A crise dos refugiados sírios e o Direito Internacional

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Diálogos Jurídicos 1 (1) : 09 - 19, 2016 | ISBN 978-85-99895-75-7

DIREITO INTERNACIONAL A crise na Síria e o Direito Internacional

Kleber Antonio Galerani1

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1. Professor de Direito Internacional, Ciência Política e Teoria Geral do Estado da Universidade de Franca (UNIFRAN), mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

INTRODUÇÃO

sociais mais surpreendentes que surgiram na região compreendida entre o Oriente Médio e o Norte da África, porquanto abrange vários países e tem gerado graves consequências políticas, econômicas e, principalmente, sociais.

A foto do menino sírio, Aylan Kurdi, de três anos de idade, em uma praia de Bodrum, no litoral da Turquia, já sem vida, após morrer afogado no mar Mediterrâneo, gerou intensa repercussão na opinião pública internacional. A família de Aylan, assim como milhares de famílias sírias, buscava a condição de refugiados em países da Europa, em virtude de uma sangrenta guerra civil na Síria, iniciada em 2011. O objetivo desse artigo é analisar a crise síria, a partir da ótica do Direito Internacional. Em primeiro lugar, será apresentado, no contexto da Primavera Árabe, um breve histórico dessa crise. Posteriormente, serão abordados os institutos do Direito Internacional que visam resguardar os direitos humanos da população síria. Por fim, será feita uma análise propositiva, de modo a lançar luzes sobre os caminhos possíveis para a resolução da crise no tratamento dos refugiados sírios.

A autoimolação de um vendedor tunisiano, em 2010, desencadeou uma onda de protestos em diversos países, tais como a Tunísia, a Líbia, o Egito, o Iêmen e a Síria. Essa onda foi motivada por diversas causas, algumas identificáveis, tais como o autoritarismo, a extrema pobreza e a desigualdade social, e outras que somente serão identificáveis após certo distanciamento histórico-temporal. Segundo o diplomata Bruno Rezende: De modo geral, os manifestantes abstiveram-se de atribuir a origem de suas frustrações a atores externos. Os movimentos populares no Oriente Médio e no norte da África caracterizaram-se por serem espontâneos e locais. Mais da metade da população dos países envolvidos nos protestos tinha menos de 25 anos, e a situação de desemprego, inflação e falta de perspectivas para os jovens, combinada à insatisfação política com regimes autoritários (as únicas exceções não autoritárias na região eram Líbano e Palestina), com corrupção e violação de direitos humanos, levaram a protestos generalizados. A Primavera Árabe não foi uma revolução da classe

1. A PRIMAVERA ÁRABE E A CRISE SÍRIA: UM BREVE HISTÓRICO 1.1 A Primavera Árabe A Primavera Árabe, iniciada em 2010, é um dos movimentos político-

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mais pobre. As mobilizações foram feitas, sobretudo, pelas massas urbanas, estudantes, jovens, baixa classe média, com uso efetivo das redes sociais para organizar protestos e transmitir o que estava ocorrendo ao mundo. (REZENDE, 2014, p. 6

Na maioria desses países, os movimentos populares conseguiram depor os chefes de Estado, a exceção é a Síria. Na Tunísia, o presidente Ben Ali, que governava o país desde 1989, foi deposto em 2011. Na Líbia, Muammar al-Gaddafi, que chefiava o Estado libanês desde 1969, foi assassinado, em 2011, por grupos opositores. No Egito, o presidente Hosni Mubarak, que liderava o país desde 1981, foi deposto em 2011. No Iêmen, Ali Abdullah Saleh, que governou o Iêmen do Norte de 1978 a 1990 e, após conseguir a unificação do país, em 1990, continuou no poder até 2012, quando foi deposto de seu cargo. Na Síria, os grupos opositores ao presidente Bashar al-Assad têm, desde 2011, tentado depor o governo vigente, entretanto, de forma distinta dos demais países citados, as forças estatais ligadas à Assad têm resistido às pressões, o que ocasionou uma guerra civil no país.

os tempos de governo, verifica-se que a família Assad já está no controle do Estado sírio há 44 anos. Para compreender como essa família permanece no controle do Estado sírio há mais de quatro décadas, mesmo sendo parte de uma minoria, e porque, desde 2011, o país entrou na atual guerra civil, faz-se necessária a análise de como a política síria está estruturada. Até a família Assad tomar o poder do Estado sírio em 1971, o país passou por um período de grande instabilidade, uma vez que desde a independência do país, em 1946, até 1971, o país foi governado por 18 presidentes distintos. De 1946 a 1958 a República da Síria foi governada por dez presidentes. Nasser foi o presidente da República Árabe Unida (RAU), durante a existência desta, de 1958 a 1961, resultado da união entre Egito e Síria. Com o fim da RAU em 1961 o partido Baath2 Sírio teve papel fundamental para a transformação política da Síria, sendo que em 1963 efetivamente toma o poder no país, e em 1964 muda o nome do Estado para República Popular da Síria, reforçando o caráter Pan-arabista e socialista daquele Estado. De 1961 a 1970 o país também sofre com os golpes militares, e sete presidentes ocuparam o cargo mais alto do executivo Sírio. (MOUBAYED, 1996 apudZAHREDDINE, 2013, p. 11-12)

1.2 As possíveis origens da Crise Síria Bashar al-Assad, que está no poder desde 2000, sucedeu seu pai Hafez alAssad. Este foi presidente da Síria entre 1971 e 2000. Embora a família Assad pertença a um grupo religioso minoritário da sociedade síria, os alauitas1 , somados 1. No que concerne ao perfil religioso da sociedade síria, os muçulmanos totalizam 87% da população, os cristãos são 10% da população e os drusos 3%. Entre os muçulmanos, os sunitas são maioria, uma vez que representam 74% da população. Os 13% restantes são de alauitas, ismaelitas e xiitas. (THE WORLD FACTBOOK, 2015)

2. Segundo John Devlin (1991, p.1396), “The Arab Socialist Baath Party began its half-century of existence as a movement standing for Arab nationalism, freedom from foreign rule, and the establishment of a single Arab state”. Esse partido tem na Síria e no Iraque, principalmente até o regime de Saddam Hussein, uma maior expressão de seus princípios. Para aprofundar a análise sobre o Partido Baath, sugere-se: DEVLIN, John F. The Baath Party: Rise and Metamorphosis. Oxford University Press on behalf of the American Historical Association: The American Historical Review, Vol. 96, No. 5 (Dec., 1991), pp. 1396-1407.Disponível em: . Acesso em: 16.09.2015.

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Após esse período de grande instabilidade política, em 1971, Hafez al-Assad é eleito presidente. Em 1966, Hafez foi ministro da defesa, e quatro anos depois, em 1970, derruba o presidente Nur al-Din al-Atasi, por meio de um golpe militar. Hafez, que mantinha laços estreitos com a União Soviética e pertencia a minoria alauita, em 1971, assumiu a presidência do país, por meio de um plebiscito, inicialmente com um mandato de sete anos. (SYRIA TIMELINE, 2015) Embora o mandato inicial fosse de sete anos, Hafez permaneceu no poder até 2000. Os especialistas indicam que um dos principais fatores que garantiram a estabilidade desse governo foi a nomeação de membros da minoria alauita para os altos cargos das Forças Armadas e da burocracia estatal, pois, como afirma Danny Zahreddine (2013, p.6), “a maior presença das minorias nas Forças Armadas, bem como em cargos políticos e na burocracia síria, criou um grupo altamente fiel ao presidente e à sua família, o que pode ser visto claramente na guerra civil iniciada em 2011.” Outro fator indicado como mantenedor do status quo na Síria, após a ascensão de Hafez, é o rígido controle dos movimentos contrários ao governo. Em diversas ocasiões, as Forças Armadas, principalmente o Exército, foram empregados no controle às dissensões.3 3. Para conhecer alguns exemplos desse controle violento e autoritário, sugere-se ver: Middle East: Syria profile – timeline. UK: BBC, 2015.Disponível em: Acesso em: 16.09.2015. 4. Após os ataques às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, o presidente norte-americano, George W. Bush, indicou em discurso que os Estado do Irã, da Coreia do Norte e do Iraque constituíam o “Eixo do Mal”, porquanto eram países que apoiavam as atividades de grupos terroristas ou possuíam ADMs, que poderiam chegar aos grupos terroristas.

Em 2000, Hafez al-Assad morreu, mas o país continuou sobre o controle dos Assad. Após a morte, foi realizado um referendo popular, que confirmou Bashar al-Assad, filho de Hafez, na presidência do país. Não obstante tivesse apenas trinta e quatro anos de idade, a constituição síria foi emendada, com objetivo de diminuir a idade mínima permitida, para que Bashar assumisse o mais alto cargo do Estado sírio. (ZAHREDDINE, 2013, p. 7) Desde o início do governo, Bashar Al-Assad tem enfrentado problemas externos e internos. No âmbito externo, as relações com os Estados Unidos deterioram-se. Em 2002, o governo estadunidense incluiu a Síria no grupo dos países intitulado “além do eixo do mal”4 , uma vez que afirmavam que o governo de Assad estava comprando armas de destruição em massa (ADMs) e mantendo relações com o Hamas, o Hezbollah e o Movimento da Jihad Islâmica, os quais são considerados grupos terroristas pelo Estados Unidos. Esses fatores motivaram, em 2004, a aplicação de sanções econômicas à Síria, que, em 2010, foram renovadas, o que ocasionou a deterioração da situação econômica do país. (REZENDE, 2014, p. 9) No âmbito interno, apesar das expectativas da população por mudanças, o presidente recémempossado não promoveu alterações substanciais na condução da administração do país. Ao invés de promover as mudanças desejadas por alguns setores, Bashar al-Assad deu continuidade a forma de governar de seu pai, o que pode ser observado Os países que, de alguma forma, mantinham relações de proximidade com os governos desses países, foram incluídos pelo governo estadunidense como grupo conhecido como “além do eixo do mal”.

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na manutenção dos alauitasno comando das Forças Armadas e da burocracia estatal. Esse comportamento conservador e autoritário fomentou a frustração e a indignação de alguns setores da sociedade.

e pela Rússia, tradicionais aliados do governo sírio, tem impedido que sejam adotadas medidas mais enérgicas contra esse governo. Esses países, assim como o Brasil, defendem que somente uma solução construída por meio do diálogo, permitirá a resolução da crise síria.

1.3 O estopim da crise e suas consequências

Os conflitos entre o governo e oposição tem se acirrado. Em 2013, foi desferido um ataque de armas químicas (gás sarin) contra a população síria. O inquérito, elaborado pelos inspetores da ONU, concluiu que cerca de 300 pessoas foram mortas em Ghouta, no entorno de Damasco, por meio de armas químicas, entretanto os inspetores não indicaram claramente, se integrantes das forças do governo ou das forças de oposição, foram os responsáveis pelo ataque. (BBC, 2015)

No contexto da Primavera Árabe, iniciou-se, em 2011, após mais de quatro décadas, um período de grande instabilidade política na Síria. Os protestos de civis começaram nas cidades de Damasco, Banyas, Homs e Daara. As demandas eram diversificadas, mas a busca de maior liberdade política e a soltura de prisioneiros políticos foram importantes bandeiras dos grupos que protestavam. O governo controlou os protestos, de forma violenta, por meio do Exército, o que gerou maior insatisfação popular. (BBC, 2015)

Após meses de negociações internacionais, a Síria comprometeu-se a cumprir com as obrigações assumidas, em 1925, pelo Protocolo para a Proibição do uso em uma Guerra de Asfixiantes, Venenos ou outros Gases, e de Métodos Bacteriológicos, conhecido como Protocolo de Genebra. No mesmo ano, o governo sírio aderiu à Convenção sobre Armas Químicas (1993), a qual é supervisionada pela Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ). Em 2014, a OPAQ concluiu a remoção do último carregamento de armas químicas que a Síria havia declarado estarem presentes em seu território. (REZENDE, 2014, p. 9)

Em novembro de 2011, os grupos opositores à Assad formaram o Conselho Nacional Sírio, que reuniu líderes da oposição que estavam no país e também os líderes que estavam exilados em outros países. Desde então, os conflitos entre à oposição e o governo tem aumentado sobremaneira. Conquanto a comunidade internacional tenha reagido às medidas repressivas adotadas pelo governo sírio, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) não chegou a um consenso sobre a intervenção no país. Desde 2011, a Síria tem sofrido diversas sanções econômicas por parte de países europeus, dos Estados Unidos e da Liga Árabe, no entanto, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), a utilização de poder de veto pela China

Apesar do êxito nas negociações, a questão da utilização das armas químicas parece não ter chegado ao fim. Em 2015, Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, após tomar conhecimento da

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continuidade da utilização de armas químicas no conflito sírio, “condenou veementemente a utilização desse tipo de armamentos por qualquer parte no conflito e salientou que toda a comunidade internacional tem a responsabilidade de levar os criminosos a julgamento”. (ONU, 2015)

da questão dos refugiados dá-se pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, e pelo Protocolo Sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1967. Pelo Estatuto dos Refugiados de 1951, no seu artigo 1º, a qualidade de refugiado é reconhecida para pessoas:

Enquanto os países membros do Conselho de Segurança não chegam a um acordo sobre a intervenção, a crise síria atinge dados alarmantes. Segundo o secretário-geral da ONU, o conflito sírio já totaliza aproximadamente 250 mil mortos. A quantidade de deslocados internos e externos chega a 12 milhões de pessoas, o que faz com que a crise síria seja considerada a maior crise humanitária da atualidade. (ONU, 2015b) Desse total, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) estima que

que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele. (grifo nosso) (ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951)

existem 4,088 milhão de refugiados sírios registrados em países vizinhos da Síria, incluindo 1,938 milhão na Turquia, 1,113 milhão no Líbano, 630 mil na Jordânia, 250 mil no Iraque, 132 mil no Egito – além de outros 25 mil em países do Norte da África. Apenas 12% dos refugiados de toda a região vivem em campos de refugiados formalmente estabelecidos. Para os 4,08 milhões de refugiados sírios que já estão nos países vizinhos, cuja grande maioria vive fora dos campos formais, a esperança também está diminuindo à medida que se tornam mais pobres. (RUMMERY, 2015)

A Convenção de 1951 havia delimitado geograficamente e temporalmente o entendimento sobre quem poderia ser considerado refugiado. No que concerne ao âmbito geográfico, a Convenção definiu que apenas pessoas oriundas do continente europeu poderiam solicitar refúgio. No que diz respeito à limitação temporal, a Convenção definiu que a condição de refugiados seria aplicável apenas aos “acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951” (ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951).

2. O DIREITO INTERNACIONAL E A QUESTÃO DOS REFUGIADOS

Em virtude da persistência e aumento da quantidade de refugiados no mundo, o Protocolo de 1967 ampliou o critério temporal e o geográfico, conforme segue:

Ao longo do século XX, o instituto do refúgio, no Direito Internacional, tornou-se um importante instrumento na proteção dos direitos humanos. No âmbito multilateral, a regulamentação

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§2. Para os fins do presente Protocolo, o termo “refugiado”, salvo no que diz respeito à aplicação do §3 do presente artigo, significa qualquer pessoa que se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se as palavras “em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e...” e as palavras “...como consequência de tais acontecimentos” não figurassem do §2 da seção A do artigo primeiro. O presente Protocolo será aplicado pelos Estados Membros sem nenhuma limitação geográfica. (grifo nosso) (PROTOCOLO RELATIVO AO ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1967)

É importante não confundir o instituto refúgio com o instituto do asilo. Frequentemente utilizados pelos meios de comunicação como termos intercambiáveis, ambos os institutos possuem algumas diferenças fundamentais. Enquanto o asilo tem natureza política, pois é aplicado aos casos em que a pessoa sofre perseguição por motivos políticos, o refúgio tem natureza humanitária. Em segundo lugar, se por um lado o asilo pode ser concedido a um indivíduo ou uma família em particular, por outro lado, o refúgio, normalmente, é concedido a uma coletividade. Em terceiro lugar, enquanto a solicitação de asilo pode se dar em recintos das missões diplomáticas (asilo diplomático), a solicitação do refúgio não pode se realizada nesses locais, em virtude do requisito da extraterritorialidade. Esses são alguns dos elementos que permitem distinguir a aplicabilidade de ambos os institutos. (MAZZUOLI, 2014, p. 814-815) 2.1 Noções sobre os direitos e os deveres dos refugiados O Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo versaram sobre importantes

direitos e, também, sobre os deveres dos refugiados e dos Estados signatários. Pelo Estatuto, foram definidas, por exemplo, questões como a possibilidade do refugiado ser empregado, ter acesso à educação e receber assistência pública. Após reconhecer a condição de refugiado a uma determinada coletividade, o Estado deve dar a cada refugiado “o tratamento mais favorável dado, nas mesmas circunstâncias, aos nacionais de um país estrangeiro no que concerne ao exercício de uma atividade profissional assalariada” (artigo 17), de uma atividade “não assalariada na agricultura, na indústria, no artesanato e no comércio, bem como à instalação de firmas comerciais e industriais” (artigo 18), ou para “exercer uma profissão liberal” (artigo 19), caso o diploma seja reconhecido pelas autoridades competentes do referido Estado. Quanto à educação, no artigo 22, parágrafos 1º e 2º, ficou disposto que: 1. Os Estados Contratantes darão aos refugiados o mesmo tratamento que aos nacionais no que concerne ao ensino primário. 2. Os Estados Contratantes darão aos refugiados um tratamento tão favorável quanto possível, e em todo caso não menos favorável do que o que é dado aos estrangeiros em geral, nas mesmas circunstâncias, quanto aos graus de ensino além do primário e notadamente no que concerne ao acesso aos estudos, ao reconhecimento de certificados de estudos, de diplomas e títulos universitários estrangeiros, à isenção de direitos e taxas e à concessão de bolsas de estudo. (ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951)

No que concerne à assistência pública, o artigo 23 dispõe que “os Estados Contratantes darão aos

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refugiados que residam regularmente no seu território o mesmo tratamento em matéria de assistência e de socorros públicos que é dado aos seus nacionais” (grifo nosso). O rol de direitos apresentado é apenas exemplificativo, uma vez que muito outros direitos estão dispostos no Estatuto dos Refugiados. Embora o refugiado seja detentor de muitos direitos, estes também possuem deveres para com o Estado em que se encontra. O artigo 2º do Estatuto dispõe que os refugiados “tem a obrigação de se conformar às leis e regulamentos, assim como às medidas tomadas para a manutenção da ordem pública”. 2.2 O Princípio Non-Refoulement: O tratamento aos refugiados em situação irregular no país de refúgio Conforme disposto no artigo 33, parágrafo 1º, há uma clara proibição de expulsão ou de rechaço aos refugiados, trata-se do princípio do nonrefoulement (não devolução), que é considerado um dos principais avanços trazidos pelo Estatuto dos Refugiados. Nesse artigo ficou disposto que: Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas. (grifo nosso)

Segundo Gustavo Oliveira (2014, p.25), esse princípio representa “a construção da base valorativa dos atos jurídicos que intentam impedir

que determinado Estado devolva um indivíduo que se encontra sob sua jurisdição em busca de refúgio”. O princípio do non-refoulement, conforme o parágrafo 2º do artigo 33, somente não será aplicado se o refugiado for considerado perigoso à segurança ou constituir uma ameaça para a comunidade do país que ele se encontre. Para ser considerado uma ameaça, o refugiado deverá ter sido condenado por crime ou delito particularmente grave. Além disso, a entrada ou a permanência irregular no país de refúgio não pode ensejar aplicação de outras sanções. Conforme dispõe o artigo 31 do Estatuto, os Estados signatários não podem aplicar sanções penais aos que chegando diretamente do território no qual sua vida ou sua liberdade estava ameaçada no sentido previsto pelo art. 1º, cheguem ou se encontrem no seu território sem autorização, contanto que se apresentem sem demora às autoridades e lhes exponham razões aceitáveis para a sua entrada ou presença irregulares. (ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951)

Em síntese, o Estatuto dos Refugiados e seu Protocolo positivaram a importância de se respeitar a dignidade da pessoa humana a todos os refugiados. Estes, já estando em condição de extrema vulnerabilidade, necessitam de apoio de outros Estados para retomar as suas vidas, com o mínimo de dignidade. 3. REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DOS REFUGIADOS SÍRIOS Apesar de cerca de dois terços dos Estados do mundo ser signatário da Convenção Relativa ao Estatuto

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dos Refugiados e do Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, as crescentes violações aos direitos humanos dos refugiados sírios expõem a necessidade de uma abordagem conjunta e engajada da comunidade internacional, com objetivo de encontrar soluções para o conflito na Síria.

Segundo a ACNUR, de abril de 2011 a junho 2015, os refugiados sírios destinaram-se, principalmente, para três países: Turquia, Líbano, Jordânia. Há outros países do norte da África, do Oriente Médio e da Europa, que também estão posicionados entre aqueles mais receberam sírios, a exemplo de Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Egito, Espanha, França, Grécia, Holanda, Hungria, Iraque, Líbia, Noruega, Reino Unido, Sérvia, Suécia e Suíça, (Mapa 1).

Conforme dados da ACNUR (2015), 142 Estados são signatários do Estatuto dos Refugiados e do seu protocolo, mas muitos países que recebem refugiados sírios não são signatários dos referidos instrumentos protetivos.

Fonte: ACNUR, 2015.

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Entre esses vinte e um países que recebem refugiados sírios, dezessete são membros do Estatuto e do Protocolo (Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Egito, Espanha, França, Grécia, Holanda, Hungria, Noruega, Reino Unido, Sérvia, Suécia, Turquia e Suíça). Quatro deles não se vincularam a esses instrumentos (Iraque, Jordânia, Líbano e Líbia). Enquanto a crise síria não é resolvida, é necessário encontrar soluções para mitigar as violações aos direitos humanos dos refugiados sírios. A adoção de três ações importantes certamente contribuiria para esse objetivo. A primeira delas é negociar juntos aos Estados não-membros, que são grandes receptores de refugiados sírios (Iraque, Jordânia, Líbano e Líbia), para que possam aderir ao Estatuto dos Refugiados e ao seu Protocolo. Dessa forma, haverá um maior comprometimento legal destes em respeitar os direitos dos refugiados. Em segundo lugar, é fundamental que a ACNUR receba maior apoio político e financeiro dos países, para que possa ser mais efetiva em seu mandato de velar pelo cumprimento do Estatuto e do Protocolo. Essa agência especializada da ONU atua em 126 países, mas tem um orçamento exíguo, cerca de US$ 3 bilhões por ano. Soma-se a isso o fato de que, de forma distinta das demais agências da ONU, esse orçamento é integralizado por meio de contribuições realizadas de forma voluntária por países doadores. Conforme está disposto site da ACNUR, “os fundos indispensáveis para a sobrevivência de milhões de pessoas são buscados junto à comunidade internacional, ao setor

privado e a doadores particulares em todo o mundo”, por meio de grandes campanhas de captação de recursos (ACNUR, 2015). O maior apoio financeiro, talvez de caráter compulsório, como ocorre com as demais agências especializadas, permitiria ao ACNUR uma atuação mais presente e efetiva. Em terceiro lugar, é extremamente importante maior fomento a cooperação internacional entre os Estados, com vistas a encontrar soluções satisfatórias para a situação. É inegável, conforme disposto no preâmbulo da Convenção de 1951, que a concessão, por parte de um Estado, da condição de refugiados para uma determinada coletividade, em virtude da amplitude do grau protetivo estabelecido na referida convenção, pode resultar “encargos indevidamente pesados para certos países”, mas se esses encargos forem distribuídos de forma equilibrada entre os Estados, nos moldes do princípio que ficou consagrado nas convenções internacionais ambientais, o de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, a comunidade internacional conseguirá efetivar os direitos dispostos no Estatuto dos Refugiados. Nesse sentido, o preâmbulo do Estatuto já dispunha em 1951 que quanto “a solução satisfatória dos problemas cujo alcance e natureza [são] internacionais, a Organização das Nações Unidas reconheceu, não pode, portanto, ser obtida sem cooperação internacional”(ESTATUTO DOS REFUGIADOS, 1951). Desse modo, a adesão dos Estados não membros, o fortalecimento da ACNUR e a maior cooperação internacional permitirá que a questão dos refugiados, que já persiste por

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muitas décadas, seja melhor gerida pelos Estados, e, em última análise pela humanidade. Situações como a da família do menino sírio Aylan Kurdi não

podem continuar a se repetir, pois, caso contrário, serão a prova evidente da falência da diplomacia e da proteção do Direito Internacional aos refugiados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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