, produz-se um relato do mundo que se incorpora ao próprio mundo e, nesse sentido, dilata a própria atualidade. Daí, as abordagens de noticiabilidade precisariam que a análise da notícia demanda também a caracterização da perspectiva que a constrói, que acionaria não só conteúdos, mas motivações, parâmetros e estratégias discursivas diversas e mais amplas que os termos que designam os “valores notícia”. (LEAL, 2009. p.202)

O jornalismo se coloca como agente ativo na construção da realidade e dos acontecimentos. Com relação ao seu papel na construção da realidade, importante salientar a visão fragmentada que se tem sobre a realidade quando a discutimos. Logo, o jornalismo constrói a realidade que ele está inserido, como também cria um simulacro sobre ela.

3.2 A AUSÊNCIA DA POPULAÇÃO DE RUA NO TELEJORNAL DA TV SUDOESTE

As pesquisas a seguir foram realizadas através das análises sobre os Telejornais locais exibidos pela TV Sudoeste, emissora da Rede Bahia, filiada de Rede Globo de Televisão. O período de amostragem foi durante todo o Mês de setembro, sendo 12 dias da edição do telejornal BATV e 14 dias da edição do telejornal Bahia Meio Dia. A justificativa para a seleção do mês de setembro se dá pela posição que este possui de estar no fim do inverno e também distante do início das reportagens de fim de ano, onde se encontram as tradicionais campanhas sociais exibidas pelo veículo durante as referidas datas, evitando possíveis distorções ou tendenciamentos nos resultados. A escolha do telejornal em questão como objeto de pesquisa se dá pelo fato de seu alcance ao nível regional, à medida que outro meio e veículo de comunicação não consiga ter sua abrangência e credibilidade.

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Foi feita um detalhamento das notícias exibidas por tempo (dia, Semana) por estrutura (edição em que foi exibida, bloco do telejornal) e por conteúdo noticioso (editoria, assunto), executando uma análise do discurso apenas nos conteúdos específicos.

3.2.1

A INVISIBILIDADE DENTRO DO TELEJORNAL

O período de amostragem realizado pela pesquisa foi de um total de 26 dias durante o mês de setembro, com 12 edições do BATV e 14 edições do Bahia Meio Dia foram analisadas e detalhadas. As duas primeiras semanas do Mês com edições do BATV e a outras 3 semanas com edições do Bahia Meio dia. O objetivo da variabilidade entre as edições foi ter acesso a diferentes tipos de conteúdo, logo que as matérias são diferentes entre as edições em um mesmo dia. Os dados foram detalhados e distribuídos em um total de 14 editorias. O formato dos telejornais varia, sendo o BATV composto de 3 blocos e o Bahia Meio dia de 2 blocos apenas. Importante ressaltar que a pesquisa focou apenas na veiculação das notícias pela edição local dos telejornais, excluindo assim, o conteúdo dos blocos estaduais, no caso das edições do Bahia Meio dia. Neste período foram exibidas um total de 144 notícias, 77 (53,5%) pelo BATV, e 67 (46,5%) pelo Bahia Meio dia. Um total de 64 blocos e uma média de 2,25 (1,56%) notícia por bloco. Já o BATV, foram 36 blocos, média de 2,13 (1,47%) notícia por bloco, enquanto que o Bahia Meio Dia com 29 blocos, atingiu 2,39 (1,65%) notícias por bloco. BATV

Bahia Meio Dia

100 80 60 40 20 0 Notícias

Bloco

Notícias por bloco

Ao Usar a variável de notícias por semana tivemos os seguintes resultados: 40 notícias na primeira semana (27,77%), 39 notícias na segunda semana (27,08 %). Nas duas semanas foi analisado o BATV, exibido a noite. A partir da terceira semana, com a análise do Bahia Meio

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dia, foram exibidas 24 notícias no terceiro período (16,6%), 33 notícias na quarta semana (22,91%), e 8 notícias nos dias 29 e 30 do mês de setembro (5,5%).

Notícias 50 40 30 20 10 0 1° semana (BATV)

2° Semana (BATV)

3° Semana (BAMD)

4° semana (BAMD)

5° semana (BAMD)

Notícias

Realizando um detalhamento com base nas editorias, os dados apontaram que, do total de notícias, 9 matérias foram da editoria Serviço (6,25%), 7 matérias da editoria Cultura (4,86%), 7 matérias na editoria Comércio (4,86%), 12 matérias na editoria Cidade (8,33%), 19 matérias da editoria Policial (13,19%), 13 matérias da editoria Meio Ambiente (9,02%), 2 matérias da editoria Religião (1,38%), 22 matérias na editoria de Política (15,27%), 24 matérias na editoria Esporte (16,6%), 7 matérias na editoria Saúde (4,86%), 6 matérias na editoria Educação (4,16%), 10 matérias da editoria Trânsito (6,94%), 2 matérias da editoria Culinária (1,38%)

e

4

matérias

Editorias

da

editoria

Outros

(2,77%).

Serviço Cultura Comércio Cidade Policial Meio Ambiente Religião Política Esporte Saúde Educação Trânsito Culinária Outros

No cenário dos dados tendo em vista as matérias dividas em editorias por telejornal, o BATV apresentou os seguintes resultados: 1 matéria na editoria Serviço (0,69%), 3 matérias na editoria Cultura (2,08%), 3 Matérias na editoria de Comercio (2,08%), 7 matérias na editoria de Cidade (4,86%), 12 matérias na editoria Policial (8,33%), 6 matérias na editoria Meio

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Ambiente (4,16%), 2 matérias na editoria Religião (1,38%), 16 matérias na editoria Política (11,1%), 17 matérias na editoria de Esporte (11,8%), 6 matérias na editoria Saúde (4,16%), 1 matéria na editoria Educação (0,69%), 3 matérias na editoria de Trânsito (2,08%). No caso da edição do Bahia Meio dia, foram veiculadas 8 matérias da editoria Serviço (5,5%), 4 na editoria Cultura (2,77%), 4 na editoria Comercio (2,77%), 5 na editoria Cidade (3,47%), 7 na editoria Policial (4,86%), 7 matérias na editoria Meio Ambiente (4,86%), 6 na editoria de Política (4,16%), 7 na editoria Esporte (4,86%), 1 matéria na editoria Saúde (0,69%), 5 na editoria de Educação (3,47%), 7 na editoria Trânsito (4,86%), 2 matérias em Culinária (1,38%) e 4 na editoria Outros (2,77%). 18 16 14 12 10 8 6 4 2 0 BATV Serviço

Cultura

Comercio

Cidade

Meio Ambiente

Religião

Política

Esporte

Educação

Trânsito

Culinária

Outros

Bahia Meio Dia Policial Saúde

Posterior ao período de exposição dos dados, a pesquisa tinha como objetivo identificar, em alguma editoria, conteúdos jornalísticos que abordassem de alguma maneira a temática da População em situação de Rua dentro do telejornal. Constatou-se, após este período de estudo do conteúdo exposto, em nenhum momento, em nenhuma das editorias, o referido tema foi abordado pelo veículo. O resultado aponta para uma invisibilidade da PSR dentro deste segmento de mídia da cidade de Vitória da Conquista. Importante salientar novamente que existem nesta cidade, um total de 118 moradores em situação de rua, sem nenhum espaço dentro da mídia, como demonstrou a pesquisa. O seguinte resultado se engendra como um processo de ocultação ou desvalorização deste grupo pela mídia, acidental ou propositalmente.

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3.2.2

O “OCULTAR MOSTRANDO”

A não visibilidade da População em Situação de Rua indicada pela pesquisa com relação ao telejornal expõe uma discussão acerca do discurso não dito. O fato de não se discutir sobre determinados temas não significa a inexistência de um discurso ou narrativa, significa o discurso da omissão, da ocultação. Não somente com a População em Situação de rua, esta prática sempre tenta ocultar ou tratar de forma enviesada certos assuntos ou acontecimentos ligados a determinados grupos sociais desfavorecidos em sua maioria. No sentido inverso, temos também está tática de omissão do discurso ao esconder fatos que sejam interessantes de alguma maneira ao meio ou ao grupo que o domina. Bourdieu discorre sobre este tipo de prática utilizada pelos media, caracterizando como o “ocultar mostrando”, logo que a falta de exposição já se coloca como uma maneira de demonstração de uma opinião. Desejaria dirigir-me para coisas ligeiramente menos visíveis mostrando como a televisão pode, paradoxalmente, ocultar mostrando, mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar casos se fizesse o que supostamente se faz, isto é, informar; ou ainda mostrando o que é preciso mostrar, mas de tal maneira que não é mostrado ou se torna insignificante, ou construindo-o de tal maneira que admite um sentido que não corresponde absolutamente à realidade. (BOURDIEU,1997, p. 24)

Pode-se analisar tal processo como uma iniciativa movida pelo próprio jornalista (neste caso diretor de redação), ou como uma atitude da organização, baseando-se nas teorias da ação pessoal (gatekeeper) ou da ação organizacional (TRAQUINA, 2005). Novamente, Bourdieu analisa a posição do profissional jornalista na seleção destas notícias, enquanto este vai a campo para colher informações: Os jornalistas têm “óculos” especiais a partir dos quais veem certas coisas e não outras; e veem de certa maneira as coisas que veem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado. (BOURDIEU, 1997, p. 25)

Já Patrick Champagne (1997, p.63) teoriza acerca da formação dos mal-estares sociais na mídia. O autor questiona a dependência que os mal-estares sociais aparentam construir com a mídia para serem considerados como tal, tendo a prerrogativa inicial a sua veiculação nos meios. Interligando com a temática da PSR, se faz o mesmo questionamento com relação a esta estrutura reconhecida pela sociedade, se a não veiculação de imagens e matérias sobre determinado grupo faça com que este torne-se invisível para a sociedade e claro, pela própria mídia. Sobre os quesitos adotados elos jornalistas para retirar tais grupos ou acontecimento da invisibilidade, Champagne explica que Os mal-estares sociais não tem uma existência visível senão quando se falam deles na mídia, isto é, quando são reconhecidos como tais pelos jornalistas. Ora, eles não se reduzem apenas aos mal-estares sociais midiaticamente constituídos, nem, sobretudo, a imagem que os meios de comunicação dão deles quando os percebem. Sem dúvida,

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os jornalistas não inventam em todas as matérias os problemas de que falam. Eles podem pensar, não sem razão, que contribuem para torná-los conhecidos e fazê-los entrar, como se diz, no “debate público”. Seria ingênuo deter-se nesta constatação. Os mal-estares não são todos igualmente “mediáticos”, e os que são sofrem inevitavelmente um certo número de informações a partir do momento em que são tratados pela mídia porque, longe de se limitar a registrá-los, o tratamento jornalístico fá-lo experimentar um verdadeiro trabalho de construção, que depende muito amplamente dos interesses próprios deste setor de atividade. [...] Aqueles cuja representação pública foi explicitamente fabricada para interessar aos jornalistas, ou então aqueles que, por si mesmos, atraem os jornalistas porque são “fora do comum”, ou dramáticos, ou emocionantes, e por isso comercialmente rentáveis, pois estão de acordo com a definição social do acontecimento digno de “ser manchete” A maneira pela qual os meios selecionam e tratam esses mal-estares diz pelo menos tanto sobre o meio jornalístico e sua maneira de trabalhar, quanto sobre os grupos sociais a que dizem respeito. (CHAMPAGNE, 1997, p.63)

A respeito deste processo dentro da televisão, Bourdieu afirma que “a televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, o caráter dramático, trágico. (BOURDIEU, 1997, p.25-26). O autor relembra entrevista feita com um diretor de programação, expondo como esta estrutura se encontra enraizada na práxis profissional destes indivíduos: Lembro-me de ter tido uma entrevista com um diretor de programação; ele vivia na evidência total. Eu lhe Perguntava: “porque coloca isto em primeiro lugar e não aquilo em segundo?” e ele me respondia: “é evidente”. É sem dúvida por essa razão que ele ocupava o lugar em que estava; isto é, porque suas categorias de percepção estavam ajustadas às essências objetivas. (BOURDIEU, 1997, p. 36)

Com relação a construção do acontecimento, Champagne reitera o processo de produção de significados pelos meios de comunicação, colocando o argumento de que acontecimento [midiático] nada mais é do que os próprios veículos de comunicação consideram como acontecimento. O que não é interessante a esta, deixa de estar na pauta como algo a ser noticiável. O que chamamos de “acontecimento”, não e jamais, afinal, senão o resultado da mobilização – que pode ser espontânea ou provocada – dos meios de comunicação em torno de alguma coisa que elas concordam, por certo tempo, a considerar como tal. (CHAMPAGNE, 1997, p.66-670

Logo, conclui-se que o que está sendo veiculado não está lá somente porque se encaixa em critérios pré-estabelecidos que ditam o que é notícia. Estão lá porque é interessante para o veículo dar aquela informação para o público que o acompanha. Da mesma maneira, baseando no teor dos dados, não é interessante para a emissora do veículo estudado discutir, noticiar ou analisar nenhum assunto ao aspecto que relacione o acontecimento com a População em situação de rua, por motivos particulares.

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4. POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: A REPRESENTAÇÃO DO OUTRO NO MEIO SOCIAL

Posterior as discussões elucidadas, gostaria de me ater neste momento à questão estritamente ligada ao indivíduo enquanto morador de rua, discutir o seu papel social a partir do lugar que este está colocado e a maneira como age dentro da estrutura social em que sobrevive. Quando se aborda a temática de população de rua, sempre se discute o assunto a partir de um ponto acima da real situação. Seja a relação da População em Situação de Rua e o Estado ou a mídia, como já foi discorrido acima, ou em relação a sua condição econômica, um dos fatores que se considera preponderante para a imposição e aceitação da sua condição. Entretanto, o viés de análise partindo do indivíduo, entendendo a sua condição de morador de rua enquanto uma representação do meio social também se apresenta como elemento crucial de discussão e compreensão dentro da esfera pública como um todo, principalmente no contexto social objetivado. O que se propõe, de início, é observar o sujeito e colocar a questão do morar na rua como algo secundário, definindo como uma persona, uma característica na composição pessoal do indivíduo. Para isto, é necessário expor as outras faces que este também possui, mas são reduzidas pela sua condição de homeless, desprovido de ambiente de repouso particular1. Entender o indivíduo como sujeito possuidor de multifaces, é também aceitar que este possui discursos. O discurso é colocado como ferramenta de poder, de enunciação e definição de ideologia, não somente de forma individual, mas também de maneira coletiva, enquanto ideologia de classe. Desconstruindo a ideia de classes estruturadas sobre conceitos econômicos, Bourdieu aponta também que em determinados grupos, existem estímulos colocados sobre características em comum, que seriam suficientes para criar uma classe. Com base no conhecimento do espaço das decisões, podemos recortar classes no sentido logico do termo, quero dizer, conjunto de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, com toda probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticos e tomadas de decisões semelhantes. (BOURDIEU, 2011, p.136)

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Entende-se real função do lar neste quesito, se reduz a mera questão de proteção do mundo, o local de repouso, ou seja, de descanso da realidade social que se apresenta porta afora. Podemos colocar a necessidade de possui residência fixa como um elemento capitalista baseado no ‘ter’ implícito na cultura e na ordem social vigente.

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Porém, alguns elementos necessários para a estruturação do pensamento de classe, ainda se colocam facultativos. A mobilização e o reconhecimento, que seriam esses elementos essenciais para a elaboração do pensamento, ainda não estariam presentes. A população de rua, baseando-se no que afirma Bourdieu Não é realmente uma classe, uma classe atual, no sentido de grupo e de grupo mobilizado para a luta; poder-se-ia dizer, em rigor, que é uma classe provável, enquanto conjunto de agentes que oporá menos obstáculos objetivos às ações de mobilização do que qualquer outro conjunto de agentes. (BOURDIEU, 2011, p.136)

Ao colocar a População em Situação de Rua enquanto classe provável, porém desmobilizada, poder-se-ia colocar a PSR como um corpo social desorganizado, mas que constitui a construção de um discurso semelhante, sendo este o elemento de associação entre os agentes. Pode-se assim, definir estes indivíduos que constituem esta possível classe, enquanto condicionados e definidos como moradores de rua, a formação de uma fachada, um mecanismo usado como ação conjunta do grupo perante a sociedade. Seria, como define Goffman, a utilização do equipamento expressivo, aplicado aqui de maneira associada. A respeito das definições de fachada, Goffman apresenta o seguinte argumento: Será conveniente denominar fachada à parte do desempenho do indivíduo que funciona regularmente de forma geral e fixa com o fim de definir a situação para os que observam a representação. Fachada, portanto, é o equipamento expressivo de tipo padronizado, intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação. (GOFFMAN, 1985, p. 29)

Para a realização da fachada de forma eficaz, Goffman aponta para dois elementos simbólicos que devem condizer com a representação: O cenário e a maneira. O cenário, neste caso, se engendra como o ambiente urbano, a cidade. As ações dos agentes sociais acontecem dentro desta esfera simbólica, onde se emitem discursos e são realizadas ações que contribuem para a manutenção e o fortalecimento da fachada. Como elementos constitutivos deste cenário, podemos colocar as condições da rua, a estrutura da cidade – o plano urbanístico como um todo (prédios, casas, praças, vias) –, as relações tecidas pelos indivíduos para além de sua condição – relações referentes ao trabalho, relações familiares, relações sociais e políticas. Com relação a definição da maneira, ou do modo de agir deste indivíduo, Goffman postula acerca de uma outra vertente da fachada. A fachada pessoal, como postulo ao autor, se coloca não só como elemento que compõe a fachada social, mas também como essencial para a constituição e construção da maneira de agir do indivíduo. Por fachada pessoal entende-se: Podemos tomar o termo “fachada pessoal” como relativo aos outros itens de comportamento expressivo, aqueles que de modo mais íntimo identificamos com o próprio ator, e que naturalmente esperamos que o sigam onde quer que vá. Entre as partes da fachada pessoal podemos incluir os distintivos da função ou da categoria, vestuário, sexo, idade e características raciais, altura e aparência; atitude, padrões de

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linguagem, expressões faciais, gestos corporais e coisas semelhantes. (GOFFMAN, 1985, p. 31)

Parte do que constrói a personalidade do indivíduo está presente na fachada pessoal. Logo, as definições adotadas para caracterização de um indivíduo que reside em logradouro público em sua maioria, partem da fachada social (grupo) para social (morador). A maneira descrita por Goffman, que se refere ao modo de atuação social deste agente, é um dos elementos que fazem parte da afirmação dos níveis de fachadas existentes e aqui analisadas. Este agir está diretamente relacionado com a retórica discursiva do indivíduo, principalmente no que diz respeito ao discurso itinerante e estratificado, definido por Michel de Certeau como retóricas ambulatórias, sobre este assunto, discutiremos mais à frente. Goffman conclui as definições acerca da construção da fachada definindo o entendimento acerca da realização da “maneira”: Chamaremos de “maneira” os estímulos que funcionam no momento para informar sobre o papel de interação que o ator espera desempenhar na situação que se aproxima. [...] Frequentemente esperamos, é claro, uma compatibilidade confirmadora entre aparência e maneira. (GOFFMAN, 1985, p. 32)

A maneira, pelo que se pode concluir, está relacionada não só ao agir, as ações do indivíduo, mas também com os aparatos simbólicos que este desfruta para a construção da sua persona. Estes elementos constituem de forma ampla, a enunciação do discurso da População de rua, ou talvez, discursos, entendendo não apenas a enunciação linguística deste dentro do contexto social, mas também o seu agir, a construção cultural, as ressignificações feitas por este sobre o espaço, e relacionado a este último paradigma, o próprio caminhar. A ferramenta do discurso aqui apresentada de maneira objetiva (enunciação) e subjetiva (elementos simbólicos e apropriações do espaço) tem talvez sempre a mesma função, a disputa de poder dentro da ordem social. Logo, antes de entrarmos nas análises dos discursos enunciados por esta população e o seu efeito dentro da sociedade, importante parar para observar a influência que o ambiente onde o indivíduo habita, de forma temporal ou permanente, tem sobre a sua narrativa, o efeito de lugar sobre o lugar de fala.

4.1 A RETÓRICA DISCURSIVA DA PSR: O LUGAR DE FALA E O DISCURSO COMO FERRAMENTA DE APODERAMENTO

Todos os agentes sociais dispõem de espaços dentro da lógica social. O posicionamento de cada grupo nos sistemas de enunciações denota uma relação de poder entre o grupo que

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emite enunciação, os demais grupos e agentes da sociedade e a ordem pré-estabelecida vigorante. Se considera também, a partir deste pressuposto, que o lugar exerce poder influência sobre o discurso dito. Tal influência altera a importância e a visibilidade dada a este. Como exemplo podemos dar as diferenciações entra o discurso institucional – dos governantes, autoridades de Estado –, o discurso mediático dos meios de comunicação, o discurso do setor econômico empresarial, da opinião pública2 o de grupos minoritários da sociedade – classes desfavorecidas, movimentos políticos dissidentes de esquerda, grupos étnicos e a própria População em situação de Rua, que se compõe enquanto possível classe e também pode ser dissolvida nos demais grupos. Os discursos institucionais podem ser considerados como um dos modelos de discurso hegemônico dentro da esfera social, pode ser analisado dessa forma justamente em função dos elementos contidos na sociedade que respaldam sua credibilidade, como a estrutura política de forma mais clara. Logo, enxerga-se deste modo a importância que o lugar de fala, simbolicamente, possui sobre este mecanismo. O capital social que este emana para quem exercita o ato de enunciar. No caso dos modelos retóricos observados nas esferas mediática, econômica e política, pode-se observar uma não generalização deste setor, logo que estes setores transitam entre o hegemônico e o contra hegemônico. A respeito do conceito de hegemonia, Luciano Gruppi explica que Uma classe é hegemônica, dirigente e dominante até o momento em que – através de uma classe sua ação política, ideológica, cultural – consegue manter articulado um grupo de forças heterogêneas e impedir que o contraste existente entre tais forças exploda, provocando assim uma crise na ideologia dominante, que leve à recusa de tal ideologia, fato que irá coincidir com a crise política das forças no poder. (GRUPPI, 1978, p.67)

Por fim, Os grupos minoritários da sociedade, apresentam um discurso que não tem a mesma relevância social, político e ideológica devido a sua posição dentro da infraestrutura em questão, e por consequência, do acumulo de capital social objetivado. A respeito desta relação entre lugar de fala e discurso, Bourdieu discorre sobre o efeito de lugar, elemento simbólico que influi diretamente nesta acumulação simbólica de capital e obtenção de um status quo. O bairro chique, como um clube baseado na exclusão ativa das pessoas indesejáveis, consagra simbolicamente como um de seus habitantes, permitindo-lhes participar do capital [social] acumulado pelo conjunto de residentes: ao contrário, o bairro

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Considera-se opinião pública como opinião de maior parte da sociedade, e em alguns casos, opinião dos setores mais influentes da sociedade. Baseamos o conceito nos postulados de Bourdieu acerca da opinião, que segundo o autor, “a opinião pública não existe.”(BOURDIEU, 1998)

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estigmatizado degrada simbolicamente, porquanto, estando privados de todos os trunfos necessários para participar dos jogos sociais, eles não têm em comum senão sua comum excomunhão. (BOURDIEU, 1997, p.166)

Ao colocar o “bairro” como elemento estruturante (neste caso, geográfico) podemos entender como esta relação pode ser tecida em outros setores da realidade social. Podemos observar estes elementos de promoção e degradação nas discussões suscitadas acimas. A população de rua dentro deste segmento, pode ser vista como um grupo social degradado pelos demais grupos que compartilham dos aparatos ideológicos hegemônicos. Desta maneira tentase invalidar o seu discurso em justificativa ao seu lugar de fala, de forma prática e simbólica. Assim, fica exposto a tentativa de regulação dos discursos emitidos pelos grupos sociais. O discurso, nesta situação, engendra uma relação de poder, de sobreposição entre os grupos, uma estrutura de disputa simbólica. Acerca do discurso na sociedade, Michel Foucault postula: Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2012, p.8-9)

A materialidade colocada por Foucault se refere a forma como se constroem as relações de poder a partir do discurso. Esta relação de poder baseia-se na interação dos indivíduos com as estruturas simbólicas existentes utilizando a ferramenta do discurso. A PSR em seu discurso, poderia dispor de elementos que pudessem alterar sua condição simbólica e talvez até, social e econômica. Devido a esta regulação do discurso, a sociedade em que estamos inseridos tem como pressuposto tal estrutura, e por conseguinte, os lugares que cada agente deve se colocar. Outra explicação para o cerceamento do poder de fala dado a PSR, seria enxergar o discurso, além de sua função de poder, como instrumento de comunicação para interação social dos indivíduos. Porém, como defende Bourdieu, a relação entre a comunicação e as estruturas estruturantes de poder é inseparável. Contra toda as formas de erro “interacionista” o qual consiste em reduzir as relações de força a relações de comunicação, não basta notar que as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que, como um dom ou polatchi, podem permitir acumular poder simbólico. (BOURDIEU, 2011, p.11)

Logo, os procedimentos de exclusão também atingem a região dos discursos das minorias, em especifico o da PSR. O ato de negação do espaço da fala ou da desvalorização devido a posição de enunciação caracterizam-se como elementos que reforçam as ações ligadas ao processo de exclusão social. Dentre essas ações, podemos elencar como maneiras de

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interdição do discurso, além da negação da fala, o descrédito da retórica por motivo de loucura ou por elementos que são exteriores a enunciação, mas ainda referentes a condição do indivíduo produz a narrativa. Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode fala de tudo em quaisquer circunstâncias, que qualquer um enfim, não pode falar de qualquer coisa. (FOUCAULT, 2012, p.9)

Pode-se entender o discurso da População em situação de rua como um discurso interditado, logo que a visibilidade e o respaldo dado a este é muito pequena. Exemplo disso são as oportunidades dadas pelos setores, estruturas e alguns agentes sociais ao grupo da PSR. Quando surgem assuntos referentes ao este grupo, a fala que se enunciar geralmente vem de fora. Seja a mídia falando sobre os moradores de ruas e suas mazelas perante a sociedade, seja o poder público apresentando a PSR como um mal-estar social que deve ser resolvido. Há ainda os casos das Organizações Não Governamentais, as ONGs, que conduzem ações assistencialistas temporais a este grupo, como a distribuição de alimentos, como a sopa de legumes, para estes indivíduos. O que se percebe, é que, em todos os casos, é clara a interdição do discurso da população de rua em todas a situações expostas. Para pontuarmos caso a caso, vejamos primeiramente o exemplo dos grandes veículos de comunicação. Na produção de notícias sobre a PSR – quando se produz, visto dados apresentados pela pesquisa – a fala da população de rua é inexistente. Se relata o problema e a PSR é colocada como um objeto de composição do cenário, sendo o que podemos definir como o protagonista coadjuvante, que aparece como foco principal da matéria mas não é ouvido. Para ilustrarmos os casos de ações assistencialistas executadas pelas ONGs, vejamos a ação da distribuição da famosa sopa para as pessoas que são colocadas como necessitadas: não se pergunta ao morador se este quer aquilo que lhe é distribuído como algo subjetivamente impositivo. Sua condição de suposta miséria denota que este não possui escolha, sua retórica pouco importa no momento que ele não tem outra opção. O discurso, de optar por algo diferente se invalida, devido a posição em que foi colocado de desfavorecido. Além dos conceitos já expostos para explicação deste processo de negação do discurso da População em situação de rua, podemos apontar a loucura como desvalorização simbólica do que se diz. Conforme Foucault, “O louco é aquele discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância” (FOUCAULT, 2012, p.10).

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A relação que se pode tecer entre o discurso do indivíduo classificado como louco e o discurso do morador de rua se inicia pelas características da desvalorização da enunciação, mas não se reduz a isso; Diante da sociedade atual, e dos padrões éticos, morais e sociais estabelecidos, estes dois exemplos se caracterizam como algo que não obedece a esta lógica imposta. O louco é visto como tal devido a desconexão do que fala e a maneira de agir perante a realidade que este adota. O morador de rua se assemelha ao modelo de classificação do louco no que se refere ao modo de agir – não tem o agir igual ao de uma pessoa caracterizada louca, mas tem sua conduta analisada como dissonante do da norma social vigente – pois se encaixa nos paradigmas existentes de convívio e vivencia coletiva. Logo, constrói sobre si um novo modelo, uma nova “maneira” de se comportar dentro do sistema. Tal iniciativa pode ser caracterizada como uma forma de luta social, de tentativa de apoderamento de seu próprio discurso, ou de validação do mesmo. Segundo Foucault, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder no qual queremos nos apoderar” (FOUCAULT, 2012, p.10). Percebe-se que a luta pelo poder que consiste dentro do âmbito discursivo é algo latente. Nos casos das minorias privadas de obterem seu próprio discurso, às vezes, se apoderam de discursos externos como se fossem seus, por uma questão de representatividade dentro do sistema social existente. Caracteriza-se, como outra vertente além da disputa ideológica pelo apoderamento de um discurso genuíno, seria a alienação do discurso que o indivíduo enuncia. Tal questão vista sob o viés da População em Situação de Rua se caracteriza no momento em que o morador, desprovido de discurso próprio a respeito de sua condição, adota as idealizações criadas por outros setores da sociedade para caracterizá-lo. Adota um discurso externo a si para se autodescrever e entender a sua realidade – enquanto resguarda a sua retórica discursiva como forma de conservação identitária –, com o objetivo de facilitar sua aceitação perante o contexto social existente, já que o que a enunciação que o indivíduo elucida é considerada em alguns casos inválida. O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante dos seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito o discurso pode dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si. (FOUCAULT, 2012, p.46)

A partir disto, levanta-se a discussão acerca do discurso emitido pela PSR em alguns casos. Tentando diferenciar quando o discurso que se pronuncia é próprio ou deslocado,

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assimilado de outro agente ou estrutura social. Sobre este modelo de reprodução de ideias enunciativos, Bourdieu postula, afirmando que Se as relações de forças objetivas tendem a reproduzir-se nas visões do mundo social que contribuem para a permanência dessas relações, é porque os princípios estruturantes da visão do mundo radicam nas estruturas objetivas do mundo social e porque as relações de força estão sempre presentes nas consciências em forma de categorias de percepção dessas relações. (BOURDIEU, 2011, p.142)

Logo, procurando se desviar desta reprodução discursiva que pode vir a acontecer com relação ao que se enuncia pela população de rua, busca um outro caminho de entendimento da enunciação, que está mais distante das influências que produzem as estruturas dominantes da sociedade e seus respectivos agentes: o caminhar pela cidade. As retóricas ambulatórias, como define Michel de Certeau, seria uma outra maneira de enunciação dentro do sistema social. Ao autor traça relações entre espaço e o texto, o movimento e a enunciação. O ato de caminhar seria outra forma mais livre de emitir o discurso sobre o espaço, sofrendo menos influências das estruturas dominantes. Certeau define tal pensamento afirmando que Existe uma retórica na caminhada. A arte de moldar frases tem como equivalente uma arte de moldar percursos. Tal como a linguagem ordinária, esta arte implica e combina estilos e usos. O estilo especifica “uma estrutura linguística que manifesta no plano simbólico [...] a maneira de ser no mundo fundamental de um homem”. Conota um singular. O uso define o fenômeno social pelo qual um sistema de comunicação se manifesta de fato: remete a uma norma. O estilo e o uso visam, ambos, uma “maneira de fazer” (falar, caminhar, etc.), mas como tratamento singular do simbólico, o outro como elemento de um código. Eles se cruzam para formar um estilo do uso, maneira de ser e maneira de fazer. (CERTEAU, 2014, p.166)

Logo, para compreender de forma totalizadora a o ato enunciativo destes indivíduos, se faz necessário entender o discurso redigido sobre o espaço em sua forma “ambulatória”, através do uso e ocupação que este traça sobre o espaço físico e simbólico.

4.2 A RETÓRICA DO ESPAÇO

Ocupar o espaço também pode ser visto como uma forma de enunciação e até de construção da identidade social de um indivíduo. O caminhar pelo mapa urbano constrói um texto que pode ser lido de outra maneira, e que se faz necessário para entender o discurso daqueles que fazem deste paradigma, a sua própria retórica. Conforma afirme Michel de Certeau, “os relatos cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se pode ai, fabricar e fazer. São leituras do espaço” (CERTEAU, 2014, p.189). O autor

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trabalha a partir da valorização do ato de caminhar sobre o mapa da cidade como elemento definidor de um discurso legitimo do ser. Acerca do conceito de cidade, Certeau define que “A cidade”, à maneira de um nome próprio, oferece assim a capacidade de conceber e construir o espaço a partir de um número finito de propriedades estáveis, isoláveis e articuladas uma sobre a outra. Nesse lugar organizado por operações “especulativas” e classificatórias, combinam-se gestão e eliminação. De um lado, existem uma diferenciação e uma redistribuição das partes em função da cidade, graças a inversões, deslocamentos, acúmulos, etc.; de outro lado, rejeita-se tudo aquilo que não é tratável e constitui, portanto, os “detritos” de uma administração funcionalista (anormalidade, desvio, doença, morte). (CERTEAU, 2014, p.160-161)

Partindo destes pressupostos, interessante analisar a forma como este indivíduo atribui significações aos objetos e aos locais dispostos sobre o espaço urbano, como também a forma como este transita sobre a estrutura da cidade e a partir daí, observar as relações que este tece com os demais agentes sobre este ambiente legitimando-o. A cidade é consumida pelos indivíduos através das significações que se engendram dentro de sua esfera social. A respeito de como as formas de uso compõem a construção de um texto urbano, Certeau explica que: Mais embaixo (down), a partir dos limiares de onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, wandersmänner, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um “texto” urbano que escrevem sem poder lê-lo. [...] As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações, de espaços: com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra. (CERTEAU, 2014, p. 159)

Portanto, observemos os usos e significações produzidos sobre a População em Situação de Rua sobre a cidade. Este grupo, que apesar de possuir uma enunciação estruturada, expõe sua identidade, sua visão e seus pensamentos através das caminhadas que realizam sobre o ambiente público. A PSR atribui à rua não somente um valor de transição de espaço, adiciona a ela o sentido de produção de sentidos, de habitat. Desconstroem a ideia de rua enquanto limbo público entre os espaços comuns de ocupação, como os ambientes de trabalho e familiar. É partindo da prerrogativa do ato de “escrever com o corpo em movimento” que a PSR faz da rua um lugar de histórias. Histórias essas não só contadas pela linguagem, mas pelas significações e pelo espaço. O ato de ocupar e transitar é, nessa lógica, uma forma de contar uma história, e de escrever a própria retórica. Na rua, não se busca escutar relatos a partir do outro, a retórica do caminhar consistem praticar o relato contínuo, a vivência dos acontecimentos em primeira pessoa. “O trivial não é mais o outro (encarregado de reconhecer a isenção de seu diretor de cena); é a experiência produtora do texto” (CERTEAU, 2014, p. 158).

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Este conjunto de ações e práticas demonstram, segundo Certeau, um novo paradigma para entender a lógica social e a cidade em si. Talvez possamos afirmar que esta visão sobre a cidade, está a ser de certa maneira executada pelos moradores de rua. Seria, um olhar totalizador sobre o ambiente urbano. Escapando às totalizações imaginarias do olhar, existe uma estranheza do cotidiano que não vem à superfície, ou cuja superfície é somente o limite avançado, um limite que se destaca sobre o invisível. Neste conjunto, eu gostaria de detectar práticas estranhas ao espaço “geométrico” ou “geográfico” das construções visuais, panopticas ou teóricas. Essas práticas do espaço remetem a uma forma especifica de “operações” (“maneiras de fazer”), a “uma outra espacialidade” (uma experiência “antropológica”, poética, mítica do espaço) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada. Uma cidade trasmutante, ou metafórica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível. (CERTEAU, 2014, p. 159)

Pode-se compreender a cidade como o todo do corpo social, constituído pelas estruturas, códigos, processos e agentes que nela subsistem. Enxergando de tal maneira, a retórica do espaço se comporta como a ferramenta que os agentes sociais utilizam para manter o fluxo produtor de significações e construção de identidades sobre o plano. Sobre o ato de caminhar em relação a esta relação de fluidez, Certeau explica que O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação (o speech act) está para a língua ou para os enunciados proferidos. Vedo as coisa no nível mais elementar, ela tem com efeito uma tríplice função “enunciativa”: é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre (assim como o locutor se apropria e assume a língua); é uma realização espacial do lugar (assim como o ato de palavra é uma realização, sonora da língua); enfim, implica relações entre posições diferenciadas, ou seja, “contratos” pragmáticos sob a forma de movimentos (assim como a enunciação verbal é “alocução”, “coloca o outro em face” do locutor e põe em jogo contratos entre locutores). O ato de caminhar parece, portanto, encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação. (CERTEAU, 2014, p.164)

Logo, o relato se apresenta como instrumento mais importante dentro deste processo de enunciação prática. Seria pois, a ponte de ligação entre as experiências vividas através dos processos retóricos topográficos e a linguagem discursiva. O relato do morador de rua se coloca como adereço do seu discurso itinerante, simbolizado pelo ato de caminhar. A ferramenta do relato se coloca como objeto construtor da geografia das ações, e também como via de exposição do genuíno discurso da PSR. Interessante notar que a construção deste processo de enunciação, do relato, se faz também pelo agrupamento de símbolos obtidos dentro do processo de interação social. Se constrói a partir de experiência, relação e observações feitas durante as caminhadas. Os símbolos são instrumentos por excelência da “interação social”: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação (cf. à análise durkeimiana da festa), eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social. (BOURDIEU, 2011, p.10)

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Por fim, importante ressaltar a relevância que o relato puro, fruto da retórica caminhatória tem para entendermos a realidade da População em Situação de Rua. Partindo deste relato, que inexiste em qualquer outra esfera maior, como a midiática e a governamental, é que se pode entender a verdadeira realidade da População em situação de Rua e suas verdadeiras enunciações, discursos e visões (sobre si, sobre a sociedade e sobre o espaço). Conforme afirma Certeau, os relatos são aventuras narradas, que [...] ao mesmo tempo produzem geografias de ações e derivam para os lugares comuns de uma ordem, não constituem somente um “suplemento” aos enunciados pedestres e às retóricas caminhatórias. Não se contentam em deslocá-los e transpô-los para o campo da linguagem. De fato, organizam as caminhadas. Fazem a viagem, antes ou enquanto os pés executam. (CERTEAU, 2014, p.183)

Entender o relato e sua significância, é compreender a ponte entre os discursos, as enunciações, as caminhadas e a realidade objetivada. O discurso se coloca dentro desta lógica, como algo transversal, que perpassa pelos diversos campos, se remodelando que se encontra em um patamar diferente, desde a linguagem, até chegar nas “artes do fazer”.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do trabalho, foi feita uma discussão priorizando sempre refletir a sociedade ao partir das análises sobre a população de rua. Expondo políticas públicas, modelos de agendamentos relacionados a comunicação, formas que a sociedade enxerga e trata esse grupo. O objetivo foi justamente discutir sobre aquilo que pouco se discutiu e se discutiu hoje dentro da academia no âmbito da comunicação. Como já foi dito, a PSR é um tema muito importante em outros campos de estudo, como o da antropologia e o dos direitos humanos. Ao longo desta trajetória, houve o esforço de executar a desconstrução de estruturas simbólicas sociais acerca dos moradores de rua. Essas questões podem ser definidas como “fantasmas e ilusões burgueses do empirismo” (CAETANO DA SILVA, 1999). As discussões buscaram sempre expor um lado mais verdadeiro e fiel sobre a População em Situação de Rua, para que assim ficasse claro as ideias de preconceitos e os estereótipos que recaem sobre estes indivíduos. O viés das políticas públicas, através da Política Nacional de População de Rua, trouxe ao projeto não só a visão que o Estado brasileiro tem sobre estes cidadãos, mas apresentou aspectos muito importantes acerca do modelo de política institucional acerca do assunto, expondo o caráter paternal da ação e a posição de passividade que se coloca o próprio morador. Demonstrou também, baseando-se nos argumentos de alguns autores, as características adotadas pelo Estado, que no passado, eram atribuições das religiões. A discussão serviu também para afirmar que na cidade de Vitória da Conquista existem sim moradores de rua, e que estes dados são reconhecidos pelo poder público. O estudo sobre a mídia, sob o pequeno recorte na esfera macro (nacional) e o recorte mais abrangente da esfera micro (local), abordou a maneira como a mídia, em especial a fatia da mídia chamada de “grande mídia” ou “mídia hegemônica”, se comporta no que tange a assuntos relacionados a PSR. O agendamento de notícias demonstrou não só que não existe espaço dentro da mídia local para este grupo, como também este silêncio, digamos assim, também se coloca como uma vertente do discurso de poder na sociedade. Interessante analisar a partir destes pressupostos, a maneira que o imaginário coletivo é construído tendo como base estas duas vertentes dentro do jogo social: O Estado e a mídia. A construção da imagem da PSR no cotidiano da maioria dos cidadãos, é feita partindo dos ideais e das estruturas criadas por estes dois setores, logo que se comportam como esferas acima do convívio urbano. Em exceção a isso, temos os indivíduos que constroem suas próprias opiniões

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através da própria imagem que a PSR possui. Para este tipo de designações, temos as ONGs – sendo que apesar de algumas delas se apresentarem como dissidentes do discurso hegemônico destes dois setores já citados, também constrói de certa forma uma imagem estereotipada dos moradores – os militantes das causas ligadas aos Direitos Humanos e a academia através das ações de pesquisa e extensão. Contudo, buscou-se discorrer acerca da maneira que a própria população de rua se enuncia e se coloca dentro da sociedade, abordando os aspectos relacionados ao seu lugar natural, a rua, e discutindo acerca das estruturas simbólicas e discursivas cabíveis a estes cidadãos. Como desfecho para tentar entender este discurso, se defende que a enunciação deste indivíduo através da sua retórica pelo espaço, expondo a sua verdadeira identidade e as suas relações sociais. Por fim, importante salientar que este trabalho não representa o início da discussão sobre este tema, muito menos se apresenta como um trabalho de fato conclusivo. Acredita-se que todo tipo de conhecimento é construído para ser posto à prova e reformulado, sempre sendo aprimorado para oferecer a maior utilidade social que lhe venha caber. Da mesma maneira que se tomou a palavra durante este trabalho, houveram aqueles que já a também tomaram, e outros que ainda viram a se enunciar.

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7. APÊNDICE

Detalhamento de notícias dos jornais BATV e BAMD no mês de setembro:

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