A crítica ao clero em Decamerão, de Giovanni Boccaccio

July 23, 2017 | Autor: Flavia Vianna | Categoria: Medieval History, Medieval Church History, Italian Literature, The Crisis of the 14th Century
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

FLAVIA VIANNA DO NASCIMENTO

A CRÍTICA AO CLERO EM DECAMERÃO, DE GIOVANNI BOCCACCIO

Niterói 2014

FLAVIA VIANNA DO NASCIMENTO

A CRÍTICA AO CLERO EM DECAMERÃO, DE GIOVANNI BOCCACCIO

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção dos Graus de Bacharel/Licenciada em História. Eixo temático: História da Cultura, das Mentalidades e das Ideologias. Eixo cronológico: Baixa Idade Média/Moderna.

Orientador: Professor Doutor Mário Jorge da Motta Bastos

Niterói 2014

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

N244

Nascimento, Flavia Vianna do. A crítica ao clero em Decamerão, de Giovanni Boccaccio / Flavia Vianna do Nascimento. – 2014. 106 f. Orientador: Mário Jorge da Motta Bastos. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2014.o Bibliografia: f. 93-95. 1. Itália. 2. Idade Média. 3. Igreja Católica. 4. Literatura medieval. 5. Século XIV. 6. Crise social. I. Bastos, Mário Jorge da Motta. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III. Título. CDD 945.05

FLAVIA VIANNA DO NASCIMENTO

A CRÍTICA AO CLERO EM DECAMERÃO, DE GIOVANNI BOCCACCIO

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção dos Graus de Bacharel/Licenciada em História. Eixo temático: História da Cultura, das Mentalidades e das Ideologias. Eixo cronológico: Baixa Idade Média/Moderna.

Aprovada em janeiro de 2015.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos – Orientador

Prof.ª Dr.ª Renata Rodrigues Vereza – Leitora Crítica

Niterói 2014

A todos aqueles que, não importa onde, sempre contaram boas histórias, sejam as que fazem rir, ou as que fazem chorar.

AGRADECIMENTOS

E finalmente o meu Chinese Democracy, o meu Arquipélago, o meu Retorno do Rei, a edição definitiva do ApocalypseNow está terminado. Posso dizer que bem antes da Catedral da Sagrada Família e dos Ventos do Inverno! Hora de agradecer a quem colaborou e torceu para ela ficar pronta! Aos meus genitores Ana Maria e Antônio Paulo, pelo apoio e compreensão durante a graduação. E a minha irmã, Luciana, pelas conversas, debates e até pelas interrupções em horas erradas! Ao meu orientador Mário Jorge, pela enorme paciência que teve comigo nesses últimos meses e pelos conselhos dados durante a graduação. A minha leitora crítica, Renata Vereza, pela ajuda em momento fundamental da elaboração do trabalho. Não esquecerei também do meu primeiro orientador, Edmar Checon e da professora Vânia Fróes, pelas aulas de História Medieval nesses anos na UFF. Aos antigos e novos companheiros medievalistas que estiveram comigo nessa jornada: Rafaella Sousa, Anna Carla Castro, Luiza Zelesco, Renato Silva, Viviane Azevedo, Thiago Magella, Eduardo Daflon, Paula Justen, Ana Mandarino, Patrícia Veiga, Matheus Camacho, Douglas Bandeira e especialmente a Ana Thomazini pelo apoio e carinho! Aos professores Adriana Facina, Adriene Tacla, Alexandre Carneiro, Carlos Gabriel Guimarães, Cecília Azevedo, Marcelo Badaró, Marcelo Bittencourt, Maurício Vieira e Marisol Barenco, fundamentais para minha formação como historiadora. Aos amigos que fiz durante a UFF, eu não esqueci de vocês! Então, um forte abraço e muito obrigada para Zora Zanuzo, Lílian Koplin, Jennifer Louise Érica Calil, Taiguara Almeida, Vanessa Maia, Clarissa Quelhas, Sandro Santana, Camila Jourdan, Mariana Virgulino, Erick Carvalho, Suzana Mangini, Lílian Mathias, Antônio “Kiko” Machado, Leandro Silveira, Juliana Meato, Rennan Lemos, Vanessa Ferreira, Ramon Serra, Carlos Eduardo Lima. Gabriel Maraschin, Luiza Sarraf, Sandro Teixeira, Lorena Tato, Juan Ibañez, Clarice Chacon, Hugo Arruda, Mariana Imbelloni, Daniel Felismino, Luiza Brandão, Matheus Pinto, Juliana Vianna, Patrícia Ribeiro, Bento Mota, Vitor Garcia, Helena Ferreira, Thiago “Turista” Silva, Renata Chiossi, Luciene Garrido, Marcos Marinho e Alan Dutra!! Se eu esqueci de alguém, é culpa da memória dessa moça que escreveu demais!! As professoras Andréia Frazão, Ana Carolina Lima e Maria Valdiza pela ajuda bibliográfica, fundamental para a construção do trabalho.

As amigas Cláudia Mayer, Raphaella Ânanda, Vanessa Araújo e, por último e não menos importante Fabiana Léo pela torcida e carinho! Ao pessoal da Biblioteca Central do Gragoatá, pelo auxílio prestado durante o trabalho. Um abraço especial em Juceli Silva, secretária da coordenação da graduação, responsável por zelar pela vida acadêmica dos futuros historiadores. E a todo mundo que rezou, orou e torceu para que eu chegasse até aqui! Muito obrigada a todos vocês!!!!

P.S: tá, eu exagerei, mas foi necessário!!!

Esse homem, ou mulher, está grávido de muita gente. Gente que sai por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o narrador, o que conta a memória coletiva, está todo brotado de pessoinhas. Eduardo Galeano

Ouvi que estão no padecer horrendo Os que aos vícios da carne se entregavam, Razão aos apetites submetendo. Dante Alighieri

RESUMO

O Decamerão é um conjunto de cem novelas, escritas entre 1349 e 1351 por Giovanni Boccaccio, durante a epidemia de Peste que assolou não só Florença, mas toda Europa. As novelas versam por diversos temas, todos ligados a contexto histórico do século XIV. Um dos aspectos que chama a atenção do leitor é a maneira que Giovanni Boccaccio escreve sobre o clero em algumas novelas. Padres e freiras são apresentados como pessoas mesquinhas, luxuriosas, gulosas, avarentas, hipócritas e incapazes de resistir às paixões humanas. Meu objetivo nesta monografia é entender os móvitos e o contexto que levou Boccaccio a fazer críticas tão pesadas ao clero. Talvez sejam denúncias pesadas a maneira que a Igreja Católica se comportava ou maneira divertida de comentar sobre a sociedade do século XIV. Contudo, o mais importante é não esquecer que expor tais críticas seja uma forma de entender as relações entre Igreja e sociedade em fins da Idade Média. Palavras-chave: Itália – História Medieval – Igreja – Literatura Medieval – Crise do século XIV.

ABSTRACT

Decameron is a set of one hundred short stories, written between 1349 and 1351 by Giovanni Boccaccio, during the plague epidemic that struck not only Florence, but throughout Europe. The novels focus on various topics, all related to the historical context of the 14th century. One of the things that draw the reader's attention is the way that Giovanni Boccaccio writes about the clergy in some stories. Priests and nuns are presented as people petty, lush, greedy, hypocrites and unable to resist the human passions. My goal in this essay is to understand reasons and the context that led Boccaccio the criticisms so heavy to the clergy. Perhaps complaints are heavy the way that the Catholic Church behaved or fun way to comment on the society of the 14th century. However, the most important thing is to not forget that expose such criticism is a way to understand the relationship between the Church and society at the end of the Middle Ages. Keywords: Italy – Medieval History – Church – Medieval Literature – 14th century crisis’s.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: TERIA RAZÃO A VELHA AMA?....................................

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CAPÍTULO 1 – LITERATURA E HISTÓRIA.............................................

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1.1 O conceito de literatura............................................................................

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1.2 Literatura como fonte histórica...............................................................

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1.3 Podemos falar em literatura medieval?.................................................

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CAPÍTULO 2 – BOCCACCIO E SEU TEMPO.........................................

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2.1 O século XIV de Boccaccio....................................................................

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2.2 Florença e Península Itálica no tempo de Boccaccio.............................

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2.3 A Igreja em meados do século XIV...........................................................

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2.4 Decamerão: estrutura geral e contexto histórico...................................

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CAPÍTULO 3 – AGRIDOCE ESTILO NOVO: FICÇÃO E CRÍTICA.....

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3.1 Análise das novelas..............................................................................

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3.2 O mercador, a mulher e o padre: Boccaccio e a sociedade....................

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CONCLUSÃO – CAMINHANTES BRANCOS EXISTEM!.......................

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REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS.........................................................

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ANEXO – FICHAS DE ANÁLISE DAS FONTES......................................

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1

Novelas escolhidas por jornada..................................................

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Tabela 2

Novelas usadas por narrador......................................................

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LISTA DE NOVELAS

1ª novela da Primeira Jornada 2ª novela da Primeira Jornada 4ª novela da Primeira Jornada 6ª novela da Primeira Jornada 7ª novela da Primeira Jornada 5ª novela da Segunda Jornada 1ª novela da Terceira Jornada 3ª novela da Terceira Jornada 4ª novela da Terceira Jornada 7ª novela da Terceira Jornada 8ª novela da Terceira Jornada 10ª novela da Terceira Jornada 2ª novela da Quarta Jornada 3ª novela da Sexta Jornada 10ª novela da Sexta Jornada 3ª novela da Sétima Jornada 2ª novela da Oitava Jornada 4ª novela da Oitava Jornada 2ª novela da Nona Jornada 2ª novela da Décima Jornada

INTRODUÇÃO: TERIA RAZÃO A VELHA AMA?

Contar histórias é uma arte. Através delas reunimos as pessoas, passamos para a frente ideias e modos de vida, aprendemos novas experiências e recuperamos saberes perdidos. Contar histórias, relatar o vivido é algo que as sociedades humanas fazem desde o momento que passara e aprenderam a usar o aparelho fonador. Ora, humanos são seres sociais; comunicar-se auxilia na obtenção das necessidades básicas para a sobrevivência em grupo, seja através de gestos, de imagens ou de palavras, seja ela escrita ou falada. É sobre o ato de narrar, escrito ou falado que é o pontapé inicial dessa pesquisa. Nas Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin, existe uma senhorinha que é uma das personagens mais interessantes: a Velha Ama. Ela é uma velhinha que reside há muito tempo em Winterfell, sede do protetorado do Norte e de responsabilidade dos Starks. A Velha Ama é conhecida entre os habitantes de Winterfell por uma singular “habilidade”: contar histórias. Porém, são histórias que trazem muitas informações sobre os acontecimentos antigos e um tanto nebulosos de Westeros. Martin não informa aos leitores da saga com quem ela aprendeu ou onde ouviu tantas histórias, ela simplesmente as conta e os Starks simplesmente as ouvem. O que interessa aqui é o quanto os jovens lobos percebem que muitas das histórias da Velha Ama guardam semelhanças com situações, algumas extraordinárias, vividas pelos Starks. Uma coisa é ela contando ao jovem Bran sobre Fortenoite e os filhos da floresta; outra coisa é Bran chegando ao extremo norte gelado e ver aquilo que ele imaginava tomar forma. Uma coisa são as histórias sobre os selvagens, a Muralha, os Caminhantes Brancos e a Patrulha da Noite; outra coisa é Jon Snow patrulheiro, defensor da Muralha e de Westeros. Aliás, criar e contar a partir do fato não é exclusividade do Norte; os eventos em Porto Real – mortes, casamentos e traições – são um prato cheio para a construção de bastante diferentes dos acontecimentos; Arya e Sansa as ouvem sem poder gritar que não é verdade. Fiz alguns comentários sobre as Crônicas de Gelo e Fogo para dar uma ideia de algo fundamental na construção de meu objeto de pesquisa: a relação entre fato e ficção. Histórias não são construídas do nada, elas sempre partem de algum ponto do fato concreto e fornecem algum tipo de dado ou conselho sobre ele. Nenhuma ficção é produto que surge dos neurônios de um gênio criador, quem conta é um indivíduo ou um grupo, os quais possuem a sua própria lente através da qual enxergam o mundo. Os estudiosos chamam de ideologia. Entender a

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relação entre o que pensa o autor, para que serve a obra e o contexto de sua produção é a bússola que ajudará a guiar este trabalho. Contar histórias não é algo exclusivo da sociedade contemporânea. No século XIV, o escritor Giovanni Boccaccio produziu uma das obras mestras da literatura italiana, o Decamerão. Trata-se de um conjunto de cem novelas, as quais versam sobre diversos temas. Em algumas novelas, existe a crítica a atitudes de membros do clero. São elas que servirão de fonte para o problema que surge a partir da leitura delas: qual é objetivo de Boccaccio em expor os defeitos e as mazelas do clero católico e por que ele o faz? Se era puro denuncismo ou uma forma divertida de falar da sociedade italiana do século XIV, não sabemos. Todavia, este detalhe presente no Decamerão não pode ser deixado de lado e é válido para descobrir um pouco mais sobre as relações entre Igreja e sociedade italiana no século XIV. Estudos sobre literatura e história são comuns a partir da década de 1970, quando entram em voga estudos sobre história das mentalidades e história cultural. Contudo, não significa que eram completamente deixadas de lado pelas gerações anteriores à “terceira onda” dos Annales, Os estudos medievais não deixaram estas discussões sobre literatura de lado, guardadas as devidas particularidades para a época. São comuns os estudos sobre literatura medieval, principalmente em artigos que discutem categorias sociais, questões de gênero e relações sociais. No Brasil, os estudos na área de História Medieval costumam concentrar temas referentes à Península Ibérica, com grande parte das produções sobre Portugal, devido à facilidade de acesso às fontes e a bibliografia de apoio. Por isso, dedico-me a estudar sobre a Península Itálica, dada a dificuldade de encontrar pesquisas em português cujo enfoque principal seja esta região. A maior parte das monografias e artigos que usam a obra de Boccaccio como fonte optou por discutir, principalmente, questões ligadas aos estudos de gênero ou a outras categorias sociais presentes no texto, deixando de lado outros temas que aparecem em Decamerão. Isto acontece devido á facilidade para abordar estes temas, pois é o aspecto mais evidente quando se inicia uma análise mais profunda da obra. Além disso, o autor dedica o Decamerão às mulheres, sendo elas o principal público receptor do texto. Apesar do clero ser objeto principal de estudo, não excluirei completamente os estudos de gênero, mas em algum momento do Capítulo 3 aparecerão. Dito isto, entende-se a opção por abordar a crítica ao clero em Decamerão, já que contempla dois aspectos pouco estudados pelos medievalistas brasileiros: um melhor conhecimento sobre as relações entre Igreja e sociedade em fins da Idade Média e como elas 14

afetaram a sociedade florentina e o conjunto da Península Itálica. Isto porque a crítica de Boccaccio é feita durante um período anterior a Reforma Protestante, quando as disputas entre leigos e clérigos atingirão o ponto máximo. Por outro lado, as críticas são indícios de clivagens não tão bem definidas entre esses dois grupos; existe a probabilidade de pessoas que são ou foram, incluindo aí Boccaccio, ligadas ao clero elaborarem as críticas. Um outro aspecto parece, à primeira vista, secundário, contudo torna-se relevante durante a elaboração do ensaio. São as relações entre literatura e sociedade. O autor aqui não é mero narrador de seu tempo. Ele não está descolado dele e o que escreve é mediado a partir de suas relações sociais. Sobre isso, faço aqui uma pequena comparação entre Dante Alighieri e Giovanni Boccaccio, pois o primeiro usa a Divina Comédia para fazer uma observação moral sobre a sociedade florentina e da Península Itálica. Dante faz isso ao expor as penas dos condenados durante seu passeio pelo Inferno e pelo Purgatório. Boccaccio usa de nobres fugitivos da peste para expor sua percepção dos aspectos morais de seu tempo. Assim, ambos possuem um ponto em comum: adotam o extra espacial e o extra temporal para falar de sua época. Partiremos para a análise da obra e das críticas ao clero presentes na obra, fazendo alguns questionamentos: De que maneira Boccaccio critica as posturas do clero em Decamerão? Como as críticas ao clero circulavam dentro da Península Itálica na época do Trecento? Qual o teor das relações entre sociedade e Igreja na Península Itálica e em Florença durante a primeira metade do século XIV Qual o lugar social de Boccaccio na época de produção da obra? Existiu algum tipo de mecenas que financiou sua produção? Para responder estas perguntas, alguns esclarecimentos teóricos serão feitos. Trabalharei com uma fonte literária, logo o uso dela possui algumas especificidades. Primeiro, devemos discutir o conceito de literatura e a relação dele com o contexto histórico escolhido. Como trabalharei com uma fonte anterior ao século XIX, discussões sobre a relação entre autor e público serão feitas com mais cuidado. Isto porque a escrita na Idade Média era privilégio de poucos, apesar de estarmos numa época que leigos ligados a determinadas funções econômicas – comércio e administração – possuíam contatos com a escrita. Os escritores pertenciam a grupos mais abastados ou circulavam por eles, o que influenciava a maneira como alguns assuntos foram tratados. Partirei do conceito moderno de literatura para elaborar a ideia de literatura medieval. Irei de encontro às teses de Roger Chartier sobre o conceito de literatura, cuja premissa

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principal é entendê-la como um discurso puro e simples. Ora, se para Chartier a literatura é um discurso, todo discurso possui um lugar social de produção, ponto que o autor não aborda. A literatura medieval guarda uma especificidade extra: sua transmissão é, em parte, pela via oral. O que foi escrito é feito para ser cantado, recitado, declarado ou narrado. Portanto, há a necessidade de estabelecer relações entre literatura e oralidade. Através desta maneira de emissão e recepção de ideias e os contatos dela com a escrita entenderemos os contatos entre Boccaccio e a sociedade. Para isso é útil contextualizar Florença e a Península Itálica durante o Trecento. Uma discussão sobre as relações entre o Papado e a sociedade não será descartada. Portanto, a partir dela podemos entender o motivo de Boccaccio ser tão ácido nas suas críticas ao clero. Por último, farei uma apresentação geral da obra, antes de me aprofundar na análise da fonte. A hipótese central desta pesquisa é entender Giovanni Boccaccio como um intelectual orgânico, tal como propõe o marxista italiano Antonio Gramsci. Boccaccio adotaria essa posição na sociedade porque está ligado aos mercadores. Assim, o Decamerão serviria como uma regra moral, ou melhor, um exemplum, espécie de livro de normas de uma nova classe, a burguesia. Talvez Boccaccio combine os objetivos de quem buscava novos modos de contato com o sagrado com a crítica que setores da burguesia faziam à Igreja, justamente por ela travar o “desenvolvimento econômico”. Por outro lado, ela também serviria como modelo de conduta às mulheres das classes abastadas; ter a justa medida das paixões humanas era bom, pois é ela que faz com que a humanidade siga em frente. Assim, criticar o clero seria uma forma de mostrar que ninguém é imune às paixões humanas, nem mesmo aqueles que mais afirmam o quanto elas são nocivas. Farei uso da edição lançada pela Nova Cultural na década de 1980, pois foi a mais acessível. As novelas cujas temáticas preencham os requisitos para esta pesquisa serão analisadas a partir das técnicas de análise do discurso e da análise da narrativa. Tzvetan Todorov servirá mais como recurso metodológico do que teórico: desde já afirmo minha crítica ao formalismo como teoria de análise. Temos mochila e suprimentos preparados. Hora de começar a jornada e ver o que há de real ou não nas velhas histórias. Vejamos se a Velha Ama tem razão.

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CAPÍTULO 1: LITERATURA E HISTORIA

1.1 O conceito de literatura. Na obra Apologia da Historia ou o Oficio do Historiador, Marc Bloch diz que “a historia é a ciência dos homens” 1 . Se tomarmos o sentido do termo ciência como conhecimento, podemos dizer que o conhecimento dos homens e sobre eles é objeto de estudo da historia. Não só os homens, mas toda produção humana. Então, conclui-se que, como é produção humana, a literatura também é objeto da ciência histórica. Porém, cada sociedade possui uma determinada visão sobre seu tempo. A literatura não escapa dessa premissa; de alguma forma, as questões do tempo do autor aparecem escritas na obra. Quanto à afirmação anterior, faço uma observação importante. Não devemos tomar essa “visão do autor” como mero reflexo de uma época. Alguns fatores influenciam na produção, tais como o lugar social, a classe, a ideologia... Aliás, os fatores que citei são importantes para a análise de uma obra literária como fonte histórica. Por exemplo: a obra de Vladimir Maiakovski pode servir como base para um estudo da ação dos artistas num primeiro momento da Revolução Russa de 1917. Os contos e romances escritos por Machado de Assis seriam fontes interessantes para um estudo da sociedade carioca entre meados do século XIX e início do século XX2. Ou ainda, basta usar as obras dos autores citados como fontes para entender suas respectivas posições ideológicas sobe a época a qual viveram. Se a literatura é objeto de estudo dos historiadores, então o que definimos como literatura? O senso comum definiria como algo que tem a ver com livros, com historias escritas e contadas por alguém ou ainda àquilo que as pessoas leem, mas não possui relação com a vida real. Ele também mesclaria o conceito de literatura com as ideias e teorias sobre ficção, obra literária, prosa e poesia. Existe uma relação direta entre os termos citados anteriormente com a literatura e é uma relação tão direta que eles tornaram-se quase sinônimos. Convém então separá-los da literatura; contudo, não é recomendável deixá-los completamente de lado. Eles serão apoio para uma melhor definição do que é literatura.

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A discussão sobre o caráter científico da historia encontra-se no capítulo 1. Cf. BLOCH, Marc. Apologia da Historia ou O Oficio do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, pp. 52-56. 2 Sobre o uso das obras de Machado de Assis como fonte histórica: Cf. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Na obra, Chalhoub aproveita crônicas, contos e romances de Machado de Assis para discutir a sociedade brasileira durante o século XIX.

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A tarefa é árdua, porém necessária. Dentro dos estudos de Teoria Literária e sobre crítica literária, existem diferentes maneiras de abordar o conceito. A abordagem depende da orientação teórica adotada pelo pesquisador e também se relaciona com o objetivo da pesquisa. Creio que a aproximação dar-se-á pelo o que não entendo como literatura. Delimitar o conceito pela via negativa ajudar-me-á a chegar ao cerne da questão. Não será estranho o aparecimento de algumas críticas a alguns pressupostos teóricos e autores; elas serão fundamentais durante o processo de definição. Pois bem; continuarei o processo de delimitação, partindo da separação entre os termos livro e literatura. Como já apontei antes, tais termos são quase sinônimos para o senso comum. Roger Chartier, quando trata da literatura, costuma enfatizar dois pontos importantes: a relação entre literatura e livro, este como objeto físico, e a visão que a literatura é produto do discurso 3. Concentrar-me-ei aqui no primeiro ponto proposto, o qual é constantemente reiterado pelo senso comum. Aponto aqui a existência de uma metonímia entre livro e literatura, tornando o segundo função do primeiro. O resultado é a objetificação 4 da literatura e certa glorificação do livro enquanto objeto, frente ao seu conteúdo. Decorre desta relação uma crença ampla de que “tudo é literatura”, porque ela está encerrada num livro. Outros termos cognatos à literatura, cultura, por exemplo, são interpretados quantitativamente; a quantidade do que leste é medida da capacidade de formar opinião dentro da sociedade. Ficou óbvio aqui que desconsiderei os fatores ideologia e classe social; outras análises tratariam logo de expor estas categorias mais gerais. Tal objetificação também reduz o papel do autor e o transforma em mero produtor de “obras literárias” para as massas. Reitero aqui esta visão do senso comum sobre literatura desconsidera o escritor enquanto portador de uma visão sobre a realidade que o cerca, tendendo a vê-lo como alguém acima da sociedade. Para os historiadores, entender a literatura segundo este prisma é excluir da análise a relação entre autor, obra e público. Seria muito danoso para a análise que farei sobre o Decamerão se o visse somente como “coletânea de cem novelas, algumas bem divertidas”. Pareceria que Boccaccio escreveu a obra só para entreter o público. Além disso, seria um anacronismo sobre

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Cf. CHARTIER, Roger. Debate: Literatura e Historia. Topoi, Rio de Janeiro: v.1, n.1, p. 197-216, jan.-dez. 2000. ________A Historia Cultural – Entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. Cap.6, p.165-187. O tema discutindo no capítulo 6 é a literatura de cordel. 4 Preferi o uso de objetificação no lugar de materialização, pois daria um sentido diferente do proposto para a ideia a qual desejo expor. Se usasse o termo materialização, o significado seria que “o livro concretiza a literatura”. De certa maneira, Roger Chartier parte desta perspectiva nos estudos sobre literatura. Sobre a relação entre livro e literatura, cf. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979, p. 52-57.

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o

século

XIV,

supondo

que estruturas sociais

e culturais

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características da

contemporaneidade já existissem. Mais uma vez, Chartier. A literatura é produto do discurso, diz o historiador 6 . Contudo, ela não avança na análise sobre a produção de discurso. Chartier entende e explica a literatura como resultada do discurso, e como ocorre a recepção dele pela sociedade. Falta, entretanto, entender os mecanismos de reprodução e o papel social do autor, enquanto produtor de determinado discurso. Em outras palavras, falta, na análise de Chartier, inserir o autor dentro de seu contexto social. Dá a impressão que o discurso que permeia e embasa a obra sempre esteve dançando ao redor do autor. Bastava, para diferenciá-lo, capturá-lo e transmiti-lo para a sociedade. Vamos a um exemplo prático. Um hipotético historiador, encantado por histórias em quadrinhos, resolve transformar sua paixão em objeto de pesquisa. Após algum tempo, ele decide o tema e a teoria que dará base à pergunta que fará a fonte. Digamos que o hipotético historiador escolhe como fonte Watchmen7, escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons, e decide investigar os “efeitos” dentro do universo dos quadrinhos do lançamento da obra8. O nosso historiador opta por usar Roger Chartier na análise da fonte. Ele consegue apreender o sentido da obra, a importância dela e a maneira como foi recebida pelos leitores de graphic novels. Porém, ao fazer a análise da fonte e tomar o texto como discurso, não observa que ele conecta-se com o contexto da época – Alan Moore escreve o texto em fins da Guerra Fria, durante a década de 1980. Em suma, na análise da literatura, o contexto de produção e o papel social do autor são importantes no entendimento geral da obra pelo pesquisador. Breve interlúdio teórico-metodológico eu fiz, mas voltarei a ele mais a frente neste capítulo. Há ainda detalhes teóricos a discutir quanto à definição de literatura, os quais ajudarão a delimitá-la melhor. Existe uma corrente teórica, surgida nas primeiras décadas do

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Os conceitos modernos sobre gosto e público se encaixam aqui. Cf. FACINA, Adriana. Literatura & Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Coleção Passo-a-Passo, nº48, 2004. 6 CHARTIER, op.cit., passim. 7 Watchmen foi escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons em meados da década de 1980. Segundo os leitores de graphic novels (gênero no qual se insere), é considerada uma das mais importantes da década, pela maneira como conta a história de super-heróis. O plano de fundo são os EUA de meados da década de 1980 e numa realidade na qual super-heróis realmente existem. 8 Usei quadrinhos como exemplo, mas há uma diferença quanto à metodologia de análise, pois precisa aliar imagem a texto. Porém, não invalida o uso de teoria que trabalhe com a análise do texto.

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século XX, que define literatura pelo tipo de linguagem usada na produção da obra. É o formalismo russo 9, sobre o qual tecerei alguns comentários. Segundo o crítico russo Roman Jakobson, a literatura representa uma violência organizada contra a fala comum10. Ou seja; para os formalistas russos, existe uma linguagem literária e outra não literária. Significa dizer que o texto literário possui uma forma específica de organização, diferente da maneira que o texto não literário é produzido. Ora, de acordo com os formalistas, a relação entre o texto literário e o não literário é reduzida ao campo da linguagem, o que importa é a forma e a estrutura da ideia transformada em texto e não o seu contexto de produção, muito menos a maneira que o autor constrói a obra. Em suma, a literatura seria um mero exercício da linguagem formal; uma espécie de diversão com a fala comum. É um tanto estranho para historiadores cujo objeto de estudo é a literatura chegar à conclusão que, por exemplo, a Ilíada tomou a forma que se apresenta porque era a vontade de Homero ou que o autor anônimo de Lazarillo de Tormes simplesmente decidiu que a melhor maneira de contar as aventuras de Lázaro era contá-las em prosa. Definitivamente, por mais utilidade metodológica que o formalismo tenha, usá-lo para definir o conceito de literatura não nos interessa aqui11. Antes de entrar efetivamente no que entendo por literatura, devo fazer mais algumas considerações sobre o formalismo. Segundo os formalistas, a obra literária é a reunião de “artifícios” (som, imagem, ritmo, sintaxe, métrica, rima e outras técnicas narrativas) que possuam “relações” entre eles dentro da totalidade do texto. O objetivo da reunião dos artifícios é provocar “estranhamento” ou desfamiliarização. Este estranhamento provocado pelos artifícios literários é em relação à chamada fala comum. Para os formalistas, como disse anteriormente, existe uma distinção clara e definida entre língua “normal” e língua “literária”. Assim, através da alteração da linguagem, a literatura renovaria as relações por trás da língua comum. Segundo Terry Eagleton, o discurso literário torna estranha a fala comum, porém nos formalistas, uma forma de vivenciar com mais intensidade a vida material. Eagleton, na abertura de Teoria da Literatura: uma introdução, explica melhor a proposição anterior, 9

Corrente surgida antes da Revolução Bolchevique de 1917, atuante durante a década de 1920, até serem censurados pelos stalinistas. O grupo incluía pensadores como Roman Jacobson, Osip Brik, Vitor Sklovski, dentre outros. A preocupação principal dos formalistas russos era o entendimento de como os textos funcionavam na prática não o seu conteúdo. Cf. EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 3-4. 10 Cf. EAGLETON, ibidem, p.3. 11 Apesar das críticas à teoria formalista, faço um pequeno mea culpa por aqui. No capítulo 3, farei usos de duas obras de Tzvetan Todorov – A Gramática do Decamerão e As Estruturas Narrativas – autor que recupera a teoria dos formalistas russos. Porém meu objetivo é meramente metodológico; entender a estrutura da obra antes de analisar seu conteúdo.

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comparando o uso da linguagem “normal” com o ato de respirar. Basta uma alteração no ar para percebermos a naturalidade do ato. Outro exemplo dado pelo autor para explicar o formalismo é a comparação entre a leitura de um bilhete e a de um livro; de acordo com a teoria formalista apresentada por Eagleton, prestamos mais atenção à estrutura textual de um romance do que o escrito em um simples recado deixado por um amigo 12. Essas estruturas textuais comportam artifícios que procuram nos manter atentos ao texto 13. Ora, se existe linguagem literária, conforme os formalistas, então o que seria uma língua comum ou normal? Mais importante: ela seria comum a todos os elementos da sociedade? Além disso, é possível datá-la ou ela é imutável? Raymond Williams, quando procura definir os conceitos de língua e linguagem, nos dá uma definição que ajuda a responder as questões anteriores. Segundo Williams, “uma definição da língua, ou linguagem, é sempre implícita ou explicitamente, uma definição dos seres humanos no mundo”. (WILLIAMS, 1979, p. 27.). Williams reforça a ligação entre língua ou linguagem e sociedade. Assim, a língua também é uma relação social, não é somente a materialização do pensamento em signos e sons, ela também faz parte do modo de vida da sociedade. Ela é elo de comunicação entre os humanos, possível de ser historicizada ou de mostrar divisões de classe e gênero. A maneira como a sociedade expressa e compreende um signo ou o conjunto deles, se relaciona com a maneira que a sociedade pensa; arrisco-me em afirmar que é uma relação dialética. Língua é a concatenação entre fala e escrita; literatura relaciona-se tanto com o oral, quanto com o escrito.14 Portanto, acredito que é inadequado classificar a literatura como algo violento em relação à “fala comum”. O próprio Raymond Williams reforça a relação entre língua e literatura, ao definir a segunda como “...o processo e o resultado da composição formal dentro das propriedades sociais e formais de uma língua.”. (WILLIAMS, 1979, p. 51) Aliás, supor que só a literatura é capaz de expressar e explorar a linguagem é esquecer outras formas de uso dela. Piadas, por exemplo. Durante a elaboração e leituras para este capítulo, lembrei-me de uma anedota contada por um antigo professor de inglês que tive. Ou professora, talvez. Não importa quem foi, mas a piada fazia referência a como estadunidenses

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EAGLETON, ibidem, p. 5-6 Neste capítulo me concentrei nas críticas ao formalismo russo; por outro lado alguns desejam saber um pouco mais sobre ele. Cf. POMORSKA, Krystyna. Formalismo e Futurismo. São Paulo: Perspectiva, 1972. Na obra, Pomorska explica o que é o formalismo russo, além de estabelecer conexos dele com o movimento futurista. O revolucionário Leon Trotski, lá pelos idos da década de 1920, faz uma crítica a ambos os grupos. Cf. TROTSKI, Leon. “A escola de poesia formalista e o marxismo”. In: Literatura e Revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p.133-147. 14 WILLIAMS; op.cit, p. 27-49 13

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e britânicos designam aquele transporte de massa que roda sobre trilhos e sob a terra, o nosso metrô. 15 Vamos à graciosa anedota. Um inglês passeava por Nova Iorque e se encontra perdido. Encontra um cidadão estadunidense e pergunta: “Como faço para ir ao metrô? (underground)”. O estadunidense responde: “Morrendo, oras!”. Talvez se fosse o estadunidense em Londres perguntando “onde fica o metrô?”, o britânico lhe indicasse o restaurante da cadeia de fast-food que serve sanduíches que estivesse mais próximo dele (subway)...16 O interlúdio cômico – ou não – serve para chegar a uma conclusão sobre a definição da literatura como “violência contra a fala comum”: a existência dela, pura e simples, é uma falácia. O termo usado é um pouco forte, mas cabe usá-lo aqui. Sobre os formalistas, creio que Leon Trotski resume bem o que penso a respeito deles:

A escola formalista representa um aborto do idealismo aplicado aos problemas da arte. Os formalistas revelam uma religiosidade que amadureceu muito depressa. São os discípulos de são João: para eles, “no começo era o verbo”. Mas, para nós, no começo era a ação. A palavra acompanhou-a como sua sombra fonética. (TROTSKI, 2007, p. 147).

Já sabemos que definir literatura como “corrupção da fala comum” é inviável neste trabalho. Busquemos então outra definição que seja a mais abrangente possível. Como ponto de partida, pode-se partir da ideia proposta por Terry Eagleton que entende literatura como um “discurso não pragmático”.17 Ou seja, a definição de literatura passaria pela maneira que se consome um texto do que pelo texto em si e pelo o que está por trás dele. Ora, há alguns problemas em adotar a perspectiva e até mesmo o próprio autor discorda dela 18. Primeiro: é razoável supor, a partir da premissa apresentada anteriormente, a existência de discursos pragmáticos e não pragmáticos dentro de uma sociedade. Ou seja, existem textos produzidos com funções diferentes e o formato deles encerraria a forma de seu uso e as chaves de sua leitura. Talvez aqui se considere o contexto de produção da obra, porém continuaríamos a cometer as mesmas falhas dos formalistas, com algumas variações. Ocorreria um embelezamento nas técnicas de análise, enfatizadas na estrutura do discurso textual, sem o aprofundamento nas relações entre texto e contexto. O resultado seria uma citação 15

Subway, no inglês norte-americano; underground, nas Ilhas Britânicas. O português não foge à semelhante caso. Ônibus, no português europeu é “autocarro”. Até mesmo dentro do português brasileiro as variações linguísticas existem. Macaxeira, aipim e mandioca se referem a mesma raiz comestível. 17 EAGLETON, op.cit., p. 11-12 18 EAGLETON, ibidem, p. 11-13 16

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interminável do discurso do autor, sem que haja um entendimento dos porquês que levaram à produção do texto. Ora, voltamos então a algo que discuti nas páginas anteriores, quando fiz a crítica à maneira como Roger Chartier elabora as relações entre literatura e história. Acredito que ainda cabem mais alguns apontamentos sobre o autor e sua teoria. Porém ele não é o único pensador a trabalhar o “discurso pelo discurso”; Michel Foucault também caminha na mesma direção19. Infelizmente, não discutirei Foucault aqui, por outro lado, não me furtarei de criticar, mais uma vez, Roger Chartier. A apresentação do segundo problema na divisão entre discurso pragmático e discurso não pragmático pode esperar um pouco... Em “Textos, impressos, leituras”, capítulo IV de A História Cultural: entre práticas e representações, Chartier, a partir de sua análise sobre a Bibliothèque Bleue20 e outros textos do século XVII, discute e procura entender a relação entre livro como objeto, práticas de leitura e disseminação dos textos. O capítulo começa com uma pequena exposição sobre a leitura e suas práticas. Segundo Chartier, o ato de ler é produtor de uma multiplicidade de sentidos. Por outro lado, ele também afirma que os leitores estão sujeitos ao “sentido único”, de acordo com a maneira que o autor pensa e elabora o texto. Para Chartier, o autor obriga os leitores a lerem o texto de uma única forma. Os prefácios, advertências e notas seriam os guias para a leitura correta, o que para ele é uma armadilha para os leitores. Conforme ao que o autor propõe, reunir o estudo do livro e de sua circulação é fundamental para entendermos uma “história das práticas da leitura” 21 . Vale lembrar que o interesse principal dele não é entender as relações entre literatura e contexto social. Chartier se interessa mais pela história da leitura – ele prefere historicizar as práticas de leitura a literatura, partindo da ideia que o senso comum possui sobre leitura e livro. Vejo muitos problemas nessa perspectiva proposta por Roger Chartier. A ele não interessa o que é lido, mas como é lido. A prática da leitura e a propagação do discurso são mais importantes do que o conteúdo do livro e o porquê de sua publicação. A figura do autor enquanto sujeito social e histórico se torna apagada aqui: ele é só uma pessoa que escreve e manda alguém publicar. Além disso, durante a época moderna, Chartier supõe que a leitura 19

Só consegui, infelizmente, me lembrar de apenas de uma obra de Foucault na qual a análise do discurso constitui eixo central da argumentação do autor. FOUCAULT. Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, promovida em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola 2009. O mais engraçado é que, durante a pesquisa para o projeto, cheguei a cogitar o uso de algumas obras escritas por Foucault na elaboração da monografia. Logo, ainda bem, foram abandonadas e o projeto tomou outro rumo; embora me propusesse a criticar Roger Chartier desde o início. 20 Segundo Roger Chartier, a Bibliothè Bleue é uma coleção de livros de cordel cujo objetivo era atingir leitores de camadas mais populares. Cf. CHARTIER< Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 128-129. 21 CHARTIER, ibidem, p. 123-142.

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seja algo massificado e que a massificação dela ocorre devido à invenção da imprensa. Creio eu, é sim erro grave cometido pelo autor em suas análises sobre a leitura entre os séculos XV e XVIII. A massificação do público leitor teria que esperar chegar o final do século XVIII. Outra falha de Chartier é desconsiderar a posição social do público leitor, a alfabetização era privilégio da aristocracia e de alguns setores da burguesia – massificação do letramento só ocorrerá com a criação de escolas públicas, a partir de fins do século XVIII 22 . Chartier também não menciona o desenvolvimento nas técnicas de impressão; a invenção da máquina à vapor ajudaria a ampliar a velocidade e a quantidade de textos impressos, a partir do momento que ela foi associada à prensa. 23 Sem querer querendo, a discussão sobre a relação entre leitura e público leitor, a partir das ideias propostas por Roger Chartier, nos leva ao segundo senão na definição de literatura como um “discurso não pragmático”. O segundo problema resultante da definição de literatura com um “discurso não pragmático” é que ela fica a cargo do público leitor. Ou seja, ela depende da maneira que alguém lê a obra, não da forma que o autor a construiu. Por outro lado, o que consideramos um problema encerra dentro dele uma solução para definirmos o que é literatura. Explico: a maneira que o público lê e interpreta uma determinada obra literária pode ser completamente diferente daquela que o autor a concebeu; a própria leitura também depende da visão de mundo, da posição social e dos objetivos do leitor. Isto porque nem tudo o que é consumido como literatura foi produzido originalmente como literatura 24 . Uma coisa é a leitura que leigos fazem de A Era dos Extremos, de Eric Hobsbawm; outra coisa é a maneira que estudantes de história ou historiadores a leem. No primeiro caso, a obra tornou-se literatura; no segundo, é objeto de consulta para profissionais da ciência histórica. Nesse caso, ampliamse as relações entre produção e recepção; o contexto de quem consome e saber quem é o público leitor é importantíssimo para entendermos a relação entre autor – obra – público. Assim, a literariedade de uma obra depende também da maneira que é consumida. Logo, podemos afirmar a existência de uma relação dialética entre quem produz e quem consome. Literatura, tal como a música e a pintura, é objeto de fruição dos humanos; ninguém é máquina que executa atividades produtivas o tempo inteiro. O que diferencia as sociedades é a

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Apesar de Graco Babeuf, líder da “Conspiração dos Iguais” durante o Diretório (1795-1799), ter aprendido a ler através de panfletos jogados na rua, o não letramento das camadas mais populares era regra. 23 Sobre transformações técnicas e sociais após a Revolução Industrial; cf. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 24 EAGLETON, op. cit, p.12-13.

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maneira como produzirão e consumirão os objetos de sua fruição 25. Sobre a relação entre arte produção e consumo, Karl Marx disse:

A produção não apenas fornece à necessidade um material, mas também uma necessidade ao material. O próprio consumo, quando sai de sua rudeza e imediaticidade originais – e a permanência nessa fase seria ela própria o resultado de uma produção aprisionada na rudeza natural –, é mediada, enquanto impulso pelo objeto. A necessidade que o consumo sente do objeto é criada pela própria percepção do objeto. O objeto de arte – como qualquer outro produto – cria um público capaz de apreciar a arte e de sentir prazer com a beleza. A produção, por conseguinte, produz não somente um objeto para o sujeito, mas um sujeito para objeto. Logo, a produção produz o consumo, na medida em que 1) cria o material para o consumo; 2) determina o modo do consumo; 3) gera como necessidade no consumidor os produtos por ela própria postos primeiramente como objetos. Produz, assim, o objeto do consumo, o modo do consumo e o impulso do consumo. Da mesma forma, o consumo produz a disposição do produtor, na medida em que o solicita como necessidade que determina a finalidade. (MARX, 2011,p. 47).

Quanto à discussão sobre literatura, Marx nos leva a uma conclusão interessante: além de produção humana, ela também é objeto de consumo. A relação dialética entre autor – obra – público será mediada pela relação entre quem produz e quem consome. É claro que as formas, as finalidades e o conteúdo da literatura mudaram ao longo do tempo. Não importa se é a Eneida, a Divina Comédia, o Dom Quixote De La Mancha, Robinson Crusoé, Moby Dick ou Cinquenta Tons de Cinza: o que os une, apesar de tão diferentes, é que todos são produtos da criação humana. Sendo produtos e objetos de consumo carregam dentro de si um valor, seja de uso ou simbólico 26. Ora, se possuem valor, alguém, em algum momento, o atribuiu a eles. Além disso, esse valor atribuído a estas obras é fruto das relações históricas entre a literatura e a sociedade, entre autor e público. Ainda explicarei um pouco mais estas relações ao longo do texto, antes quero tecer mais alguns comentários sobre a relação entre discurso pragmático e não pragmático. A praticidade ou não praticidade de um texto é característica descoberta a partir do momento que se estabelece a relação entre texto e leitor. Assim, é a circulação e o consumo do texto que afirmam ou não a literiaridade dele. De acordo com Terry Eagleton, podemos pensar a literatura como ligada à maneira como as pessoas se relacionam com a escrita do que um conjunto de características pré-definidas e que abrangem uma série de obras diferentes entre si. Por conseguinte, é praticamente impossível isolar as características essenciais da 25

Sobre a relação entre ócio e indústria cultural: cf. ADORNO, Theodor. “Tempo livre”. In: Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 103-117. 26 Sobre o conceito de “valor de uso”: cf. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro Primeiro: O processo de produção do capital. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 57-68. Valor simbólico, cf. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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literatura 27 . Por outro lado, a firmar a não existência de características essenciais, não significa a impossibilidade em formular um conceito de literatura que seja abrangente. Abrangente não significa que seja atemporal; o que entendemos como literatura sofreu variações de acordo com o período histórico e com a sociedade que a produzia. Até mesmo os conceitos de “prático” e “não prático”, quando ligados à literatura, se encaixam em uma época específica. A ideia de pragmatismo ou não de um determinado objeto passa a ser possível apenas na nossa sociedade contemporânea; talvez, em períodos anteriores, a literatura tivesse uma função completamente diferente 28. Objeto da produção humana, já sabemos que a literatura é. Creio que seja a definição mais importante, porque permite a datação da fonte. Contudo, ainda não é o suficiente para este trabalho. Ainda precisamos delimitá-lo melhor, pois torna mais simples a análise do Decamerão. Mais uma vez Terry Eagleton. Só que agora me referirei a um autor citado por ele no início de Teoria da Literatura: uma introdução. Segundo John M. Ellis, “...a palavra ‘literatura’ funciona como a palavra ‘mato’: o mato não é um tipo específico de planta, mas qualquer planta que, por uma razão ou outra, o jardineiro não quer no seu jardim.” 29Então, literatura, seguindo o exemplo do termo “mato”, seria um tipo de escrita considerada valorosa dentro de uma determinada sociedade, devido a razões específicas, as quais variam de camada social para camada social. Mesmo assim, tal definição ainda não é suficiente para cumprir meu objetivo nesse tópico, embora ela dê argumentos para um debate sobre o conceito de literatura. Obras que possuem valor para uma sociedade, poderão perdê-la em outras. O que antes a sociedade vira como literatura vulgar pode tornar-se alta literatura. A linguagem coloquial de uma época poderá parecer rebuscada para outra sociedade em outro tempo. Em suma: determinar o que é ou não literatura é algo que carrega um juízo de valor. Um exemplo disto é o enquadramento da literatura nas chamadas belas-artes30 em fins do século XVIII: tal classificação permite observar que, escolher qual maneira de escrever é considerada bela, depende do que a sociedade considera digna de ser valorizada. De acordo com Terry Eagleton, esta perspectiva ajuda a entender por que determinadas obras ganham importância devido à escrita e outras

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EAGLETON, op. cit, p.13. EAGLETON, ibidem, p. 14-15 29 Apud EAGLETON, ibidem, p. 14 30 A título de curiosidade, as seis belas-artes são: arquitetura, escultura, literatura, música, pintura e teatro (incluindo nesta última, a dança). 28

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não31. Não necessariamente a escrita precisa ser bela para ser valorizada – Bakhtin discute sobre o grotesco na obra de François Rabelais - mas provavelmente possui algo que chame atenção do leitor32. Na verdade, as observações do parágrafo anterior nos levam a concluir que o conceito de literatura e a qualificação de obras como literárias são altamente mutáveis. Há uma grande variedade no que pode e não pode ser considerado literatura; ao mesmo tempo, ela pode ser ficcional ou não. Para encerrar esta discussão, afirmo aqui a não existência da literatura enquanto categoria imutável, com obras plenamente definidas. Afirmar a existência da literatura enquanto tal é uma falácia. Ainda, durante este capítulo, voltarei à discussão sobre literatura e juízo de valor. Por enquanto, levantarei outras questões ligadas à literatura. Compreender que o conceito de literatura é mutável ao longo do tempo nos leva a historicizá-lo. Esta operação é fundamental para compreendermos o conceito contemporâneo de literatura e descobrir, mais à frente, o que concebo como literatura medieval. A palavra literatura possui raízes no latim, oriunda do termo littera, que significa “letra do alfabeto”. Então, litteratura se concatenaria com caracteres escritos ou impressos 33. O início do Renascimento, em fins do século XIV, acaba ampliando o conceito; literatura guarda fortes relações com o termo literato, o qual designa a capacidade de ler e escrever. De acordo com Raymond Williams, o sentido é próximo ao do sentido moderno de literacy (alfabetizado), que só apareceu no inglês durante o século XIX. Para que essa mudança ocorresse, houve uma mudança semântica no uso do termo literature34. Os motivos para que a mudança acontecesse explicarei mais a frente, pois possuem relação com a construção do significado contemporâneo de literatura. Além disso, de acordo com Fortini, ser literato e “produzir” literatura indicava uma posição social e de classe elevada, principalmente entre os séculos XVII e XIX; o autor, citando Antonio Gramsci, aponta este grupo social como os intelectuais orgânicos da Idade Moderna, “herdando” tal característica dos clérigos medievais 35. Aliás, eu defendo que Giovanni Boccaccio se encaixa também na categoria de intelectual orgânico 36.

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EAGLETON, op.cit, p. 15-16. Cf. BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo: Huicitec; Brasília: EdUnb, 1999. 33 FORTINI, Franco. Literatura. In: Enciclopédia Einaudi.Literatura – Texto, Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989. v.17. 34 WILLIAMS, op. cit, p. 52. 35 FORTINI, op.cit, p.52. 36 Tal posição será defendida no Capítulo 3. 32

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Durante a Idade Moderna, literatura nada mais é do que a especialização da retórica e da gramática medievais. Nesse caso, o ato de ler é mais específico e passa a existir uma relação, após o aparecimento da imprensa, mais forte entre a leitura, a palavra impressa e o objeto livro. Poesia, em relação ao desenvolvimento da literatura (literature, de acordo com Williams), torna-se mais especializada como composição métrica, escrita e impressa, principalmente a partir do século XVII 37. Contudo, segundo Williams, “...literature não foi nunca principalmente a composição ativa – a feitura – que poetry descrevia. Mais como leitura do que como escrita, era uma categoria de um tipo diferente”. (WILLIAMS,1979, p. 52). Literature, na época de Roger Bacon (século XIII) era uma espécie de aptidão para o uso da leitura e da escrita. Há, no entanto, um corte classista no uso desta prática, pois somente pessoas oriundas das classes dirigentes – durante a Idade Média, clero e nobreza – possuíam acesso ao letramento. Um pequeno aparte antes de prosseguir com a argumentação: ter tal fato como premissa para o entendimento da “produção literária” na Idade Média; além disso, os temas das histórias “refletiam” os ideais das classes dirigentes. Durante a Idade Moderna, a definição de literatura sofre mudanças, devido aos contatos com os novos conceitos de nação e com o que se definia como vernáculo – é durante este período que temos um maior desenvolvimento das línguas modernas, sejam as neolatinas ou as germânicas. Assim, até meados do século XVIII, literatura era algo como leitura das línguas clássicas. Porém, até o período citado, o conceito de literatura ainda denotava u, estágio avançado de realização educacional, possível apenas para poucas pessoas. Quanto ao que chamamos de “cânone literário”, Franco Fortini apresenta qual tipo de obra recebia a qualificação de literatura. Segue abaixo o trecho selecionado:

Como conjunto de conhecimentos específicos, a literatura compreendia acima de tudo os textos dos autores gregos e latinos e (não sem discussões que duraram da idade humanista, até ao século XVIII) cânones específicos de autores e de obras escritas nas línguas modernas. No século XVIII era ainda possível excluir da “literatura”, as obras teatrais dos dois séculos precedentes e o romance e, em geral, aquilo que hoje se chama “literatura de entretenimento”. Para passar à ideia dominante de literatura no século passado (e, no nosso, pelo menos até cerca da metade), foi preciso o desenvolvimento hegemônico da burguesia e dos seus intelectuais. Ainda nos últimos decênios do século XVIII, o conjunto das obras escritas consideradas no seu aspecto estético, ou seja, de valor – beleza, eram preferencialmente chamadas “poesia” ou obras de eloquência. Mas a revolução burguesa acabará por promover a literatura todos os gêneros de prosa nascidos do jornalismo e do teatro. (FORTINI, 1989, p. 178)

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WILLIAMS, op. cit, p. 52.

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Ora, se houve mudança no que qualificamos como obra literária, a partir do século XIX, houve também mudança no que entendemos por literatura. É um pouco complicado determinar qual obra marca o início exato do processo. O fetichismo com as origens não cabe aqui. Por outro lado, pode-se datar o início do processo e o comentário de Fortini sobre o cânone literário nos fornece uma pista. As revoluções burguesas entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX não transformaram somente as estruturas políticas e econômicas das sociedades na Europa Ocidental – o leste europeu ainda esperaria mais um século por transformações efetivas – mas também a maneira de pensar das pessoas; nesse caso, a transformação foi mais ampla, geograficamente falando. Uma das premissas do conceito de literatura, cuja discussão eu proponho neste capítulo, é que ela é produto das mentes humanas, considerando o contexto ao redor dela. Um escritor do tempo de Voltaire não escreve da mesma maneira que um escritor do tempo de Napoleão III; a única coisa que os une é o ato de escrever. E é a relação entre esse ato de escrever e o resultado final dele que será teorizado e visto como atividade social de maneira diferente em relação aos séculos anteriores. A partir de 1848, literatura nada mais é do que o campo das letras que consegue autonomia e especialização, diferenciando-se da história, da filosofia e do ensaio. O texto literário nada mais seria do que o resultado final da criatividade de um indivíduo escritor. Antes da primeira metade do século XIX, o ponto final no processo de ascensão da burguesia como classe dominante, existia uma relação de dependência entre o produtor da arte e aquele que a consumia. A revolução libertou não somente os camponeses; ela acabou livrando o artista do jugo do mecenato aristocrático da corte. Tempos novos exigiam formas novas de relação entre arte e sociedade. O conceito de arte desinteressada, elevada ao campo do belo e do sublime e com preocupações apenas estéticas passa a ser possível somente depois de 1848, marco final do processo de subida da burguesia ao poder econômico e político 38 . A revolução industrial acabou gerando um crescimento nos meios de comunicação, tornando possível um aumento no número de leitores. A popularização da alfabetização acabou também aumentando o percentual de pessoas letradas durante o século XIX. Portanto, só podemos efetivamente falar em um princípio de massificação do público leitor somente após 1848. A ascensão de burguesia alterou os modos de fruição da arte. Antes existia o que podemos chamar de um padrão de gosto da aristocracia. O fim do Antigo Regime acaba por 38

Cf. HOBSBAWM, op cit; MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

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diluir os padrões tradicionais do gosto. Assim, dizer se um livro é bom ou não passou a ser uma simples questão de escolha. Porém devemos tomar cuidado, pois, uma simples questão de escolha, possui, por trás dela, toda uma definição do que é válido esteticamente na arte. Não conseguir perceber que, até quando julgamos a validade de uma obra de arte, existe uma ideologia por trás, é ignorar o papel da burguesia na construção dos novos padrões de gosto da sociedade39. Identificar que a maneira como se julga uma obra literária, ou mostrar que o autor não é ser autônomo descolado, significa apontar que existe sim uma ideologia por trás da criação artística. Sei que os marxistas já correram muita tinta sobre a definição de ideologia; além disso, não irei colocá-las uma por uma neste capítulo. Nesse caso, usarei a definição apresentada por Terry Eagleton no final da abertura de Teoria da Literatura: uma introdução. É breve, mas serve para meu propósito aqui:

A estrutura de valores, em grande parte oculta, que informa e enfatiza nossas afirmações fatuais, é parte do que entendemos por “ideologia”. Por ideologia, quero dizer, aproximadamente, a maneira pela qual aquilo que dizemos e no que acreditamos se relaciona com a estrutura de poder e coma s relações de poder da sociedade em que vivemos, (EAGLETON, 2006, p.22)

Dito isto, digo que é tarefa do historiador que analisa a literatura identificar e compreender as relações entre autor, obra e sociedade. É o entendimento delas que ajuda a perceber a materialidade da ideologia do autor e transformar aquilo que é objeto de fruição em objeto de estudo. Portanto, as discussões sobre a relação entre literatura e história serão discutidas na próxima seção.

1.2 – Literatura como fonte histórica

Discutimos o conceito de literatura e, basicamente, ela é produção humana. Enquanto produção humana é possível de ser historicizada e estudada. O objetivo desta parte é entender de que maneira a literatura pode funcionar como fonte de estudos para a história.

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Sobre gosto e ideologia burguesa: cf. FACINA, Adriana. Literatura & Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Editor, Coleção Passo-a-Passo, nº48, 2004. No final do livro a autora indica obras que discutem a relação entre arte e sociedade

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Antes de tudo, afirmo aqui que as obras são filhas de seu tempo. Marx, na introdução aos Grundrisse, deixa explícita essa condição, além de ressaltar o fascínio que provocam em sociedades que distam da que produziu a obra, cronologicamente40. Não dá para conceber Antígona, de Sófoles, sem entender o problema da cidadania na Grécia Antiga. O Livro da Selva e Kim seriam meras histórias de aventuras se não soubéssemos que Rudyard Kiplling viveu na Índia ocupada pelo Império Britânico; seus livros estão repletos da utensilhagem mental dos britânicos em relação às colônias na Ásia. É impossível desconectar o Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band do contexto histórico de fins da década de 1960; não sei se seria o mesmo álbum se George Harrison desistisse da cítara e das viagens à Índia e se o dentista não tivesse aditivado o café dele e de John Lennon, após um simpático jantar 41. Não consigo pensar o Decamerão sem Florença, os mercadores e a “crise do século XIV”. Porém, há aqueles que conseguem entender a obra como algo isolado do tempo e do contexto de sua produção. E há aqueles que são cruelmente, teoricamente falando, mais sutis; entendem a obra, entendem o contexto, entendem o artista, mas afirmam que é impossível recuperar a totalidade do pensamento do autor durante a análise da obra literária. O resultado final do processo é algo que eu qualificaria como um embuste intelectual: descreve-se, mas não se interpreta a fonte. Afirmo que não adoto e não adotarei tal perspectiva durante a análise das novelas escolhidas no Capítulo 3. Durante o debate que gerou o artigo “Literatura e História”, de Roger Chartier, João A. Hansen, o mediador, a partir de seu conhecimento prévio das teses propostas pelo historiador francês, pergunta: “literatura é documento do quê?”42. Eu respondo: “depende do seu problema, Hansen”. A pergunta parece um tanto ingênua, mas guarda algo um pouco perigoso; nada mais, nada menos que a deslegitimação da análise crítica na ciência histórica, incluindo aqui a crítica marxista. A defesa da teoria a qual me filio é necessária, visto que a prática da “hermenêutica formalista” ainda não saiu de moda na academia. Então, a partir do

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MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboço da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 62-64. 41 Tomei contato com duas biografias sobre a história dos quatro moços de Liverpool e ambas contam o caso do dentista que dá LSD, pela primeira vez, a John Lennon, George Harrison e suas respectivas esposas. No livro The Beatles: Antologia, capítulo “A Viagem Dental”, o acontecimento é contado em detalhes pelos dois. Cf. SPITZ, Bob. The Beatles – A biografia. São Paulo: Larousse, 2006. A referência ao álbum Sgt. Peppersparece deslocada no meio das citações aos livros, porém considero um dos melhores exemplos para algo que Walter Benjamin discute em um de seus artigos: a relação entre as forças produtivas e relações de produção no campo da arte. Para Benjamim, a arte como qualquer outra forma de produção, depende de certas técnicas produtivas. Cf. BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. – (Obras Escolhidas v. 1), p. 120-136. 42 CHARTIER, op.cit, p. 208.

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questionamento proposto pelo senhor Hansen, é hora de rebater mais uma vez o senhor Chartier. Chartier, quando fez o debate sobre a relação entre literatura e história, procurava entender o que é a “função-autor”. Em outras palavras, Chartier busca fazer análise do discurso, interpretando somente sua produção e recepção. Além disso, ele presume que exista uma distância entre a pessoa física do autor e a quem o discurso está atribuído 43. De certa maneira, ele dialoga com Roland Barthes no artigo “A morte do autor”. Barthes, nesse artigo, entende que o autor, enquanto pessoa física e que possui uma vivência, morre e se transforma no scriptor, uma entidade que guarda nenhuma relação com a pessoa física do autor44. Isso nos ajuda a entender a pergunta feita por João Hansen, durante os comentários sobre o debate; caso o historiador “mate” a pessoa física do autor durante a análise documental, literatura vira fonte do quê? É aí o meu principal ponto de discordância com Chartier – como se não houvesse outros – quando ele discute o uso da literatura como fonte histórica. “Matar” o autor significaria jogar para escanteio tudo o que poderia ajudar ao historiador entender os aspectos importantes para interpretar e analisar a obra literária como fonte histórica Tento imaginar algum trabalho sobre a Florença do século XIII que resolva assassinar o “Dante pessoa física”; seria possível entender e interpretar as passagens do Inferno e do Purgatório nas quais ele reflete sobre as disputas políticas em Florença. Usei Chartier como contraponto a algo que defenderei aqui: a impossibilidade de separar o “autor-escritor” da “pessoa-autor”. Qualquer tipo de análise histórica que apenas enfoque a produção e a recepção do discurso, sem considerar o contexto de sua produção, perde algo de “história” para virar “crítica literária” – espero não chegar ao nível da crítica literária no Capitulo 3. Por outro lado, devemos ter em mente que boa parte do que entendemos atualmente como literatura se encaixa na categoria de “ficção”; ou seja, o autor cria uma história para discutir ou debater algum assunto ou inquietação. Porém, não significa que ele seja incapaz de perceber, entender ou até escrever dispensando os recursos estéticos sobre o seu próprio tempo. Graciliano Ramos é um exemplo: o mesmo autor que coloca para fora o que há de mais mesquinho no ser humano em “São Bernardo” será o mesmo autor que escreverá sobre sua própria perseguição política e posterior prisão em “Memórias do

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CHARTIER, ibidem, p. 199. Cf BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 57-64.

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Cárcere” 45 . O Zola de “Germinal” é o mesmo de “Eu Acuso!”. O Dante Alighieri que escreveu a “Divina Comédia” também escreveu “Da Monarquia”. Somente obras de não ficção são capazes de servir como fonte histórica? Como fazer a passagem da “literatura ficção” para a “literatura fonte histórica”? Nesse caso, eu digo: a escolha dependerá exatamente do problema que o historiador procurará responder. Marc Bloch diz que o que os historiadores fazem nada mais é do que responder as perguntas do tempo em que vivem46. Raymond Williams trabalha com a ideia de mediação para entender a relação entre aquilo que o autor escreve e a obra em si 47. Autores não são pessoas acima do mundo onde vivem, portanto toda obra literária trará as questões de seu tempo. É a partir desta premissa que podemos entender a possibilidade da obra literária como fonte histórica. Porém, como qualquer outra fonte histórica, ela requer cuidados no momento da análise. Primeiro de tudo, conhecer a época que o autor escreve é fundamental, até mesmo para descobrir o significado de determinadas expressões que aparecem no texto. Segundo, conhecer o próprio autor ajuda a entender a obra, mas não a explica completamente. Mais uma vez, reitero aqui o uso do conceito de mediação Terceiro, não se deve forçar a fonte falar o que ela não diz, ou seja, todas as tentativas de interpretação e análise devem considerar o contexto de produção da obra e, em menor grau, a experiência do autor. Por outro lado Jean Starobinski nos recomenta o uso da intertextualidade no momento da análise; fazer comparações entre a fonte e outros textos48. A finalidade é que o historiador tenha o melhor entendimento possível da fonte e do problema que foi proposto a ele. Portanto, é possível tornar a literatura fonte histórica e objeto de análise para o historiador. Mas seria possível falar em “literatura medieval”? Essa é a pergunta que procurarei responder no próximo tópico.

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Sobre Graciliano Ramos e a passagem da ficção para a não ficção, ver o prefácio escrito por Antônio Cândido para a 17ª edição de São Bernardo. Cf. CÂNDIDO, Antônio, Ficção e Confissão. In: RAMOS, Graciliano. São Bernardo. São Paulo: Martins, 1972, p. 9-58. 46 BLOCH, op.cit, passim. 47 Cf. FACINA, Adriana. Literatura & Sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Editor, Coleção Passo-a-Passo, nº48, 2004, p 23-25. 48 Cf. STAROBINSKI, Jean. A literatura: o texto e o seu intérprete. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: Novas Abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editor, 1976. v.2.

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1.3 – Podemos falar em literatura medieval?

No início deste capítulo, defini o que é literatura. Foi árduo o percurso até chegar ao conceito moderno. O que faremos agora é tentar entender o que é exatamente a literatura medieval. Para isso, algum tipo de ruptura com o conceito proposto anteriormente é necessária. Primeira delas é quebrar a velha parceria entre livro e literatura. De certa maneira, tentamos quebrar esta metonímia no início do capítulo; porém aqui ela se faz necessária. Guttemberg só inventaria a prensa no final do século XV, o que causou uma verdadeira revolução no ato de ler. Além disso, após a prensa de Guttemberg, a ampliação do acesso a material escrito cresce de maneira exponencial, com verdadeira explosão após o século XVIII. Mas e antes da prensa de Guttemberg, como se dava a relação entre leitura, escrita e literatura? Como será possível uma “literatura” sem “livros” da maneira que os conhecemos? A segunda coisa que devemos ter em mente para conceituar a “literatura medieval” é saber quem lê e quem não lê durante toda a Idade Média. A escrita e a leitura são monopólio da Igreja durante boa parte do Medievo. Há uma explicação histórica para isso e ela se relaciona com as tentativas de se manter uma “cultura latina”. A possibilidade que os membros da antiga aristocracia da Antiguidade Tardia era entrar para a vida religiosa, escapar do mundo. Ou seja, só a Igreja era capaz de garantir vida intelectual para determinados setores da sociedade. A partir do século XI, começa um processo de laicização da escrita e da leitura. Porém, esta expansão continua nos círculos aristocráticos: da aristocracia clerical para a aristocracia laica. E permanecerá desta maneira até que se encontrem meios menos trabalhosos para a produção dos códex. Só no final da Idade Média, o pergaminho será substituído pelo papel49. Ambas as explicações ajudam a entender os motivos de uma “literatura sem livro”. Acrescento também que limitação da leitura e da escrita aos círculos das classes dominantes, me permite concluir que a oralidade era algo importante na transmissão de informações, inclusive no ato de contar histórias. A literatura se constrói justamente na relação entre o oral e o escrito. Além disso, a temática e a ideologia por trás da “literatura” medieval carregarão muito da forma de pensar da aristocracia. Antes de fazer mais algumas observações sobre o conceito de literatura na Idade Média, convém explicar os motivos porque o termo aparecerá entre aspas algumas vezes no 49

Cf. BASCHET, Jeróme. A civilização feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.

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decorrer deste texto. Um dos autores que estudou e procurou entender o conceito de literatura para a Idade Média foi Paul Zumthor na obra A letra e a voz. O termo é grafado entre aspas devido à relação que os modernos fazem entre literatura e escrita. Zumthor no decorrer da obra, procurará explicar o papel da oralidade na arte de narrar histórias. Para isso, ele elabora o conceito de performance: é a voz que dará o tom da maneira que se deve contar uma história. Não só a voz, mas todo o corpo participa do ato de narra. O que nos permite concluir algo importante: o teatro surge da impossibilidade de alguns em ler um texto – interpretá-lo era uma maneira de espalhar a mensagem. Até o século XIV, a escrita é o que confirma o que foi dito pela voz. Todos os termos que fazem referência a literatura se relacionam mais com uma aptidão do que com uma atividade. O literato é aquele que sabe escrever, não o que é capaz d produzir literatura. Ao mesmo tempo, a Idade Média não conhece uma palavra para definir a obra literária. Por outro lado existem termos para definir os gêneros literários. Assim, considero que exista uma “literatura” medieval, porém, seus objetivos e a maneira que é feita é completamente diferente do que passamos a entender como literatura a partir do século XIX50. Boccaccio produz o Decamerão no início do século XIV. Ao mesmo tempo em que ela se constrói como obra escrita, a oralidade está presente nela – as novelas são narradas, Um detalhe importante a acrescentar na caracterização da obra é a estrutura de narração. Considero, tal como Ana Carolina Lima no artigo sobre a mulher e o riso em Decamerão, a existência de dois tipos de narração dentro da obra. 51 O primeiro tipo é o próprio autor, responsável por contar a história. O segundo tipo é composto pelos membros da brigata, responsáveis por narrar a novela para o grupo. Dentro destes tipos de narração, podemos caracterizar a presença de dois planos de narração que dialogam entre si: o plano oral e o plano escrito. O plano oral de narração seria composto pelo ato de contar a história ao grupo. Esse ato exige algumas técnicas para que se possa entender o sentido da mensagem; é o que Paul Zumthor, em A letra e a voz, caracteriza como performance.52 O plano escrito, composto pelo conjunto das novelas e comentários feitos por Boccaccio é o que, de certa maneira, confirma a história contada. Assim, este diálogo entre os dois planos mostra o quanto de oralidade ainda é presente na obra e que o texto escrito torna concreto o que a voz contou. 50

Cf. ZINK, Michel. Literatura. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (coord.) Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. v.2. 51 ALMEIDA, Ana Carolina Lima. O feminino e o riso no Decamerão. Ciências Humanas e Sociologia em Revista. Seropédica, RJ, EDUR, Vol. 31, nº 2, jul-dez, p. 5-50, 2009. 52 ZUMTHOR. Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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Entender o Decamerão como obra produzida durante o Medievo é importante para a interpretação e a análise do problema proposto. Porem, que Idade Média é essa sobre a qual Boccaccio escreve? Saber um pouco mais sobre o século XIV é o próximo objetivo dessa pesquisa.

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CAPÍTULO 2: BOCCACCIO E SEU TEMPO

2.1 – O século XIV de Boccaccio

Feitas as considerações teóricas iniciais, seria o momento de fazer a análise da fonte. Porém, eu rasgaria em pedacinhos e negaria o que afirmei durante todo o capítulo 1: a importância de conhecermos o contexto de produção da obra. Nesse caso, passa por explicar o que foi a famigerada crise do século XIV, explicar o contexto histórico da Península Itálica e entender o que era exatamente a Igreja Católica Apostólica Romana. Somente assim, somada à análise do Decamerão, será possível responder às questões propostas na introdução deste ensaio monográfico. Sem mais procrastinações, vamos realmente ao que interessa. Qualquer bom manual sobre história medieval costuma qualificar os séculos XIV e XV como aqueles caracterizados pela crise do sistema feudal, Além disso, há o costume de retratá-lo como um período de caos total no Ocidente medieval europeu. Johan Huzinga chama esta época de Outono da Idade Média, Philippe Wolff aponta em Outono da Idade Média ou Primavera dos Novos Tempos que do caos nascem as estruturas políticas, econômicas e sociais do período que a historiografia convencionou chamar de Idade Moderna. O interessante é, por mais díspares que possam parecer, os contextos de caos e renascimento se completam. É complicado desconectar o comércio do Mediterrâneo da eclosão da peste negra; o monopólio comercial das cidades italianas da procura de outra rota para o Oriente; o crescimento populacional das crises de fome... A imagem do século XIV não é nada bela: fomes, guerras e epidemias. Por outro lado, o final da Idade Média é uma pequena demonstração de que podem nascer flores do lodo. Guerra, peste e fome: a “santíssima trindade” do caos na historiografia clássica sobre o século XIV. Francesa, é óbvio, pois foi a região onde a “santíssima trindade” atuou com garbo e elegância – Guerra dos Cem Anos, epidemias, crises de fome, revoltas camponesas e a cereja do bolo: a sede do poder papal transferida para Avignon, no sul da atual França. Contudo, para este capítulo farei um apanhado geral do contexto europeu ocidental, com a finalidade de mostrar que ele não é tão feio quando Huzinga o pinta. Outra coisa que devemos atentar é o papel das cidades durante o século XIV, principalmente na Península Itálica; as análises mais tradicionais sobre o século XIV costumam ignorá-las.

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Mas, para o recorte adotado, existe outro senão. Se quiséssemos, poderíamos dividir o século XIV em “antes de 1348” e “depois de 1348”. Ora, o citado ano nada mais é do que a data da primeira grande epidemia de peste desde o século IX: segundo alguns autores, mudanças climáticas acabaram por erradicar o agente patogênico causador da peste do continente europeu. Boccaccio presencia a força da epidemia, tanto que a registra na abertura da Primeira Jornada de Decamerão53. Um pequeno aparte aqui. Boccaccio, na introdução a Primeira Jornada, destaca com precisão jornalística, guardada as devidas proporções, o que foi a epidemia de peste em Florença e também no restante da Europa. A precisão do relato, acredito eu, mostra o quão traumático foi o evento para aquela sociedade. Isto porque o contexto social, político e econômico de Florença era completamente diferente do que no restante do ocidente europeu. Defendo aqui um ponto importante, a partir dos relatos apresentados pelo autor: o quanto experiências chocantes acabam influenciando as mentalidades coletivas. Um exemplo moderno é o 11 de setembro de 2001. Quem presenciou lembra exatamente do que fazia na hora que o primeiro avião se chocou contra a Torre Norte do World Trade Center. Voltando a Idade Média: é justamente essa ideia do “evento traumático” que me faz dividir o século XIV entre antes e depois de 1348. De acordo com Jerôme Baschet, é complicado identificar exatamente identificar onde exatamente começa a chamada “crise da Idade Média”. Para ele, ela relaciona-se com um recuo, seja econômico, seja social dos anos de glória da sociedade feudal. Um dos marcos são as primeiras crises de fome, datadas do período entre 1315 e 1317, tornando-se mais comuns no decorrer do século XIV. Para esta monografia, não nos interessam os anos de crise efetiva, pois Boccaccio escreveu o Decamerão entre 1348 e 1353. Comentei sobre a peste e a fome. Faltou a guerra. Florença foi afetada por ela, indiretamente – os Bardi, principais mercadores da cidade, acabaram falindo, graças as dívidas não pagas contraídas por Eduardo III, rei da Inglaterra, com a finalidade de custear os gastos com o conflito. Refiro-me a chamada Guerra dos Cem Anos, conflito dinástico que envolveu os reinos de Inglaterra e França. Ela foi um marco nas guerras medievais, pois significou mudanças importantes no modo de fazer a guerra. Desde a perda da exclusividade militar pelos aristocratas, passando pelas mudanças na tecnologia bélica (como não se lembrar do arco longo de teixo e das bestas de repetição?), até as consequências mais imediatas para a população francesa, vale lembrar que os ingleses atacaram as posições francesas a partir de seus domínios na Europa Continental e que foi um conflito que afetou seriamente a chamada 53

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 11-20

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população civil. Por isso mesmo a percepção do “mundo que se desmorona” é mais visível na mentalidade francesa: eles viram a guerra de perto. Além disso, a primeira metade do século XIV também significou o início do processo de uma melhor organização da atividade comercial; é em meados desse século que a letra de câmbio passa a ser usada. Ao mesmo tempo, marca uma resignificação do papel social dos mercadores, o que de certa maneira aparece na fonte estudada. Também é o século que o papel, invenção chinesa, é mais “popularizado”, o que mais tarde, seria fundamental na criação das primeiras prensas de tipos móveis. Um leitor mais desavisado estenderia a crise para todos os lugares da Europa Ocidental. Todavia, convém lembrar ao nosso leitor desavisado que o contexto político, econômico e social das cidades italianas é completamente diferente. Principalmente, devido à importância das cidades: ao contrário do restante do Ocidente, elas não perderam importância após o fim do Império Romano, ou seja, o processo de ruralização característico da Primeira Idade Média. Digamos que as cidades italianas são as nossas flores que nascem do lodo.

2.2 – Florença e Península Itálica no tempo de Boccaccio

Primeiramente, a Península Itálica durante o século XIV era um conjunto de pequenos reinos, possessões eclesiásticas e cidades. O fator mais importante para entender o Trecento é a emergência da comuna. O período no qual Boccaccio escreve sua obra é caracterizado pelas disputas dentro da cidade de Florença e pelo início do poderio da nascente burguesia mercantil. No entanto, esta burguesia não é algo “surgido do nada”, mas uma parcela da aristocracia que adotou a vida nas cidades e usou o comércio como forma de obter rendas. 54 De certa maneira, o início do século XIV na Península Itálica é um período de transição entre duas épocas: ainda persistem as disputas entre Papado e Sacro Império, ao mesmo tempo em que a aristocracia e a burguesia das comunas começam a ganhar força dentro da Itália. Além disso, só em meados do século XIV que o Reino de Nápoles começará a enfrentar problemas sucessórios que resultarão na guerra contra o Reino de Aragão. Além disso, apesar da presença dos trabalhadores das corporações de ofício, ainda não é época das principais revoltas nas quais eles participaram: seria necessária uma ruptura radical para que tivéssemos os acontecimentos que os historiadores usam para caracterizar as crises dos séculos XIV e 54

Cf. GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval. (séculos XII-XIV). Campinas: Editora Unicamp, 2011. TENENTI, Alberto. Florença na época dos Médici. São Paulo: Perspectiva, 1973.

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XV. Por enquanto, o início do século XIV para a Itália é o período de emergência da comuna e do princípio da crise papal que ocorreria no final do século. Vamos a comuna primeiro. Surgidas entre os séculos XII e XIII, foram uma espécie de grito de alforria das cidades medievais em relação ao poderio dos reis; a cidade precisava da confirmação dos senhorios para existir plenamente. Algumas das disputas entre Papado e Império na Península Itálica, através da disputa entre os partidos guelfo e gibelino se relacionam com o nascimento das comunas – o Papado tendeu a ficar ao lado das comunas que surgiam. No centro-norte da Península Itálica, o espaço das classes dominantes é a cidade. Uma das características mais importantes sobre a comuna é que elas possuem sua própria forma de governo e seu próprio conjunto de leis. O que será diferente entre elas é a forma de gestão interna, Ou seja, a experiência republicana é exclusiva de Florença; Genova, Veneza, Milão possuíam outras formas de governo. No caso florentino, que é o que me interessa, o grande conselho da cidade era formado por sete pessoas. Seis delas eram os priori – escolhidos entre os membros das guildas para representaram os bairros da cidade. O sétimo elemento era o “Porta Estandarte da Justiça”. O tempo de ocupação dos cargos era de apena dois meses, sendo que os priori não podiam legislar. Há também dois cargos ligados a administração mais geral da comuna: o podestá e o capitão do povo. O primeiro era responsável pela execução da justiça, enquanto o segundo era alguém de fora da cidade responsável por defender os interesses do popolo. Além disso, qualquer lei, antes de entrar em vigor, deveria passar por diversos conselhos, dos quais faziam parte um grande número de cidadãos 55 . Havia tentativas para impedir maior presença dos magnati, os chefes das principais famílias de participar da administração da comuna, porém não significa que eles estivessem totalmente afastados da vida política florentina. O impedimento efetivo dos magnati ao acesso dos cargos políticos ocorre em 1293, com a entra da em vigor dos Ordinamenti di giustizia56. Por outro lado, a formação da comuna e sua administração excluiu a maior parte da população florentina, o popolo minore, que não gozava de direitos políticos. De acordo com Alberto Tenenti, o povo de Florença era mais um conjunto político de profissões poderosas do que a totalidade dos habitantes que moravam na cidade e podiam colaborar com ela. Tanto o conceito de povo, quanto a organização política da cidade de Florença nos ajuda a entender o poder político e econômico possuído pelos mercadores. A Itália não é só o centro-norte, território das comunas. Não devemos esquecer que o papado possuía forte influência na política da península e que, no sul, temos o Reino de 55 56

HOLMES, George. Medieval: Hierarquia e Revolta (1320-1450). Lisboa: Presença, 1975, p. 71. Cf. TENENTI, op. cit, p.24; GILLI, op. cit, p.88-89.

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Nápoles, com quem os mercadores florentinos possuíam vários negócios. Não temos mais, durante o século XIV, especialmente no caso de Florença, as disputas sangrentas entre guelfos (apoiadores do Papado) e gibelinos (defensores do Império). Disputas essas que deram o tom da política na Península Itálica durante os séculos XII e XIII e são fundamentais na formação das comunas. Basta lembrar que Dante Alighieri é exilado de Florença devido a estas disputas políticas 57. Contudo, não significa que o Sacro Império simplesmente desistiu das cidades italianas; ainda há, durante a primeira metade do século XIV, conflitos entre guelfos e gibelinos na Lombardia. Luís da Baviera, entre as décadas de 1320 e 1330 possui pretensões imperiais na Itália, mas é rechaçado por forças comandadas por Roberto de Nápoles. Aliás, durante a primeira metade do século XIV, o Reino de Nápoles possui influência determinante na vida política e econômica italiana. Tanto que as principais companhias de comércio florentinas, antes da crise e da falência delas na década de 1340, possuíam negócios em Nápoles. Os Bardi e os Peruzzi forneciam vultuosos recursos financeiros até mesmo para montar os exércitos napolitanos. O próprio Boccaccio, quando era um aprendiz nas artes comerciais, chegou a morar em Nápoles e frequentou os círculos aristocráticos do reino. Por outro lado, o período que Boccaccio escreve Decamerão marca o início do enfraquecimento das comunas menores e ascensão das grandes: Florença, Gênova e Veneza. No caso de Florença, os domínios, em 1351, chegam até as regiões além do Prato e de Pistóia. Só no final do século XIV, a partir da conquista de Arezzo em 1384, é que teremos um crescimento territorial efetivo da comuna florentina. Mesmo para a economia florentina e das cidades italianas, os anos entre 1340 e 1350 são anos de transição. Ainda não temos o poderio do Medici e os antigos senhores do comércio na Península Itálica, os Bardi e os Peruzzi passam por crises que levariam suas companhias à bancarrota. Porém isso não significa que o comércio italiano com o restante da Europa e o Mar Mediterrâneo simplesmente deixou de existir. Saber minimamente como funcionava o comércio das cidades italianas com o Mediterrâneo e o restante da Europa ajuda a entender a maneira que Boccaccio retrata o ambiente dos mercadores no Decamerão. Uma das principais características do século XII é a retomada do comércio de longa distância na Europa Ocidental. Isso passa a ser possível com a retomada europeia do Mediterrâneo Ocidental, o que tornaria possível o surgimento de cidades puramente comerciais como Gênova e Veneza, responsáveis pelo comércio entre as partes ocidental e

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Dante mostra a leitura dessas disputas políticas entre Papado e Império em muitos dos cantos do Inferno e do Purgatório na Divina Comédia.

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oriental do Mar Mediterrâneo 58. Há, até o século XIV, um desenvolvimento das atividades mercantis e manufatureiras – é a produção e comércio de lã que fará a riqueza de Florença. No século XIV, já contamos com as companhias de comércio florentinas já consolidadas. George Holmes compara as relações das companhias de comércio das cidades italianas com a maneira como as nações imperialistas lidam com o comércio exterior em regiões menos desenvolvidas do globo59. São as companhias comerciais italianas que pagam as contas de alguns dos principais reinos da Europa Ocidental: é sabido o calote que os Peruzzi e os Bardi levam de Eduardo III, durante a fase inicial da Guerra dos Cem Anos, que, mais tarde, levariam ambas as respectivas companhias a uma crise e posterior falência. Vale lembra que a lã era comprada na Inglaterra e manufaturada em Florença – o próprio Boccaccio faz menção ao trabalho feminino na fiação e na cardação da lã para tecidos 60 . Segundo Holmes, as companhias dos Bardi e dos Peruzzi, além de comprar lã para ser manufaturada, cuidavam dos direitos alfandegários ingleses e de transferências financeiras para a corte papal 61 . Florença possuía diversas oficinas que controlavam tanto a manufatura de lã, quanto a “indústria” de acabamento de tecidos para revenda. A cidade possuía uma grande quantidade de pessoas empregadas nas oficinas têxteis, o que ajuda a entender a Revolta dos Ciompi de 1378 62 . Diversos bairros de Florença eram responsáveis por uma determinada etapa na produção de tecidos; um bairro era responsável pela cardação, outro pela tintura dos tecidos, outro pela fiação, etc. Mas a manufatura têxtil não era a única atividade comercial de Florença, podemos dizer que o comércio feito pelas companhias dos clãs familiares fomentaram a expansão do comércio feito pelas cidades italianas para o restante da Europa. Em praticamente todas as cidades da região do Mediterrâneo e do oeste da Europa existiam filiais da s companhias de comércio italianas. Boccaccio, mais uma vez, mostra a existência dessas companhias em suas novelas; os irmãos que abrigam Ciappelleto em Paris na primeira novela de Primeira Jornada e o jovem Alexandre, que foge da Inglaterra para Florença, são exemplos desse universo dos mercadores italianos63. Os mercadores italianos comerciavam com todo o Mediterrâneo; do Mar Negro a costa norte da África. Gênova e Veneza possuíam marinha mercante, enquanto Florença apostou nas grandes companhias comerciais, as quais

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BASCHET, Jeróme. A civilização feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 144. 59 HOLMES, op. cit, p.59-60. 60 BOCCACCIO, op. cit , p. 243 e p. 352. 61 HOLMES, op.cit, p. 61. 62 Ciompi eram os responsáveis por cardar a lã, etapa importante, pois a prepara antes para a fiação. Sobre a revolta cf. TENENTI, op, cit, p. 31-35. 63 Os personagens citados aparecem na I,1 e na II,3, respectivamente. Cf. BOCCACCIO, op. cit, p. 24-33; 68-74.

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apresentavam o nome do acionista majoritário. De acordo com Vittore Branca, a família de Boccaccio segue para Nápoles para “gerenciar” uma das filiais da companhia dos Bardi64. O mais importante é perceber que o comércio italiano com o Mediterrâneo e a Europa resulta em formação de comunidades de mercadores italianos fora da Península Itálica. membros do alto clero de Roma e mercadores usavam os serviços dos mercadores italianos até mesmo para envio de dinheiro para outras regiões. Outro ponto importante é que o comércio desenvolveu a malha urbana do centro-norte da Itália – o sul continuaria agrário por muito tempo. Não só cidades como Florença, Gênova, Milão e Veneza cresceram, mas também cidades menores como Luca, Siena, Bolonha e Piacenza foram beneficiadas com o desenvolvimento do comércio 65. Mesmo usando os serviços dos mercadores italianos e fazendo empréstimos com os banqueiros das principais cidades comerciais, a Igreja Católica ainda era contrária à usura e ao lucro, apesar de mudanças ideológicas que levaram à criação do Purgatório na mitologia cristã. A relação entre Igreja Católica e a nascente burguesia italiana foi pontuada por muitos conflitos, os quais demoraram um pouco de tempo para serem completamente resolvidos.

2.3 – Igreja em meados do século XIV

Boccaccio no Decamerão faz críticas ao clero em muitas de suas novelas. No entanto, para entendermos as críticas feitas aos membros da Igreja é importante sabermos o que é, o que pensa e como age esta Igreja nos primeiros anos do século XIV. O mais importante é entender que a Igreja Católica na primeira metade do século XIV convivia com as consequências de sua primeira tentativa de reforma. Noventa e oito anos antes de Giovanni Boccaccio nascer, a Igreja Católica promovera o IV Concílio de Latrão, o qual traria mudanças profundas nas práticas religiosas da cristandade ocidental. Desde a instituição do matrimônio como sacramento, passando pela exigência de celibato para os clérigos – tanto regulares, quanto seculares – até a recomendação de confissão para os leigos, pelo menos, uma vez ao ano. O IV Concílio de Latrão também torna oficial ou, dependendo da perspectiva adotada, enquadra ordens religiosas que buscam outras formas de espiritualidade: franciscanos e dominicanos. Além disso, temos uma Igreja que está em constante alerta devido à proliferação de heresias. É esse 64 65

BRANCA, Vittore. Bocacio y su época. Madri: Alianza Editorial, 1975, p. 169-188. HOLMES,op.cit, p.61-65.

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universo religioso, profundamente ligado às áreas urbanas que será objeto de crítica de Giovanni Boccaccio. As ordens mendicantes, dominicana e franciscana, surgem dentro do mesmo contexto histórico: a busca por uma nova forma de vivenciar a espiritualidade cristã, além de críticas a maneira que o clero católico lidava com a posse de bens mundanos. A primeira regra da Ordem Franciscana previa a recusa da apropriação de qualquer bem material66, ao mesmo tempo que, no início da formação da ordem, entendia a reclusão nos monastérios de maneira completamente diferente – o convento não era lugar de fuga do mundo 67. Um dos reflexos dessa atitude franciscana é a presença dos frades junto aos pobres das cidades. No século XIV, ambas as ordens estarão plenamente consolidadas e, de acordo, com o que aponta Boccaccio em algumas de suas novelas, perdido a “pureza” original da ordem. O mesmo tipo de alerta ele faz sobre os frades dominicanos. Por outro lado, o Papado se encontrava em uma encruzilhada. Ao mesmo tempo em que tentava procurar ampliar sua autoridade espiritual sobre a cristandade, havia também pretensões imperiais de parte dos chefes da Igreja. Porém, não devemos esquecer a existência de poderes temporais tão poderosos quanto o Papado. E é a relação entre Papado e os poderes temporais que ajuda a explicar o período do “cativeiro da Babilônia” da cristandade, mais conhecido como a mudança de Roma para Avignon. A mudança de Roma para Avignon ocorre, em 1305, devido a intervenção de Filipe IV, o Belo, rei francês no conclave. Por outro lado, o período que o Papado permaneceu em Avignon foi aquele no qual houve uma grande evolução da burocracia eclesiástica e da afirmação da Igreja como poder temporal, embora a manutenção dos domínios de São Pedro, na região central da Itália e o fornecimento de exércitos para as disputas nas quais esteve envolvida, exigisse grandes somas de dinheiro. O período no qual Boccaccio viveu corresponde a época do Papado em Avignon. Na novela X,2, a qual trata sobre o universo dos membros do alto clero romano, Boccaccio menciona algo sobre a permanência em Avignon. Boccaccio escreve sua obra durante um período que podemos chamar de “ponto de inflexão” da história da Europa Ocidental. O papado estava em Avignon, porém o cisma definitivo com Roma só aconteceria em 1378. Florença ainda enfrentava os efeitos de uma crise econômica motivada por um calote devido a um dos maiores conflitos bélicos da Idade 66

VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média ocidental (século VIII a XIII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p. 128. 67 LITTLE, Lester K. Monges e Religiosos. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (coord.) Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. v.2, p. 237.

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Média. Os novos grupos de poder que dominarão Florença ainda não apareceram efetivamente e não se imaginava que, após 1348, várias regiões da Europa ocidental enfrentariam revoltas de caráter popular. Uma epidemia grassava pelo ocidente e mal se podiam calcular as consequências. A Europa se encontrava numa encruzilhada da qual não saberia os resultados tão cedo. Decamerão é crônica do princípio da crise, mas, ao mesmo tempo é pedido de mudança de cabeça para os habitantes de Florença. Entender o que é a obra para explicar os porquês das críticas é meu objetivo no próximo tópico.

2.4 – Decamerão: estrutura geral e contexto histórico

Nos tópicos anteriores, tracei um panorama da primeira metade do século XIV na Europa Ocidental e em Florença, além de fazer alguns comentários sobre a Igreja. O contexto apresentado anteriormente nos levará a entender os motivos que levaram Giovanni Boccaccio a ter os clérigos em tão péssima conta. Mas não adianta destilar verborragia se não apresentar a obra aos leitores: eis aqui, de maneira resumida o Decamerão de Giovanni Boccaccio. Antes de começar as novelas, Boccaccio escreve um proêmio, explicando aos leitores a finalidade da obra. Abre o proêmio escrevendo sobre a compaixão e o amor. O ponto de partida, presumo, é a história de vida dele mesmo e suas experiências com o amor. Segundo o autor, é o sofrimento desmedido por amor que o motiva a aconselhar as mulheres. De certa maneira, a motivação é a gratidão com as outras pessoas que o ajudaram a esquecer o sofrimento do amor desmedido 68. Para Boccaccio, é melhor dar conselhos sobre o amor e seus sofrimentos às mulheres. Primeiro porque não demonstram o que sentem devido às convenções sócias – estão sob o domínio dos maridos, irmãos, pais, etc. – ficando encarceradas em seus aposentos fazendo nada. Os homens, segundo Boccaccio, encontram várias maneiras de aliviar as dores do amor, enquanto às mulheres resta-lhes apenas sofrer69. É para os que sofrem em silêncio – em socorro e refúgio das que sofrem – que ele escreve a obra. As demais, restam-lhes a agulha, o fuso e a roca.

Assim sendo, para que se corrija, para mm, o pecado da Sorte, pretendo narrar cem novelas, ou fábulas, ou parábolas, ou estórias, sejam lá o que forem. A Sorte mostrou-se menos propícia, como vemos, para as frágeis mulheres, e mais avara lhes foi de amparo. Em socorro e refúgio das que amam, é que escrevo (pois, 68 69

BOCCACCIO, op. cit, p. 7-8. BOCCACCIO, ibidem, p. 8.

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para as demais, são suficientes a agulha, o fuso e a roca). O que escrevo são as coisas contadas, durante dez dias, por um honrado grupo de sete mulheres e três moços, na época que a peste causava mortandade. Ajuntam-se algumas cantigas das mulheres já mencionadas, cantadas à sua vontade. Nas ditas novelas surgirão casos de amor. Uns agradáveis, outros escabrosos. Serão registrados outros eventos felizes, passados tanto nos tempos atuais, como nos antigos. (BOCCACCIO, 1981, p.8).

No final do proêmio, Boccaccio apresenta, de maneira resumida, a estrutura da obra, além de reforçar a finalidade dela, que é servir de consolo às mulheres.

As já referidas mulheres, que estas novelas lerem, poderão obter prazer e útil conselho das coisas reconfortantes que as narrativas mostram. Saberão aquilo de que é conveniente fugir e, do mesmo modo, aquilo que deve ser seguido. Não acredito que prazer, conselho e exemplo sejam obtidos sem sofrer-se aborrecimentos. Se forem obtidos sem aborrecimentos (e apraza a Deus que assim ocorra), aquelas mulheres rendam graças ao Amor, que, por me libertar dos próprios laços, permitiu que eu atendesse aos prazeres delas. (BOCCACCIO, 1981, p. 9)

Alguns apartes aqui, pois meu objetivo aqui não é fazer uma descrição da fonte. Seria limitador repetir o que o autor diz, sem que eu estabeleça a mínima relação entre a fonte e o contexto que ele escreve. Primeiro: Boccaccio escreve a obra durante o século XIV e, nesta época, o monopólio da escrita é da classe dominante (aristocracia e clero), ainda que alguns anos depois ocorresse uma expansão do público leitor devido à atuação de alguns habitantes das cidades no comércio 70. Portanto, é para as mulheres da aristocracia e de uma burguesia aristocrática que Boccaccio escreve. Segundo: um dos principais pensamentos sobre as mulheres durante a Idade Média, a de que mulheres são mais frágeis, sujeitas às paixões e incapazes de dominá-las71, permeia este proêmio. E, assim acredito, está presente durante toda a obra. O uso do termo “as demais” possui, talvez, dois significados. Pode ser que Boccaccio faça referência às mulheres que não estão apaixonadas – devendo elas se ocupar com trabalhos manuais – ou talvez signifique uma citação às mulheres das classes populares (agulha, fuso e roca são instrumentos de trabalho das fiandeiras e das tecelãs). Provavelmente boa parte das mulheres das classes populares fosse responsável pelos trabalhos nas manufaturas de tecido, o que, mais uma vez, evidencia o público-leitor dessa obra, a quem

70

Cf. BASCHET, Jeróme. op. cit, p. 262. Mesmo assim o popolo minore continuava sem acesso ao letramento. Cf. TENENTI, Alberto. op. cit, p.47-48. 71 Cf. KLAPISCH-ZUBER, Christiane. Masculino/Feminino. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (coord.) Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. v.2.

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Boccaccio se dirige no Proêmio. A sétima novela da Quarta Jornada comprova minha afirmação: a personagem principal era uma fiandeira, como podemos ver nas citações abaixo.

Não há muito tempo, existiu, portanto, em Florença, uma moça muito linda e elegante, dentro de sua condição social: seu pai era pobre; e chamava-se ela Simona. Ainda que fosse constrangida a ganhar com seus braços o pão que desejasse comer, e sustentasse a vida fiando lã, nem por essa razão sua alma era tão pobre, que não ousasse receber o Amor. (BOCCACCIO, 1981, p. 243)

As referências às atividades dos homens aristocratas também são um indício que a obra fala para a aristocracia 72. De certa maneira, de acordo com Boccaccio, é de bom grado que estas mulheres mantenham controle sobre suas paixões, se não seriam levadas a cometer “atos irracionais”. Ou seja, uma das intenções da obra é funcionar como um livro de regras para aristocracia, e por que não, para a alta burguesia – os motivos para qualificar o Decamerão como “obra moralista” eu explicarei com mais detalhes no decorrer do capítulo. Por enquanto, vamos conhecer um pouco mais sobre a obra. Ela foi escrita entre 1349 e 1353, resultado de um desses casos raros, tanto na ficção, quanto na não ficção de escritores que produziram suas obras quando se encontravam “no olho do furacão”, Não há, da parte de Boccaccio, meias medidas ou suavizações; aliás, seria ingênuo pensar tal coisa em tempos de medidas extremas. Por outro lado, aos leitores modernos do século XXI, parece que ela está carregada de sutilezas, rebuscada até. Ora, volto então ao que comentei no Capítulo 1, sobre a relação entre literatura e linguagem: os usos dela também são indícios de um panorama das relações dentro da sociedade. Para o século XIV, tanto a temática, quanto a linguagem eram vulgares. Isto mostra o quanto varia, diacronicamente, o modo de falar e o modo de escrever. Um exemplo de sutileza da linguagem está na Décima Novela da Quinta Jornada, contada por Dionéio. O argumento central é a história de uma esposa que trai o marido porque ele não cumpre com as obrigações conjugais. De acordo com a fonte, há motivos para ele não cumpri-las; o personagem é homossexual. Leitores mais inocentes não perceberiam as sutilezas da linguagem presentes na citação abaixo, porém os mais perspicazes são capazes de dar risadas – não só neste extrato, mas em toda a novela. Fazer o leitor rir é um dos objetivos de Boccaccio e, no final deste capítulo, o riso provocado pelo autor será debatido. Adianto que fazer rir guarda relações com a crítica social feita pelo autor. Segue, então, a citação:

72

BOCCACCIO, op. cit, p. 8, l. 36-46

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Tomei-o para meu marido, trouxe-lhe dote grande e bom, pensando que ele fosse homem, e julgando-o apreciador daquilo que os homens são e devem ser apreciadores; não tivesse eu julgado que ele fosse homem, não o aceitaria para marido. Sabendo ele que eu era mulher, porque motivo me quis para esposa, nãosendo às mulheres o que seu espírito mais apreciava? Isto agora é intolerável. Não quisesse eu viver neste mundo, iria ser monja: porém desejando viver neste mundo, como desejo e como vivendo estou, não posso esperar que o deleite ou prazer me sejam dados por este camarada. (BOCCACCIO, 1981, p. 310, grifos meus)

O trecho abaixo da mesma novela também se encaixa no que disse anteriormente sobre as sutilezas na linguagem da obra:

Para ensinar a consolar-me, ele é ótimo professor; também é excelente demonstrador de como devo comprazer-me com o que faz ter prazer; tal defeito talvez seja louvável em mim, enquanto nele é profundamente lamentável; porque eu, sendo assim, somente ofendo as leis; ele, ao contrário, ofende as leis e a natureza. (BOCCACCIO, 1981, p.310, grifos meus)

O tema principal nesta novela é o adultério e a relação entre os cônjuges, embora o adultério feminino seja tema central da VII Jornada, cujo rei é o narrador desta novela. O objetivo de Dionéio é provocar o riso dos outros companheiros, após uma série de relatos sobre histórias de amor que passaram por revezes para chegarem a um final feliz. 73Aliás, a V Jornada é contraponto temático da IV, na qual as pessoas devem narrar sobre os casos de amor que acabaram em tragédia. Não farei aqui uma análise completa do texto, mas o usarei para chamar atenção sobre questões ligadas ao uso da linguagem. As expressões “fosse homem” (l. 5), “apreciador daquilo que os homens são e devem ser apreciadores” (l. 5-6), “como devo comprazer-me com o que faz ter prazer” (l. 16-17), “profundamente lamentável” (l. 18) e “ele, ao contrário, ofende as leis e a natureza” (l. 1920) permitem ao leitor deduzir a natureza da relação entre marido e esposa, além dos porquês dela para traí-lo. No fundo, há uma crítica sobre as relações matrimoniais e a “busca da felicidade”: a esposa escolheu ser “do mundo” (expressão usada pelos fiéis das igrejas evangélicas para se referirem ao campo de terreno cabe perfeitamente aqui) e criou a expectativa que o marido satisfaça seus desejos, pois passar a vida a serviço da Igreja é se retirar do mundo. Os termos usados para definir a condição do marido também são indícios do uso sutil da linguagem. Além disso, pelo o que me lembro, é difícil ver em fontes medievais uma palavra que defina o homossexual; a referência sempre será sobre o ato, não sobre quem 73

No final da Primeira Jornada, há um pedido de Dionéio para que seja o último a narrar e esteja desobrigado de contar uma novela de acordo com o tema proposto pela rainha ou rei do dia. Cf. BOCCACCIO, ibidem, p. 56.

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o comete. Tal uso da linguagem será comum durante toda a obra e, nas novelas em que há clara conotação sexual, os termos como “brincar” ou “divertir-se” aparecerão no texto. Esse uso da linguagem por Boccaccio talvez possua um objetivo ligado ao que ele pretende com a obra. Farei algumas observações sobre isso no decorrer da análise da fonte. Por outro lado, talvez as aparentes sutilezas sejam resultado das diversas traduções que o texto sofreu ao longo do tempo. Infelizmente não li o texto na língua original, algo que é tarefa dos bons historiadores74. Provavelmente, no texto em língua toscana, essas sutilezas não existam e ele confirme o epíteto de vulgar que recebeu ao longo dos séculos. Vulgar e imoral diriam aqueles cheios de pudores; para mim, uma bela análise da vida e das paixões humanas 75 . Contudo, não há obra sem seu autor; portanto, antes de mergulharmos nos pormenores de Decamerão, convém saber um pouco sobre a vida do autor. Vale lembrar que, a vida do autor não explica completamente a obra, mas ajuda a entender as ideias que estão por trás dela. Giovanni Boccaccio nasceu em Certaldo, na Toscana, em 1313. Alguns autores apontam Paris como seu local de nascimento. De acordo com Vittore Branca, essa afirmação tem a ver com interpretações de alguns escritos e novelas do início da carreira literária de Boccaccio76. Por outro lado, o pai de Boccaccio fazia negócios em Paris justamente nesta época, o que aumenta o equívoco sobre o local de nascimento do escritor 77 . O que é importante destacar sobre a vida de Boccaccio é a ligação tanto de sua família, quanto dele com as atividades comerciais. O pai de Boccaccio trabalhava para os Bardi, a grande família florentina – junto com os Peruzzi e os Acciaiuoli – que controlava as atividades mercantis na Península Itálica. Os Bardi, desde 1312, praticamente monopolizaram as atividades mercantis no Reino de Nápoles, na época comandada pela dinastia angevina. Tanto que, alguns anos depois, não só a família do escritor, mas o próprio Boccaccio acabaram trabalhando nas casas comerciais dos Bardi em Nápoles. Há registros do exercício da atividade mercantil pelo autor entre 1327 e 1331; chega até a ocupar o cargo de “gerente” da Companhia de Comércio dos Bardi. 74

Usei para a monografia a edição publicada pela editora Abril Cultural durante a década de 1980, facilmente encontrada em sebos e bibliotecas. Soube, depois de iniciada a pesquisa, da existência de edições com tradução melhor do que a li. 75 O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini incluiu a adaptação cinematográfica da obra na chamada Trilogia da Vida, composta por Decameron (1971), Os Contos de Canterbury (1972) e As Mil e Uma Noites (1974). Recentemente, entre os dias 16 de outubro e 10 de novembro de 2014, o Centro Cultural Banco do Brasil organizou mostra que apresentou não só a Trilogia da Vida, mas todos os filmes dirigidos por Pasolini. 76 Cf. BRANCA op. cit, p. 169-343. Sobre os primeiros anos de Boccaccio ver p. 169-174. 77 Até Otto Maria Carpeaux comete este equívoco; as informações sobre biográficas sobre Boccaccio, na edição da Abril Cultural, também apontam Paris como local de nascimento. Cf. CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental, volume I. São Paulo: Leya, 2011, p. 373; BOCCACCIO, op. cit. p. 5.

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Boccaccio, por trabalhar com o comércio nos portos de Nápoles, acaba travando contato com pessoas de diferentes regiões da Europa e das regiões banhadas pelo Mar Mediterrâneo, que estavam envolvidas no comércio com as cidades italianas. Isso será importante para identificar os locais das novelas e entender o porquê de muitas das temáticas apresentadas pelo autor. Algumas das novelas da Segunda Jornada, tais como II,2 (história de Rinaldo d’Asti); II,3 (Alexandre e a filha do rei da Inglaterra); II,4 (história de Landolfo Ruffulo) e II,5 (história de Andreucio de Perugia) mostram o que era o universo mercantil e mediterrânico na primeira metade do século XIV. Até mesmo a história da filha do Sultão da Babilônia (II,7) dá indícios dos contatos de Boccaccio com pessoas que percorreram praticamente todo o Mediterrâneo – basta identificar os lugares citados pelos autor; Alatiel praticamente viaja o Mare Nostrum de um lado para o outro até chegar seu destino final78. Assim como Guimarães Rosa falava da Zona da Mata Mineira; Jorge Amado, da Bahia e Charles Dickens, do operariado inglês no século XIX, é o universo dos mercadores e das cidades italianas que servirá como ponto de partida para Boccaccio elaborar suas novelas. Nelas também aparecem a aristocracia e a “alta burguesia” das cidades; o próprio Boccaccio frequentou a corte do Reino De Nápoles. Em Nápoles também toma contato com a cultura clássica greco-latina; Vittore Branca destaca a importância que esta bagagem cultural adquirida teve nas obras de Boccaccio 79. Porém, a conjuntura político-econômica na Península Itálica acaba propiciando a volta de Giovanni Boccaccio a Florença; em 1338, já se desligara dos Bardi. O período que marca a saída de Nápoles e a volta a Florença acontece entre 1340 e 1341; alguns estudiosos apontam que, em agosto de 1341, Boccaccio já reside em Florença. A saída dele, de acordo com Branca, não guarda relações com o fim de um caso amoroso, mas com o esgarçamento das relações políticas e econômicas entre Florença e o Reino de Nápoles, o que acabou afetando também a família de Boccaccio 80. A companhia dos Bardi passa por dificuldades financeiras entre 1339 e 1340, a crise e a falência ocorrem em 1345. A Guerra dos Cem Anos acaba levando os Peruzzi à bancarrota, pois eles eram credores de Eduardo III, da Inglaterra. Talvez a falência, devido a problemas internos e a dívidas não pagas, tenha servido de mote para a Terceira Novela da Segunda Jornada. O tema unificador é a Fortuna e os revezes que ela provoca, o argumento central da III,2 é o empobrecimento de três irmãos florentinos devido à prodigalidade deles e as dívidas não pagas devido a uma guerra – é o sobrinho que foge da 78

Cf. BOCCACCIO, ibidem, p. 98-133. BRANCA, op. cit, p. 203. 80 BRANCA, ibidem, p. 211-214. 79

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guerra que, devido a um acaso, salva os negócios da família. Não seriam os mercadores os mais suscetíveis as idas e vindas da Fortuna?81 Mesmo em Florença, Boccaccio continua ligado às atividades mercantis. Continua residindo na Toscana até o ano de 1375, data de sua morte. E é justamente em Florença que escreverá o Decamerão, obra que marca a transição da juventude para a maturidade literária do autor82. A história de Decamerão gira em torno de um grupo de dez pessoas, sete mulheres e três homens, que resolvem fugir da epidemia de peste em Florença. Mas antes de apresentar as dez pessoas aos leitores, Boccaccio descreve, com riqueza de detalhes, os efeitos da epidemia de peste que assolou Florença em 1348. O autor, tal como muitos pensavam na época, apontou que a epidemia foi punição divina para os pecados cometidos pelos florentinos. Assim, podemos dizer que, já no início da Primeira Jornada, Boccaccio mostra o caráter moral da obra; comentar sobre os pecados e seus efeitos mais terrenos – a noção de causa e consequência – será uma constante em toda a obra.

Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razão das nossas iniquidades, a peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para a nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miserável, para o Ocidente. (BOCCACCIO, 1981, p.11)

De acordo com Boccaccio, boa parte da população de Florença foi ceifada pela doença. Os números apresentados pelo autor parecem um pouco altos, mas servem para que os leitores tenham uma ideia de quão grande foi o número de pessoas mortas pela doença 83.

O que se poderá dizer ainda – pondo-se de parte o condado, para se tornar a tratar da cidade – a não ser que a crueza do céu foi de tal monta e tanta, e quiçá também o tenha sido, em parte, a crueldade dos homens, que, no período que vai de 81

O tema da Fortuna será bastante comum até o século XVI. Nicolau Maquiavel, um século depois, colocará a Fortuna como algo fundamental para o governo do príncipe. Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. Fortuna Imperatrix Mundi, diz o título do primeiro canto dos Carmina Burana; até eles deixam claros as idas e vindas da vida humana. 82 BRANCA, op.cit, p. 237-238. 83 Na verdade, são duas versões da mesma doença. A peste bubônica, transmitida pela pulga do rato negro, teve uma letalidade de 60% a 80% das pessoas contagiadas. A peste pulmonar, transmitida de homem para homem, matou 100% das pessoas contagiadas, levando a morte dois a três dias depois da manifestação da doença. Entre 1348 e 1350, as perdas humanas variaram de dois terços a um oitavo da população, de acordo com a região. Cf. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 29-31.

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março a julho, mais de 100.000 pessoas é certo que foram arrebatadas da vida, no circuito dos muros de Florença? Nesse número estão incluídos tanto aqueles que foram levadas pela força da pestífera doença, como aqueles que, doentes, foram mal atendidos, ou abandonados às contingências, em razão do medo que os sãos alimentaram. (BOCCACCIO, 1981, p.17)

Visto que as consequências da epidemia foram catastróficas para os vivos, Boccaccio comenta que a fuga era uma opção viável para quem sobreviveu à pandemia. Porém, já adianto que só aqueles que possuíam condições para sair da cidade fugiram, os mais pobres acabaram morrendo. “E quase tudo era dirigido para um fim bastante cruel: o de se ficar enojado dos enfermos e de se fugir das suas coisas, e deles Agindo assim, cada um supunha estar garantindo a saúde para si mesmo.” (BOCCACCIO, 1981, p.13) Em alguns casos, a fuga era acompanhada de desespero e impotência aos efeitos da pandemia e motivados pelo desejo de sobrevivência.

Alguns faziam alarde de sentimento mais cruel (como se, porventura, tal sentimento fosse o mais seguro) e, diziam que não havia remédio melhor, nem tão eficaz, contra as pestilências, do que abandonar o lugar onde se encontravam, antes que essas pestilências ali surgissem. Induzidos por essa forma de pensar, não se importando fosse com o que fosse, a não ser com eles mesmos, inúmeros homens e mulheres deixaram a própria cidade, as próprias moradias, os seus lugares, seus parentes e suas coisas, e foram em busca daquilo que a outrem pertencia, ou , pelo menos, que era de seu condado. Para eles, era como se a cólera de Deus estivesse destinada não a castigar a iniquidade dos homens com aquela peste, onde eles estivessem, e sim a oprimir, comovido, somente os que tentassem em ficar dentro dos muros da cidade. Ou como se essa cólera fosse apenas um aviso para que ninguém permanecesse em determinada cidade. Como, de tais opinadores, nem todos morriam, e que, assim sendo, nem todos continuavam a viver, muitos sujeitos, de cada cidade, e em toda parte, caíam enfermos e, quase abandonadas à própria sorte, definham inteiramente. Eles mesmos, quando estavam sãos, deram exemplo aos que continuavam sadios, para que fugissem daqueles que tombavam sob as garras do mal. (BOCCACCIO, 1981, p. 13-14)

Ora, a fuga, a partir da análise feita do texto de Boccaccio, acabou gerando mais contágios e mortes. É razoável supor que o ato de fugir da doença ajudou a levá-la para outros centros urbanos, o que resultou em uma grande quantidade de pessoas mortas e uma queda populacional significativa na Europa84. Boccaccio também mostra a mudança de atitudes perante a vida por parte dos sobreviventes. Alguns optaram por viver frugalmente, outros decidiram viver como se cada dia fosse o último, procurando satisfazer todos os desejos, e ainda aqueles que optaram pelo 84

Para ter uma ideia da fuga das pessoas durante uma epidemia, sugiro o filme O Cavaleiro do Telhado e a Dama das Sombras (1996), com Olivier Martinez e Juliette Binoche. O enredo se passa em 1832, mas os personagens passam o filme inteiro fugindo da epidemia de cólera no sul da França.

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caminho do meio 85 . Acredito que comentar sobre a fuga foi a maneira que Boccaccio encontrou para indicar aos leitores qual seria a atitude dos personagens no momento da fuga e de que maneira agiriam após ela. O termo usado pelos estudiosos da obra para nomear as dez pessoas que fogem da peste é brigata. Passarei a usar este termo quando me referir ao conjunto dos dez personagens principais de Decamerão. Após comentar sobre a epidemia em Florença, Boccaccio apresenta a brigata e mostra de que maneira ela se reuniu. Sete mulheres estavam na igreja de Santa Maria Novella, ouvindo mais um ofício religioso. Ao final do ofício, começam a conversar e uma delas começa a comentar que está muito fatigada de ver morte, tristeza e o universo que elas conheciam se desmoronar. Boccaccio, no trecho abaixo que citarei, além de descrever as sete mulheres, nos informa que todas elas eram de boa família, o que evidencia algo que disse acima: só aqueles que possuíam posses conseguiram fugir da cidade durante a epidemia.

E sucedeu (como ouvi depois, de pessoa merecedora de fé) que, na venerável Igreja de Santa Maria Novela, em dia de terça feira, na parte da manhã, acharam-se sete jovens mulheres. Quase ninguém mais estava no templo. Tinham elas terminado de ouvir, vestidas com roupas lúgubres, como era indicado para aqueles tempos, os ofícios religiosos. Estavam ligadas umas às outras por vizinhança ou por parentesco. Nenhuma delas passara o vigésimo oitavo ano de idade, nem era menor desta. Eram todas bem comportadas e de sangue nobre; bonitas de formas, costumes prendados e comportamento honesto. (BOCCACCIO, 1981, p. 17)

Além da posição social e da aparência física, Boccaccio faz questão de comentar sobre a índole das moças. O motivo que aponto para o reforço desta característica é a situação social da mulher pertencente às classes dominantes durante o século XIV. Há certo controle social sobre elas, o que tem a ver com as regras de parentesco correspondentes ao período, sem contar todo o estigma que a mulher possuía durante a Idade Média: ela é suscetível ao pecado. Aliás, a discussão sobre a virtude da mulher estará presente na maior parte das novelas – em todas as jornadas existem, pelo menos, duas novelas cujo tema passará pela oposição entre as ideias de mulher virtuosa X mulher pecadora. Outro ponto importante no trecho abaixo e a afirmação de Boccaccio que ele ouviu falar sobre a história da brigata. Boccaccio aqui se coloca como narrador de fatos, não como alguém que inventou uma história.

85

BOCCACCIO, op. cit, p. 13.

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E sucedeu (como ouvi depois, de pessoa merecedora de fé) que, na venerável Igreja de Santa Maria Novela, em dia de terça feira, na parte da manhã, acharam-se sete jovens mulheres. Quase ninguém mais estava no templo. Tinham elas terminado de ouvir, vestidas com roupas lúgubres, como era indicado para aqueles tempos, os ofícios religiosos. Estavam ligadas umas às outras por vizinhança ou por parentesco. Nenhuma delas passara o vigésimo oitavo ano de idade, nem era menor desta. Eram todas bem comportadas e de sangue nobre; bonitas de formas, costumes prendados e comportamento honesto. (BOCCACCIO, 1981, p. 17)

Em seguida, Boccaccio apresenta quem são as sete mulheres. O autor, pelo mesmo motivo citado acima, também não fornece os nomes verdadeiros das sete mulheres da brigata. Outro motivo provavelmente tem a ver com o enredo de algumas das novelas, pois muitas apresentam várias referências a relações sexuais. De acordo com a moral da época, não ficaria bem para uma moça virtuosa narrar o trecho abaixo86:

Sentindo muito calor, fosse por causa do tempo, fosse pelo jogo amoroso, ambos adormeceram nus, sem lençol nem coberta sobre o corpo, Catarina dormiu com o braço direito por baixo do pescoço de Ricardo, e a mão esquerda agarrada àquilo que as mulheres, quando estão entre os homens não chamam pelo nome real. (BOCCACCIO, 1981, p. 284)

Depois desta citação, vamos conhecer quem são as sete mulheres da brigata. Mas antes, fiquemos com a explicação de Boccaccio para a não revelação dos nomes verdadeiros das moças.

Eu daria a conhecer, na forma devida, os seus nomes, se um motivo justo me obstasse de fazer. O motivo é este: não desejo o que, pelas coisas que vão seguir, e que por elas foram narradas ou ouvidas, algumas delas deva, no futuro, envergonhar-se. Hoje, são limitadas as leis sobre o prazer; naquele tempo, pelos motivos apontados, tais leis eram extremamente liberais; seja para a idade delas, seja apara idades muito mais maduras; não quero, igualmente, dar motivo para que os invejosos, prestes a difamar toda existência digna de elogios, diminuam, em qualquer aspecto, com maledicências, a honestidade das dignas mulheres. (BOCCACCIO, 1981, p. 17)

Ficam evidentes aqui as observações que fiz sobre a moral da época e a relação dela com as novelas e os narradores. Por outro lado, parece que há, da parte de Boccaccio, uma discordância do que se pensava sobre o prazer e a satisfação dos desejos. Comentarei sobre isso mais à frente, durante a análise das novelas escolhidas. Segue então os nomes das sete mulheres da brigata.“A primeira delas, a mais idosa, denominaremos PAMPINÉIA; à 86

O trecho citado é a Quarta Novela da Quinta Jornada, narrada por Filóstrato. Cf. BOCCACCIO, ibidem, p. 282-286.

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segunda, FIAMMETTA; FILOMENA, à terceira; à quarta, EMÍLIA; designaremos depois por LAURINHA a quinta; a sexta, por NEÍFILE; e a última, com razão, chamaremos ELISA.” (BOCCACCIO, 1981, p. 17) Pampinéia, após o final do serviço religioso na igreja de Santa Maria Novella, sugere as outras moças que a solução para elas era fugir de Florença, apresentando como principal justificativa o direito de sobrevivência do ser humano. Aproveita também para chamar atenção sobre a incerteza das mulheres e a baixa capacidade que possuem de resistir às tentações. Pampinéia também usa o fato de ver muitas mortes e perder vários familiares para justificar a fuga, aproveitando para criticar as atitudes dos vivos frente aos efeitos da epidemia, principalmente aqueles que se deixaram levar pelas paixões e pelos desejos 87. Além disso, a fala da personagem já indica qual será o tipo de atitude tomada pelos membros da brigata durante o exílio: seguirão o caminho do meio. Ou seja, se divertirão, mas agirão com moderação. O mais interessante da fala de Pampinéia é o trecho abaixo que citarei:

Ouvi contar e fiquei sabendo, mais de uma vez, que essas pessoas (considerando-se que existam algumas) sem fazer qualquer distinção entre atos honestos e o que não sejam, visto que apenas se orientam pelas exigências do próprio apetite, fazem, seja quando estão sozinhas, seja acompanhadas, de dia e de noite, somente as coisas que mais prazeres lhes dão. Não apenas as pessoas livres, assim como as que estão encerradas em conventos, deixam entender que isso lhes é conveniente, e apenas causa desdouro às demais. Assim sendo, pecam contra as leis da obediência e entregam-se a prazeres carnais. Agindo desta maneira, elas admitem que adquirem condições para a sobrevivência. Fazem-se lascivas e dissolutas. (BOCCACCIO, 1981, p. 18-19)

O mais importante do trecho acima é perceber que Boccaccio começa fazer a crítica às atitudes do clero já no início da Primeira Jornada, antes mesmo de começar a narrar as novelas. Aqui já percebo uma ideia que sempre aparecerá em todas elas, cujos temas sejam capazes de possibilitar uma crítica ao clero: a de que, por justamente pregarem a moderação, os religiosos devem ser os últimos a ceder às tentações da carne. Depois de apresentar as justificativas para escaparem de Florença, Pampinéia diz, finalmente, que a melhor atitude a tomar é fugir. Ela aproveita para indicar aonde vão e o que farão88. Vale lembrar que, a fala de Pampinéia indica que as moças eram de famílias nobres, o

87 88

BOCCACCIO, ibidem, p. 18-20. BOCCACCIO,ibidem, p. 19.

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chamado popolo grasso, pois era comum pessoas de posses manterem “propriedades” no campo e dela obterem rendas89.

Escapando aos exemplos desonestos dos demais, como se foge da morte, vamos honestamente instalar-nos em nossos lugares, nas cercanias da cidade, onde, para cada uma, existe em abundância tudo que possa ser indispensável. Teremos ali aquele divertimento, aquela alegria, aquela satisfação que pudermos obter, sem ir além, em nenhum ato, dos limites da razão. (BOCCACCIO, 1981, p. 19)

Ou seja, as sete moças fugirão da cidade, mas agirão com moderação. Mais uma vez, Boccaccio reafirma as intenções honestas das personagens. Reforçar a ideia é uma forma para convencer o leitor de que os membros da brigata não cometerão atos licenciosos. Acredito que esta artimanha retórica é fundamental para o caráter “moralista” da obra. Dizer, nas entrelinhas, que nenhum membro da brigata tomou atitudes que colocassem aas paixões acima da razão, ajuda a tornar a fala do autor mais verossímil para os leitores. Outro ponto importante que comentarei, brevemente, é a oposição entre campo e cidade, presente na Primeira Jornada. Boccaccio, nas novelas, não coloca a cidade acima ou abaixo do campo, afinal ele também fazia parte do universo urbano do século XIV. Nesse caso, a oposição entre campo e cidade é mais simbólica do que concerta. Para melhor elaborar minha argumentação, citarei mais um trecho da fonte: “Pois que, ainda que lá também faleçam os trabalhadores do campo, como morrem aqui os moradores da cidade, tanto menor é o desprazer ali, quanto mais raro são, do que na cidade as casas e seus moradores”. (BOCCACCIO, 1981, p. 19). Primeiro, creio que o trecho anterior evidencia que a cidade de Florença foi atingida não só pela peste bubônica, mas pela pulmonar também 90, pois o autor cita o contágio pela via direta. Ao que parece, a taxa de mortalidade nas cidades foi maior do que no campo, devido à facilidade do contágio. Óbvio que houve também grande mortandade no campo, contudo, o contato entre pessoas infectadas e pessoas sadias foi um pouco menor do que na cidade. Isto nos leva a apontar a característica mais aparente nessa relação. A cidade seria o lugar do caos, da desordem e dos aborrecimentos; logo o campo apareceria como o lugar da paz, da felicidade e da fruição dos prazeres. Fruição moderada, eu ressalto. Mais à frente, quando a brigata já se encontra fora de Florença, Boccaccio reafirma a oposição entre campo x cidade: “Ordeno, a cada qual e a todos em geral, pelo que possam desejar honrar a nossa graça, que 89

Por mais que houvesse um desenvolvimento do comércio, o “ideal” ainda era obter rendas através da exploração da terra. Cf. BASCHET, op. cit, p. 154-156; GILLI, op.cit. 90 Ver nota 30.

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tomem cuidado para que, dos lugares para onde forem e de onde regressarem, assim como daquilo que escutarem e ouvirem, não nos tragam nenhuma notícia que não seja agradável”. (BOCCACCIO, 1981, p. 22-23) Além da oposição “campo X cidade”, que nada mais é do que um “complemento” à oposição entre “felicidade X tristeza”, os trechos escolhidos permitem que eu apresente dois conceitos que os estudos sobre Literatura usam para caracterizar o Arcadismo: o fugere urbem e o carpe diem91. O termo fugere urbem significa “fugir da cidade”. Em Decamerão, a fuga da cidade funciona como garantia de sobrevivência; para os membros da brigata, fugir é escapara de toda dor e tristeza que a cidade traz. Carpe diem significa “aproveitar o dia”; possui relação com a ideia de fruição do tempo. Nesse caso, o conceito de carpe diem se aproxima mais com a acepção que terá, três séculos depois, na literatura do Barroco: aproveitar o tempo porque a vida é breve. Por outro lado, não está carregado de pessimismo total tal como no Barroco; aproveitar o tempo porque a vida é bela e as pessoas estão vivas, apesar de tanto sofrimento. Não deixar as notícias ruins chegarem é uma maneira de evitar que a tristeza os abata, pois eles fogem dos problemas da cidade, não para encontrar novos problemas. Na verdade, o importante é perceber que ambos os conceitos estão ligados a um tema presente na obra: a ideia de ceder ou não aos desejos. Mais à frente, no início da Nona Jornada, Boccaccio nos mostra que um dos objetivos da brigata é fugir da morte e da tristeza que grassava por Florença:

Ao iniciarem o caminho de volta, estavam engrinaldados com ramos de carvalho e tinham nas mãos ora ervas odoríferas, ora flores; quem os encontrasse assim, não diria outra coisa senão isto: “Ou esta gente jamais será vencida pela morte, ou se a morte a matar, deverá matá-la em plena alegria”. Deste modo, portanto, andando passo a passo, cantando, brincando e rindo, atingiram todos o palácio, de volta, e ali acharam tudo devidamente preparado; além disso, acharam os seus criados contentes, com o espírito em festa. (BOCCACCIO, 1981, p. 465)

Voltemos então ao rumo de nossa história. Pampinéia apresenta as razões para a fuga e todas as outras concordam, Contudo, Filomena alerta para a incapacidade feminina de se organizarem; para que tudo desse certo, é necessária a presença de homens. Boccaccio, através da fala de Filomena, afirma a inferioridade feminina perante os homens, tema

91

A corrente artística conhecida como Barroco aparecerá no século XVII, enquanto o Arcadismo ou Neoclassicismo será o estilo artístico predominante em boa parte do século XVIII. Sobre os dois estilos cf. PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de Época na Literatura. São Paulo: Ática, 2008, p. 166-205; BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 29-34; 55-60.

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extremamente comum em qualquer escrito sobre as mulheres do Medievo 92 . Tal postura evidencia o quanto o discurso sobre a inferioridade esteve presente durante toda a Idade Média, sofrendo apenas algumas variações.

– Moças, ainda que tenha sido dito, de modo ótimo, o que Pampinéia pensa, nem assim é caso de a gente pôr-se a correr, como parece ser o desejo de vocês. Recordo-lhe que somos todas mulheres. Nenhuma mulher há tão tola que não saiba bem como as mulheres, quando se juntam são pouco providas de juízo, e mal sabem governar-se sem o auxílio de algum homem. Somos volúveis, briguentas, desconfiadas, covardes e cheias de medo; por esta razão, se não contarmos com outra orientação, mais do que a nossa, duvido muito que nosso grupo deixe de dissolver-se logo, com menos honra para nós do que fora justo. Em decorrência disto, é de boa prudência providenciar, antes de principiar seja lá o que for. (BOCCACCIO, 1981, p. 20).

Após a intervenção de Filomena, Elias, outra das moças que compõe a brigata, pergunta a elas se encontrarão moços capazes de se juntarem a tal empreitada, visto que os dignos para a tarefa, e que eram conhecidos delas, estavam mortos93. E eis que três moços entrem na igreja de Santa Maria Novella...

Desenrolando-se ainda estas palestras entre as mulheres, eis que entraram três moços na igreja. Não eram assim tão jovens a ponto de que o mais jovem deles tivesse menos de 25 anos. Neles, os estragos do tempo, a perda dos amigos, a morte dos parentes, o temor de si mesmos, não tinham podido, não digo apagar, mas sequer esfriar os impulsos do amor. Dos moços, chamava-se um PÂNFILO; FILÓSTRATO era o segundo, e DIONÉIO, o último. Era, cada um deles, agradável e bem educado; os três procuravam, para seu derradeiro refrigério, em meio a tal transtorno de todas as coisas, a suas respectivas amadas; por acaso, estavam as três entre as sete já indicadas. Como eram algumas pertencentes à mesma família de outras, essas eram parentes de um ou de outro dos rapazes. (BOCCACCIO, 1981, p. 20)

Vale lembrar que, de acordo com Georges Duby94, o termo “moço”, não importando a idade que o homem tivesse, indicava que ele não contraiu matrimônio. Ou seja, o reconhecimento da idade adulta, para os homens, era através do casamento e da formação de uma nova família. Os rapazes contavam com idade por volta ou um pouco acima dos vinte e cinco anos e eram, tal como as moças, das boas famílias de Florença. Eram aparentados com algumas delas, além de nutrirem paixão por três delas. Pampinéia consegue convencê-los a tomar parte 92

KLAPISCH-ZUBER, op. cit. BOCCACCIO, op. cit, p. 20, l. 21-31. 94 Cf. DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1995. 93

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na empreitada. Para ela, a chegada dos três era sinal que tudo daria certo; porém. Para Neífile, seria motivo de calúnias e difamações por parte dos moradores de Florença. Filomena a tranquiliza, justificando que elas eram honestas, portanto, suspeitas não recairiam sobre elas. No dia seguinte, acompanhadas de criados, a brigata segue para o palácio da família de Pampinéia, nos arredores de Florença. Um dos moços, Dionéio, faz um convite aos membros da brigata: deveriam deixar de lado as preocupações, rir e cantar.

– Mulheres, o bom senso de vocês mais do que nossa cautela foi que guiou nossos passos até aqui. Ignoro o que vocês desejam fazer, a respeito de suas preocupações. No que diz respeito às que eu tinha, abandonei-as à porta da cidade, há pouco, quando saí de lá na companhia de vocês. Por esta razão, ou vocês se dispõem a aliviar o espírito, a rir e a cantar, comigo, certamente na medida que se continuando a viver na cidade atribulada. (BOCCACCIO, 1981, p. 21-22)

A fala de Dionéio nos permite começar a discutir outro tema recorrente no Decamerão: o riso. Ele na citação acima é instrumento de prazer e antídoto para as tristezas deixadas na cidade. Convém dizer que o riso e o cômico aparecerão de outras formas na fonte. Boccaccio usará o riso como instrumento para expor suas críticas à sociedade de século XIV. Pampinéia, a partir do que Dionéio disse, tem uma ideia: enquanto estivessem fora da cidade, uma das pessoas da brigata seria responsável por coordenar as atividades do grupo e informar aos criados o que fazer para a manutenção do palácio e de seus hóspedes. O reinado duraria um dia e , ao final dela, um novo rei ou rainha seria eleito. Mais à frente no texto, percebemos que essa escolha revela-se importante, pois é a rainha ou rei que dirá qual o assunto das novelas a narrar. Narrar novelas é a forma encontrada por Pampinéia para passar o tempo e esperar abrandar o calor do dia – provavelmente a história se passa no verão de 1848. As histórias narradas pelos membros da brigata formam um conjunto de cem novelas, divididas em grupos de dez, totalizando dez jornadas ou dias – o nome da obra é derivado da divisão em dez grupos de dez novelas. Para cada jornada existe uma pessoa da brigata – a rainha ou rei – responsável por sentenciar sobre qual tema norteará as novelas contadas pelos membros. Algumas das jornadas giram em torno de um tema específico; um exemplo é a Quarta Jornada, na qual as pessoas devem novelar sobre casos amorosos cujo final foi trágico. No total, oito jornadas apresentam temas definidos previamente e duas, a Primeira e a Nona, são jornadas de temática livre. Porém, mesmo nas jornadas de temática livre, há uma espécie de fio lógico que conecta as histórias; ou seja, a história seguinte é contada a partir de um detalhe 59

da história anterior, o qual chamou atenção do narrador. Um exemplo está na Primeira Jornada. Da história do homem que engana o padre confessor, contada por Pânfilo (I,1), passamos para a história do judeu que se converteu ao cristianismo, após uma viagem a Roma95. Aqui, o que serve de ponte é o tema da bondade divina, como podemos observar no trecho abaixo:

– Demonstrou Pânfilo, em sua narrativa, a bondade divina, pela circunstância de que ele não se importa com os nossos pecados, sempre que estes advenham de dados básicos que não possamos deslindar. Em minha novela, eu pretendo demonstrar o quanto aquela mesma benevolência, suportando os defeitos dos que deveriam dar vero testemunho dela, com obras e palavras, ainda assim dá de si mesma prova de infalível verdade; e isto se dá a fim de que continuemos a acreditar naquilo em que temos fé, e o façamos ainda com redobrada firmeza de ânimo. (BOCCACCIO, 1981, p. 34)

Mesmo que cada jornada apresente um tema unificador, cada novela possui um enfoque diferente, a partir do que foi proposto pela rainha ou rei. Na Sétima Jornada, cujo tema é as trapaças envolvendo mulheres e homens, alguns comentarão sobre o adultério, enquanto outros contarão histórias que tem como mote o ciúme do esposo. Quanto às novelas, há ainda um pequeno detalhe importante para a ordem que as pessoas da brigata narram as novelas. No final da Primeira Jornada, após a escolha de Filomena 96 como rainha, Dionéio faz um pedido o qual consiste em estar desobrigado de seguir o tema proposto pela rainha e ser o último a narrar uma novela. Por fim, a rainha atende ao pedido de Dionéio.

– Senhora, da mesma forma que todos os que estão disseram, digo-o eu também que é infinitamente agradável e merecedora de elogio a ordem que acaba de ser dada. Entretanto, por especial deferência, peço licença para observar algo; quero que essa licença me seja confirmada pelo tempo que a nossa companhia durar. A licença que almejo é a seguinte: a de que eu, por essa ordem, não fique obrigado a contar novelas de acordo com o tema proposto, quando a isto eu não me sentir disposto; estando indisposto, falarei conforme aquilo que mais me agradar. E, a fim de que ninguém pense que eu queira alcançar este favor, como o quereria qualquer outro homem que não tivesse, ao seu dispor, narrativas para desenvolver, desde agora me declaro feliz se for o último a falar. (BOCCACCIO, 1981, p. 56)

Ou seja, com a exceção da Primeira Jornada, na qual Pampinéia é a última a narrar, a ordem dos narradores seguirá o seguinte esquema:

95 96

BOCCACCIO, op. cit. p. 24-37. BOCCACCIO, ibidem, p.55.

60

1ª a 8ª – membros da brigata. 9ª – rainha ou rei. 10ª – Dionéio. Não é sempre que Dionéio seguirá a regra. Na Terceira Jornada, por exemplo, ela contará uma novela dentro do tema proposto, enquanto na Sétima – na qual ele é o rei – fugirá ao que ele propôs. Aliás, somente a Sétima foge da ordenação de contadores que acontece a partir da Segunda Jornada: 1ª a 9ª – membros da brigata 10ª – Dionéio E, não importando o tema, todas as novelas de Dionéio provocam o riso, seja das outras nove pessoas, seja do leitor. Há uma grande diversidade de temas, todos ligados à sociedade do século XIV, que mereceram atenção por parte de Boccaccio. As novelas contadas pelo autor podem ser lidas como exempla. O exemplum nada mais é que um gênero literário medieval em prosa, cuja principal característica era mostrar uma atitude ou ação considerada aceitável 97. O recurso dos exempla serve para expor seu pensamento sobre a sociedade para uma nova aristocracia que se forma na Itália do século XIV. Portanto, Boccaccio agiria como, de acordo com Antonio Gramsci, um intelectual orgânico. Isto porque o que Boccaccio escreve nas novelas quebra com diversos paradigmas da sociedade medieval. O Decamerão seria uma obra nova para uma sociedade nova. Para este trabalho, escolhi analisar as novelas que apresentam qualquer forma de crítica ao clero feita por Boccaccio. O objetivo é entender as relações entre sociedade e religião no final da Idade Média. Entendê-las é fundamental para perceber os motivos que “causaram” a grande sacudida que o campo religioso levou entre os séculos XV e XVII; Huss, Lutero e Calvino não elaboraram suas propostas reformistas do nada. Por outro lado, a obra ajuda a entender a cabeça da sociedade florentina, e da italiana também, após a segunda metade do século XIV. É incrível que Boccaccio recomende certa moderação com as paixões, algo não muito seguido pela aristocracia italiana dos séculos seguintes. Aliás, Rodrigo Borgia faz alguns religiosos presentes nas histórias parecerem verdadeiros santinhos... E são esses “santinhos” os meus objetos de análise no próximo capítulo.

97

Cf. ZINK, Michel. Literatura. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (coord.) Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002. v.2.

61

CAPÍTULO 3 – AGRIDOCE ESTILO NOVO: FICÇÃO E CRÍTICA

3.1 – Análise das novelas

Muitos dos estudos sobre o Decamerão optam por abordar temas ligados aos estudos de gênero. O motivo é a maneira que Boccaccio se dirige às mulheres, além de torná-las o público leitor preferido de suas com novelas. Optei por seguir um caminho diferente, ainda que alguma coisa relativa aos estudos de gênero seja mencionada durante a análise da fonte. Na primeira leitura que fiz do Decamerão, antes mesmo de decidir meu objeto de estudo, o aparecimento de pessoas ligadas ao clero cometendo pecados e descumprindo aos votos feitos me chamaram atenção. A inquietação persistiu após outra leitura que fiz da fonte, agora devido a motivos acadêmicos. Ela começou a transformar-se em problema quando, de maneira incipiente, fiz minha primeira análise no campo da História Medieval. Eu buscava entender a relação entre a morte e a sociedade durante a Idade Média, escolhendo o século XIV para meu recorte temporal, usando como fonte o Decamerão, devido a impressionante descrição que Boccaccio faz sobre os efeitos da epidemia em Florença. Algum tempo depois, quando iniciei realmente a pesquisa cujo resultado é esta monografia, o que era uma inquietação persistente, passou a ser um problema digno de pesquisa. E ele precisava de respostas. A primeira pergunta feita, baseada na fonte, era sobre entender os motivos que levaram Boccaccio a escrever novelas cujo tema era a crítica ao clero. A partir dela, acrescentei outras, que ajudaram a delimitar melhor o meu tema de pesquisa. De que maneira Boccaccio critica as posturas do clero em Decamerão? Como as críticas ao clero circulavam dentro da Península Itálica na época do Trecento? Qual o teor das relações entre sociedade e Igreja na Península Itálica e em Florença durante a primeira metade do século XIV Qual o lugar social de Boccaccio na época de produção da obra? Existiu algum tipo de mecenas que financiou sua produção? Essas perguntas e as leituras que fiz até o momento, ajudaram a construir as hipóteses abaixo: 

Boccaccio funcionaria como ”intelectual orgânico” dos mercadores. O Decamerão nada mais é do que um grande exemplum; um livro de normas para um novo grupo social que surgia, a burguesia. Isso explica porque o universo dos mercadores é tão bem retratado na obra.

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Boccaccio escreve sua obra como modelo de conduta para as classes abastadas, por isso, ele propõe discutir sobre as paixões humanas na obra. Ter a justa medida das paixões humanas seria positivo, pois são elas a prova de que as pessoas estão vivas, além de as impulsionarem para novas conquistas – algo importante para uma sociedade que se constrói a partir do comércio com o Mediterrâneo e o restante da Europa.



Portanto, Boccaccio critica o clero por se julgarem imunes às paixões humanas, além de recomendarem completa moderação as pessoas, principalmente as mulheres. Apontar críticas ao clero seria a forma encontrada de mostrar que ninguém é imune às paixões, nem mesmo aqueles que julgam sê-lo.



Boccaccio combina a crítica que era feita durante o século XIV ao modus operandi da Igreja – ela era a principal opositora da busca pelo lucro – com a busca por outras maneiras de percepção e contato com o sagrado. Mosteiros e a Ordem dos Frades Menores98 serão constantes objetos de crítica por parte do autor. Para desenvolver as hipóteses propostas acima, escolhi, dentre as cem novelas que

compõem o Decamerão, aquelas nas quais os personagens principais fossem ligados ao clero. Além delas, escolhi outras nas quais haja alguma atitude que fuja daquilo que a sociedade espera da conduta dos sacerdotes. Dentro do primeiro grupo de fontes, contabilizei dezoito novelas. As novelas as quais os personagens principais não pertencem ao clero, mas há citação relevante a atitudes de sacerdotes totalizam o número de duas novelas. No total, vinte novelas serão analisadas; contudo, não as analisarei separadamente e sim de acordo com divisão temática que apresentarei após a enumeração detalhada das fontes. Nem todas as jornadas possuem novelas que façam qualquer tipo de referência ao clero. A Quinta Jornada, cujo tema central são histórias de amor que passaram por revezes, é exemplo disso. É sabido que cada novela possui um narrador específico. Além de contabilizar as novelas por jornada, fiz um levantamento das novelas escolhidas de acordo com o narrador. Apresentarei o resultado do levantamento, o que nos levará às primeiras interpretações sobre as fontes escolhidas.

98

É o nome oficial da Ordem Franciscana, fundada por Francisco de Assis em 1209. Cf. VAUCHEZ, Andre. A espiritualidade na Idade Média Ocidental (séculos VIII a XII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

63

Tabela 1: Novelas escolhidas por jornada Jornada Primeira Segunda Terceira Quarta Quinta Sexta Sétima Oitava Nona Décima Total:

Novelas 5 1 6 1 0 2 1 2 1 1 20 novelas

A jornada com o maior número de novelas que serão úteis para esta pesquisa é a Terceira Jornada, com seis novelas. Após ela vem a Primeira, com cinco novelas. Sexta e Oitava com duas novelas, cada uma. Todas as outras, com exceção da Quinta, apresentam, respectivamente, uma novela. As temáticas centrais tanto da Primeira, quanto da Terceira ajudam a explicar esta concentração de novelas, nas quais se faz crítica ao clero, nestas duas jornadas. A Primeira Jornada, apesar de não ter o tema central definido previamente, possui uma unidade lógica: todas as novelas falarão sobre os pecados e os vícios humanos. Por isso, Boccaccio aproveita para fazer algumas das críticas mais pesadas ao clero nesta jornada. Isto porque um dos pressupostos da vida religiosa é a virtude; aqueles que pertencem ao clero estariam livres de cometer os pecados cometidos pelos leigos. Na Primeira Jornada, a I,1 99 é a única que foge a este esquema, pois o objetivo de Boccaccio é, de certa maneira, uma crítica doutrinária. No caso da Terceira Jornada, o tema central é a satisfação dos desejos, não importando os meios usados para atingir os objetivos. Nesse caso, acrítica ao clero serve para mostrar que, aqueles que se julgam imunes de sucumbirem aos próprios desejos, também são suscetíveis de sucumbir a eles. Um exemplo é a III,1, na qual as monjas se aproveitam do hortelão que se finge de mudo. Duas das novelas dessa jornada, as quais fazem parte do corpus documental, merecem aqui que se faça menção a elas: a III,3, na qual um ingênuo frade acaba servindo de moço de recados para uma casal e a III,7, cuja história é a de um homem que foge de Florença por amar certa mulher casada. Duas novelas dessa jornada merecem aqui que se façam 99

A partir de agora, usarei o algarismo romano, para fazer referência às jornadas e o algarismo arábico, para me referir às novelas.

64

menção a elas: a III,3, na qual um ingênuo frade acaba servindo de moço de recados para um casal, e a III,7, cuja história é a de um homem que foge de Florença por amar uma mulher casada. As ações dos padres, em ambas as novelas, resultaram em satisfação dos desejos por parte dos personagens principais das respectivas novelas, porem a maneira que os padres atuam no processo é diferente. Na III,3, é a ingenuidade do padre que leva ao encontro dos amantes, enquanto na III,7, é a confissão feita ao padre que separa os dois personagens principais. A III,7 será objeto de análise um pouco mais a frente; por enquanto,continuarei a comentar sobre a relação entre novelas e jornadas. As duas últimas jornadas citadas, que possuem números acima de uma novela – Sexta e Oitava – discutem sobre como as palavras, quando bem empregadas, mostram os deslizes das pessoas e as burlas que as pessoas cometem umas contra as outras, respectivamente. Tanto no caso da Sexta, quanto no caso da Oitava, as novelas escolhidas apresentam grande diferença entre elas, porém todas se enquadram perfeitamente dentro da temática geral de suas respectivas jornadas. Outro levantamento prévio que fiz tem a ver com o número de novelas escolhidas, de acordo com o narrador delas, A tabela abaixo mostra os resultados encontrados.

Tabela 2: Novelas usadas por narrador. Narrador

Novelas

Dionéio

3

Elisa

3

Emília

3

Fiammetta

1

Filomena

1

Filóstrato

2

Laurinha

2

Neífile

1

Pampinéia

1

Pânfilo

2

Total

20

65

Pànfilo, Elisa, Dionéio e Emília foram quem mais narraram novelas que fazem menção ao clero. Cada um narrou três novelas em jornadas diferentes. Porém, o mais importante é saber que todos os narradores, não importando qual seja a jornada, narraram, pelo menos, uma novela, na qual Boccaccio apresenta críticas ao clero. A partir de agora, farei uma breve análise delas. As vinte novelas que fazem parte do corpus documental foram divididas em cinco grupos, montados de acordo com o tema da novela. Escolhi esta metodologia de análise porque acredito que ela dê uma visão mais ampla do documento que analisarei. Caso decidisse analisar novela por novela em separado, eu não teria a visão totalizante que o próprio Boccaccio buscou quando escreveu Decamerão. O conjunto das fontes ficou subdividido da seguinte forma: 

Grupo 1: são as novelas nas quais identifiquei uma crítica mais geral às atitudes do clero. Elas vão de críticas à hipocrisia dos religiosos (I,6), até a omissão sobre faltas que as outra pessoas cometeram (VI,3). Compõem este grupo de novelas I,2; I;6; I,7; II,5; III,7 e VI,3.



Grupo 2: mas novelas que compõem este grupo, Boccaccio continua criticando as atitudes do clero. Porém, temos algo com enfoque mais específico. Portanto, o elemento que unifica as novelas escolhidas é a quebra dos votos de castidade, que passaram de recomendável a obrigatório a partir de meados da Idade Média Central. Deste grupo fazem parte as novelas I,4; III,4; III,8; III,10; IV,2; VII,3; VIII,2 e VIII ,4



Grupo 3: composta pelas novelas nas quais há presença de mulheres ligadas aos clero. Elas poderiam figurar dentre o Grupo 2, porém o estudo de relações entre mulheres e religião suscita a compreensão de questões ligadas aos estudos sobre mulheres na Idade Média. Duas novelas compõem este grupo, a III,1 e a IX,2.



Grupo 4:

após uma primeira leitura, as novelas pertencentes a este grupo se

encaixariam facilmente no Grupo 1. Contudo, todas elas acabam nos levando a reflexões que passam pela discussão de temas ligados aos sacramentos da Igreja Um exemplo é a I,1. A atitude de Ciappelleto nos leva a pensar sobre a relação entre Igreja e a sociedade durante os séculos finais da Idade Média. Além da I,1, compõem este grupo as novelas III,3 e VI10. 

Grupo 5: aqui encaixei a X,2, pois não apresenta nada em comum com as outras. Além do que, a novela que compõe este grupo está na Décima Jornada, cujo tema central é as virtudes humanas. A X,2 é a única novela na qual Boccaccio faz nenhuma crítica às 66

atitudes do clero. Aliás, a X,2 servirá de contra ponto a todas as outras novelas que criticam as atitudes do clero. Definidas as fontes, é o momento de efetuarmos as análises. Começarei pelas novelas alocadas no Grupo 1. Meu objetivo aqui, além daqueles apresentados na Introdução, é entender como se passa da crítica às atitudes do clero para uma crítica à aspectos da doutrina católica. Darei o pontapé inicial nas análises com a III,7. Ela é uma das duas novelas que não apresenta pessoas ligadas ao clero como personagens principais. Contudo, a declaração feita por um dos personagens é que abrirá a nossa análise das fontes. A novela conta a história de Tedaldo degli Elisei, moço que se apaixona pela Senhora Ermelinda, esposa de Aldobrandino Palerminni. Ele acaba indo embora de Florença, mas, devido a uma acusação injusta ao marido de sua amada, volta à cidade e se reencontra com Ermelinda. É durante o reencontro deles, estando Tedaldo disfarçado de peregrino e sem revelar a verdadeira identidade, que ocorre a conversa que será meu objeto de análise. Desejando saber os motivos do desentendimento com Tedaldo, o peregrino pergunta à Senhora Ermelinda se ele a ofendeu:

– Certamente, não; jamais ele me ofendeu. A causa do desentendimento foram as palavras de um frade maldito, com o qual me confessei, certa vez; em certa ocasião, eu disse a este frade do amor que tinha por Tedaldo, e da intimidade em que vivia com ele; então, o frade desabou tamanha arenga sobre minha cabeça, que ainda hoje estou amedrontada; declarou-me ele que, se eu não renunciasse àquelas relações, iria para a boca do demo, nas profundezas do inferno, e que, depois, seria colocada no fogo eterno. Isto pôs tanto medo em minha alma, que resolvi não querer mais, de uma vez para sempre, saber da intimidade dele; para não voltar a prevaricar, deixei de receber qualquer carta dele, e recusei-me a escutar qualquer recado; acho que, desesperado por causa disto, ele desapareceu da cidade; mas acredito que, se tivesse perseverado eu, vendo-o consumar-se como a neve se derrete ao sol, modificaria a minha cruel determinação; pois nenhum desejo maior eu alimentava neste mundo. (BOCCACCIO, 1981, p. 175).

Após explicar que os sentimentos por Tedaldo não eram errados, o personagem faz uma longa explicação sobre as atitudes dos frades. Aqui estão descritos de maneira mais geral – Boccaccio também fará este tipo de crítica em VII,3 – e a partir delas podemos esmiuçar as críticas que Boccaccio faz ao clero nas outras novelas. O que aparecerá de maneira mais geral, surgirá de maneira mais específica em outras novelas. Optei por dividir o trecho da fonte e comenta-la aos poucos, pois o extrato escolhido é grande.

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Ora, deve a senhora saber que eu sou frade e que, por isso, conheço todos os hábitos desses religiosos; e se falo desses costumes à senhora, com certa simplicidade, a favor da senhora, isto não me deslustra, como deslustraria a outro qualquer. É-me muito desagradável falar disto; porém faço-o a fim de que a senhora os conheça, para o futuro, melhor do que parece que os conheceu no passado. Os frades foram já religiosos santíssimos e valentes; contudo, aqueles que agora se dizem frades, e dessa maneira querem ser tidos, não tem mais nada de frades, senão a capa; de resto, essa mesma também não é de frade; os inventores dos frades mandaram que suas capas fossem apertadas, pobres, tecidas de pano grosso, reveladoras da humildade da alma que já desprezara as coisas temporais quando decidiu embrulhar o corpo em tão singela roupa; os frades atuais, contudo, fazem amplas as suas capas, duplas, brilhantes, de pano muito fino; dão à sua forma elegância pontifical, para poderem pavonear-se, dentro delas, pelas igrejas e praças; não ficam vexados de proceder como os seculares com suas roupas; e do mesmo modo que o pescador procura, usando determinada rede, prender muitos peixes, de uma vez só, no rio, também esses frades, embrulhando-se em roupagens amplíssimas, fazem de tudo para nelas apanhar muitas beatas, muitas viúvas, muitas outras mulheres tolas, e também muitos homens; e esta tarefa merece deles maior apego do que qualquer outro exercício. (BOCCACCIO, 1981, p. 175-176)

Boccaccio pontua a diferença entre os frades do passado e os frades atuais. Segundo o autor, ocorreu total degeneração na atividade religiosa, mantendo somente a aparência de frades. Na citação que faz as vestes 100 , há, parece, uma crítica às duas principais ordens mendicantes da época, os franciscanos e os dominicanos, respectivamente. Para Boccaccio, o voto de pobreza feito pelos membros destas ordens é falso, pois continuam sendo pessoas ligadas aos bens mundanos. Boccaccio também critica a tolice, principalmente das mulheres, em acreditar nas palavras desses religiosos. Boccaccio detecta mudança de objetivos de parte dos frades; agora o que desejam é adquirir “mulheres e bens” 101, o que mostra a quebra não só do voto de pobreza, mas do voto de castidade também. De certa maneira, Boccaccio critica a apropriação, através de esmolas e doações, das rendas obtidas pelos leigos; para alguém ligado ao ambiente dos mercadores, é absurdo pessoas que não trabalham se apropriarem dos bens daqueles que buscam sobreviver com os próprios recursos, como podemos ver na citação abaixo.

Assim, para que eu lhe fale com maior veracidade, não são as capas dos frades o que eles têm já, são somente as cores dessas capas. Os frades antigos queriam a salvação dos homens; os de hoje querem mulheres e bens; concentram todo o seu estudo e todo o seu esforço em espantar, com discursos, sermões e figuras, o espírito dos simples; pretendem que os pecados sejam pagos com esmolas e missas; por este modo, aqueles que, por vileza, e não por devoção, se resolveram a ser frades, não necessitam trabalhar; uns lhes levam pão; outros vinho; outros fazem-lhes os pratos; e tudo em nome da alma dos ancestrais. (BOCCACCIO, 1981, p. 176)

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BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo: Abril Cultural, 1981, p. 176, l. 8-14. BOCCACCIO, ibidem, p. 176, l. 24.

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Boccaccio, no trecho acima, também critica o que a doutrina católica chama de “salvação pelas obras”; para que continuar a rezar e dar esmolas se quem deve dar exemplo de virtude, simplesmente a ignora? É o que nos mostra Boccaccio no trecho abaixo.

Certamente, é verdade que as esmolas e as preces purgam os pecados; porém, se as pessoas que recorrem a isso viessem a quem, o fazem, ou conhecessem a pessoa que lhos pede, haveriam de preferir guardar esmolas e preces para si mesmas, ou jogá-las a outros tantos porcos. Os frades atuais sabem que, quanto menor é o número das pessoas que têm riquezas, tanto mais regaladamente eles vivem; assim, procuram pôr medo em todo mundo com discurseiras e sermões, para que os outros fiquem afastados, ou se desprendam daquilo que eles querem que fique apenas para eles. Os frades gritam contra a luxúria dos homens, para que, abandonando os homens os atos a que se entregam, sobrem as mulheres para os frades; condenam a usura e os lucros perversos, para que, transformando-se em receptores dos resultados da usura e dos lucros ilícitos, possam ampliar as suas capas e dar, aos bispados e às demais prelazias maiores, as riquezas que eles afirmam que haveriam de levar à perdição as pessoas que as possuíssem. E, quando são censurados por causa disto, assim como por muitas outras que fazem e que não deveriam fazer, julgam-se inteiramente desobrigados, e livres de qualquer culpa grave, dizendo: “Façam como dissemos, e não como fazemos”. Como se fosse mais possível fosse às ovelhas do que aos pastores, o serem constantes e de ferro,,, (BOCCACCIO, 1981, p. 176)

No trecho acima, Boccaccio condena os pecados contra os votos de castidade e de pobreza. Segundo o autor, o objetivo deles é viver como os leigos, ostentando aura de santidade e condenando as atitudes deles. Boccaccio sugere que os leigos vivam as paixões e gastem o que possuam, para que os frades não façam o contrário do que pregam. Ou ainda que eles parem de ser hipócritas e passem a pregar exatamente o que fazem.

Boa parte dos frades conhece bem como são numerosas as pessoas às quais se dá aquela resposta, porém não a entendem pelo modo em que ela é dada. Os frades de hoje querem que vocês realizem aquilo que eles dizem, isto é, que vocês encham a bolsa de dinheiro; que vocês contem seus segredos; que vocês sigam as normas de castidade; que sejam pacientes; que perdoem as ofensas; que se afastem da prática da maledicência. Tudo isto é bom, é honesto, é santo. Mas tudo isto com que fim? A fim de que eles os frades, possam fazer aquilo que, se os seculares fizerem, eles não poderão fazer. Há quem ignore que, sem dinheiro, não pode a poltronaria durar? Se você gastar o seu dinheiro com prazeres, não poderá o frade viver como um mandrião em seu mosteiro; se o homem andar à procura de mulheres que estão a sua volta, os frades não terão por onde andar; se não existir alguém paciente perdoador de ofensas, não se atreverá o frade a ir à casa dele e contaminar-lhe a família. Por que razão eu corro atrás de todas as coisas? Acusam-se os frades tantas vezes quantas, em presença dos entendidos, aquela resposta é formulada. Então, por que motivo eles não ficam, preferentemente, em casa, já que não se consideram capazes de abstinência e de santidade? Ou, então, se desejam dar-se aos prazeres, por que motivo não seguem aquela santa palavra do Evangelho: “Cristo começou a fazer e a ensinar?” Sejam eles os primeiros a fazer: e que apenas depois disso tratem de ministrar ensinamentos aos demais. E entre os meus companheiros, vi milhares de ambiciosos, mulherengos, visitadores não apenas de mulheres seculares, como também das que estão nos conventos; contudo, são eles os que maior barulho fazem

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no púlpito. E será a palavra dos que assim procedem que iremos escutar? Quem a escuta, que faça o que bem entende; porém Deus é quem sabe se o faz sabiamente. (BOCCACCIO, 1981, p. 176-177)

O que Boccaccio faz entre as páginas 175 e 177 nada mais é que expor ao público a hipocrisia do clero. De certa maneira, o que o autor escreve se encaixa na ideia de que aqueles que não vivem a vida de leigos são incapazes de dizer aos leigos como se comportam. Mais tarde, muitas das atitudes descritas por Boccaccio serão munições contra a Igreja Católica durante o período da Reforma Protestante; Lutero era frade e sabia muito bem o que criticava, quando foi a Igreja de Wuttemberg e pregou na porta as 95 Teses. Continuando o debate sobre as fontes do Grupo 1, podemos apontar as críticas ao clero que aparecerão na fonte; exemplo disso é a crítica a luxúria, a avareza, gula e soberba dos frades. A glutonaria dos frades – como não se lembrar do rechonchudo Frei Tuk, de Robin Hood – servirá para Boccaccio manifestar na III,7, sua crítica ao clero.“Contudo, sabe bem a senhora o que fez, induzida pelas palavras de um frade que era apenas um baboso comedor de bolos. É provável que a intenção dele fosse colocar-se no lugar de onde procurava expulsar Tedaldo.” (BOCCACCIO, 1981, p. 178) A avareza e a ganância dos membros do clero também são objeto de críticas pelo autor. O resultado dela pode até resultar na participação de fraudes em violações de sepulturas, visto que algumas pessoas levavam para o túmulo bens preciosos. Boccaccio nos mostra isso na II,5, que conta as desventuras de Andreuccio de Perugia. Depois de passar por poucas e boas em Nápoles, Andreuccio acaba se envolvendo com ladrões de sepulturas, que roubariam o túmulo de um arcebispo enterrado há pouco tempo. O trecho abaixo cita a participação de um padre na violação de um túmulo.

Assim, porém, que os novos larápios abriram o sepulcro, e puseram uma escora na tampa, eles começaram a discutir sobre quem tinha a obrigação de entrar; nenhum porém, estava disposto a dar semelhante demonstração de coragem. Entretanto, após longa discussão, um padre disse: – O que é que vocês receiam? Estão pensando que o morto lhes vai morder? Os mortos não devoram os vivos. Já que é assim, eu mesmo vou entrar neste túmulo. (BOCCACCIO, 1981, p. 87)

Na novela I,6, Boccaccio nos conta a história de um homem rico e bondoso, mas ingênuo, que é punido por um frade inquisidor, ligado à Ordem dos Franciscanos. Tal frade

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era, como diz Boccaccio, “devoto de São João Barba de Ouro” 102 , ou seja, extremamente ganancioso. Por fim, para livrar-se da Inquisição, o homem acaba pagando um suborno ao frade e tendo que cumprir penitências. No trecho abaixo, Boccaccio nos dá uma ideia sobre a ganância de alguns membros do clero.

Em breve tempo, o inquisidor conseguiu atemorizar tanto o infeliz, que este, por intercessão de certos intermediários, foi obrigado a untar-lhe as mãos com boa quantidade de graxa de São João Barba de Ouro. Tal graxa é muito indicada no tratamento da pestilenta avareza dos sacerdotes, e, sobretudo, dos frades menores, os quais não se atrevem a pôr a mão diretamente em dinheiro. A tal graxa foi destinada a fazer com que o inquisidor fosse misericordioso com o bom homem. Essa graxa é supinamente virtuosa; é de admirar que Galeno não se refira a ela em nenhuma parte de seus escritos a respeito de remédios. Ela surtiu efeito tão grande, que o fogo anteriormente ameaçado mudou-se na graça de uma cruz. Além do mais, ainda, como o bom homem precisasse atravessar o oceano, ofertou-lhe o próprio inquisidor, para tornar o episódio uma espécie de solenidade embandeirada, uma cruz amarela, engastada em fundo preto. Assim mais, depois de embolsado o dinheiro, o frade conservou o bom homem ao alcance de sua mão, por muitos dias; a título de penitência, deu-lhe a obrigação de ir, todas as manhãs, ouvir uma das missas em Santa Cruz, e de, na hora da primeira refeição, apresentar-se ao inquisidor; no restante do dia podia fazer o que quisesse. (BOCCACCIO, 1981, p.45)

É justamente o sermão da missa que dá possibilidade do homem reverter a situação e acabar com a punição injusta. Após ouvir o sermão o homem se dirige ao frade e o informava o que de positivo tirou do sermão103.

O inquisidor perguntou, então: – E que palavra foi que o levou a sentir tão grande piedade de nós? O bom homem retrucou: – Senhor frade, foi a partir do Evangelho onde se diz: “Vocês terão por um, cem, cem e possuirão a vida eterna”. (BOCCACCIO, 1981, p. 45).

O inquisidor fica curioso com a resposta dada pelo homem e deseja saber um pouco mais. E aí que ele critica a ganância, a avareza e a hipocrisia dos franciscanos e, por conseguinte, consegue se livrar da punição.

– Senhor frade – retrucou o bom homem – vou contar-lhe. Depois que comecei a viver aqui, por sua determinação, todos os dias tenho visto dar, a muitos pobres, ali de fora, às vezes um, às vezes dois caldeirões de sopa. Tal sopa é tirada do senhor e dos frades deste mosteiro, como se, antecipadamente, fosse tida como 102 103

BOCCACCIO, ibidem, p. 44, l. 37. BOCCACCIO, ibidem, p. 45.

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supérflua. Desse modo, se, para caldeirão, forem devolvidos cem, na outra existência, os senhores terão tanto que todos poderão afogar-se neles! Pondo-se a rir das palavras do bom homem todos os frades que estavam almoçando junto com o inquisidor, este, notando que o que se atingia era a água chilra de sua hipocrisia, ficou perturbado. Não fosse por lamentar o que ele mesmo fizera, o frade moveria novo processo contra o bom homem; e isto pelo fato de que o bom homem arranhara, criando de propósito uma situação ridícula, os brios, tanto dele como de todos os demais poltrões. Por estranho capricho, mandou o frade menor que o bom homem fizesse, daí para a frente, aquilo que quisesse, sem ter a obrigação de aparecer mais diante de seus olhos. (BOCCACCIO, 1981, p. 45-46)

A crítica feita em I,6, é objeto de elogios do narrador seguinte; que prossegue no tema da avareza.

– Muito agradável, minhas dignas jovens, é acertar num alvo que jamais se modifica. Contudo, ocorrência maravilhosa é a de surgir algo inesperado, de súbito, se for, de repente, atingida por um arqueiro. A vida cheia de vícios e muito suja dos sacerdotes que, por muitos aspectos, é sinal certo de cativeiro, dá, facilmente, margem a assunto que comentar, criticar e censurar, a quem quer que queira fazer isso. Assim aconteceu o que o bom homem, processado pelo inquisidor, feriu a hipócrita caridade fradesca, que dá aos pobres o que deveria ser atirado aos porcos, ou jogado fora. Entretanto, prefiro louvar aquele de quem, induzido pela novela anterior, desejo falar. Esse de quem falarei criticou uma inesperada e incomum avareza nova, surgida em Cane della Scala, senhor esplendoroso. Por meio de uma graciosa novela, fez a sua crítica, atribuindo, no contexto, a outras pessoas o que de si mesmo e do avarento queria dizer. (BOCCACCIO, 1981, p. 46)

Porém, nesse caso, o abade não é o personagem principal da história. Ocorre aqui um caso de novela dentro da novela: Bergamino usa a história sobre Primasso e o Abade de Cligni para apontar a avareza do Senhor Cane della Scala. Mesmo assim, ainda há aqui crítica à avareza do clero. Outra crítica possível às atitudes do clero é, de acordo com a fonte, o repúdio à omissão frente aos erros cometidos por outras pessoas. A novela VI,3, apesar de ter como ideia central o uso da palavra para mostrar o erro de outra pessoa ou para se livrar de situação embaraçosa, apresenta também crítica à omissão perante a atitudes reprováveis do clero. No caso, o bispo de Florença Antonio d’Orso fez vista grossa ao adultério de sua sobrinha, que incluiu o pagamento ao marido dela de 500 florins de ouro, que foram pagos com moedas falsas. Aliás, tal acordo foi feito contrariando a vontade da moça.

Sendo o senhor Antônio d’Orso, bispo de Florença, prelado de muitas luzes e coragem, surgiu na cidade um gentil-homem catalão, cujo nome era Senhor Diego della Ratta, capitão de armas do Rei Roberto. Tal senhor tinha bonito corpo, além de ser grande cortejador de mulheres; e sucedeu que, dentre outras senhoras florentinas, uma lhe agradou: era mulher muito linda, sobrinha de um irmão do tal bispo. O

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Senhor Diego soube que o marido dela, ainda que de excelente família, era profundamente avarento e mau; por este motivo, foi procurá-lo e combinou dar-lhe 500 florins de ouro, se consentisse que ele, Diego, dormisse uma noite com sua esposa. Com esta finalidade, mandou dourar popolini de prata, que estavam então em curso; dormiu com a mulher do outro, ainda que isto fosse contrário ao prazer dela; entregou ao marido o dinheiro. Depois todos tomaram conhecimento do que ocorrera, e, ao mau homem, restaram os danos e os motejos. (BOCCACCIO, 1981, p. 325).

É Monna Nonna dei Pulci que critica o erro e a omissão do bispo. Após ela ser apresentada ao mulherengo capitão de armas pelo bispo, ele deseja saber se ela estava interessada no capitão. Percebendo as intenções de ambos, ela responde: “– Senhor, pode ser que ele não me merecesse, mas eu haveria de querer moeda legítima”. (BOCCACCIO, 1981, p. 326) A resposta de Monna Nonna dei Pulci provoca reflexão nos dois homens e eles toma consciência do erro que cometeram.

...notaram que tinham sido atingidos por igual: um como autor de ato desonesto, cometido contra a sobrinha do irmão do bispo; o outro como receptor de dinheiro mal ganho, através da sobrinha do próprio irmão ambos, sem olhar um para o outro, encheram-se de vergonha; silenciosamente, afastaram-se dali; e por todo aquele dia, não disseram mais palavra alguma. (BOCCACCIO, 1981, p. 326)

As novelas analisadas apresentam algumas críticas bem específicas às atitudes do clero. Porém, é na novela I,2, que Boccaccio faz crítica mais ampla à maneira de agir do clero. A segunda novela da Primeira Jornada conta a história de famoso comerciante, residente em Paris, chamado Gianotto de Civigni. Este comerciante era grande amigo de um judeu riquíssimo e comerciante correto de nome Abraão. Gianotto tentava, a todo custo, converter o amigo ao cristianismo, mas Abraão se recusava; pois era bem instruída na Lei de Moisés. Porém, um dia, Abraão decide ir à Roma para entender as maneiras e costumes dos religiosos. Então, Gianotto entra em desespero:

Ao ouvir isto, Gianotto ficou tremendamente penalizado. E a si mesmo disse: “Perdi todo o meu trabalho, que tão bem empregado me parecia; imaginava que este judeu já estivesse convertido. Se for a Roma – se visitar a corte de lá – e se vier a conhecer a vida celerada e imunda dos sacerdotes, não apenas não se converterá, de judeu em cristão, como se pode dizer com certeza que, se já fosse cristão batizado, indubitavelmente voltaria a ser judeu!” (BOCCACCIO, 1981, p.35, l.12-19)

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Gianotto tenta convencê-lo da desnecessária viagem, mas o amigo estava decidido a fazê-la. Abraão vai a Roma e, chegando lá, surpreende-se com as atitudes do clero:

Permanecendo em Roma, sem contar a ninguém a razão que ali o levara, tratou, com cautela, de observar os modos do papa, dos cardeais e dos outros sacerdotes, assim como de todos os cortesãos. Adicionando o que observou, pessoalmente, como homem conhecedor dos homens que ele era, àquilo de que alguém o pôs ao colocado, o judeu chegou à conclusão de que, desde o mais altamente colocado até ao mais humilde, todos, em geral, em Roma, cometiam, desonestissimamente, o pecado da luxúria; pecavam não apenas por luxúria natural, como ainda por atos de sodomia; e tudo ocorria sem nenhum freio representado pelo remorso ou pela vergonha. Grande era o poder das meretrizes e dos efeminados, para impetrar fosse o que fosse que se revestisse de importância. Além do mais, notou, publicamente, que todos eram universalmente gulosos, bebedores, beberrões – e mais cuidavam do próprio ventre, como animais irracionais, dados à luxúria, do que qualquer outra coisa. Aprofundando a sua observação, descobriu que todos eram avarentos e sequiosos por dinheiro. Vendiam o sangue humano e, sobretudo, o sangue cristão; faziam comércio das coisas divinas, fossem elas quais fossem, ainda que pertencessem aos sacrifícios e benefícios; vendiam e compravam dinheiro, para conseguir mais lucro. Em Roma, existiam muito mais lojas de fazendas e de outras coisas do que em Paris. À simonia mais evidente tinham os romanos dado o nome de procuradoria; à gula davam o nome de subsistência. Como se Deus, ainda colocando-se de parte o significado das palavras, desconhecesse mesmo a intenção dos malvados espíritos, e pudesse ser iludido, à maneira dos humanos, pelo disfarce vulgar do nome que se dava às coisas. (BOCCACCIO, 1981, p. 36)

Tais atividades desagradaram ao judeu, homem sóbrio e modesto. Como já vira de tudo, volta à Paris. Alguns dias após a volta, Gianotto pergunta ao amigo as impressões dele sobre Roma. E Abraão responde:

− Parece-me que é coisa má que Deus dê ventura a todos quantos eles são! Afirmo-lhe tal coisa, porque, se foi me dado examinar bem os fatos, não me pareceu ver, ali, qualquer santidade, nem qualquer devoção, nem qualquer obra pia, nem qualquer exemplo de vida decente, em pessoa de clérigo. Apenas vi luxúria, avareza e gula, e outras idênticas a estas, e até piores, se é que coisas piores podem haver, cometidas por alguém. Tive a impressão de ver tanta gente vivendo inteiramente contente, que passei a ver naquilo antes uma oficina de operações do diabo do que um templo dos atos de Deus. Pelo o que foi me dado considerar, com extrema solicitude, inteligência e arte, pareceu-me que o seu pastor e, consequentemente, todos os demais, fazem todos os esforços para reduzir a nada, e mesmo até para apagar do mundo a religião de Cristo, em lugar de ser, como o deveriam, os seus sustentáculos e suas bases. Contudo, pelo que noto, prazerosamente, não virá para tal religião o futuro que lês afanosamente tentam dar-lhe; essa religião, ao invés disso, crescerá; vai expandir-se; vai tornar-se sempre mais luminosa e mais brilhante. Assim sendo, pareceu-me compreender que é o Espírito santo, merecidamente, o seu sustentáculo, e a sua base, como é conveniente a uma religião mais certa e mais santa do que nenhuma outra. Por estas razões, eu, que me mostrava severo e duro diante dos argumentos que você me apontava, e que não estava propenso a tornar-me cristão, agora com franqueza, lhe afirmo que não deixaria, por nada deste mundo, de tornar-me cristão. Vamos, portanto, à igreja; e ali, mande que me seja dado o batismo, conforme a tradição de sua santa crença. (BOCCACCIO, 1981, p. 36-37)

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Assim, Abraão converte-se ao cristianismo e é batizado com o nome de João, vivendo como um homem bondoso e de santa fé. Nesta novela, Boccaccio mostra o quanto as atividades do clero estavam em desacordo com a religião; ou seja, mais uma vez, o autor aponta a hipocrisia dos membros do clero católico. Porém, ele nos deseja mostrar que não é a opulência do clero que torna o cristianismo poderoso, mas a fé de seus praticantes. Portanto, Boccaccio critica o clero, mas não os praticantes da religião. Outra interpretação possível que, além de criticar a postura do clero, Boccaccio critica também os judeus, pois já praticariam as coisas descritas pelo autor mesmo sem seguirem o catolicismo romano. Assim, para o autor, a conversão de Abraão seria uma maneira de manter as atitudes antigas, ainda que a religião fosse outra. As licenciosidades cometidas pelos membros do clero ganham atenção especial por parte de Boccaccio. As novelas que compõem o Grupo 2 tratam justamente sobre a quebra de votos de castidade. Não ceder às paixões humanas, de acordo com o pensamento medieval, evitava que os seres humanos sucumbissem aos pecados. Porém, Boccaccio nos mostra que, aqueles que se julgavam acima das paixões humanas e recomendavam em sermões e confissões a castidade aos fiéis, eram tão ou mais capazes de atos libidinosos. Boccaccio nas novelas I,4 e VII,3, pessoas que, nem o fato de entrarem para uma ordem religiosa, foi capaz foi capaz de apagar o fogo de suas paixões. A novela I,4 nos fala de um jovem monge que, durante um passeio, encontra uma jovem camponesa e a leva para dentro do mosteiro onde vive, situado em Lunigiana e pertencente a Ordem Beneditina. Em sua cela, mantém relações sexuais com a moça e, sem que ele perceba primeiramente, é descoberto pelo abade. Algum tempo depois, ele descobre que o abade está a vigiá-lo. Concebe um plano, finge que sai do mosteiro, se esconde e espera atentamente a reação do abade. Enquanto isso, o abade entra na cela do monge e encontra a moça que, assustada, começa a chorar. Ao vê-la, o abade, mesmo sendo pessoa idosa, sente os apelos da carne e começa a pensar sobre o que deveria fazer;

– Enfim, que razão há para que eu deixe de desfrutar de um prazer, quando posso desfrutá-lo, se, por outro lado, os aborrecimentos e os tédios estão sempre preparados para que eu os prove, queira ou não? Aí está uma bela moça; está nesta cela, sem que nenhuma pessoa, no mundo, saiba disso. Se posso fazer com que me proporcione os prazeres pelos quais anseio, não existe nenhuma razão para que eu não a induza. Quem é que virá a saber disto? Ninguém, nunca, o saberá! Pecado oculto é pecado meio perdoado. Um acaso destes quiçá jamais venha a se verificar de novo. Julgo ser conduta acertada colher o bem que Deus Nosso Senhor nos envia. (BOCCACCIO, 1981, p. 41)

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Por fim, o abade consegue acalmar a moça e acaba mantendo relações sexuais com ela. Enquanto isso, o monge, atrás da porta, ouve tudo o que se passou.

O monge, que havia fingido ir ao bosque, mas que, na verdade, escondera-se na ala dos dormitórios, viu quando o abade entrou em sua cela. Assim, completamente tranquilo, compreendeu que seu plano dera resultado; ao perceber que o abade trancara a porta por dentro, teve, sobre isso, absoluta certeza. Deixando o seu esconderijo, silenciosamente foi até um orifício, através do qual viu e ouvir o que o abade fez e disso. (BOCCACCIO, 1981, p. 41)

O abade, algum tempo depois, deixa a cela do monge e resolve chamá-lo. O monge vai ao encontro dele e o abade começa a criticá-lo pelas atitudes tomadas. Sem hesitar, o monge respondeu:

– Senhor abade, não estou, ainda, há tempo bastante na Ordem de São Bento para conhecer todas as singularidades de sua disciplina. O senhor não me mostra ainda que os monges precisam fazer-se mortificar pelas mulheres, assim como devem fazê-lo com jejuns e vigílias; agora, contudo, que o senhor acaba de mo demonstrar, prometo-lhe, se me conceder o perdão por esta vez, que nunca mais pecarei por esta forma; ao contrário, procederei sempre como vi o senhor fazer. (BOCCACCIO, 1981, p. 41).

O abade reconheceu o próprio erro e desistiu de punir o monge. Retiram, com cuidado, a moça da sela, sendo que a fizeram voltar mais vezes ao mosteiro. No caso de Rinaldo, ele era pessoa de boa família, que se apaixona pela Senhora Agnes. Ela se casa, tem um filho e Rinaldo torna-se padrinho dele. Aliás, Agnes sabia das intenções de Rinaldo e compartilhava o mesmo interesse. Certo tempo depois, Rinaldo se faz frade, mas não abandona antigos hábitos.

Passado algum tempo, sucedeu, porém, fosse qual fosse a causa, que o jovem se fez frade; e, ainda que achasse boa pastagem, nem por esta razão deixou de perseverar em seu desígnio. É certo que, na época em que se tornou frade, o rapaz pôs de parte o amor que sentia pela sua comadre; também de parte ele colocou certas vaidades; apesar disso, com o passar do tempo, sem abandonar o hábito, voltou às inclinações antigas; começou a apreciar de novo o aparecimento em público, e trajar boas roupas, e mostrar-se cuidadoso em todas as suas coisas, assim como acentuadamente elegante em seus modos. Também voltou a compor canções, sonetos e baladas, e igualmente a cantar. Encheu-se de coisas tais como estas. Contudo, que estou eu a dizer do nosso Frade Rinaldo de que falamos? Quais são os frades que não fazem o mesmo? (BOCCACCIO, 1981, p. 355)

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Boccaccio aproveita os atos do frade Rinaldo para, mais uma vez, criticar a hipocrisia dos frades.

Ah! vitupério deste arruinado mundo! Tais frades não ficam vexados de aparecer gordos, de vir com boas cores no rosto; de mostrar-se efeminados em suas vestes e em todas as suas coisas; e não procedem eles como as pombas,e sim como os galos cheios de vaidade, de crista erguida e peito empolado; e isto é ainda pior. Vamos deixar de parte o fato de terem suas celas repletas de frescos, de pomadas e de unguentos; abundam nelas as caixinhas de doces, as empolas e as garrafinhas com águas-de-cheiro e óleos aromáticos; são abundantes os garrafões de malvásia, de vinhos gregos, assim como de outros vinhos; tanto isto é verdade que essas celas nem parecem celas de frades mais, e antes lojas de especiarias, ou casas de ungüentários, para os olhos dos que a veem Não sentem vergonha os frades pelo fato de outros conhecerem que eles são gostosos; julgam que os outros ignoram que os jejuns frequentes, as carnes pesadas e escassas e o viver sóbrio tornam os homens magros e fino de corpo e, na maioria dos casos, sadios. Mesmo assim, quando tornam também os homens doentes, não os adoecem de gota; aos gotosos receita-se como remédio a castidade e todas as outras coisas que são parte da verdadeira existência de qualquer frade modesto e penitente,. Julgam os frades que os demais não sabem que a vida de passado moderado, as longas vigílias, as preces e as disciplinas tendem a tornar pálidos e aflitos os homens; parecem não perceber que os demais conhecem que nem São Domingos, nem São Francisco tinham quatro capas cada um, assim como não usavam roupas finas, nem tecidos delicados; pelo contrário, preferiam as fazendas grosseiras, de cor natural, para dar proteção contra o frio, e não para a elegância do aspecto. Para proteger contra o frio, dava Deus recursos, como facilitava alimentos às almas dos ingênuos, que devem ser alimentados. (BOCCACCIO, 1981, p. 355-356)

Rinaldo, durante uma visita íntima a Agnes é descoberto pelo marido dela. Consegue escapar de consequências mais graves explicando que estava a curar os vermes do afilhado. Frade Rinaldo e o jovem monge de Lunigiana não são os únicos a sucumbirem à luxúria e quebrarem os votos de castidade. Pecar contra a castidade não é exclusividade dos membros do clero regular; aqueles que pertencem ao clero secular também são capazes de cometer tais atos. Exemplo disso são os personagens das novelas VIII,2 e VIII,4. Aliás, o narrador de VIII,2, além de alertar as mulheres para a licenciosidade dos padres, comenta também que eles são capazes de mentir, sendo então pouco dignos de confiança.

– Lindas mulheres, ocorre-me narrar uma curta novela contra os que sempre nos ofendem, sem poderem, igualmente, ser por nós ofendidos; quero referir-me aos padres; declararam eles guerra às nossas esposas; quando conseguem dominar uma delas, têm eles a impressão, ou ficam certos de que conquistaram o perdão da culpa e da pena, tal como se tivessem levado, de Alexandria para Avinhão, o sultão prisioneiro. Ora, se os coitadinhos dos seculares não lhes podem fazer o mesmo, ainda que descarreguem suas iras e busquem vingança disto assaltando-lhes as mães, as irmãs e as amigas - o façam com ardor não menos do que o demonstrado por aqueles padres contra as esposas. Por isso, quero narrar-lhes o caso de uma amorança campesina, mais própria para despertar o riso, diante da conclusão, do que para se fazer luxo prolixo de palavras. Deste caso, poderão vocês concluir, como um

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ensinamento, que nem sempre se deve crer naquilo que os padres afirmam. (BOCCACCIO, 1981, p. 397-398)

Escolhi analisar aqui a VIII,4 porque ela mostra que nem sempre os religiosos se salvam da punição. No caso desta novela é o escárnio e o falatório da cidade. A quarta novela da Oitava Jornada conta a história de um preboste104 e clérigo que se apaixona por uma viúva. Porém a viúva recusa o preboste, mas este continua a convencê-la a entregar-se a ele. Um belo dia, a viúva aceita os galanteios do preboste. A notícia o agrada e ela o convida a ir a sua casa. Só que a viúva, após consultar os irmãos, elaborou um plano para enganar o preboste. Instruiu que ele deveria fazer silêncio quando chegar à casa dela e entrar no quarto, que por sinal, era muito escuro. A viúva possuía uma criada, a qual Boccaccio descreve da seguinte forma:

Tinha esta viúva uma criada que, contudo, não era muito jovem; tinha o rosto mais feito e mais contrafeito que se poderia supor; o nariz era como que esmagado e enorme; a boca, torta, com lábios, muito grossos e dentes mal alinhados, atém de grandes; era vesga e jamais estava sem qualquer doença nos olhos; além disso, a cor de sua pele era esverdinhada e amarela, parecendo que ela não passara o verão em Fiesole, mas sim em Sinigaglia: e, para completar tudo isto, mancava e era aleijada do lado direito. Chamava-se esta criada de Ciuta. Como tinha um rosto muito semelhante a um focinho de cachorro, os homens tinham-na apelidado de Ciutazza. Ainda que fosse mal feita de corpo, não deixava, nem por isso, de ter o seu bocado de malícia. (BOCCACCIO, 1981, p. 410-411)

Prometendo uma camisola à Ciutazza, ela pede à criada que entre em silêncio no quarto e se deite com um homem. A criada prontamente aceita a proposta da viúva, dizendo que dormiria até com seis homens se fosse necessário. O preboste vai á casa da viúva e acontece o seguinte:

Ao chegar a noite, o senhor preboste veio, como combinara. E os dois jovens irmãos da viúva, igualmente, como tinham acertado com ela, permaneceram no respectivo quarto, e fazendo barulho, para que fosse notado que estavam ali. Desse modo, o preboste, pé ante pé, no escuro, dirigiu-se para o dormitório da viúva, onde entrou e encaminhou-se, como fora por ela instruído, de pronto para a cama. Do outro lado da cama, encontrava-se Ciutazza, que recebera de sua patroa todas as instruções sobre o que deveria fazer. O senhor preboste, pensando que tinha ao seu lado a mulher amada, abraçou a Ciutazza, pondo-se a beijá-la, sem proferir palavra; e Ciutazza fez o mesmo, quanto a ele. Depois, o preboste passou a gozar o prazer com ela, apossando-se dos bens tão longamente desejados. (BOCCACCIO, 1981, p. 411)

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Preboste é um antigo cargo militar, responsável por ministrar justiça.

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Percebendo o rumo que as coisas tomaram, a viúva manda que os irmãos executem o resto do plano. Eles saem e acabam encontrando-se com o bispo. O bispo comenta com os rapazes que desejava ir à casa deles e assim é feito. Todos tomam o caminho da casa da viúva; chegando lá, passam a beber vinho e conversar. Algum tempo depois, um dos jovens diz que tinha algo a mostrar ao bispo que prontamente aceita. A seguinte situação acontece:

Para atingir logo o seu fim, o preboste cavalgara um tanto apressadamente; e, antes que os dois irmãos, seguidos pelo bispo, surgissem no quarto, ele já percorrera mais de 3 milhas; por isso, muito esgotadozinho, procurava, naquele instante, descansar um pouco, sempre mantendo em seus braços, apesar do calor, a sua Ciutazza. Quando o rapaz entrou no quarto, com a tocha na mão, acompanhado do bispo e do irmão, ele mostrou ao bispo o preboste, que estava ainda com Ciutazza nos braços. O senhor preboste levou um grande susto; viu a tocha acesa; viu os homens ali reunidos; sentiu-se muito envergonhado; e, temendo que alguma coisa de pior lhe acontecesse, enfiou a cabeça sob os lençóis. (BOCCACCIO, 1981, p. 411412)

O bispo censura duramente o preboste; este percebe que metera a viúva em um grande engano. É obrigado pelo bispo a vestir-se e a pagar uma penitência pelo pecado depois. O bispo desejou saber os detalhes do plano, o que foi prontamente atendido, elogiando depois as atitudes da viúva e dos irmãos dela. O preboste torna-se motivo de falatório e escárnio para so moradores da cidade, a viúva vê-se livre das investidas do dela e Ciutazza ganha a camisola. Além disso, o preboste é motivo de piada dentre as crianças da cidade. Nesta novela, Boccaccio enfatiza duas coisas: a atitude do preboste, a qual vai de encontro às regras do celibato e a atitude da viúva, que usa da esperteza para repelir o preboste. Assim, temos duas temáticas que se concatenam nesta novela: a crítica à hipocrisia do clero e o elogio à virtude da viúva. Durante toda a obra, Boccaccio destaca atitudes de grupos que não resistem a suas paixões, dentre os quais estão as mulheres e os religiosos. Porém, aqui ele usa a virtude de um grupo (representado pela viúva) para criticar as atitudes de outro (representado pelo preboste). No caso da novela IV,2, o final não é nada bonito para Frei Alberto. Após se disfarçar de Anjo Gabriel para manter relações sexuais com a Senhora Lisetta, ele é descoberto pelos parentes da moça. Tenta fugir se disfarçando de selvagem, mas até esta artimanha dá errado:

– Meus senhores, já que o porco não vem à caça; já que não se faz a caçada; e como não quero que os senhores tenham vindo inutilmente, desejo que contemplem o anjo Gabriel... O anjo que, durante a noite, desce do céu à terra, para consolar as mulheres de Vinegia.

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Assim que a máscara foi erguida, Frei Alberto foi por todos reconhecido. Levantaram-se contra ele os gritos de toda gente; proferiram-se por uma pessoa a outra; além do mais, uns jogaram-lhe à cara uma imundície; outros, outra. Desse modo, durante muito tempo o populacho castigou Frei Alberto. Durou tanto o castigo que, casualmente, houve tempo suficiente para que a notícia fosse ter aos ouvidos dos frades seus correligionários. Por isso, seis frades do mosteiro foram ter à praça; jogaram uma capa sobre o corpo de Alberto; tiraram-lhe as correntes; e, não sem imensa zoeira da multidão que os acompanhava, levaram de volta o fantasiado ao mosteiro, ode o trancafiaram, e onde se afirma que Frei Alberto acabou morrendo, depois de viver uma existência miserável. (BOCCACCIO, 1981, p. 224)

Seduzir mulheres não é exclusividade de Rinaldo, do preboste de Fiesole e de Frei Alberto: os frades das novelas III,4 e III,8 também as seduzem.No caso de III,8, a esposa de Ferondo, após o abade aconselhá-la sobre os cumes do marido, se espanta com as investidas de cunho sexual do religioso, porém acaba cedendo aos encantos dele.

– Linda de minha alma, não fique admirada, pois a santidade não fica diminuída por causa disso; a santidade está na alma; o que lhe peço é pecado de corpo. Seja, entretanto, como for, o certo é que sua grande beleza teve uma força tão grande, que o Amor me força a agir como estou agindo. Além disto, digo-lhe que a senhora pode, mais do que outra mulher qualquer, vangloriar-se de sua beleza, já que sua formosura agrada aos santos, acostumados a fitar as belezas do céu. De resto, ainda que eu seja abade, nem por este motivo deixo de ser homem como os demais; como pode perceber, não sou ainda velho. Não deve ser-lhe demasiado difícil comprazer-me; pelo contrário, a senhora até deve querer isto, pois enquanto Ferondo estiver no purgatório, eu lhe darei, fazendo companhia às noites, aquele consolo que ele deveria dar-lhe. Nunca ninguém vai perceber isto, porque todos pensam, a meu respeito, o que a senhora ate há pouco pensava. Não recuse a graça que Deus lhe envia agora, porque muitas são as mulheres que querem, e que não tem, o que a senhora poderá ter e terá, se for suficientemente esclarecida para aceitar meu conselho. De resto, tenho lindas e preciosas joias, que não quero que seja de outra pessoa, se não da senhora. Por isso doce esperança minha, faça por mim o que eu farei, de bom grado pela senhora. (BOCCACCCIO, 1981, p. 186)

Nas duas novelas que citei anteriormente, os frades acabaram seduzindo as mulheres que, de acordo com o que pensa o autor, foram incapazes de resistir às investidas deles. Na novela III,10, a moça acaba satisfazendo os desejos do monge, devido a sua obstinação em o obter a salvação cristã. Alibeque é o nome da moça que buscava o caminho da salvação.

... na cidade de Capsa, na Berbéria, existiu há tempos, um homem muito rico. Este homem tinha, entre outros filhos, uma filhinha bonita e frágil, chamada Alibeque. Não era ela cristã; porém, escutando dos cristãos que moravam na cidade grandes louvores à fé cristã e a tarefa de servir a Deus, decidiu, um dia, indagar a alguém de que modo e com menor impedimento poderia servir a Deus. Respondeu-lhe esse alguém que aqueles que melhor serviam a Deus eram os que deixavam as coisas mundanas e faziam como os que tinham ido para as solidões desérticas da Tebaida. A jovem, que era muito ingênua, e que tal vez não tivesse então mais do que catorze anos de idade, sentiu-se induzida, não por um desejo ordenado e sensato, porém por

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uma curiosidade juvenil: talvez até por um apetite infantil; e, sem comunicar nada a ninguém, começou, logo na manhã seguinte, às ocultas e sozinha, a sua caminhada a fim de chegar ao deserto da Tebaida. (BOCCACCIO, 1981, p. 198)

Alibeque, após muito andar e sofrer provações, acha uma casinha onde se encontrava um santo homem. Temendo ceder às tentações, enviou-a à morada de outro santo homem; isso se repetiu até que ela encontrou a morada de Rústico, pessoa devota e bondosa, que, para provar sua capacidade de resistir às tentações, decidiu mantê-la em sua morada. Porém, até ele, sendo pessoa devota, acabou por sucumbir às tentações.

Este jovem, contudo, pretendendo dar uma prova de sua grande firmeza, não enviou a moça embora, como os outros; manteve-a, ao contrário, em sua cela. Ao cair a noite, preparou-lhe, a um canto, uma espécie de leito, feito com frondes de palmeiras; e disse-lhe que descansasse nessa cama. Isto feito, as tentações não demoraram muito a travar luta contra as forças de resistência do rapaz. Tal moço, julgando-se iludido há muito tempo, afastou-se da firmeza que imaginara ter; e rendeu-se, vencido, aos primeiros assaltos das tentações. Pôs de parte os pensamentos santos; de outra, as orações e as disciplinas; e pôs-se a recompor, de memória, a mocidade e a beleza da mocinha; além do mais, começou a refletir sobre os processos e modos que deveria pôr em prática, quanto a ele, para que não o tivesse ela na conta de homem dissoluto, sem impedir, porém que ele atingisse o fim que queria atingir. Primeiramente, procurou saber, com muitas perguntas, se ela jamais conhecera homem algum; e soube isso; confirmou a certeza de que ela era, mesmo, tão ingênua quanto parecia ser; e então pôs-se a pensar em como poderia induzi-la a satisfazer os seus próprios prazeres. (BOCCACCIO, 1981, p. 199)

Para que os desejos dele fossem satisfeitos, começou Rústico explicar a Alibeque sobre a inimizade entre o diabo e Deus. Logo depois, explicou que a melhor maneira de servir a Deus era reconduzir o diabo ao inferno. Curiosa, Alibeque, pergunta como fazer o serviço de Deus. Rústico tratou logo de explicá-lo e demonstrá-lo.

Rústico despiu-se das poucas vestes que trazia; ficou completamente nu; a jovenzinha fez o mesmo; o eremita ficou de joelhos, como se estivesse pronto para rezar; à frente, ordenou que ela também se colocasse de joelhos. Ficando os dois nessa posição, Rústico sentiu que atingira o clímax de seu desejo, vendo-a tão linda; desse modo, veio-lhe a ressurreição da carne, Alibeque contemplou aquela ressurreição; e, maravilhada com o fato, disse: – Rústico, que é essa coisa que vejo em você, que tanto se ergue para fora, e que eu não possuo? – Oh! minha filha! Isto é o diabo, do qual lhe falei; e veja você, agora; ele está-me trazendo grande aborrecimento; a tal ponto que não consigo quase tolerá-lo. (BOCCACCIO, 1981, p. 199)

Alibeque fica espantada com o que vê, mas acreditava estar em condições melhores do que Rústico, justamente pelo fato do diabo não fazer parte dela. Rústico explica que ela tem 81

outra coisa que ele não possui e lhe dará o que tem em troca. Alibeque, curiosa, pergunta o que é e Rústico faz questão de explicar.

– O que você tem é o inferno; e digo-lhe que creio tê-la enviado Deus para mim, aqui, para a salvação de minha alma. Tão grande aborrecimento me causa esse diabo, mas, se você tiver compaixão de mim, e consentir que eu torne a mandar este diabo ao inferno, você me dará grande consolo, e prestará grande prazer a serviço de Deus; e isto sucederá, se é certo que você veio para este deserto para fazer aquilo que disse que veio fazer. (BOCCACCIO, 1981, p. 200)

Alibeque, prontamente, decide atender o chamado divino e logo decide reenviar o diabo ao inferno, o que muito agrada a Rústico. No início, Alibeque considera a missão dolorosa, mas Rústico a acalma.

Assim falando, Rústico levou a jovem para um de seus pequenos leitos, onde hle ensinou a maneira como devia estar para encerrar o maldito de Deus. A jovenzinha, que jamais pusera nenhum diabo naquele inferno, sofreu, da primeira vez, alguns aborrecimentos; e, assim, disse a Rústico: – Por certo, meu padre, esse diabo será coisa muito ruim, deve mesmo ser inimigo de Deus; pois mesmo colocado no inferno, além de causar mal aos outros dói quando é reenviado lá para dentro. Rústico acalmou-a: – Minha filha, isso não será sempre assim. E, para evitar que a coisa se repetisse, tornou a por o diabo no inferno por mais seis vezes, antes de se afastarem do pequeno leito; da última vez, toda a soberba se lhe esfumou da cabeça; tanto que o diabo, então, ficou de bom grado em paz. (BOCCACCIO, 1981, p. 200)

Alibeque recorda que estavam certos os habitantes de Capsa e, portanto, sente-se feliz em servir a Deus. Porém, ela passa a procurar Rústico várias vezes para enviar o diabo ao inferno, o que acabou consumindo-lhe as forças. Por isso, ele explicou a Alibeque que remeter o diabo ao inferno só aconteceria quando, por orgulho, o diabo levantasse a cabeça e, além disso, era hora dele ser deixado em paz, o que resultou em moderação e silêncio para a moça. Com o tempo, Alibeque passa a não ser mais chamada para fazer o serviço de Deus. Passa a pedir auxílio a Rústico para apagar a raiva do inferno dela, da mesma maneira que ela o ajudou a acabar com o orgulho do diabo dele 105. Rústico passa a ter dificuldades para executar o serviço de Deus.

105

BOCCACCIO,ibidem, p. 200-201.

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Rústico, que se alimentava de água e de raízes de ervas, mal conseguia corresponder às exigências; afirmou-lhe que muitos diabos gostariam de poder sossegar o seu inferno; em todo caso, iria fazer o que pudesse. Assim sendo, algumas vezes a contentava; porém isto sucedia a intervalos tão longos, que era o mesmo que jogar uma semente na boca de um leão. Diante dessa circunstância, a jovem teve a impressão de que não servia a Deus o bastante, nem como devera; e começou a resmungar. (BOCCACCIO, 1981, p. 201)

Por fim, enquanto se dava a querela entre o diabo de Rústico e o inferno de Alibeque, algo acontece em Capsa: um incêndio acaba matando a família de Alibeque e ela acaba herdando todos os bens. um jovem de nome Neerbal acaba a encontrando, casa-se com ela e juntos tomam posse das propriedades, voltando a Capsa. Em Capsa, as mulheres ficaram curiosas em saber como ela servia a Deus no deserto, visto que Neerbal não tivera relações com ela. Com gestos e palavras, ela responde as perguntas das mulheres, que começam a rir e falam: “– Não fique triste por isso, menina; não se entristeça; essa coisa se faz muito bem também nessas bandas; Neerbal, juntamente com você servirá perfeitamente a Deus Nosso Senhor.” (BOCCACCIO, 1981, p. 201) O que Alibeque disse, tornou-se um ditado popular. Boccaccio, sobre fazer o serviço de Deus, encerra a novela 106 dizendo: “Por esta razão, vocês, jovens mulheres, que estão necessitas da graça de Deus, procurem aprender a devolver o diabo ao inferno, pois esse serviço é muito do agrado de Deus e do gosto das partes, podendo perfeitamente ser praticado e repetido”. (BOCCACCIO, 1981, p. 201) A história de Alibeque nos mostra que a mulher, de acordo com Boccaccio, pode ser instrumento de tentação para quem deseja vivenciar uma experiência mais próxima com o sagrado. Se seguirmos a argumentação proposta por Boccaccio, Alibeque encontrou a maneira ideal para as mulheres servirem a Deus. Mas e aquelas que optaram por se separar do mundo e adotar uma vida de orações dedicadas a Deus? Boccaccio nos mostra que entrar para um convento era, além do casamento, a outra opção viável para as mulheres; a IV,6 se encerra com Andreuola, após a morte do amado e a própria prisão107, a personagem acaba entrando para um mosteiro de mulheres.

Como desejasse o pai fazer o que ela mais quisesse, concordou em que ela, com a sua criada, entrasse para um mosteiro famosíssimo pela sua santidade, e ali se

106

A novela III,10 se baseia no monaquismo oriental para explicar a dificuldade que os humanos possuem, de acordo com Boccaccio, para resistir aos desejos. Sobre monaquismo oriental cf. BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial Presença, 1999. 107 BOCCACCIO,op. cit, p. 237-242.

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tornasse monja; e as duas mulheres, a partir desse dia, durante muito tempo, e honestamente, viveram naquele mosteiro. (BOCCACCIO, 1981, p. 242)

Uma pequena observação: no contexto da Quarta Jornada, cujas novelas falam sobre casos de amor que deram errado e tiveram final infeliz, Andreuola entrar para um mosteiro não faz parte de um final em que termina tudo bem. Tratar a entrada de uma mulher em mosteiro já nos dá a medida que Boccaccio tem sobre o clero feminino, que é nosso objeto de estudo agora. Nas novelas cujas personagens principais estão em mosteiros, ocorre mais a adoção das práticas que Alibeque usou para servir a Deus, do que o recato de Andreuola. As novelas que tratam especificamente sobre a presença de mulheres no clero são a III,1 e a IX,2. em ambos os casos, há quebra de votos de castidade por parte das personagens presentes nas novelas. Se nas outras, de acordo com o pensamento medieval, elas eram o instrumento da tentação, aqui passam a ser o tinhoso em carne e osso. Isso mostra quão pouco suscetíveis ao controle das paixões, de acordo com o que pensa Boccaccio, são as personagens das duas novelas citadas: nem os muros de um convento são capazes de anular os desejos femininos. Boccaccio, na apresentação a III, 1, narrada por Filóstrato, aponta para esse detalhe.

– Belíssimas mulheres, existem muitos homens, e igualmente muitas mulheres, tão tolos, que chegam a crer com muita firmeza nisto: que é suficiente colocar-se a branca touca monacal à cabeça de uma moça, e envolver-se-lhe o corpo no negro burel, para que ela deixe de ser mulher, e não mais sinta os desejos femininos, exatamente como, ao se tornar monja, ela ficasse transformada em pedra. Sempre que, casualmente, escutam coisa contrária a esse conceito, essas pessoas ficam perturbadas, como se tivesse alguém praticado um pecado enorme contra a natureza. Aqueles que agem assim não pensam nem querem ter nenhum respeito pela própria pessoa, pois a elas a simples licença de poderem praticar o que bem entendem não é suficiente para os levar à saciedade; e igualmente não meditam nas grandes forças do ócio e da solidão irrequieta. Igualmente, muitas são as pessoas que creem, com a mesma firmeza, que a enxada e a pá, assim como a pesada alimentação e os desconfortos, impedem os apetites concupiscentes aos que trabalham na terra, tornando-os atrasadões quanto à inteligência e à astúcia; já que recebo ordem da rainha, e não fugindo aos limites impostos por ela, será agradável para mim demonstrar-lhes mais claramente, com uma pequena novela, quão iludidas estão essas pessoas que daquele modo acreditam. (BOCCACCIO, 1981, p. 143)

Num convento, famoso por sua santidade, residiam oito mulheres, mais a abadessa e um cuidador de jardim, já idoso, chamado Nuto. Cansado de tanto trabalho, pede para voltar a seu lugar de origem, chamado Lamporecchio. Chegando lá, é recebido por um conterrâneo seu chamado Masetto. Ele pergunta a Nuto o que fazia no convento. Nuto explica o tipo de serviço que fazia e Masetto passa a desejar trabalhar dentro do convento. O outro tenta 84

dissuadi-lo da ideia, mas Masetto mostra-se convencido a ir. Portanto, Nuto o esclarece: “– Ah! Você fez muito bem em vir! Que homem poderá trabalhar em meio a mulheres? Será preferível sempre trabalhar com os diabos; em seis vezes, em sete, elas mesmas ignoram o que querem.” (BOCCACCIO, 1981, p. 144) Após conversa com Nuto, Masetto decide ir ao convento trabalhar. Sendo ele pessoa desconhecida na região onde ficava o convento, ele decidiu fingir-se de mudo, pois assim seria facilmente admitido no convento. Além disso, segundo Boccaccio, Masetto era muito bem apessoado. Por fim, o plano dá certo e Masetto é admitido no mosteiro e passa a executar serviços gerais. Que o contrata é o mordomo do convento, tanto que, certo tempo depois, a abadessa pergunta ao mordomo quem é o rapaz e o mordomo conta a história de Masatto e informa as condições do rapaz. O único pedido da abadessa era que ele fosse bem tratado e bem alimentado. Porém, as monjas, sabendo que ele era mudo, passaram a maltratá-lo, enquanto a abadessa fazia vista grossa à maneira que as freiras tratavam o hortelão. Um dia, extenuado de tanto trabalhar, Masetto foi descansar no jardim; enquanto ele fingia dormir, elas passaram a observá-lo. Uma delas, a mais atrevida, tem um ideia e trata de comunicá-la à companheira.

– Não sei se você já notou o rigor de nossa disciplina, aqui dentro; jamais nenhum homem penetra este recinto, a não ser o mordomo, que é um velho e, agora este mudo. Escutei dizer, diversas vezes, por mulheres que vêm a este convento, que todas as demais doçuras do mundo não passam de uma tolice, comparadas com as delícias que a mulher goza em companhia de um homem. Assim, muitas vezes me assalta o pensamento de comprovar se assim é, com este mudo, já que não o posso verificar com outro homem. Para o caso, este homem é o melhor do mundo, pois, mesmo que o desejasse, não poderia nem saberia referir o que se passasse; você bem vê que ele é um rapaz estúpido, que cresceu acima de sua própria inteligência. (BOCCACCIO, 1981, p. 146-147)

Ela pede a opinião da outra monja, que acaba apoiando a ideia; porém se mostra preocupada no caso de acontecer uma gravidez. A freira mais atrevida tranquiliza a outra e elas decidem colocar o plano em prática, após a hora nona. Chegada a hora nona, as freiras conseguem colocar o plano em prática e Masetto, já sabendo o que aconteceria, trata de colaborar. A artimanha funciona e as freiras passam a se divertir, com certa frequência, com o mudo. Porém, outras freiras acabam descobrindo o que acontecia; por fim, depois de certo tempo, cada uma das oito monjas mantinha encontros íntimos com Masetto. Até que um dia, a abadessa, após observá-lo descansando, acaba adotando a mesma atitude das monjas, sem que as outras soubessem disso. 85

Finalmente, a abadessa, que nada havia percebido ainda de tudo isto, se pôs a andar sozinha pelo jardim; era o calor intenso; em certo ponto, defrontou-se com Masetto, que demonstrava sentir excessivo calor, menos pelo trabalho do dia do que pelo cavalgar da noite; o mudo estava adormecido, estendido a sombra de uma amendoeira. Como lhe tivesse o vento agitado e estendido para trás os panos que lhe cobriam a frente, estava tudo à mostra. A abadessa fitou aquilo. Encontrando-se sozinha, acendeu-se nela o mesmo apetite que havia animado as outras freirinhas. Despertou Masetto. Conduziu-o para a sua cela, onde o guardou por diversos dias, experimentando e tornando a experimentar aquela delícia que ela mesma, diante do altar, maldizia. Entre as freiras, porém, ocorreu um grande movimento pelo fato de o hortelão não ir mais cuidar do horto. Por fim, a abadessa enviou-o de sua cela para o quarto dele; mas com muita frequência desejou, dali por diante, entreter-se com ele; além do mais, não era nada moderada em suas exigências. (BOCCACCIO, 1981, p. 146-147)

Masetto, sabendo que não conseguiria dar conta das oito monjas, mais a abadessa, conclui que tal situação era prejudicial a ele. Numa noite, quando estava com a abadessa, acaba falando e expondo que se encontrava em situação complicada.

– Senhora, sempre escutei afirmar que um só galo é bastante para dez galinhas; do mesmo modo escutei dizer que dez homens não conseguem, ou o fazem mal, e com imenso esforço, contentar uma só mulher. Ora, preciso servir a nove. Desse modo, pela própria natureza, não poderei continuar; aliás, por tudo quanto já fiz, estou em tal situação que nem posso mais fazer muito, nem pouco. Nessa situação, ou a senhora permite que eu vá com Deus, ou vê como pode solucionar o caso. (BOCCACCIO, 1981, p. 147)

A abadessa fica surpresa com o fato de Masetto saber falar e acaba reunindo as freiras. Por fim, a abadessa e as freiras conseguem entrar em acordo, para que conseguissem harmonizar essa situação. Elas decidem pela permanência do hortelão, que acaba passando boa parte da vida morando no convento. Habitantes das cercanias do mosteiro tomaram o fato de Maseatto falar como um milagre e prova que o mosteiro era abençoado. Maseatto vai embora do convento só depois de passado muito tempo e após a morte da abadessa. A segunda novela da Nona Jornada conta a história de uma abadessa que surpreendeu uma das monjas do convento praticando atos licenciosos com outro homem. Porém, um pequeno detalhe nas vestimentas da abadessa acaba por reverter o acontecimento a favor da monja. A novela se passa num renomado mosteiro feminino da Lombardia, famoso pela santidade e por sua religião. Nele, habitava a personagem central de nossa história, uma moça muito bela e de família nobre chamada Isabetta. Um dia, ela recebeu a visita dum parente cuja companhia era um rapaz muito bonito. Isabetta se apaixona pelo rapaz, tem seus sentimentos correspondidos, mas há um problema: ela é uma freira e está dentro de um mosteiro. Eles 86

acabam mantendo contato e mantém o amor, “não sem muita dor”108, como disse Boccaccio. Mas uma solução para o problema é encontrada; o jovem consegue um jeito de entrar no convento e manter encontros com a Isabetta sem que fossem descobertos. O autor cita que ela foi visitada por ele muitas vezes e que tais visitas eram fonte de muito prazer para ambos. Porém um dia, durante uma dessas visitas, o tal rapaz foi visto por uma das monjas que habitava o mosteiro, quando se encaminhava para o quarto de Isabetta e depois quando saiu do local, sem que ele ou Isabetta percebessem o fato. A monja que viu o rapaz contou o fato para as companheiras e, de início, pensaram em contar o ocorrido à abadessa. Ela, chamada Senhora Usimbalda, era na sua vida civil: “...mulher santa e bondosa, segundo o que pensavam dela as mulheres monjas e toda gente que conhecia...”. (BOCCACCIO, 1981, p. 471) Esta primeira ideia é abandonada, julgando melhor que a Senhora Usimbalda surpreendesse o rapaz e Isabetta. Elas acabam por não comentar o assunto nem com a abadessa, muito menos com a monja. Acabam por dividir quais delas teriam a tarefa de vigiar e guardar as entradas, com a finalidade se saber quando seria a próxima visita do rapaz. Isabetta, desconhecendo completamente o que acontecia a volta dela, combina com o rapaz mais uma ida ao mosteiro, feita durante a noite. Sabendo disso, as monjas que vigiaram e montaram guarda, no dia da visita, esperaram até uma hora alta da noite e:

...quando acharam oportuno, separaram-se em dois grupos; um ficou de tocaia, à espreita da porta do dormitório de Isabetta; outro grupo encaminhou-se, às carreiras, para o quarto da abadessa: bateu-lhe à porta; e, assim que ela respondeu, as participantes desse grupo falaram-lhe: − Venha, depressa, senhora; levante-se prontamente; pois nós descobrimos que Isabetta está com um rapaz em sua cela. (BOCCACCIO, 1981, p. 471)

Porém a abadessa estava acompanhada de um padre, que frequentemente a acompanhava no quarto e que entrava ali através duma caixa. A abadessa com medo de que fosse descoberta e dada a urgência da situação, colocou, ao invés do véu (também chamado saltitério), as calças do padre. Deixou a cela, trancou a porta e perguntou onde se encontrava “esta maldita de Deus”. Rapidamente ela e as monjas, que estavam tão ansiosas que não perceberam o erro da abadessa, foram para a cela de Isabetta. A porta de sua cela é posta abaixo e os dois amantes são surpreendidos entrelaçados. O rapaz vestiu-se e ficou na cela, enquanto Isabetta foi agarrada pelas demais e conduzida ao capítulo. Lá, a abadessa, diante de 108

BOCCACCIO, ibidem, p. 471, l. 13.

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todas as monjas, começa a proferir as mais pesadas críticas e Isabetta, muito envergonhada e tímida, mantém-se de cabeça baixa. A abadessa começa a fazer graves ameaças à monja, o que acaba atraindo a compaixão de suas companheiras. Só que, num determinado momento, Isabetta percebe que a abadessa não está com o saltitério sobre a cabeça, mas as calças do padre e diz tranquilamente:

– Senhora, com a ajuda de Deus, procure dar o laço à touca; em seguida, então, poderá dizer aquilo que quiser a meu respeito. A abadessa, que não conseguia compreender-lhe as expressões, exclamou: – Que está aí dizendo a respeito de touca, mulher criminosa? Será que, resolveu, agora, gracejar? Será que imagina ter praticado um ato digno de se fazer nesta casa? Então, a jovem acusada voltou a afirmar: – Senhora, rogo-lhe que dê o nó e faça o laço à touca; em seguida, poderá dirigir-me as censuras que quiser.” (BOCCACCIO, 1981, p. 472)

É nesse momento que a abadessa percebe a falta que cometeu, percebendo a ocasião e as circunstâncias, muda o tom da conversa, dizendo sobre a dificuldade em evitar os apelos da carne. Isabetta é perdoada, a abadessa volta para os braços do amante e, a partir daquele dia, as demais freiras trataram de arranjar a própria felicidade. O celibato dos membros do clero será criticado pelos reformistas desde o século XV. Boccaccio critica em Decamerão o desrespeito ao voto de castidade. Por outro lado, não deixa de criticar algumas práticas da Igreja Católica. No caso, as novelas alocadas no Grupo 4. No caso, Boccaccio optará por criticar elemento que possuam alguma relação com o universo das práticas do clero. Serão objetos de crítica a confissão e penitência, o tráfico de relíquias e, de certa maneira, o culto aos santos. Nas novelas I,1 e III,3, a confissão católica é posta em dúvida pelo autor. No primeiro caso, o personagem da história, Senhor Ciappelletto, pessoa que em vida cometeu as atitudes mais vis, engana o frade confessor para conseguir um lugar para ser enterrado. Na segunda, o casal usa da inocência do frade para saberem se valaia apena ou não consumarem o encontro, Ainda sobre o inocente frade de III,3, é a quebra do segredo do confessionário que torna possível o encontro do casal. Já a consequência da falsa confissão em I,1 é a canonização de Ciappelleto, apesar da vida completamente desregrada que levou. O que torna o relato de Ciappelletto confiável é a palavra do velho frade confessor; mesmo que fosse provada a fraude na confissão e desmascaradas todas as mentiras do mentiroso moribundo, o frade não perderia a credibilidade.

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Aliás, os frades que aparecem em I,1 e III,3 servem de contraponto aos outros membros do clero que aparecem ao longo das novelas, com exceção da X,2. Se são bons, são ingênuos; caso sejam maus e perversos, são pessoas espertes e perspicazes 109. A última novela que se encaixa nos padrões do Grupo 4, a VI,10, trata dobre o tráfico de relíquias, mas de maneira bem humoradas: um frade tem sua “pena do Anjo Gabriel” roubada e no lugar dela o são colocados alguns pedaços de carvão. O Frade Cipolla se livra habilmente da enrascada na qual encontrava, afirmando que os carvões faziam parte da fogueira na qual São Lourenço foi martirizado. O importante desta novela não é somente a habilidade de Cipolla em sair de uma enrascada, mas perceber o quanto a Igreja e o clero se utilizaram de relíquias falsas e falsos testemunhos para manter o rebanho de fiéis 110. O Grupo 5 contém somente uma novela, sendo também uma novela atípica quando comparada com as outras dezenove. Conta a história do abade de Cluny que reconciliou um nobre e o papa, como uma recompensa para a cura de um mal do estômago efetuada pelo nobre. A novela pode soar estranha quando observamos as obras escolhidas, porém uma fala de Elisa, a narradora desta novela, ressalta as qualidades negativas dos membros do clero, justamente afirmando as características positivas do bispo de Cluny. Segundo Elisa, é um “milagre” um clérigo adotar atitudes magnânimas 111. Até agora, analisamos o corpus documental escolhido. Nos deparamos com diversas situações nas quais membros do clero fazem coisas reprováveis, Minha pergunta é: por que Boccaccio escreveu sobre os membros do clero dessa forma? As respostas, ou a tentativa de elaborá-las, são o tema do meu próximo tópico.

3.2 – O mercador, a mulher e o padre: Boccaccio e a sociedade.

Antes de entendermos as críticas que Boccaccio faz ao clero, um pequeno detalhe é importante para começar esta discussão: Giovanni Boccaccio é uma pessoa do século XIV. A afirmação parece simplória, contudo é fundamental para entendermos as opções ideológicas do autor. Reconhecer isso retira o véu de estranhamento que possa existir sobre a maneira que Boccaccio escreve e constrói o Decamerão. Ele não é só um exercício da arte de narrar, tal como propões os formalistas. É um conjunto de histórias que nos permite entender o que é a 109

BOCCACCIO, ibidem, p. 24-33; 151-158. BOCCACCIO, ibidem, p. 336-342. 111 BOCCACCIO, ibidem, p. 508. 110

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Florença da primeira metade do século XIV, a Florença do final da “era Bardi” e antes da “era Medici”. O título deste tópico é um trocadilho com uma das obras de Georges Duby que retrata a vida e os costumes da aristocracia medieval: troquei o cavaleiro pelo mercador para dar uma noção de o quando a obra de Boccaccio está impregnada da mentalidade do universo dos mercadores. Nesse caso, afirmo que, assim como as canções de gesta relatavam e retratavam muito da sociedade dos cavaleiros, Decamerão relata e apresenta muitos aspectos do mundo mercantil no século XIV. Boccaccio sempre esteve envolvido com o universo dos mercadores. Trabalho com os escritos de um autor que conviveu com a realeza napolitana. É o universo das cidades e das cortes de uma jovem aristocracia mercantil que o autor descreve. Assim, é óbvio que a ideologia que permeia a obra pertencerá a estes grupos. Um dos indícios é a baixa presença de membros das classes populares protagonizando histórias; nesse caso, a IV,7 é uma exceção que confirma a regra Por isso, quando pensei sobre a análise das fontes afirmei que Boccaccio funcionaria como uma espécie de intelectual orgânico da nascente burguesia italiana; Ora, quem se construiu como o maior opositor da obtenção de lucros? A Igreja é óbvio! Alguns podem achar estranho o uso de um dos principais princípios conceitos propostos pelo marxista sardo aparecer em um trabalho sobre o século XIV, mas os recursos que Boccaccio usou para mostrar a hipocrisia do clero e o lugar social de produção do autor, reforçam minhas escolhas teóricas. Determinados aspectos e características da obra são recursos para Boccaccio atingir seus objetivos. E quais os objetivos dele? De acordo com o próprio autor, no Proêmio que abre a obra, é alertar as mulheres para os riscos do amor desmedido e sem rédeas para guiá-lo. Ora, aqui cabe uma pergunta: que mulheres? É para aquelas ligadas à aristocracia e a nascente burguesia mercantil que Boccaccio escreve; as outras bastam, a agulha, o fuso e a roca. É sobre elas que as principais pressões sobre o feminino recaem. Ser honesta, fiel ao marido, fiel a Deus e fiel à família. Acredito que Boccaccio possui uma posição um tanto ambígua em relação às mulheres, Ao mesmo tempo em que algumas de suas novelas bradam “viva suas paixões”, “aproveite a vida”, outras reforçarão o controle sobre as mulheres por parte dos homens. Outra interpretação possível é que Boccaccio quer mostrar o limite desses controles sobre as mulheres. Mais a frente, quando comentar sobre as novelas que envolvem a relação entre as mulheres e o clero, tratarei de maneira mais específica sobre estas questões. Por enquanto, me concentrarei em alguns pontos importantes da minha fonte.

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Primeiro, gostaria de comentar sobre um aspecto que chama bastante atenção nas novelas, tanto escolhidas para análise, quanto outras oitenta que ficaram de fora: elas fazem o leitor rir. A primeira vista, parece algo simples, porém, uma análise mais atenta mostra que, fazer o leitor rir possui uma finalidade. E essa finalidade ajuda a construir o meu argumento sobre Boccaccio como um intelectual orgânico da nascente burguesia. O riso em Decamerão é instrumento da crítica ao que acontece na cidade de Florença e na sociedade do século XIV. Transformar situações não tão engraçadas em piada ajuda a mostrar o que o autor quer criticar. A novela VI,10, com o Frade Cipolla, como diria uma expressão coloquial tipicamente carioca, “lançando o caô” sobre a troca da pena do Arcanjo Gabriel pelos Carvões de São Lourenço, nos mostra algo muito sério dentro da Igreja Católica: a falsificação de relíquias. Dentro da questão do riso na obra, outros artifícios são usados pelo autor: a linguagem de praça pública, o grotesco e o baixo material 112. Por outro lado, o uso destes três artifícios tornam mais humanos os personagens – de certa maneira, Boccaccio quebra com o padrão de personagens excessivamente perfeitos, presentes em muitos textos da Idade Média. Cabe ainda uma pequena observação sobre o papel das mulheres na obra, principalmente aquelas ligadas ao clero. Boccaccio está de acordo com a ideologia corrente que pregava que uma das únicas maneiras de se controlar as paixões femininas era a entrada para a vida religiosa. A outra era o casamento, porém a primeira maneira era mais bem-vinda que a segunda. Só que, para o autor, mesmo aquelas que estavam num ambiente propício á santidade corriam o risco de sucumbir à carne, tal como acontece nas novelas III,1 e IX,2. Assim, para Boccaccio, se um padre era propício aos vícios, se uma mulher era mais propícia a sucumbir às paixões, uma freira era algo mais perigoso ainda por era religiosa e, ainda por cima, mulher. Entender o que está por trás das críticas, ajuda a entender a maneira que o clero era visto por Boccaccio durante o século XIV e também nos diz um pouco mais sobre a relação entre sociedade e instituições religiosas. O que nos falta é concatenar estes dois aspectos às intenções de Boccaccio com o Decamerão.

112

Sobre linguagem de praça pública, uso do baixo material e corporal e do grotesco na literatura cf. BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo: Huicitec; Brasília: EdUnb, 1999.

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CONCLUSÃO – CAMINHANTES BRANCOS EXISTEM!

Pode parecer deslocada do contexto e do que propus inicialmente uma citação às Crônicas de Gelo e Fogo, Porém, confesso que a adotei, tal como na Introdução, por puro e simples artifício retórico. A essência do título está na diferença entre fato e ficção e a capacidade que o autor possui para mediar e transitar entre o que vive e o que escreve. Por isso, usei o conceito de intelectual orgânico para defender a maneira que Boccaccio critica os membros do clero, sejam eles regulares ou seculares Ele, de certa maneira, alerta para o lado interesseiro de quem condena os lucros dos mercadores. Para o autor, criticar as atitudes do clero seria uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que se chama a atenção para a hipocrisia e as atitudes de quem devia dar exemplo de virtude, se ressalta também que, em tempos sombrios, o melhor era largar a virtude angelical para viver as coisas terrenas. Isto porque a ebulição de epidemias, crises de fome e guerras alteraria a maneira como a sociedade do século XIV entenderia a morte e, por que não, a vida. Ao mesmo tempo, Boccaccio é o intelectual orgânico da nova classe dos mercadores justamente por defender que eles sigam suas, paixões, moderadamente. Assim, o Decamerão se enquadraria naquele tipo de exemplum que Norbert Elias mostra no primeiro volume de O Processo Civilizador: classes novas exigem regras de conduta novas. Não é o que Boccaccio faz durante as cem novelas? Quanto ás críticas ao clero considero que aqui não temos a ênfase na crítica doutrinária mas na crítica moral. Porém, é a composição das duas críticas que será fundamental para a Reforma Protestante no século XVI. Nesse caso, Boccaccio joga mais uma camada de terra numa instituição que enfrentaria problemas e mais problemas nos séculos à frente.

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ANEXO – FICHAS DE ANÁLISE DA FONTE

Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 1ª – Pânfilo Jornada: 1ª Rainha ou rei: Pampinéia Nº de páginas: 10 p. (24 a 33) Personagens principais: Senhor Ciappelletto, irmãos florentinos, frei. Local onde ocorre a novela: Borgonha, casa dos irmãos florentinos. Resumo: Um certo senhor Ciappelletto, notário e “gerente comercial”, vai à França cuidar dos negócios de Musciatto Franzesi e se hospeda na casa de dois irmãos florentinos. Lá, adoece gravemente e precisa confessar-se antes de morrer. Porém, Ciappelletto desobedeceu, em vida, a praticamente todos os mandamentos da Igreja, o que coloca os irmãos florentinos em desespero. Mas Ciappelletto arma um plano: pede que chamem o frade mais santo e valoroso que conseguirem encontrar. Encontram e o frade vai a casa dos florentinos ouvir a confissão de Ciappelletto. Este conta ao frade que levou vida santa e obediente às leis divinas. Ciappelletto morre o frade conta a seus companheiros a vida santa que Ciappelletto levou. É enterrado no cemitério da igreja e por fim é canonizado. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S( ) N(X) Qual tipo de crítica ao clero é feito pelo autor? Aqui, ao contrário da maioria das novelas escolhidas para análise, Boccaccio opta por criticar a ideia de intercessão e a ação de intermediários entre o terreno e o divino. Ora, a intermediação seria mais uma maneira da Igreja exercer poder sobre a população leiga. A outra crítica feita pelo autor refere-se ao culto aos santos e ao processo de canonização. Como são de responsabilidade do clero, podemos colocar em dúvida a veracidade do relato. Além disso, podemos dizer que Boccaccio usa o tema da canonização e o culto aos santos para exemplificar suas críticas à ideia de mediação entre o terreno e o sagrado. Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 2ª – Neífile Jornada: 1ª Rainha ou rei: Pampinéia Nº de páginas: 4 p. (34 a 37) Personagens principais: Gianotto de Civigni e Abraão, o judeu. Local onde ocorre a novela: Paris (onde residem os dois) e Roma. Resumo: O comerciante Gianotto de Civigni era amigo de um judeu chamado Abraão. Gianotto tentava, sem sucesso, converter Abraão, porque o amigo era muito devotado ao judaísmo. Então, um dia, Abraão afirma que está disposto a se converter, porém coloca uma condição. Ele precisa ir a Roma e ver o quanto os membros do clero são obedientes às leis divinas. A decisão coloca Gianotto em pânico, pois se ele visse a corrupção do clero, ele não se converteria e viraria “inimigo” do Catolicismo Romano. Gianotto tenta dissuadir Abraão da viagem, mas o segundo continua firme na vontade de ir a Roma. O judeu viaja e lá observa que a corte clerical age de maneira contrária a que prega para os fiéis. Abraão volta a Paris e conta o que viu a Gianotto. Mesmo assim, decide se converter ao catolicismo, pois acredita que a grandeza da religião e na bondade divina, apesar dos pecados cometidos pelo clero. Eles procuram uma igreja, Abraão é batizado e recebe o nome de João. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S( ) N(X) Qual tipo de crítica ao clero é feito pelo autor? Boccaccio, nesta novela, critica as ações do clero romano, mostrando o quão distantes estão do que é pregado nos púlpitos. Aliás, as atitudes do clero servirão de justificativa para muitos movimentos reformistas entre os séculos XVI e XVII.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela:4ª – Dionéio Jornada:1ª Rainha ou rei:Pampinéia Nº de páginas:3 p. (39 a 41) Personagens principais:Monge, abade e camponesa. Local onde ocorre a novela:Mosteiro em Lunigiana Resumo:Um jovem monge, passeando sozinho por volta do meio dia, encontra uma jovem camponesa e deseja manter relações sexuais com a moça; acaba por convencê-la, a leva até a cela dele no mosteiro e acaba consumando o ato. Só que o abade do mosteiro, sem sono durante o horário da sesta, passaem frente a porta da cela e descobre o que acontecia, apenas ouvindo o barulho que os dois faziam. Primeiro, pensa em abrir a porta, porém elabora um plano melhor. Mas o jovem monge percebera que o abade o vigiava, pois ouvira um arrastar de pés, enquanto se divertia com a moça. Enquanto o abade pretende adentrar a cela e ver quem está lá dentro, o monge pensa numa maneira de tirar a moça do mosteiro sem que ninguém perceba. Ele pede ao abade permissão para sair e o outro concede. O abade pega a chave da cela, destranca a porta e vê a moça, que ficou muito assustada quando viu o abade entrar. Ela começa a chorar, o abade a consola e logo é consumido pelo desejo carnal. Após pensar, o abade decide ter relações com a moça. Assim, após consolá-la, ele tem relações sexuais com a camponesa. Enquanto isso, o monge vê e ouve, via um buraco na porta, tudo o que o abade fazia em companhia da moça. Na verdade, o monge fingiu que saíra e desejou saber qual seria a reação do abade. O abade, achando que demorara o suficiente com a camponesa na cela, sai e retorna ao próprio quarto. Algum tempo depois, ouve o monge chegar, manda prendê-lo e profere grave censuras a atitude do rapaz. O monge retruca de maneira inteligente, apontando que o abade também cometera erro grave. Ele perdoa o monge, porém, pede silêncio sobre o assunto. Levam a moça para fora do mosteiro e ela acaba retornando ao local, com a ajuda dos dois, várias vezes. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? O tema central é o uso da palavra com a finalidade de escapar de situações complicadas; nesse caso, o monge que critica os atos do abade. Por trás deste tema, existe crítica aos atos licenciosos cometidos por membros do clero secular, visto que a castidade é regra prescrita dentro de, praticamente, todas as regras monásticas. Boccaccio deixa claro no Proêmio o quanto é perigoso ceder as paixões, o que é mais condenável quando cometido por quem, justamente, não deveria ceder a elas.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela:6ª – Emília Jornada:1ª Rainha ou rei:Pampinéia Nº de páginas:3 p. (44 a 46) Personagens principais:Frade franciscano inquisidor e homem rico que sofre processo inquisitorial. Local onde ocorre a novela:Florença Resumo:Um frade franciscano inquisidor e ávido por dinheiro acaba processando um bondoso, porém imprudente, homem. O homem disse que era possuidor de um vinho tão bom que até Cristo o beberia. O inquisidor acusa o homem de blasfêmia; o acusado para se salvar do processo teve que pagar um polpudo suborno ao inquisidor. Além disso, o frade obriga ao homem a ouvir missa toda manhã, como penitência para o pecado, em igreja sob responsabilidade dos franciscanos. Um belo dia, o homem ouve um evangelho que dizia “Vocês terão, por um, cem, e possuirão a vida eterna”. Como devia se apresentar ao inquisidor na hora do almoço, ele guardou as palavras que ouviu durante a manhã. Chega a hora do encontro e o frade pergunta se ele deseja tirar dúvidas referentes a algo que ouviu durante a missa pela manhã. Então, o homem comenta sobre o evangelho, o relacionando com a sopa distribuída aos pobres, dizendo que é tanta, que os frades poderiam se afogar. A observação serve para mostrar ao frade o erro que cometera. Todos os outros frades riem, menos o inquisidor. Ele entende o que o homem quis dizer e percebe o quão ridícula é a situação na qual ele se colocou, apenas com o objetivo de receber suborno. Então, o frade diz que não incomodará mais o homem, o livra da penitência e pede que ele faça o que bem entender. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S( ) N(X) Qual tipo de crítica ao clero é feito pelo autor? Uma das premissas da Ordem dos Frades Menores, fundada por Francisco de Assis, é o voto de pobreza que seus membros fazem. Porém , o que Boccaccio mostra é um frade franciscano ávido por dinheiro. Aqui a crítica é a avareza dos frades, mostrando às pessoas comuns que eles também são gananciosos e hipócritas. Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela:7ª – Filóstrato Jornada:1ª Rainha ou rei:Pampinéia Nº de páginas:4 p. (46 a 49) Personagens principais:Senhor Cane della Scala e Bergamino/Primasso e Abade de Cligni. Local onde ocorre a novela:Verona/Paris Resumo:Senhor Cane della Scala, homem muito rico, resolve dar uma festa, mas desiste. Um dos convidados era Bergamino, homem muito espirituoso. Percebendo que não seria chamado à casa do Senhor della Scala e vendo suas economias se esgotarem no lugar onde se hospedou – ele pagou as despesas com três trajes riquíssimos que levara – ele acaba o encontrando. Para contar a situação na qual se encontrava, por culpa do Senhor della Scala, Bergamino conta a história de Primaso e do Abade de Cligni, que gira em torno de três pães, levados pelo primeiro, e um jantar, oferecido pelo segundo. Ao ouvir a história, o Senhor Cane della Scala tem noção da própria avareza e paga as dívidas de Bergamino. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S( ) N(X) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? A história principal gira em torno da avareza do Senhor Cane della Scala e da artimanha que Bergamino usou para sair dessa situação. Aqui temos um caso de “novela dentro da novela”; o que me interessa é a história de Primaso e do Abade de Cligni. Esta é mais um exemplo da avareza dos religiosos, mostrada por Boccaccio em outras novelas.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela:5ª - Fiammetta Jornada:2ª Rainha ou rei: Filomena Nº de páginas: 11p. (78 a 88) Personagens principais:Andreuccio de Perúsia. Local onde ocorre a novela:Nápoles Resumo:Andreuccio de Perúsia, mercador, vai a Nápoles comprar cavalos. Porém passa por alguns problemas. Primeiro, é ludibriado por uma moça siciliana que finge ser irmã dele e rouba 500 florins de ouro dele. Tenta fugir de onde se encontra e acaba despencando de uma janela. É salvo, mas é feito refém de saqueadores de túmulos. Por fim, se salva e volta para casa com um rubi. Mas, o trecho que nos interessa, é a parte final, pois uma das pessoas que ajuda a saquear o túmulo é um padre. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S( ) N(X) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? A história não tem membros do clero como personagens principais: Porém, no final, Boccaccio nos apresenta um padre que auxilia a saquear o túmulo do arcebispo. O objetivo é mostrar a ganância de alguns membros do clero, que são capazes até de saquear túmulos para obterem riquezas.

Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 1ª – Filóstrato Jornada: 3ª Rainha ou rei: Neífile Nº de páginas: 5p. (143 a 147) Personagens principais: Masetto de Lamporeccio, oito freiras, Abadessa, mordomo e Nuto (antigo hortelão) Local onde ocorre a novela: Convento de mulheres na Toscana Resumo: Nuto, o antigo hortelão e jardineiro do convento, se aposenta e volta para Lamporeccio. Lá é recebido por Masetto, com quem comenta sobre sua antiga atividade. Masetto deseja trabalhar no convento, mas nuto o alerta sobre as freiras. O outro se mostra decidido a ir e encontra uma forma de não ser constantemente importunado pelas freiras: finge-se de mudo. A artimanha planejada por Masetto dá certo e ele começa a trabalhar dentro do convento. Mesmo assim, acreditando que ele era mudo, as freiras dirigiam as mais duras palavras a ele, sob vista grossa da abadessa. Um belo dia, duas delas, ao verem Masetto que fingia dormir, elaboram um plano: manter relações sexuais com ele. O plano dá certo, graças a colaboração dele. Outras freiras descobrem o ato e passam a querer algumas horas com o hortelão. Por fim, Masetto acaba mantendo encontros com todas as freiras do convento. Até que um dia, a abadessa vê Masetto descansando e resolve adotar a mesma atitude das oito freiras. Porém, ela o carrega para a própria cela, mantendo-o lá durante boa parte do tempo, passando as monjas a sentirem falta de Masetto. Mas Masetto resolve falar e explicar que não conseguiria dar conta de nove mulheres. A atitude dele resulta em reunião entre a abadessa e as freiras que decidem pela permanência de Masetto no convento, além de acertarem os horários para os encontros com ele. Há padres na história? S( ) N(X) Há freiras na história? S(X) N( ) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Boccaccio faz crítica as licenciosidades cometidas pelo clero, nesse caso, sobre as freiras. Para Boccaccio, entrar para um convento não mata os desejos que as mulheres possam sentir pelos homens.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela:3ª – Filomena Jornada:3ª Rainha ou rei:Neífile Nº de páginas:8p. (151 a 158) Personagens principais: Mulher nobre, marido mercador, frade confessor e homem nobre. Local onde ocorre a novela: Florença. Resumo: Uma mulher casada se apaixona por um homem nobre e quer desesperadamente saber se os sentimentos são recíprocos e, caso fossem, encontrar-se com ele. Para colocar a artimanha em prática, transforma seus desejos em confissões castíssimas a um frade, que por sinal era amigo do homem. O frade passa a alertar o homem os riscos de cortejar mulher casada e nobre; como a ela sempre se confessava com o frade, ela passa a servir de moço de recado dos futuros amantes, sem que ele saiba de tais artimanhas. Eles acabam consumando o ato e passam a se encontrar, sem a necessidade da “ajuda” do frade. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Aqui, os amantes usam da ingenuidade do frade para chegar a seus objetivos. Além disso, há uma crítica ao ato de se confessar, pois é a quebra do segredo da confissão que transforma o frade em mensageiro do casal. Também uma das críticas de Boccaccio é a astúcia da mulher que elabora todo o plano e engana o frade.

Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 4ª – Pânfilo Jornada: 3ª Rainha ou rei: Neífile Nº de páginas: 4p. (158 a 161) Personagens principais: Frade Puccio, Isabetta, Dom Félix. Local onde ocorre a novela: Florença, perto da Paróquia de São Pancrácio. Resumo: Um irmão leigo da Ordem de São Francisco, chamado Puccio, resolve abster-se de manter relações com a esposa, de nome Isabetta. Um belo dia chega de Paris um monge chamado Dom Felix e o Frade Puccio tornou-se amigo dele. Encanta-se Dom Felix por Isabetta e o sentimento é recíproco. Para consumarem o ato, Dom Felix elabora um plano para distrair o Frade Puccio. Passa a ele uma série de penitências e, enquanto as cumpre, o monge passa deliciosas horas com a esposa do irmão leigo. Porém, o quarto onde Frade Puccio cumpria suas penitências era ao lado do quarto da esposa. Puccio desconfia do barulho que os dois faziam, mas Isabetta trata de aclamá-lo. Assim, o frade não descobre a traição da esposa e a burla prossegue. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? A licenciosidade de Dom Felix e a falta de virtudes da esposa, de acordo com Boccaccio. Mais uma vez, o tema do adultério aparecendo na obra. Nesse caso com agravantes, pois Isabetta mantém relações sexuais com um clérigo.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela:7ª – Emília Jornada:3ª Rainha ou rei:Neífile Nº de páginas:12p. (172 a 183) Personagens principais:Tedaldo degli Elisei, Senhora Ermelina, Aldobrandino Palermini. Local onde ocorre a novela:Florença Resumo: Tedaldo se apaixona por Ermelina, mas por motivo desconhecido, ela para de corresponder aos sentimentos dele. Ele foge para Chipre e muda de nome, porém resolve voltar a Florença. Descobre então que Aldobrandino, o marido de sua amada, é acusado da morte dele; acusação feita pelos irmãos do desaparecido. Tedaldo se reconcilia com Ermelina, prova que está vivo, livra Aldobrandino da pena de morte e consuma seus amores com Ermelina. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Aqui não temos o frade como personagem principal da história. Porém é em uma fala de Tedaldo a Ermelinda, entre as páginas 175 e 178, que Boccaccio mostra suas principais críticas ao clero: cobiça, hipocrisia, luxúria e gula dos frades. Também aproveita para criticar o ato de se confessar: alguém que não merece confiança das pessoas não pode perdoar os pecados delas.

Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela:8ª – Laurinha Jornada: 3ª Rainha ou rei: Neífile Nº de páginas: 8p. (184 a 191) Personagens principais: Abade, Ferondo, esposa de Ferondo, monge bolonhês. Local onde ocorre a novela: Abadia na região da Toscana. Resumo: Ferondo, um rico aldeão, faz amizade com o monge, que se tornou abade de abadia na Toscana. O aldeão era casado com mulher lindíssima, porém sentia muito ciúmes dela. O abade se apaixona pela esposa de Ferondo e tenta encontrar uma forma de se aproximar dela. Um dia, a esposa de Ferondo pede conselhos ao abade. Ele a aconselha, porém mostra que a deseja fisicamente. Meio contrariada, a esposa aceita a proposta do abade para o plano que ele colocará em prática: mandar Ferondo ao Purgatório e castigá-lo. O plano se cumpre, enquanto o abade aproveita os amores da mulher do aldeão. Por fim, o castigo acaba, a esposa de Ferondo engravida do abade, ele volta para casa e, depois do parto, ele passa a criar a criança. Mesmo assim, a esposa continuou a se encontrar com o abade. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Boccaccio faz três críticas aqui: a não castidade do abade, o uso da religião para enganar Ferondo, a incapacidade da esposa em ser virtuosa e aos ciúmes de Ferondo, responsáveis pelo desencadeamento da situação.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela:10ª – Dionéio Jornada:3ª Rainha ou rei: Neífile Nº de páginas: 4p. (198 a 201) Personagens principais: Alibeque, Monge Rústico, Neerbal. Local onde ocorre a novela: Capsa, na Berbéria; deserto da Tebaida. Resumo: Alibeque decide se converter ao cristianismo e se faz eremita. Passa muito tempo, passando por privações, vagando pelo deserto, até que encontra a morada de um homem santo. O homem a dispensa, com medo de sucumbir às tentações e a recomenda a outro homem santo. A situação prossegue, até que ela encontra a morada do Monge Rústico. Ao contrário dos outros, ele permite que ela permaneça no lugar. Porém, o desejo carnal aparece e Rústico precisa encontrar uma forma de saciá-lo sem que a assuste. Assim, Rústico explica a Alibeque que, para cumprir a vontade e a missão divina, ela devia reenviar o diabo ao inferno. Na verdade é desculpa para Rústico manter relações sexuais com a moça. Alibeque aprende a servir a Deus e o acha maravilhoso, querendo sempre enviar o diabo ao inferno. Rústico percebe que a função passou a ser exaustiva para ele e cria-se um impasse entre ele e Alibeque. Então, algo inesperado acontece: a família de Alibeque morre, ela é a única herdeira, volta a Capsa e acaba se casando com um homem chamado Neerbal. As mulheres de Capsa desejavam saber como ela fazia servir a Deus no deserto e ela explica de que maneira enviava o diabo ao inferno. As mulheres começam a rir e dizem que Neerbal pode ajudá-la a fazer a obra de Deus. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S(X) N( ) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Usando o monaquismo dos primeiros séculos do cristianismo, Boccaccio mostra a incapacidade das pessoas a resistirem aos desejos. Aqui é o eremita que descumpre seu voto de castidade e a moça que funciona com instrumento de tentação da carne. Assim, para Boccaccio, mesmo naqueles tempos, se afastando do mundo, as pessoas sucumbiriam aos desejos.

Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 2ª – Pampinéia Jornada: 4ª Rainha ou rei: Filóstrato Nº de páginas: 8p. (217 a 224) Personagens principais:Frei Alberto e Lisetta de Cá Quirino Local onde ocorre a novela: Vinegia (Veneza) Resumo: Um homem corrupto de Ímola, chamado Berto della Massa, decide se mudar da cidade e ir para Vinegia, onde se torna um falso pregador, mas que pregava tão bem que todos acreditavam nele, adotando o nome de Frei Alberto. Lá, fica sabendo da existência de Lisetta de Cá Quirino, esposa de um grande mercador da cidade, belíssima, porém ingênua. Para deitar-se com ela, diz que o anjo Gabriel enamorou-se dela e quer deitar-se com ela. Frei Alberto passa muitas noites no leito de Lisetta, fingindo que é o anjo, até o dia que Lisetta comenta o assunto com uma comadre e, assim, a cidade descobre toda a história. Os parentes de Lisetta armam um flagrante para Frei Alberto; ele consegue escapar, mas é pego tentando fugir disfarçado de fera. É duramente castigado, mas os frades do mosteiro o salvam. Passa a viver, dentro do mosteiro, existência miserável, morrendo algum tempo depois. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Crítica aos atos libidinosos cometidos por frades. Porém, nesta novela, o personagem principal é punido por seduzir a moça.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela:3ª – Laurinha Jornada:6ª Rainha ou rei:Elisa Nº de páginas:2p, (325 e 326) Personagens principais:Antonio d’Orso (bispo de Florença), Diego della Ratta, Monna Nonna dei Pulci. Local onde ocorre a novela:Florença Resumo: Em troca de dinheiro, Diego Della Ratta, capitão de armas do Rei Roberto de Nápoles, pede para dormir uma noite com a sobrinha do irmão do bispo de Florença, Antônio d’Orso. O pagamento é feito ao marido da moça e o acerto contra a vontade dela, enquanto o bispo finge não saber de tal vileza. Os dois se viam com freqüência, e no dia de São João, encontram a senhora Monna Nonna dei Pulci. O capitão de armar a achou belíssima e foi apresentado a ela pelo bispo. Ele pergunta a Monna Nonna se ela achava o capitão pessoa interessante e Monna respondeu que, se ele a quisesse, teria de pagar com dinheiro verdadeiro. Os dois se envergonham do ato que cometeram diante da resposta da mulher e jamais toca no assunto novamente. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S( ) N(X) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Boccaccio, além de criticar a ganância do Bispo de Florença, critica a omissão dele diante da “compra” da sobrinha do irmão. No caso, é a fala de Monna Nonna dei Pulci que mostra o erro cometido pelo bispo e pelo capitão da guarda.

Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 10ª – Dionéio Jornada: 6ª Rainha ou rei: Elisa Nº de páginas: 7p. (336 a 342) Personagens principais: Frade Cipolla, Giovanni del Bragoniora, Biaggio Pizzini, Guccio Porco Local onde ocorre a novela: Certaldo Resumo: Dois rapazes resolvem armar uma burla para o Frade Cipolla, que era portador de falsas relíquias. Roubam a suposta pena do anjo Gabriel e substituem-na por alguns carvões. No momento da pregação, o frade percebe o erro e diz as pessoas que se tratava dos carvões da fogueira onde São Lourenço sofreu o martírio. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S( ) N(X) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Aqui Boccaccio usa o riso para evidenciar um dos problemas mais sérios da Igreja Católica em fins da Idade Média: a falsificação e o tráfico de relíquias. Cipolla não era portador somente da pena do anjo Gabriel; coisas como pedaço do dedo do Espírito Santo, suor do arcanjo Miguel e som dos sinos do Templo de Salomão. Assim, Boccaccio mostra que membros do clero são pouco confiáveis, pois são capazes de mentir para ganhar benefícios de outras pessoas ou conquistar a fé delas.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 3ª – Elisa Jornada: 7ª Rainha ou rei: Dionéio Nº de páginas: 4p. (355 a 358) Personagens principais: Frade Rinaldo, Senhora Agnes, marido da Senhora Agnes. Local onde ocorre a novela:Siena Resumo: Rinaldo era apaixonado por Agnes e tinha seu amor correspondido. Porém Agnes se casa e Rinaldo se torna frade. Tempos depois, Rinaldo se torna padrinho do filho de Agnes, o que os manteve próximos. Passam a se encontrar constantemente, até o dia que Rinaldo revela suas intenções. Agnes, primeiramente, resiste, mas passa a se encontrar com o frade. Um dia, o marido de Agnes chega mais cedo em casa e quase descobre o engano da mulher. A saída é fazer crer que ele estava a curar os vermes do afilhado. O marido acredita e tudo termina bem. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Esposa que engana o marido, além de mostrar, mais uma vez, que não é o ato de colocar as vestes monacais que apaga a concupsciência de Rinaldo e nem que o casamento mata paixões antigas das mulheres – mesmo depois de se tornar frade, Rinaldo continua apaixonado por Agnes.

Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 2ª – Pânfilo Jornada: 8ª Rainha ou rei: Laurinha Nº de páginas: 5 (397 a 401) Personagens principais: Padre, Monna Belcuore, Bentivegna del Mazzo. Local onde ocorre a novela: Varungo Resumo: O padre de Varungo deita-se com Monna Belcuore. Devido as dívidas que ela possuía com um usurário, deixa como penhor um capote e pede emprestado um cadinho. Devido aos enganos que um cometeu com o outro, o padre devolve o cadinho e pede o capote de volta, que ela o faz proferindo muitos impropérios. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Além de mostrar, mais uma vez, a quebra do voto de castidade do padre e as fraquezas das mulheres em resistir à sedução, Boccaccio mostra que membros do clero também podem enganar as pessoas.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 4ª – Emília Jornada: 8ª Rainha ou rei: Laurinha Nº de páginas: 5p. (408 a 412) Personagens principais: Preboste, viúva Nonna Piccarda, Ciutazza, irmãos da viúva, bispo de Fiesole. Local onde ocorre a novela: Fiesole Resumo: O preboste de Fiesole é apaixonado pela viúva Nonna Piccarda, porém ela não sente o mesmo por ele. Mesmo assim, o preboste insiste para se encontrar com ela, o que a deixava com muita vergonha. A viúva, consultando os irmãos antes de tomar qualquer atitude, arma um plano. Ela diz que ele pode ir à casa dela, mas teria que tomar cuidado com os irmãos dela. Por isso, o quarto onde dormiriam juntos estaria escuro e que ele deveria fazer o que tinha de fazer em silêncio. A viúva possuía uma criada chamada Ciutazza e promete-lhe uma camisola se ela concordasse em deitar com uma pessoa. Ciutazza concorda e o plano é posto em prática. O preboste vai a casa da viúva em horário previamente combinado e deita na cama com Ciutazza, achando que esta era Nonna Piccarda. Os irmãos da viúva, que já sabiam do plano, convidam o bispo para ir a casa deles. Depois de algum tempo, dizem que mostrarão ao bispo algo muito interessante. Lá, munidos de tochas, sobem ao quarto da irmã deles e surpreendem o preboste na cama com Ciutazza, O preboste é tomado pela vergonha, enquanto o bispo profere contra ele censuras pesadas. O bispo elogia a virtude a atitude da viúva, enquanto o preboste paga penitências como pena para o ato e passa a ser motivo de chacota da cidade inteira. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Mais uma vez, Boccaccio critica a quebra dos votos de castidade de membros do clero, usando como contraponto a virtude da viúva. A astúcia da viúva em armar o flagrante poderia servir como crítica ao modo de agir das mulheres; contudo nesta novela, o que é negativo, torna-se positivo – é a atitude da viúva que mostra o erro do preboste. Aqui, o elemento grotesco – Ciutazza – serve para ressaltar a atitude do preboste.

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Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 2ª – Elisa Jornada: 9ª Rainha ou rei: Emília Nº de páginas: 4p. (470 a 473) Personagens principais: Isabetta, Senhora Usimbalda, freiras do convento. Local onde ocorre a novela: Mosteiro na Lombardia. Resumo: Uma jovem, de família nobre, chamada Isabetta, vai para um convento na Lombardia. Lá recebe a visita de um parente e se apaixona pelo rapaz e ele a corresponde. Como estava Isabetta no convento, o fato causa muito desespero e tristeza aos dois. Porém, encontram uma forma de se encontrarem dentro do convento, passando ele a visitá-la muitas vezes. Um dia, as outras freiras descobrem os encontros de Isabetta com o rapaz dentre da cela dela e resolvem que, da próxima vez que acontecesse, contariam a Senhora Usimbalda, a abadessa do convento. Outro encontro ocorre entre Isabetta e o rapaz, que nada sabiam da artimanha das outras monjas. Elas dividem-se em dois grupos. Enquanto umas ficavam vigiando a porta, outras iam avisar a abadessa. Porém a abadessa tinha um amante, que era um padre, e, na hora que as freiras foram chamá-la, ela se encontrava na cela com ele. Na pressa para surpreender Isabetta, ao invés de colocar o saltério, coloca as calças do padre. Usimbalda segue para a cela de Isabetta, abre a porta e surpreende os amantes juntos. O rapaz é trancado na cela, enquanto Isabetta é levada ao escritório da abadessa, seguida por todas as outras freiras do convento. Lá, a abadessa profere várias censuras á moça, até que Isabetta percebe o estranho acessório na cabeça de Usimbalda. Pede que ela dê o laço à touca, o que a abadessa toma como um insulto. Isabetta repete o que disse e a abadessa percebe o erro que cometeu. Muda o discurso rapidamente com a freira, a perdoa e todas as outras freiras passam a ter direito de levar homens para suas respectivas celas. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S(X) N( ) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S(X) N( ) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? Tal como na III,1, Boccaccio nos mostra que entrar para um convento não apaga os desejos das mulheres. Neste caso, também critica a hipocrisia do clero, através das atitudes da Senhora Usimbalda.

Decamerão (Giovanni Boccaccio) – Ficha de análise das novelas Novela: 2ª – Elisa Jornada:10ª Rainha ou rei: Pânfilo Nº de páginas: 4p. (508 a 511) Personagens principais: Guino de Tacco, abade de Cluny, Papa Bonifácio VIII. Local onde ocorre a novela: Siena e Roma. Resumo: Guino de Tacco é expulso de Siena devido a suas atitudes violentas e acaba indo para Roma e passa fazer oposição ao Papado. Estando o Papa Bonifácio VIII em Roma, segue para lá o abade de Cluny. O abade fica doente e Guino resolve ajudá-lo, o abrigando na casa dele. Ele cura o abade e depois o liberta. O abade, em retribuição, reconcilia Guino de Tacco com o Papa Bonifácio VIII que dá a ele um priorado da Ordem dos Hospitalários. Há padres na história? S(X) N( ) Há freiras na história? S( ) N(X) Há indícios de relações sexuais entre quaisquer personagens da novela? S( ) N(X) Qual tipo de crítica ao clero é feita pelo autor? É a única novela, cujos personagens principais pertencem ao clero, que faz nenhuma crítica aos membros da Igreja Católica. Tal fato tem a ver com o tema da Décima Jornada, na qual os membros da brigatta devem narrar novelas sobre atitudes de gratidão com outras pessoas. Aqui, no caso, é a salvação do abade e a reconciliação de Guino com o Papa.

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