A Crise na Ucrânia - Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa

July 22, 2017 | Autor: J. Póvoa Marinheiro | Categoria: International Relations, Political Science
Share Embed


Descrição do Produto

 

A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa

Fall  

Recensão crítica do texto The Ukraine Crisis and The Resumption of Great-Power Rivalry, de Dmitri Trenin

João Póvoa Marinheiro (Aluno 44101) Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais História das Relações Internacionais  

Lisboa, Janeiro de 2015

08  

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

ÍNDICE    

Introdução  .............................................................................................................................................  3   Descrição do texto  ..............................................................................................................................  6   Opinião  .................................................................................................................................................  13   Conclusão  .........................................................................................................................................................  19   Bibliografia  ......................................................................................................................................................  21    

           

2

   

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

Introdução Em 2004, a Ucrânia viu nascer na capital, Kiev, aquele que terá sido na altura, o episódio mais importante da história do país desde a sua independência da União Soviética, obtida em 1991, naquilo que ficou conhecido como a “Revolução Laranja”. A 31 de Outubro desse mesmo ano, os resultados das eleições presidenciais selaram um empate entre os dois principais candidatos. Leonid Kuchma, então presidente, tinha escolhido pessoalmente Viktor Yanukovych para seu sucessor, ele que também já era primeiro ministro. Do outro lado, estava Viktor Yuschenko, o líder da oposição e o grande favorito à vitória. Mas os dois candidatos receberam 40% dos votos. As suspeitas levantavam-se em torno de uma manipulação eleitoral e a decisão final ficou marcada para 21 de Novembro. Nesse dia, os números oficiais do governo mostravam que Yanukovych tinha vencido por 3%, enquanto as sondagens à boca das urnas registavam Yuschenko como o vencedor, com 11% dos votos. Para os apoiantes deste último e da coligação formada na oposição, o sinal de fraude eleitoral era evidente. Nos dias que se seguiram, os manifestantes saíram para as ruas de Kiev, de forma a exigir eleições livres e a instauração do governo formado pelo verdadeiro vencedor. 500 mil ucranianos reuniram-se à frente do parlamento e da Maidan, a praça principal da cidade, formando um verdadeiro mar laranja, vestindo aquela que foi a cor da campanha de Yuschenko e a cor que deu nome ao movimento. Os protestos rapidamente alastraram-se para outras cidades, que também acabaram por reconhecer o líder da oposição como legítimo vencedor. Ainda houve respostas dos apoiantes de Yanukovuch, sobretudo no sul e no este do país, e até chegaram a entrar em Kiev, mas não batiam sequer a proporção dos manifestantes laranjas. A Maidan tornara-se na sede da revolução popular e os números atingiram o milhão de activistas. As demonstrações, que primavam por uma linha pacífica, estiveram à beira da repressão militar a 28 de Novembro, não fossem os soldados recusar ordens que teriam vindo de um alto dignitário do governo. No início de Dezembro, o parlamento ucraniano juntou-se ao coro dos protestos e passou um voto de “não-confiança” ao governo de Yanukovch. Então, no dia 3, o Supremo Tribunal instaurou um processo que denunciava as eleições como fraudulentas e retirou a “vitória” do

 

3

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

primeiro ministro. O parlamento convocou uma repetição das eleições para dia 26 e observadores de todo o mundo deslocaram-se para monitoriza-las. Desta vez, sem qualquer manipulação, Yuschenko venceu mesmo com 52% dos votos e os 17 dias da “revolução laranja” triunfaram... mas por pouco tempo. “(…) The story of Yushchenko's reign, analysts say, is that of a man who, once in power, hopelessly lost touch with the faithful who put him there.”

As palavras do jornalista Richard Balmforth1 resumem por completo o mandato de Viktor Yuschenko, que revelou ser, muito provavelmente, o presidente mais impopular da história da Ucrânia. Enquanto tinha declarado que iria limpar a corrupção do país, os seus cinco anos na presidência foram constantemente marcados por subornos. Muitos viram também na sua projecção da identidade nacional, uma obsessão que enervou milhões de ucranianos de etnia russa, depois de ter derrubado monumentos da era soviética e de ter afastado alianças com o presidente russo, Dmitri Medvedev. Acima de tudo, Yuschenko foi incapaz de nivelar uma política externa entre o este e o ocidente, algo que também fez os Estados Unidos, um dos grandes patrocinadores da “Revolução Laranja”, perderem interesse no país devido à sua fraca liderança. O mandato de Yuschenko ficou essencialmente pontuado por uma instabilidade política interna e pela fragmentação parlamentar, de onde se registam os conflitos com Yulia Tymoschenko, a sua maior aliada durante a revolução. Em 2005, demitiu o governo e removeu-a do cargo de primeiro ministro por associações a corrupção; em 2007, dissolveu o Parlamento, depois de ter escolhido o seu maior rival, Viktor Yanukovych, para chefe do governo; e em 2008, voltou a tentar dissolver o parlamento, já com Yulia Tymoschenko na função de Primeiro Ministro, após vencer as eleições parlamentares no ano anterior. A nível económico, as suas prioridades falharam e notaram-se na queda das exportações nos principais sectores industriais. E com a crise financeira global de 2008, a Ucrânia caiu nas políticas de austeridade. Desta forma, em Fevereiro de 2010, Yanukovych voltou à liderança do país, depois de vencer as eleições presidenciais. No mesmo mês, a sua grande rival, Yulia Tymoschenko, foi detida por supostas acusações de abuso de poder e condenada à prisão em Outubro de 2011.                                                                                                                 1

 

Do artigo Where did Ukraine’s Yuschenko go wrong? publicado pela Reuters a 11 de Janeiro de 2010.

4

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

 

Começava então a nova era de Yanukovych no comando da Ucrânia, que seria mais uma vez marcada por outra revolta popular, com o início dos protestos em Novembro de 2013 a inaugurarem uma turbulência interna que iria prolongar-se até à sua demissão, em Fevereiro de 2014. No entanto, como a anexação da Crimeia por parte da Rússia mostrou, a crise da Ucrânia actual reflecte uma contestação a nível de fronteiras evidente. Por um lado, o este e sul do território preservam uma tradição de língua, cultura e identidade nas suas populações de etnia russa. Por outro lado, a Ucrânia insere-se num quadro geopolítico, além das suas próprias fronteiras, onde a Rússia tenta recuperar a sua esfera de influência e alargar o seu projecto eurasiático.

 

5

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

Descrição do texto Em considerações introdutórias, Dmitri Trenin começa por afirmar que a crise na Ucrânia coloca um ponto final num período de relações, “geralmente cooperativas” (p. 3), entre a Rússia e o Ocidente que começou desde a queda do muro de Berlim em 1989. Simultaneamente, o conflito ucraniano inaugurou uma nova fase de crescente rivalidade antigos inimigos da Guerra Fria. Embora a crise traga ecos desse mesmo passado, o autor salienta que, não obstante, ela difere em vários parâmetros, seja na ideologia, no plano militar ou na sua relação com as políticas globais. Seguidamente, a gravidade do conflito surgiu como uma surpresa para a Ucrânia, Rússia e União Europeia, não tanto pelo facto das relações entre russos e ocidentais estarem em declínio, mas pelas próprias dinâmicas no terreno. No entender de Trenin, os eventos que marcaram o mês de Fevereiro de 2014, e que culminaram na demissão de Viktor Yanukovych, fizeram com que a Ucrânia mudasse bruscamente para o campo ocidental e recebesse uma resposta da Rússia, que sentiu-se encurralada e sentiu a necessidade de salvaguardar os seus interesses. Para o autor, a Ucrânia tornou-se assim no terreno de “batalha pela influência” (p. 3), que terá implicações exteriores ao próprio país. Trenin parte depois para uma contextualização da situação ucraniana e os episódios que conduziram à crise actual. As origens remontam a 2008, o ano da guerra entre a Rússia e a Geórgia que encerrou as perspectivas de incluir a Ucrânia e os georgianos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), e ainda o início da crise financeira global. Dois acontecimentos que, no entanto, tiveram leituras opostas por parte da UE e dos russos, onde ambos os lados procuraram delinear estratégias que salvaguardassem os seus próprios interesses. Os europeus lançaram o “Eastern Partnership” (p. 4), um programa político-económico que procurava ligar a Ucrânia e mais cinco antigos estados soviéticos à UE e assim criar uma zona de conforto na Europa Oriental. A Rússia, por seu turno, tentou seduzir a Ucrânia e a maioria das velhas repúblicas soviéticas para aderirem a uma união que, em Maio de 2014, tornou-se na União Económica da Eurásia – e uma comunidade que lhes pode trazer benefícios económicos e posições mais vantajosas face aos seus maiores vizinhos, a UE e a China.

 

6

 

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

Nesta óptica, a Ucrânia aparecia como um elemento importante tanto do projecto geopolítico de Bruxelas como de Moscovo. Entre 2010 e 2014, sob a presidência de Yanukovych, o país balanceou habitualmente entre a UE e a Rússia. Mas, afirma Trenin, embora o presidente estivesse a trabalhar abertamente para apostar numa ligação com os europeus ocidentais, o próprio não resistiu às pressões dos russos. Em Novembro de 2013, Yanukovych interrompeu as negociações para um acordo de associação com Bruxelas e, no mês seguinte, aceitou um pacote financeiro acima dos 15 mil milhões de dólares vindo de Moscovo. A recusa dada aos europeus serviu de gatilho para o começo dos protestos em Kiev que, rapidamente, tornaram-se em ocupações permanentes na já referida Maidan, o nome da Praça da Independência que intitulou os protestos civis. A manobra do presidente foi um choque doloroso para a maioria dos manifestantes que, afectados pela pobreza e indignados com a corrupção do poder político, via na ligação à UE uma porta de saída da precariedade. A eles juntaram-se igualmente alguns grupos nacionalistas que pretendiam preservar uma identidade nacional separada das raízes russas e que acusavam Yanukovych, ucraniano do leste com alianças em Donetsk, de querer “fundir” (p. 5) o país com a Rússia. O autor deixa claro que as manifestações foram então “apoiadas, financiadas e exploradas” (p. 5) pelas oligarquias mais poderosas da Ucrânia que encontravam na “Maidan”, uma via imediata para forçar eleições antecipadas e afastar Yanukovych do poder. Em Fevereiro de 2014, a situação na capital estava a deteriorar-se e a escalou para a violência, com o presidente a servir-se da repressão policial para dispersar os manifestantes que, no momento, conseguiram formar uma força capaz de responder, construída em torno de uma organização nacionalista intitulada “Sector da Direita”. Yanukovych acabou por interromper o avanço da polícia e iniciou conversações com os líderes da oposição, onde se determinou a capitulação do presidente, adiada por uns meses. O acordo foi conjuntamente assinado com os Ministros dos Negócios Estrangeiros da França, Alemanha e Polónia mas rejeitado pela “Maidan”, que reivindicava a demissão imediata de Yanukovych. E assim foi. O presidente fugiu da Ucrânia e exilou-se na Rússia, as forças policiais desapareceram das ruas e os protestos voltariam a derrubar um governo, tal como em 2004. O autor explica-nos então como os desenvolvimentos do mês de Fevereiro foram trágicos para a Rússia de Vladimir Putin, que recusava-se a reconhecer o novo governo apoiado pelos manifestantes da “Maidan”. Durante vinte anos, a Ucrânia colocou diversos entraves ao acesso à Europa por parte de grandes empresas, como a Gazprom, mas o país não era insignificante aos olhos de Moscovo. Subitamente, os ucranianos tinham-se tornado num estado formado por uma  

7

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

coligação de “elites pro-ocidentais” e de “nacionalistas anti-russos” (p. 6). E, no entender do Kremlin, a brusca mudança escondia dois perigos intrínsecos: a perda de um património linguístico, cultural e identitário russo, assim como a possibilidade de uma entrada na NATO. Foi a partir desse momento que a política da Rússia para a Ucrânia tornou-se rapidamente agressiva, cuja meta final era impedir uma aliança atlântica e recolocar o país no projecto da Eurásia. A abordagem de Putin tinha dois objectivos. O primeiro passava por desviar a região da Crimeia do novo governo. Tal acabou por acontecer graças às forças especiais russas que isolaram a península, neutralizaram as tropas ucranianas locais e apoiaram simpatizantes pro-russos a tomarem controlo do governo, do parlamento e dos serviços policiais. Moscovo incentivou ainda a que fosse feito um referendo para favorecer a anexação da Crimeia e o voto, a 16 de Março, conseguiu mesmo garantir consenso. Dois dias depois, foi assinado um tratado, na capital russa, que incorporou a Crimeia e a cidade de Sebastopol sob a administração da Rússia. O segundo objectivo passava por implementar uma colonização, de ordem federalista, que impedisse por completo a entrada da Ucrânia na NATO. Nesta lógica, as tropas russas iniciaram exercícios militares na fronteira, aparentemente prontas para invadir o território, mas cuja última finalidade era pressionar os ocidentais e o governo de Kiev. No este e sul da Ucrânia, regiões com populações de etnias maioritariamente russas, houve várias mobilizações para exigir autonomia regional, prolongadas pelas acções de grupos separatistas armados que tomaram posse de edifícios do governo e de cidades. Foi o caso de Donetsk e de Lugansk onde, em Maio, os militantes lançaram referendos e proclamaram as suas próprias repúblicas. Contudo, Trenin entende que a esperança em transformar o este e sul ucraniano numa “Nova Rússia” (p. 7) não resultou porque algumas cidades decisivas mantiveram-se sob o controlo de Kiev. Mesmo em Donetsk e Lugansk, o governo central lançou operações contra os separatistas que resultaram em enormes perdas humanas. A Rússia ainda tentou soluções mais diplomáticas para resolver as tensões e assegurar os seus próprios interesses mas as conversações entre Putin e o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Barack Obama, não tiveram um desfecho satisfatório. Para Washington, a Ucrânia nem era uma prioridade de política externa mas a ideia de fazer parte da esfera de influência russa era detestável e, por isso, os norte-americanos apoiavam Kiev. Então, a 25 de Maio de 2014, Petro Poroshenko, o principal patrocinador dos protestos, foi o vencedor das eleições presidenciais antecipadas. Perante este cenário, Trenin indica que as sucessivas respostas do Ocidente que se seguiram contra a Rússia, inverteram 25 anos de tentativas de contactos entre antigos inimigos na  

8

 

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

Guerra Fria. Para os EUA e os respectivos aliados, os russos eram vistos como agressores e o país foi expulso do G8 (onde estava desde 1998). A própria UE interrompeu as suas relações com Moscovo. A NATO congelou a cooperação com a Rússia (inaugurada em 2002). Vários líderes ocidentais cancelaram as cimeiras que tinham agendadas com Putin. Em Março, 100 países opuseram-se à anexação da Crimeia na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). A entrada dos russos na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) também foi adiada. Todavia, as medidas mais directas seriam sugeridas pelos EUA, quando convenceram os seus parceiros a impor sanções económicas contra oficias, empresas e sectores da indústria da Rússia para forçar o país a abandonar a luta pela Ucrânia - e, porventura, forçar igualmente uma mudança de regime no Kremlin (fosse através de um golpe militar ou de uma revolta popular). A verdade é que as vagas de sanções multiplicaram-se e causaram imediatamente uma queda na bolsa russa, uma enorme fuga de capital e uma maior desvalorização do rublo. A nível militar, o Ocidente redesenhou a Rússia como um adversário. A NATO, em particular, reforçou a missão de deixar os russos de fora e isso foi óbvio com as deslocações a países como a Polónia, a Roménia e outros estados do Mar Báltico que, provavelmente, irão tornar-se em bases de ocupação permanente da aliança atlântica. Os mísseis balísticos da NATO estão inclusivamente apontados ao armamento nuclear dos russos. Trenin considera que o continente europeu volta a estar dividido com a Rússia no Este, a NATO e a UE no Ocidente, a Ucrânia, Moldávia e outros países do Cáucaso no meio. De acordo com o autor, a crise da Ucrânia ilumina um passado recente que conta a história de uma reaproximação ineficaz entre Rússia e Ocidente desde a queda do muro de Berlim. Nos anos noventa do século XX e no início do século XXI, os russos ainda fizeram esforços para se relacionarem com os ocidentais: nos seus últimos dois anos de mandato, Mikhail Gorbachev sonhou com uma liderança global, juntamente com os EUA; Boris Iéltsin procurou integrar a Rússia com uma entrada na NATO; em 2001, quando chegou ao poder, até Putin proclamou a escolha do país pela Europa no parlamento alemão; e seguiu-se Dmitri Medvedev, que tentou ratificar um tratado de segurança com os europeus. No entanto, Trenin refere que os líderes ocidentais nunca mostraram grande interesse em integrar a Rússia porque, em termos de assistência económica, os custos para aproximá-la dos níveis da Europa Ocidental seriam enormes. Trenin justifica ainda que os próprios russos eram demasiado independentistas, sustentados por um grande arsenal nuclear e por elites que se colocavam em pé de igualdade com os EUA. Perante isto, o Ocidente tentou ajudar a Rússia a  

9

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

construir instituições internas, políticas, económicas e sociais que a aproximassem do nível de vida ocidental em termos qualitativos. Mas a evolução do panorama político interno russo desde a queda da União Soviética conheceu diversas fases, passando pelo caos, seguindo-se o domínio oligárquico e, finalmente, o autoritarismo. Este último estádio consolidou-se derradeiramente, uma vez que os russos, chocados pelas drásticas mudanças, começaram a apreciar a estabilidade e receberam bem a chegada de Putin ao poder, o que foi silenciando a “exigência de democracia” (p. 10), num país onde os próprios liberais são hoje uma minoria quase residual. Além da maneira como os russos lidaram com as regiões separatistas da Chechénia e do norte do Cáucaso no início dos anos 1990, houve outros episódios que também afastaram, gradualmente, a Rússia do Ocidente. A entrada na NATO da Polónia, Hungria e República Checa em 1999, e da Eslováquia, Roménia, Bulgária e os países do Mar Báltico em 2004, foi recebida pelos russos como uma quebra de confiança, ao que o Ocidente respondeu que tal era uma dor provocada por um sentimento de “imperialismo fantasmagórico” (p. 11). As chamadas “revoluções coloridas” (p. 11), entre 2003 e 2005, que aboliram os governos da Geórgia, Ucrânia e Quirguistão, foram igualmente entendidas por Moscovo como uma maneira de reduzir a sua influência além fronteiras. Mesmo assim, o autor adianta que o conflito de interpretações não significa uma desentendimento entre Moscovo e o Ocidente. Muito simplesmente, para os EUA e para a Europa Ocidental, a Rússia era uma potência em declínio. E, do lado dos russos, estes aprenderam a servir-se dos países ocidentais para assegurar os seus interesses e, como tal, a integração com os ocidentais deixou de fazer parte da agenda política. Trenin finaliza o texto para sublinhar que as implicações da crise ucraniana ilustram a maneira como a Rússia procura desafiar as lógicas da era do pós-Guerra Fria e como o país está focado numa integração na Eurásia. Com a situação tremida entre Washington e Pequim por causa das alianças americanas no Sudeste asiático, os russos aparecem como parte integrante de poderes emergentes que tentam desafiar o domínio dos EUA na ordem global. A Ucrânia é o exemplo actual do envolvimento russo nas antigas regiões de domínio soviético. Com a anexação da Crimeia, a Rússia deu um grande passo para restaurar o domínio no Mar Negro, ocupando a posição estrategicamente mais importante da área e reduzindo a influência da Turquia. O conflito ucraniano estende-se para outros territórios como a Moldávia que, em Junho de 2014, concluiu um acordo de associação com os europeus. Mas terá de lidar com os desafios do Partido Comunista que defende a integração de regiões como a Transnistria e a Gagauzia às orientações de Moscovo. A própria Geórgia poderá ter problemas com a Abkhazia  

10

 

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

e a Ossétia do Sul, que foram reconhecidas como independentes pela Rússia na sequência da guerra de 2008 e já foram integradas no espaço económico da Eurásia. No sul do Cáucaso, a Arménia prepara-se para aderir ao projecto eurasiático em 2015 e apoiou a anexação da Crimeia na ONU, tal como a Bielorrússia que, inclusivamente, recebeu aviões de guerra na capital, Minsk, de forma a confrontar as missões da NATO na Polónia e no Mar Báltico. Quanto ao Cazaquistão, à semelhança do Azerbaijão, o país absteve-se de votar na ONU, mas o norte do território, casa de etnias russas e eslavas, poderá ser um obstáculo. A mesma situação plasma-se na Estónia e na Letónia, que albergam grandes populações de origem russa. Na Europa Central e Ocidental, a Polónia tem sido o país a ser mais directamente afectado pela crise ucraniana e decidiu mesmo endurecer as relações com a Rússia. Os polacos aparecem como um dos estados-membro emergentes da UE e o conflito na Ucrânia tornou-os numa das frentes de combate da NATO contra Rússia e a Bielorrússia. Contudo, Trenin considera que as relações da Europa Ocidental com a Rússia são as que enfrentam a mais séria mudança, visto que o “Eastern Partnership” foi uma das causas que esteve na origem da crise. No caso da Alemanha, quando “decidiu” (p. 19) regressar à presidência em 2011, Putin fez cair as ligações estabelecidas entre Angela Merkel e Medvedev. Aquilo que permanece é uma relação puramente comercial, também ela ameaçada pelas sanções económicas, porque os alemães seguem os EUA nessa agenda. Do lado francês, o panorama é exactamente o mesmo, uma vez que, recentemente, França não interrompeu a construção de dois navios de guerra para a frota da Rússia. Aliás, tanto Nicolas Sarkozy como François Hollande nunca deram muita importância aos russos. Não obstante, a nomeação de Jean-Claude Juncker como presidente da Comissão Europeia, bem visto pelo Kremlin, pode significar uma aproximação aos russos. Porém, o autor reforça que, perante a hostilidade do Ocidente, a Rússia concentrou-se no este asiático, com claro ênfase na China que, por esta altura, é seu o maior parceiro comercial. Efectivamente, a visita mais importante de Putin desde o começo da crise ucraniana, foi a deslocação a Xangai, em Maio de 2014, para assinar um acordo da Gazprom com os chineses por trinta anos, no valor de 400 mil milhões de dólares. No plano militar, nesse mesmo mês, os russos iniciaram exercícios navais conjuntos no Mar do Sudeste da China – uma zona de disputa com o Japão – e, a nível de força aérea, a Rússia forneceu jatos de caça. Num quadro geral, Pequim pretende explorar a alienação dos EUA e da UE com Moscovo para obter melhor relações energéticas. Por outro lado, Trenin elucida que o projecto Eurasiático simboliza aquilo que alguns russos chamaram de “Asiopa” (p. 22) há centenas de anos atrás – a Rússia como extensão da Ásia.  

11

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

Em conclusão, o autor acredita que a anexação da Crimeia concedeu, de facto, enorme popularidade a Putin num nível interno, mas criou um obstáculo para futuras acomodações com a Ucrânia, EUA e Europa. Trenin prevê que a crise ucraniana tem potencialidades de revolta social, desestabilização política e fragmentação territorial, e que irão passar-se anos até que o país conheça estabilidade. No campo das sanções económicas, estas poderão criar uma atmosfera onde se acredita que a Rússia é alvo de constantes pressões dos EUA. Algo que, segundo o autor, irá estimular nos russos maior patriotismo e gerar sentimentos nacionalistas, que entenderão os americanos - e, inevitavelmente, os ocidentais - como um adversário no exterior.      

 

12

 

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

Opinião “It’s clear that the Kremlin has embarked on a quest to restore its influence on at least some of the strategic positions that it had enjoyed prior to the collapse of the Soviet Union (...).”

As palavras acima citadas, retiradas do estudo The Ukraine Crisis: Some Implications and Lessons from History, mostram como o autor, László Borhi, está em acordo com o pensamento de Dmitri Trenin, no sentido em que a crise ucraniana reflecte a batalha pela influência da Rússia em recuperar algumas das posições perdidas à saída da Guerra Fria. Efectivamente, o investigador húngaro acredita que a queda da União Soviética deixou para trás “destroços” (p. 1), cujos contornos são actualmente visíveis, como é o caso da contestação de fronteiras e da insatisfação de minorias étnicas. Na sequência da dissolução do Pacto de Varsóvia em 1991, o facto de Moscovo ter oferecido novos arranjos a nível de segurança às antigas repúblicas soviéticas (em que só a Roménia se mostrou favorável), deixou claro que os russos nunca perderam interesse na região, apesar da preferência da maioria dos estados da Europa Oriental por uma aliança militar com a NATO. Para Putin, o território ucraniano é fundamental porque trata-se de uma porta de acesso à Europa Central e o mesmo pensamento, explica Borhi, tinha Josef Stalin quando adquiriu a região multiétnica da Ucrânia ocidental à Checoslováquia em 1945. Na altura, controlar as “impenetráveis Montanhas dos Cárpatos” (p. 3), significava um ponto de entrada para a Áustria ocidental, o sul da Alemanha, o norte de Itália, além do acesso directo a território checoslovaco, à Hungria e à Roménia. Em Moscow’s War against Ukraine. Comments from a Historical Perspective, Jan C. Behrends também faz referência a dois antigos chanceleres alemães quando afirmaram que a erupção do conflito ucraniano espelha as tradicionais “esferas de influência” (p. 325) da Rússia. De acordo com o autor alemão, a actual política externa de Putin mostra como Moscovo ainda pensa em patamares semelhantes ao conceito de “Grossraumlehre”2, avançado por Carl Schmitt, e que dizia que “(...) qualquer potência imperialista tinha o direito de estabelecer uma esfera de influência exclusiva” (p. 328). Para Behrens, com a anexação da Crimeia, ficou patente que a                                                                                                                 2

Da obra Völkerrechtliche Großraumordnung und Interventionsverbot für raumfremde Mächte. Ein Beitrag zum Reichsbegriff im Völkerrecht, Berlim, 1939.

 

13

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

Rússia está determinada em reforçar a sua própria esfera de influência, num espaço de domínio russo. “Since the times of the perestroika, European policy has been relying on the assumption that the post-Soviet states are on a path to integration with the West. (...) The West chose to believe that (...) the Kremlin was generally willing to accept the rules of international institutions and international law.”

Ao salientar estas ponderações de Behrens e, em alusão ao “Eastern Partnership”, outros autores concordam com Trenin na perspectiva de que o programa de associação com os países da Europa Oriental - um dos elementos que desencadeou a crise na Ucrânia - reflecte também uma tendência da política europeia em acreditar que os antigos estados soviéticos devem permanecer no caminho de uma determinada ocidentalização. Mais concretamente, os europeus escolheram acreditar que Moscovo iria aceitar as premissas internacionais estabelecidas pelo Ocidente. Ora, textos como Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault, de John J. Mearsheimer, tentam apresentar uma perspectiva dissemelhante, na maneira como afirmam que os EUA e os respectivos aliados surgem como os principais responsáveis pelo conflito ucraniano. Para o professor de Ciência Política norte-americano da Universidade de Chicago, na raíz das tensões actuais está o alargamento da NATO para no leste da Europa. Desde os anos 1990, os líderes russos afirmaram que não iriam tolerar movimentações semelhantes e o próprio Putin, por diversas ocasiões, entendeu isso mesmo como uma intromissão nos interesses estratégicos da Rússia. Mearsheimer explica que, desde o final da Guerra Fria, a União Soviética mostrou-se favorável a que os EUA e a NATO ficassem na Europa porque poderiam ajudar na reunificação da Alemanha. Contudo, tal não significava que os russos pretendessem que a NATO crescesse e julgaram que os ocidentais tinham compreendido a mensagem - mas os mandatos de Bill Clinton na Casa Branca mostraram o contrário. Mearsheimer recorre ao termo de “alargamento” (p. 2) para falar do mesmo processo de expansão da aliança atlântica que Trenin referiu nos anos de 1999 e 2004. Mas o investigador norte-americano destaca ainda a importância da cimeira da NATO, em Abril de 2008, quando se chegou a considerar a inclusão da Ucrânia e da Geórgia. França e Alemanha objectaram, com receio da reacção russa. E com razão, uma vez que, na opinião de Mearsheimer, a invasão da Rússia ao território georgiano em Agosto desse mesmo ano deveria ter “dissipado quaisquer dúvidas restantes” (p. 3) quanto à posição de Moscovo perante  

14

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

 

as pretensões da NATO e, inclusivamente da UE, porque foi no mês de Maio que os europeus apresentaram o “Eastern Partnership”. Apesar do “claro aviso” (p. 3), a expansão prosseguiu em 2009, com a inclusão da Croácia e da Albânia. Assim, sem surpresas segundo o autor, a 22 de Fevereiro, a Rússia reagiu e invadiu a Crimeia, aproveitando o facto de ter milhares de tropas estacionadas na base naval do porto de Sebastopol e de 60% da população ser de etnia russa. Seguidamente, tentou pressionar o Ocidente a abandonar o governo de Kiev, auxiliando os separatistas que ocuparam certas regiões do leste da Ucrânia com conselheiros, armas e apoio diplomático. “I think the Russians will gradually react quite adversely and it will affect their policies (...). I think it is a tragic mistake. There was no reason for this whatsoever. No one was threatening anyone else.”

Mearsheimer recorre a estas declarações de George Kennan3 para legitimar a convicção de muitos realistas que pensaram a expansão da NATO, nos anos 1990, como desnecessária. Tudo porque, para eles, a Rússia estava enfraquecida, envelhecida e não precisava de contenção. Por outro lado, o alargamento podia servir mesmo de “incentivo” (p. 7) a Moscovo, assim como Kennan conseguiu antecipar. O autor julga ainda que, além do programa proposto pela UE e a expansão da NATO, o apoio do Ocidente à revolução actual, e à revolução em 2004, que derrubaram os governos de Kiev com presidentes pro-russos, foram o ímpeto para Putin agir. Desde 1991 até Dezembro de 2013, revela o professor norte-americano, os EUA terão investido mais de 5 mil milhões de dólares para ajudar a Ucrânia a alcançar “o futuro que merecia” (p. 4). O grande destaque vai para a National Endowment for Democracy (NED), uma organização sem fins lucrativos que financiou mais de 60 projectos para promover a “sociedade civil” ucraniana (p. 4). Esta mesma realidade é desvendada por K. R. Bolton no seu estudo Geopolitics and Oligarchy at Work in Ukraine Crisis, quando o autor fala da “Revolução Laranja” de 2004, para justificar que a Ucrânia aparece como uma “parte importante da agenda globalista” (p. 3). Efectivamente, o movimento desse ano foi sobretudo patrocinado pela “Aplesin” (p. 3), também conhecida como “Center of Progressive Young People”, uma organização fundada em 2001 que lista a mesma NED e a Embaixada dos EUA - entre outras instâncias norte-americanas e globalistas - como os seus principais parceiros financeiros.                                                                                                                 3

 

Entrevista concedida à revista Foreign Affairs, Nova Iorque, 1998.

15

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

Ao contrário de Trenin, que entende as ocupações separatistas de Donetsk e Lugansk como uma tentativa de Moscovo construir uma “Nova Rússia”, Mearsheimer, por seu turno, pensa que esta ideia é, no entanto, duvidosa. Putin está apenas a testar os nervos do Ocidente e afasta o cenário de uma eventual ocupação. Mesmo que a Rússia quisesse, o investigador prevê que o país não teria capacidade para conquistar e incorporar a parte este do território, quanto muito dominar o país inteiro. Um terço da população (15 milhões de pessoas) vive nessa região e a grande maioria quer permanecer na Ucrânia. Enfraquecida pelas sanções, a própria economia russa, completamente fragilizada, não aguentaria os custos.

“One of the first actions of the regime that ousted Yanukovych was to give Ukraine oligarchs their own fiefdoms. Suddenly, oligarchs have become ‘patriots’ and ‘nationalists’.”

Embora Trenin tenha feito referência a Petro Poroshenko como um “oligarca”, o estudioso russo acabou, mesmo assim, por não aprofundar a questão das oligarquias na Ucrânia. As palavras do já referido K.R. Bolton oferecem uma visão mais detalhada acerca desta realidade e como ela está igualmente enraizada nas dinâmicas políticas do país. O investigador faz uma compilação dos oligarcas ucranianos mais influentes e confirmar as novas tendências ocidentais do actual governo. A começar por uma crítica a Rinat Akhmetov, o mais rico de todos que, jurou defender a sua “pátria” (p. 4), quando sempre esteve, durante a crise ucraniana, a viver em Londres. Bolton sugere que as oligarquias são intrinsecamente tendenciosas, dado que Akhmetov, próximo de Yanukovych, era também responsável por um bloco de 40 deputados no parlamento na altura da demissão do presidente. Outros, como Igor Kolomoisky e Serhiy Taruta, aceitaram governar as regiões de Dnipopetrovsk e Donetsk (que mais tarde viria a ser ocupada por separatistas), respectivamente. Quanto ao actual Presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, este aparece relacionado com o Ocidente. Antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros e Ministro do Comércio e Desenvolvimento Económico, foi um dos grandes apoiantes da “Revolução Laranja” em 2004 e o principal patrocinador dos protestos que demitiram Yanukovych. Mas o actual chefe de estado é também um multimilionário com negócios concentrados no estrangeiro, especialmente em países da UE, e que já foram banidos da Rússia. Dados que podem explicar o seu entusiasmo, segundo Bolton, pela entrada da Ucrânia nos mercados europeus. Por outro lado, o Primeiro Ministro, Arseny Yatsenyuk fundou a “Open Ukraine”, uma organização que também está associada à fundação de Victor Pinchuk, o segundo oligarca mais rico da Ucrânia. Além  

16

 

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

disso, Pinchuk é um dos administradores da “Open Ukraine” que, entre outros, é patrocinada pela Embaixada dos EUA ou pelo Centro de Documentação e Informação da NATO. As suas óbvias ligações às oligarquias pro-ocidentais, ficaram igualmente evidentes quando disse que a prioridade da Ucrânia era assegurar empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e que estaria disposto a aceitar as grandes reformas, depois das tentativas falhadas em 2008 e 2013. E, realmente, durante a primavera de 2014, o FMI aprovou mesmo um pacote de empréstimos no valor de 17 mil milhões de euros para a Ucrânia nos próximos dois anos.

“After the fall of the Soviet Union, the countries that once formed the Soviet Union underwent a dramatic transformation. From being state-run economies in which the means of production were in the hands of the state, they became societies characterised by a form of private ownership. Unfortunately, however, the transition was flawed. It took place without the benefit of law. The result was that the greediest, most corrupt and most cunning individuals rose to the top.”

Certos autores são ainda mais específicos na realidade das oligarquias. David Satter, no artigo How the Ukraine Crisis Arose. And Why?, considera que a “ganância” (p. 6) tornou-se no motor de comportamento dos líderes da Rússia e da Ucrânia depois da queda da União Soviética e que, à margem das leis, enriqueciam. O autor pega no exemplo do próprio Yanukovych para traçar um perfil mais pormenorizado do que aquele que aparece no texto de Trenin. Durante a primeira vaga de privatização da Ucrânia, o antigo Presidente tornou-se numa das pessoas mais ricas do mundo, após “abusar” (p. 6) das instituições do estado, ao redistribuir a propriedade destas últimas para os seus próprios benefícios. Yanukovych servia-se então dos aparatos estatais para enriquecer e punia, por vezes recorrendo à força, quem não vendesse o seu negócio aos preços desejados.

O líder ucraniano enviava “inspectores” (p. 7) – bombeiros, inspectores

sanitários, polícia ou fisco - para encontrar violações, sempre fabricadas, nos negócios e impor multas exorbitantes que tornavam a continuação em actividade praticamente impossível. Se tal não resultasse, ordenava prender, com acusações falseadas. Satter afirma que a concentração da riqueza nos meandros políticos tornou os cidadãos mais desprotegidos e mais descontentes, uma vez que os mecanismos legais não eram fiáveis e “as autoridades faziam o que queriam” (p. 7). Satter adianta ainda que o mesmo tipo de regime oligárquico existe na Rússia e que tudo

 

17

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

começou em 2003, quando Mikhail Khodorkovski, líder da maior e mais ocidental companhia petrolífera do país, a YUKOS, foi preso. Nesse momento, as autoridades perceberam que era simples derrubar as grandes corporações através de meios administrativos e do poder legal, e a prática multiplicou-se no país inteiro. “There is a solution to the crisis in Ukraine, however – although it would require the West to think about the country in a fundamentally new way.”

Regressando ao texto de John J. Mearsheimer, ao contrário do que Trenin acabou por não propor no seu estudo sobre a crise ucraniana, o professor norte-americano tenta delinear algumas soluções para resolver o conflito, soluções essas que, o próprio avisa, implicam uma mudança de entendimento do Ocidente face à Rússia. Mearsheimer diz que os ocidentais deviam parar de tentar ocidentalizar os ucranianos e tornar o país num “estado-tampão” (p. 10) entre a NATO e a Rússia, à semelhança do que foi a Áustria na Guerra Fria. Para tal, os EUA e os respectivos aliados teriam de deixar de apoiar publicamente os desejos de incluir a Geórgia e a Ucrânia na aliança atlântica e preparar um fundo de resgate com a UE, o FMI e a própria Rússia. O autor alerta ainda para o facto de que manter as políticas actuais podem, logicamente, complicar as relações do Ocidente com Moscovo e não necessariamente na Europa. Os EUA precisam dos russos para retirar equipamento do Afeganistão pelo território da Rússia; para chegar a um acordo nuclear com o Irão; para estabilizar a situação na Síria; e, possivelmente, conter a China. Uma coisa é certa, garante Mearsheimer, deixar tudo como está, apenas vai aumentar as hostilidades com a Rússia e devastar a Ucrânia pelo meio. Uma visão que também é partilhada por Trenin.

 

18

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

 

Conclusão

Dmitri Trenin divulgou um estudo completo sobre os antecedentes da crise na Ucrânia, os episódios que formaram o conflito, a história da relação contemporânea entre a Rússia e o Ocidente, além das implicações que as tensões actuais têm e podem ter no quadro geopolítico mundial. Nessa perspectiva, o texto revelou-se uma ferramenta muito detalhada para compreender as raízes do conflito actual e as consequências que pode ter no equilíbrio da ordem mundial. Não obstante, apesar de sublinhar com cautelosa atenção os interesses estratégicos da Rússia em alargar uma “esfera de influência” com vista ao projecto da Comunidade Económica da Eurásia, seria necessário um maior aprofundamento da herança histórica da Rússia nas populações ucranianas de etnias russas, para compreender, de forma porventura mais detalhada, as motivações dessas mesmas face ao conflito e as suas inclinações quanto à postura de Moscovo. Por outro lado, devido ao enquadramento temporal em que este estudo foi publicado (Julho de 2014), uma série de episódios tiveram lugar até à data e foram igualmente importantes no contexto da crise. Logo no início de Agosto, a Rússia respondeu às sanções económicas do Ocidente ao anunciar um ano de interrupção nas importações de vários produtos alimentares vindos da Austrália, Canadá, UE, Noruega e EUA. No mesmo mês, mais de 200 camiões russos passaram a fronteira da Ucrânia através dos bastiões rebeldes, e enviaram artilharia e recursos humanos para apoiar os grupos separatistas em Donetsk e Lugansk. Simultaneamente, o presidente Poroshenko dissolveu o parlamento e convocou eleições antecipadas para final de Outubro. E, no final do mês, a NATO estimou que mais de 1000 tropas russas operavam dentro da Ucrânia. Em Setembro, os líderes ocidentais presentes na cimeira da NATO no País de Gales, anunciaram uma nova vaga de sanções contra a Rússia e, no mesmo dia, a Ucrânia e os rebeldes pro-russos assinaram um cessar-fogo em Minsk, capital da Bielorrússia. Em Outubro, Putin ordenou o retiro das milhares de tropas estacionadas perto da fronteira ucraniana, os partidos pro-ocidentais venceram as eleições parlamentares em Kiev, e o fornecimento de gás para a Ucrânia foi retomado, depois da interrupção durante toda a estação de inverno.

 

19

  Recensão crítica

The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry  

 

Em Novembro, as regiões controladas por separatistas elegeram novos líderes, interrompendo o processo de paz e, como resposta, Poroshenko enviou reforços para o este da Ucrânia. A Rússia continuou a apoiar os rebeldes e as tensões prosseguiram. Em Dezembro, mais de cem camiões atravessaram a fronteira da Ucrânia, vindos de território russo. Mais tarde, as sanções económicas do Ocidente assumiram um papel importante que levou à queda do rublo para mínimos históricos, também agravado pela abrupta descida dos preços dos barris de petróleo para históricos 50 dólares. A Casa Branca anunciou ainda o envio de 350 milhões de dólares em armamento e equipamento militar para a Ucrânia, e a UE impôs uma nova vaga de sanções contra os russos. No final do mês, a maioria do parlamento ucraniano acabou com a política de “não-alinhamento” de 2010, para cultivar uma maior aproximação estratégica e militar com o Ocidente. Paralelamente, o governo ucraniano e os separatistas iniciaram a libertação de prisioneiros de guerra para cada um dos lados. O episódio que marcou o final de 2014, foi a actualização da doutrina militar da Rússia, onde os EUA e a NATO foram listados como “adversários”. Face aos recentes desenvolvimentos, as considerações de Trenin parecem ganhar ainda maior coerência, sobretudo quando o autor russo refere que o conflito na Ucrânia irá prolongar-se por mais tempo. As tensões, sobretudo nos embates entre as forças do governo de Kiev e os separatistas pro-russos, fizeram com que a situação ucraniana atingisse o nível de uma crise humanitária, com números sangrentos, em que mais de 4700 pessoas perderam a vida desde Abril. O conflito ucraniano mostra mesmo como o país é, actualmente, um “estado-tampão” entre uma integração europeia e a restauração da esfera de influência russa, além de se perfilar – tal como Trenin fundamenta - como o reflexo de uma história de reaproximação contemporânea entre a Rússia e o Ocidente absolutamente ineficaz.                        

20

   

João Póvoa Marinheiro   A crise na Ucrânia. Entre a integração europeia e a restauração da esfera de influência russa  

Bibliografia BALMFORTH, Richard. Where did Ukraine’s Yuschenko go Wrong? Reuters, 11 de Janeiro 2014. BEHRENDS, Jan C. “Moscow’s War against Ukraine. Comments from a Historical Perspective.” Cuadernos de Historia Contemporánea, vol. 36, 2014, pp. 325-329. BOLTON, K.R. Geopolitics and Oligarchy at Work in Ukraine Crisis. Foreign Policy Journal, Março 2014, pp. 1-10. BORHI, László. Interpreting and Dealing with the Ukraine Crisis: Some Implications and Lessons from History. Brookings Institute, Junho 2014, pp. 1-7. MCMAHON, Robert. Ukraine in Crisis. Council on Foreign Relations, 25 de Agosto 2014. MEARSHEIMER, John J. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault. The Liberal Delusions That Provoked Putin. Foreign Affairs, Setembro-Outubro 2014, pp. 1-12. SATTER, David. How the Ukraine Crisis Arose – and Why? Hungarian Review, vol. 3, Maio 2014, pp. 1-9. TRENIN, Dmitri. The Ukraine Crisis and the Resumption of Great-Power Rivalry. Carnegie Moscow Center, Julho 2014, pp. 1-26.    

 

21

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.