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May 31, 2017 | Autor: Naiara Barrozo | Categoria: Walter Benjamin, Franz Kafka, Bertolt Brecht, Teoria E Critica De Arte
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A crítica de arte como explosão da história

Monografia apresentada por Naiara Martins Barrozo como requisito para obtenção do grau de bacharel em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense. Orientação: Professor Dr. Patrick E.C Pessoa.

Niterói/ Dezembro 2011 1

Resumo: A principal preocupação dessa monografia é explicitar a vinculação entre arte e história apresentada por Walter Benjamin em 1940 na tese XVII “Sobre o conceito de história”. Na tese, o filósofo afirma que a obra de arte é uma central de forças cristalizadas que pode ser mobilizada pela crítica histórico-materialista. Ao fazer isso, o crítico seria capaz de empreender o salto originário, e de romper a organização cronológica do tempo, instaurando uma nova realidade. Pretendo explicitar de que modo a obra de arte se apresenta como essa central de forças; o que podemos entender como salto originário; qual a concepção de materialismo histórico com a qual Benjamin trabalha; e de que modo isso se dá em sua prática crítica.

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O passado deixou de si mesmo nos textos literários imagens comparáveis àquelas que a luz imprime sobre uma placa sensível. Apenas o futuro possui os reveladores ativos o suficiente para revelar perfeitamente tais clichês. (Walter Benjamin) 1

Daí deriva, para o filósofo, a tarefa: compreender toda vida natural a partir da vida mais abrangente que é a história. E não será ao menos a ‘pervivência’ das obras incomparavelmente mais fácil de reconhecer do que a das criaturas? (Walter Benjamin) 2

Origem é o fim. (Karl Kraus)3

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BENJAMIN, Walter. Cit. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Introdução. SELIGMANN-Silva, Márcio (org). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP, 2007, p. 13. 2 BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora34, 2011, p.105. 3 KRAUS, Karl. Palavras em versos, I. cit. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2010, p.119.

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Sumário

Introdução ....................................................................................................................... 6

PRIMEIRA PARTE O método crítico histórico-materialista

1. A obra de arte ou o cristal de tempo-de-agora ........................................................... 10 1.1. Crítica e comentário ................................................................................................ 11 2. Da explosão................................................................................................................ 19 2.1. O conceito vulgar de Ursprung ............................................................................. 20 2.2. Origens, histórias e o salto crítico........................................................................... 25 2.2.1. Entre Benjamin e Foucault ................................................................................... 25 2.2.2. O salto originário .................................................................................................. 26 2.3. Tempo ......................................................................................................................31

SEGUNDA PARTE A práxis crítica

3. O materialismo histórico de Brecht ......................................................................... 32 4. Benjamin leitor de Kafka: o problema da forma literária ........................................ 40 Considerações finais ...................................................................................................... 49 Bibliografia .................................................................................................................... 51

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Para Vinícius, pelo carinho e pela paciência; para Nathália, pela amizade; Para Patrick, por me ensinar que a filosofia não existe sem afeto; Para Maíra, minha irmã, por me mostrar a cada dia o que é afeto.

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Introdução

Ao contrário do que poderá parecer, este não é um trabalho sobre filosofia da história. Seu objetivo é pensar a crítica de arte filosófica no pensamento de Walter Benjamin. Entretanto, ele será norteado principalmente pelas teses “Sobre o conceito de história”, escritas pelo pensador alemão em 1940, ano de sua morte. Segundo Michael Löwy, o conjunto das teses forma um dos textos filosóficos e políticos mais importantes do século XX, e, no que se refere ao pensamento revolucionário, o texto “mais significativo desde as ‘Teses sobre Feuerbach’ de Marx” 4. Desse compêndio, interessame especialmente a tese XVII5. A tese XVII sobre o conceito de história tem início com a explicitação da diferença existente entre historicismo e historiografia materialista. Enquanto aquele tenta preencher um tempo homogêneo e vazio com uma massa imobilizada de fatos, como quem asfalta uma estrada de mão única, este opera respeitando um princípio construtivo que não se deixa reduzir à mera adição sucessiva de eventos. O fundamento desse princípio de construção é a noção de que o pensar não é feito só de movimento, mas também de instantes em que é paralisado6. Há certos momentos em que ele se depara com uma constelação saturada de tensões frente à qual fica imóvel. Segundo o filósofo, nesse instante, o pensamento confere um choque à constelação por meio do qual ela se torna um cristal monadológico. Na tese XIV7, esse cristal é definido como tempo-de-agora (Jeztzeit) e é apresentado como a unidade mínima do tempo, que não deve ser visto como uma linha reta, mas um descontínuo saturado desses cristais. Outra tese, a XVI8, nos mostra ainda que pensá-lo é pensar o lugar desse tempo como o lugar daquilo em que o presente não é transição, mas estancou e ficou imóvel (Stillstand). A existência dessa mônada é precondição para que o materialismo histórico aja, pois apenas ela pode constituir seu objeto. De acordo com Benjamin, “nessa estrutura ele reconhece o signo de uma imobilização messiânica do acontecer, em outras palavras, de uma chance

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LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 17. 5 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 119. 6 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008 7 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 119. 8 Ibidem, p. 128.

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revolucionária na luta a favor do oprimido9”. Isto porque estarão latentes no cristal elementos que servirão para a construção de uma nova história. Para Benjamin, o materialista deve ser capaz de reconhecer o signo, arrebatar a chance e, assim, fazer explodir uma época do decurso homogêneo da história. É nesse contexto de apresentação da tarefa do materialista histórico que o filósofo explicita o entrelaçamento entre arte e história. Ele surge no seguinte raciocínio: Há várias épocas deitadas sobre o curso homogêneo da história, algumas explícitas no enredo da história dos vencedores, configuradas, e outras que poderiam ter existido, que poderão ser configuradas; o materialista deve fazer uma delas explodir, melhor dizendo, ele deve fazer explodir da configuração consolidada de uma época uma configuração que poderia ter sido e ainda não foi. Há também várias vidas deitadas sobre a homogeneidade de uma época; o materialista irá retirar dela, “fazer explodir”, uma dessas vidas. Da vida de um artista, teremos uma obra de arte. Em cada obra de uma vida há ainda várias obras, umas que já foram configuradas e que se apresentam como sendo a face da obra de uma vida, e outras que ainda não tiveram corpo na história. O materialista deverá fazer explodir da obra de uma vida uma das obras ainda inexistentes. Ele fará isso a partir de um procedimento que irá conservar e suprimir “na obra a obra de uma vida, na obra de uma vida, a época, e na época, todo o decurso da história”

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. De modo distinto ao que

pensamos comumente, esse pensamento nos apresenta uma estrutura invertida: a obra de arte não está contida na história, não é apenas elemento constitutivo de um todo maior; antes, ela mesma contém todo o decurso da história, assim como a obra da vida, e a época. Não se trata de se opor ao pensamento comum, mas de estabelecer um paradoxo que inclui esse pensamento. A obra de arte é elemento constitutivo da história, mas, ao mesmo tempo, ela é aquilo que contém todas as esferas apresentadas, sendo uma abreviação de toda história. Ao explodir uma obra determinada da obra de uma vida, o crítico de arte materialista inicia o movimento para explodir a vida daquele que escreveu (apesar de essa esfera ser pulada por Benjamin), a época, e o decurso inteiro do tempo da humanidade. Nesse sentido, uma abordagem que parta da contextualização da obra na vida do autor ou em uma época histórica será sempre uma abordagem incompleta. Como afirmou em “As Afinidades Eletivas de Goethe”, texto escrito por Benjamin em 1922,

9 10

Ibidem, p. 130. Ibidem.

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a obra deve estar absolutamente em primeiro plano sempre que o olhar perceptivo se dirigir ao conteúdo e à essência. Pois em parte alguma esse conteúdo e essa essência evidenciam-se de forma mais durável, mais marcante e mais apreensível do que na obra11

A vinculação entre arte e história explicitada na tese XVII apresenta a principal preocupação desta monografia. Trata-se aqui de pensar a crítica de arte materialista como o lugar dessa vinculação. Para empreender essa tarefa do melhor modo possível, optei por dividir essa monografia em duas partes. A primeira será destinada à observação de dois elementos centrais que foram expostos por Benjamin na tese em questão. Se considerarmos a afirmação de que os materialistas só se aproximam de um objeto quando este se apresenta como um cristal de tempo-de-agora, a tarefa que se mostra necessária antes de tudo é a de compreender de que modo se dá essa apresentação. Esse é o objetivo do primeiro capítulo. Para isso, irei utilizar como bibliografia principal o parágrafo inicial do estudo sobre As Afinidades Eletivas de Goethe, em que Benjamin explicita a estrutura interna da obra de arte e o modo como seus elementos se articulam ao apresentar a distinção entre crítica e comentário. Pretendo recorrer também aos comentários feitos por Jeanne Marie Gagnebin em seu texto “Comentário filológico e critica materialista”, assim como à leitura de Luciano Gatti, apresentada em seu livro Constelações: Crítica e verdade em Benjamin e Adorno. O outro aspecto a ser abordado é o que estou chamando de explosão. Este será o foco do segundo capítulo. Pretendo investigar o que significa explodir uma época do decurso da história ou uma obra de arte determinada do/no homogêneo da obra de uma vida. Para isso, no segundo capítulo desta monografia, irei explicitar a noção benjaminiana de salto originário (Ursprung). Ela é central para compreender as sucessivas extrações às quais Benjamin se refere. Na filosofia há pelo menos duas noções encerradas no termo alemão Ursprung. Uma delas corresponde ao que podemos chamar de noção vulgar. Acho produtivo que a apresentemos aqui para evitar que ela seja confundida com o conceito desenvolvido por Benjamin, o que não é muito difícil de acontecer. Para empreender essa apresentação, irei recorrer ao texto “Nietzsche, a genealogia e a história”, em que Foucault trabalha o sentido que queremos afastar a partir de uma análise da obra de Nietzsche. Compreendida 11

BENJAMIN, Walter. As Afinidades Eletivas de Goethe. In: Escritos reunidos sobre Goethe. São Paulo: Editora34, 2010, p. 56.

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essa primeira noção, pretendo me deter na concepção benjaminiana, que apresentarei recorrendo ao prefácio epistemo-crítico da tese de livre-docência Origem do Drama Barroco Alemão, e a outro texto de Gagnebin intitulado “Origem, original, tradução”, no qual a comentadora esmiúça o conceito. Após explicitar os dois elementos presentes na tese XVII, ou seja, de que modo é possível perceber a obra como centro messiânico de forças e de que modo o crítico realiza as sucessivas extrações a que nos referimos, pretendo observar de que maneira a relação entre arte e história se dá na prática crítica. A segunda parte desta monografia se ocupará disso. Seu eixo será a obra de Franz Kafka. Iremos nos ocupar mais precisamente de duas interpretações suscitadas por essa obra, a de Benjamin e a de Brecht. A princípio, ambas as leituras são materialistas. É sabido, inclusive, como, em diversos momentos, Adorno acusou Benjamin de um materialismo vulgar decorrente da proximidade com Brecht, que no período havia se tornado um de seus grandes amigos. Mas, como espero ter deixado claro ao final deste texto, o materialismo histórico que fundamenta as práticas dos pensadores é bastante distinto. Antes de apresentar a leitura benjaminiana, pretendo apontar no terceiro capítulo para o lugar em que as concepções do filósofo e do dramaturgo se afastam. Isso será possível com a observação da leitura de Brecht registrada por Benjamin em “Anotações de Svendborg”, conjunto de notas redigidas pelo filósofo em seu diário ao longo do verão de 1934, período no qual ficou hospedado na casa do dramaturgo, em que eles mantiveram um intenso debate sobre o assunto. Finalmente, no quarto capítulo, após explicitar essa diferença, irei observar a leitura que Benjamin faz da obra de Kafka e o modo como o crítico empreende as explosões. No âmbito de uma monografia não é possível abordar todos os temas que se cruzam nessa crítica. Reconhecendo essa impossibilidade, escolhi tratar apenas do problema da forma literária. Pretendo recorrer, sobretudo, ao ensaio “Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte”, publicado em 1934, e às cartas que o crítico trocou com Scholem ao longo de toda década de 1930 sobre os textos do escritor tcheco. Com relação à fonte epistolar, interessa-nos especialmente a carta-ensaio escrita por Benjamin em 12 de junho de 1938. Ela foi redigida para Scholem, que havia solicitado ao amigo que escrevesse uma carta sobre a recente biografia de Kafka feita por Max Brod. O texto deveria ser passível de uma eventual publicação. Mas a carta de Benjamin não trata apenas de Brod. Ela é dividida em duas partes, sendo que a segunda se destina a apresentar reflexões fundamentais sobre a interpretação benjaminiana da obra de Kafka, especialmente no que se refere à forma da “parábola sem doutrina”. 9

Parte I: O método crítico histórico-materialista 1. A obra de arte ou o cristal de tempo-de-agora A obra de arte é sintética: central de forças. (Walter Benjamin. Tese IX)12

Nesse capítulo, irei observar a obra de arte como cristal de tempo-de-agora (Jeztzeit), ou seja, como “modelo do tempo messiânico que resume toda a história de toda humanidade numa prodigiosa abreviação”

13

. Pretendo mostrar de que maneira ela se

expõe ao crítico como lugar capaz de trazer ao encontro do seu presente todas as forças que estavam tensionadas em certo período do tempo, e, nesse sentido, como a própria força redentora. Para isso, irei recorrer aos parágrafos iniciais do ensaio “As Afinidades Eletivas de Goethe”

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. Apesar de marcar o início de uma abordagem fundamentalmente

prática do problema da crítica de arte15 e o afastamento do pensamento sistemático, seu primeiro parágrafo ainda guarda um resquício do sistema. Como esta monografia não visa à análise propriamente dita que Benjamin faz do romance, farei apenas uma breve apresentação do ensaio. Publicado entre 1924 e 1925 na revista Neue Deutsche Beiträge, dirigida por Hugo von Hofmannsthal, o texto é uma resposta de Benjamin às críticas do romance que haviam sido desenvolvidas até o período. O alvo do filósofo é especialmente a leitura proposta por Friedrich Gundolf. Em 1916, o literato publicara um estudo sobre Goethe de grande destaque na Alemanha, em que apresentava uma imagem hagiográfica do escritor e a partir da qual a valorização do casamento e a defesa das renúncias feitas em seu nome tornavam-se os problemas centrais da obra. Para Benjamin, o trabalho de Gundolf começaria com o próton pseudos do método, ou seja, o erro primordial que suscitará uma

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BENJAMIN, Walter. Proibido colar cartazes In: Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 2009, p. 32. BENJAMIN, Walter. Tese XVIII. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 138. 14 Foram utilizadas nesse trabalho a tradução encontrada em Ensaios Reunidos: Escritos sobre Goethe e a proposta por Jeanne Marie Gagnebin em seu artigo “Comentário filológico e crítica materialista”. 15 GATTI, Luciano. Constelações: Crítica e verdade em Benjamin e Adorno. São Paulo: Loyola, 2009, p. 49. 13

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série de equívocos, pois seu ponto de partida é a vida do escritor e não a obra. No âmbito da pesquisa artística, segundo o filósofo afirma no ensaio, há apenas duas atividades para as quais a obra está em primeiro plano: a crítica e o comentário. Tendo como objetivo ressaltar o caráter verdadeiramente crítico da análise que propõe do romance, nas primeiras linhas do texto, Benjamin irá empreender exatamente a definição do conceito de crítica de arte filosófica. Isto será feito a partir da contraposição com o trabalho do comentador. 1.1. Crítica e comentário

No ensaio, Walter Benjamin afirma que, apesar de ambas as atividades, a do crítico e a do comentador, terem como objetivo uma apresentação detalhada da obra com a qual se encontram, elas diferem por aquilo que as move. Segundo Benjamin: “A crítica busca o teor de verdade (Wahrheitsgehalt) de uma obra de arte; o comentário, o seu teor ‘coisal’/material (Sachgehalt)”

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. Compreender esta distinção implica compreender

também a “estrutura” e a dinâmica da obra de arte, tais como são apresentadas pelo filósofo neste ensaio. Comecemos pela diferenciação dos objetos de cada atividade. Proponho que entendamos os teores como sendo duas camadas hermenêuticas primárias que compõem a obra de arte, no sentido de que é a partir delas, atravessandoas, que o crítico poderá alcançar uma infinidade de outras camadas de significação. Nesse sentido, seguindo a definição de Gagnebin, o teor de coisa seria a espessa camada da realidade histórica incorporada ao texto literário na materialidade da língua particular na qual ele foi escrito (alemão, português, grego, etc.). A partir dessa definição, ele seria, portanto, o lugar do tempo na obra de arte. O teor de verdade, por sua vez, corresponderia ao significado daqueles dados do real que compõem o teor de coisa. Mas não devemos entender aqui a noção de significado como o estabelecimento de um conceito imóvel passível de ser apreendido. Tampouco devemos achar que se trata de pensar esses teores a partir da distinção forma (Form) e conteúdo (Inhalt), como se no teor coisal estivessem signos que guardariam arbitrariamente conteúdos a serem transmitidos a outro repiciente significativo, com o qual não teriam nenhuma relação íntima. Ao contrário, quem for guiado por esta tendência deve saber que a noção de teor (Gehalt) corresponde 16

Nesta parte, optei por fazer uso da tradução dos termos Sachgehalt e Wahrheitsgehalt proposta por Jeanne Marie Gagnebin no artigo supracitado. Ela não aceita o uso da expressão teor factual proposta pela tradução corrente para Sachgehalt, porque ela se remeteria a um fatualismo que não existiria na obra do filósofo.

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exatamente ao lugar onde conteúdo e forma são um só, como Benjamin afirma em “Treze teses contra esnobes”

17

. O filósofo toma o termo de Goethe exatamente para afastar o

problema da separação e da contraposição que se faz comumente entre as duas esferas. Isso nos é afirmado por Gagnebin em nota ao ensaio “Dois poemas de Friedrich Hölderlin”

18

, em que a comentadora presentifica o espírito do conceito goethiano a partir

da remissão ao seguinte trecho do escritor, indicado por Pierre Rusch na tradução francesa do texto: “Disputa entre forma e sem forma. Privilégio do teor sem forma diante da forma vazia. O teor traz a forma consigo. Forma nunca é sem teor.” 19 Feita essa ressalva, podemos identificar na exposição benjaminiana três momentos da existência da obra de arte em que esses teores se relacionariam de diversas formas: o período da empatia temporal, o do espanto, e do início da “pervivência” (Fortleben) da obra. A essa última fase, seguindo a nomenclatura sugerida pelo próprio autor, chamemos de fama. No ensaio sobre “A tarefa do tradutor”, escrito em 1921, um ano antes de analisar a obra de Goethe, Benjamin define exatamente desse modo uma etapa específica da vida da obra. “Quando surge, essa continuação da vida das obras recebe o nome de fama”

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, afirma. Nesse mesmo trecho ele chama a atenção ainda, por

meio da distinção de nomenclatura, para o fato de que o período de “pervivência” (Fortleben) da obra21 não deve ser confundido com sua sobrevivência (Überleben). Em nota à tradução, Gagnebin explicita a necessidade de se atentar para a diferença que existe entre esses dois termos. Na língua portuguesa, ela foi explicitada por Haroldo de Campos por meio da criação do neologismo “pervivência” para a tradução do vocábulo alemão Fortleben. Per-viver traz consigo no prefixo escolhido pelo poeta e tradutor brasileiro as noções de continuidade, complementação, desvio, morte, destruição, reforço, aumento, e intensidade. O termo sobrevida não abarca todos esses sentidos, e, como veremos no segundo capítulo, o movimento crítico é acompanhado por todos eles. A sobrevida se relaciona apenas com a noção de prolongamento da existência da obra. A

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BENJAMIN, Walter. Proibido colar cartazes. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 2009, p. 32 C.f. nota de Gagnebin ao ensaio “Dois poemas de Friedrich Hölderlin”. In. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora34, 2011, p.13. 19 GOETHE. Weimarer Ausgabe. Vol. XIV, p.287. cit. GAGNEBIN, Jeanne Marie. In. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora34, 2011, p.14. 20 BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora34, 2011, p. 105. 21 C.f. nota de Gagnebin ao ensaio A tarefa do tradutor. In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora34, 2011, p. 104. 18

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crítica deriva dela, mas é na pervivência que a vida da obra de arte irá alcançar, “de maneira constantemente renovada, seu mais tardio e mais abrangente desdobramento” 22. Antes de prosseguirmos, vale ressaltar que tudo o que for dito aqui não se refere a obras de arte quaisquer, mas apenas às grandes obras, àquelas que duram na história. Isto é enfatizado por Benjamin tanto no texto sobre tradução como no ensaio de 1922. De acordo com o que Luciano Gatti escreveu em Constelações, a categoria de duração é utilizada aqui para enfatizar o caráter histórico da relação existente entre o teor de verdade e o de coisa. Ela remeteria a uma compreensão romântica de obra clássica, para a qual um texto literário, por exemplo, nunca poderia ser completamente apreendido, estando sempre aberto para uma nova crítica. Tal compreensão se relaciona, de acordo com o comentador, com o entendimento da obra como um organismo, que cresceria com o passar do tempo. No ensaio sobre o romance de Goethe, Benjamin pensaria a duração como “um processo de envelhecimento durante o qual a vida da obra se embota aos poucos e seu efeito desaparece” 23. Podemos agora voltar nossa atenção para os problemas da obra no tempo e do tempo na obra. No primeiro momento da existência de um grande livro, a relação dos seus teores respeita o que Benjamin chama de “a lei fundamental da escrita literária”. Se seu teor de verdade for significativo, como seria o de todo clássico, ele deve estar intimamente ligado ao seu teor de coisa, imerso nele. Essa aderência de uma esfera à outra deve ser praticamente imperceptível tanto para o escritor como para os leitores durante esse período inicial. De acordo com o filósofo, o amálgama aparecerá antes de tudo apenas como teor coisal. Mas não para seus contemporâneos: “os dados do real na obra apresentam-se, no transcurso dessa duração, tanto mais nítidos aos olhos do observador quanto mais se vão extinguindo no mundo24”. O distanciamento histórico interposto entre leitor e obra literária é o que permitirá às coisas da realidade, antes vivas no cotidiano do receptor, e, por isso, familiares a ele, se destacarem da superfície do texto como elementos estranhos. O distanciamento histórico de que falamos aqui não parece ter exatamente a ver com uma distância temporal cronológica, com o intervalo entre a data de produção e o ato de leitura, ou com os diferentes períodos da recepção. Antes, parece mais ter a ver com a percepção da violência da transitoriedade do tempo que se impõe inevitavelmente. Não 22

Ibidem, p.105. GATTI, Luciano. Constelações: Crítica e verdade em Benjamin e Adorno. São Paulo: Loyola, 2009. p.54. 24 BENJAMIN, Walter. As Afinidades Eletivas de Goethe. In: Escritos reunidos sobre Goethe. São Paulo: Editora34, 2010, p.12. 23

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existe um período de tempo cronologicamente determinado para que essa violência se torne perceptível. Ela nos aparece no material mortificado da realidade histórica, na própria mortificação, quando nos deparamos com os dados do real e não os reconhecemos mais, quando não nos identificamos mais neles, quando, ao contrário, os enxergamos como elementos absolutamente estranhos, que nos espantam. Esse momento da quebra da empatia, que é o espanto, parece ser um momento em que o leitor experimenta algo como uma suspensão temporal do presente. Não se trata de suspender o presente para imergir na linearidade da narrativa, mas para que seja possível imergir na temporalidade não linear da obra de arte. No encontro com o estranho, de certo modo, nós mesmos seríamos retirados por um instante da linearidade da história e experimentaríamos outro tipo de temporalidade. É o espanto causado pela quebra da empatia que possibilitará a percepção da existência de uma alteridade temporal no texto, isto é, a percepção do passado no corpo do objeto25, do tempo na própria obra de arte. É dessa maneira que se inicia a etapa em que os teores ficariam em relevo, quando finalmente o amálgama teor de coisa-teor de verdade poderia vir à tona. Mas isso não acontece. Benjamin nos diz que o momento do conhecimento da alteridade é também aquele no qual se inicia o período da vida da obra em que a fusão entre os teores se desfaz. Esses movimentos não são consecutivos, mas simultâneos. Nesse período, os conhecimentos objetivos do passado, como ruínas, estarão cada vez mais visíveis aos nossos olhos, atuando como um véu sobre o teor de verdade. Quanto mais a existência dos dados se mostrar evidente com o estranhamento, mais o significado deles permanecerá oculto. Ao longo da duração de uma obra de arte, isto é, à medida que a distância histórica aumentar, mais se tornará necessário o atravessamento do teor coisal por meio de interpretações filológicas. Nesse ponto, torna-se imprescindível a tarefa do comentador. Esse instante do conhecimento da alteridade temporal da obra é decisivo também para o crítico materialista. A emergência do teor de coisa como aquilo que contém a história é o brilho que permitirá ao leitor vislumbrar a opacidade cristalina do texto literário. Somos obrigados a ver que o texto tem um corpo que “possui história e não

25

Nesse sentido, ao contrário do que o próprio Benjamin afirma no ensaio, talvez seja possível pensar que no momento mesmo da concepção de um texto literário, haja um leitor capaz de ver e interpretar seu teor coisal devido a sua capacidade de observar criticamente o espírito de seu tempo, promovendo a distância necessária para mortificá-lo, e assim, promover uma verdadeira crítica, como o próprio Benjamin fez ao longo da década de 1930, ao pensar a arte de seu tempo.

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constitui apenas um cenário para ela”

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, e que ele se relaciona com uma temporalidade

distinta da temporalidade cronológica que nos guia em nosso cotidiano. É assim que a obra de arte se torna visível como signo de uma imobilização messiânica, como central de forças heterogêneas tensionadas do passado que guarda uma nova configuração história em germe. Frente a esse cristal, o interesse do comentador seria apenas clarificar para o presente os dados do real. Mas a análise demorada da especificidade do passado serviria para o crítico só como ponto de partida. O modo como ele irá proceder a partir daqui é o objeto do próximo capítulo. Antes de apresentá-lo, entretanto, convém que nos demoremos um pouco mais sobre o parágrafo, a fim de observar o que Benjamin designa como sendo a pergunta crítica fundamental. No momento em que o teor de coisa aparecer ao crítico desvinculado do teor de verdade, de acordo com o filósofo, o crítico poderá se perguntar “se a aparência (Schein) do teor de verdade se deve ao teor de coisa ou se a vida do teor de coisa, ao teor de verdade” 27. Proponho que pensemos esse questionamento observando a clássica metáfora trazida por Benjamin, cujo objetivo é ressaltar a complementaridade da relação entre crítica e comentário: Recorrendo a uma comparação, poderia considerar-se a obra no seu crescimento como um monte de lenha em chamas diante da qual o comentador se postaria como um químico, e o crítico como um alquimista. Enquanto que para o primeiro, a madeira e a cinza são os únicos objetos de sua análise, para o segundo, somente a chama conserva um enigma: o do vivente. Assim, o crítico pergunta pela verdade, cuja chama viva continua a queimar sobre as pesadas achas do que foi (des Gewesenen) e a leve cinza do que foi vivenciado (des Erlebten)28

No símile, a obra nos aparece como um organismo em crescimento composto por madeira, cinza e fogo. Os dois primeiros elementos são o aspecto material, históricolingüístico, que interessa ao comentador como a lenha queimada interessaria à pesquisa de um químico. São o teor coisal da obra. Na imagem, o teor de verdade é o lugar da chama que continua a queimar, melhor dizendo, é a própria chama. Ela cabe ao alquimista. Contraposta à imagem moderna do químico, ele remete a uma prática conhecida na Europa durante a Idade Média que tinha como um de seus objetivos principais descobrir maneiras de conferir vida eterna ao homem. Como um alquimista, o interesse do crítico estaria direcionado para o enigma da vida da verdade na obra, para o 26

BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. In. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora34, 2011, p.105. 27 BENJAMIN, Walter. As Afinidades Eletivas de Goethe. Trecho traduzido por GAGNEBIN, Jeanne Marie citado no artigo “Comentário filológico e crítica materialista”. PDF, p.143. 28 Ibidem, p.143.

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brevíssimo instante em que a verdade aparece e se consome29. Ele deve ser capaz de salvar a obra, promover seu crescimento quando esta se transforma em ruína. De acordo com Gagnebin30, a imagem orgânica da obra estaria retomando a concepção dos românticos de Iena, segundo a qual a obra de arte é um organismo que cresce, pois abarca ao longo de sua existência todas as críticas e traduções por ela ensejadas. “A história de uma obra engloba a de sua recepção”. 31 Se expandirmos o símile, veremos cada instante de aparecimento da verdade cuja “chama viva continua a queimar” formando mais madeira e cinzas, mais material histórico mortificado, que passará a integrar a história da e na obra, servindo de objetos para análises dos comentadores da posteridade, assim como de mais material a ser atravessado pelas futuras análises crítico-filosóficas. Esse processo apresenta o próprio teor coisal como uma camada em constante crescimento, no qual o tempo se condensa na obra de arte como ruína, e cuja expansão, sua própria vida, se deve à mobilidade da vida do teor de verdade32. Nesse sentido, podemos concluir que a vida do teor de coisa se deve à vida do teor de verdade. Assim, constatamos, portanto, que a materialidade lingüística na qual a verdade se apresenta não pode ser compreendida em hipótese alguma como uma mera aparência com a qual ela se relaciona acidentalmente. Ao contrário, percebemos a vinculação necessária que há entre esses elementos. Se considerarmos que a partir desse ponto a consciência da mobilidade do teor de coisa e a consciência de sua íntima relação com o teor de verdade se impõem ao crítico é possível interpretarmos também como verdadeira a parte do questionamento de Benjamin segundo a qual a aparência do teor de verdade se deve ao teor de coisa. Antes mesmo de pensarmos sobre o elo mencionado e o movimento da materialidade, poderíamos ter concluído que a aparência do teor de verdade se deve ao teor de coisa ao

29

Nesse sentido, o símile aponta para uma nova pergunta: como promover a vida eterna da obra, considerando que a verdade, ao se apresentar em uma corporeidade fugaz como a da chama, consome-se sempre no instante em que se torna visível? Benjamin não a desenvolve no ensaio, mas ela aparece como central no prefácio da tese Origem do Drama Barroco Alemão. 30 A princípio, o caráter orgânico da obra aludido no trecho poderia constituir uma contradição com o comentário de Gatti supramencionado sobre a categoria da duração. Mas não se trata exatamente de uma contradição. O que temos na verdade é outro paradoxo, pois a imagem nos diz que o crescimento do todo, da obra de arte, depende necessariamente da mortificação das suas partes. No que se refere ao aspecto geral da obra de juventude benjaminiana, este paradoxo situaria bem o ensaio entre o trabalho sobre O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, e a tese de livre-docência Origem do Drama Barroco Alemão, lembrando especialmente da definição apresentada no capítulo da tese sobre a alegoria e drama barroco, segundo a qual “A crítica é mortificação das obras”. 31 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Comentário filológico e crítica materialista. PDF p.143. 32 Curioso ver que o próprio sentido do termo teor, escolhido para a tradução do termo alemão Gehalt, remete para o caráter móvel das camadas da obra de arte, visto que advém da palavra latina tenor, oris, cujo sentido é movimento contínuo. C.f.: Dicionário eletrônico Houaiss interativo.

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final do seguinte raciocínio: se o objetivo do crítico é o teor de verdade, como vimos, ele deve antes de tudo se debruçar sobre os elementos estranhos da realidade história passada materializados linguisticamente no texto literário; saber que é necessário fazer isso significa reconhecer que não é possível alcançar a verdade imediatamente, ou seja, que a aparência do teor de verdade se deve ao teor de coisa, no sentido de que a verdade só se expõe na materialidade da obra. Mas quando consideramos o comentário feito por Gatti, vemos que essa conclusão não é necessária, e que só podemos chegar a ela pressupondo a consciência anterior sobre o vínculo e a mobilidade. Para ele, considerar que a aparência do teor de coisa se deve ao teor de verdade não poderia ser válido porque teria como pressuposto uma concepção de crítica que ignora a distância histórica e “identifica presente e passado, congelando os materiais históricos numa essência imutável, da qual o teor de verdade seria uma mera aparência”

33

. De fato, se o crítico considerar apenas a

materialidade sem perceber a necessária vinculação entre os teores e a mobilidade do teor de coisa, e considerar que a aparência do teor de verdade se deve a ele, o pesquisador está condenado a seguir um caminho bastante distinto do apontado por Benjamin para o materialista histórico, correndo o risco de tomar a obra como “símbolo”, entendido aqui no mau sentido do termo apontado no capítulo sobre a alegoria da tese de livre-docência de Benjamin, isto é, como manifestação de uma essência. Desse modo, o crítico apenas operaria na “legitimação filosófica da impotência crítica”

34

. Mas se antes ou

simultaneamente for reconhecida a imbricação, o risco da apropriação simbológica da obra de arte é afastada, permitindo concluirmos sem perigo que a aparência do teor de verdade se deve à aparência do teor de coisa e a vida do teor de coisa se deve ao teor de verdade. A observação do parágrafo inicial do ensaio sobre as Afinidades Eletivas de Goethe nos permitiu perceber o seguinte movimento: no início, teor de verdade e teor de coisa estão unidos na obra; a distância histórica decanta os elementos tornando o teor coisal visível, isto é, trazendo à tona a obra de arte como um cristal de tempo-de-agora. Por tornarem a obra visível ao materialista como cristal, permitindo o trabalho posterior do crítico, “na medida em que se dissociam da obra, eles [os teores] tomam a decisão

33

De acordo com o comentador, ao se colocar a pergunta apontada por Benjamin, o crítico materialista irá concluir que a aparência do teor de verdade não se deve ao teor de coisa, mas a vida do teor de coisa se deve ao teor de verdade. C.f.: GATTI, Luciano. Constelações: Crítica e verdade em Benjamin e Adorno. São Paulo: Loyola, 2009, p.56. 34 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.182.

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sobre a imortalidade da mesma” 35. Essa separação enseja o questionamento fundamental do crítico. A partir dela ele irá constatar que a aparência do teor de verdade se deve ao teor de coisa, e a vida do teor de coisa se deve ao teor de verdade. O processo dessa constatação traz à tona a vinculação primária e essencial entre os teores na obra, restabelecida no âmbito crítico.

35

BENJAMIN, Walter. As Afinidades Eletivas de Goethe. Trecho traduzido e citado por Jeanne Marie Gagnebin no artigo “Comentário filológico e crítica materialista”. PDF, p.143.

18

2. Da explosão

Antes de tudo... quem compõe uma análise deveria indagar, ou melhor, dirigir a sua atenção sobre a questão de saber se ele tem realmente a ver com uma síntese misteriosa, ou se aquilo com o que se ocupa é apenas um agregado, uma justaposição... ou como tudo isso poderia ser modificado36. (Goethe, WA, parte II, v.II, p.74)

Como foi visto na introdução deste texto, após perceber a obra de arte como o lugar do signo de uma imobilização messiânica do acontecer, no qual subjaz uma série de elementos do passado, de forças que foram cristalizadas, cabe ao crítico mobilizá-las e, em última instância, ser capaz de, assim, fazer explodir a história. O objetivo deste capítulo é entender em que consiste esse movimento de explosão. Como pretendo ter deixado explícito ao final desta exposição, ela está vinculada à noção de salto originário, encerrada no conceito benjaminiano de Ursprung, traduzido para o português como origem. Por isso, a tarefa que se impõe aqui é a de explicitar esse conceito. O conceito de origem como Ursprung é desenvolvido por Benjamin no prefácio epistemo-crítico de sua tese de livre-docência, Origem do Drama Barroco Alemão, apresentada em 1925 na Universidade de Frankfurt, que a rejeitou. Desde então, a noção passou a acompanhar todo seu pensamento sobre a crítica de arte e a filosofia da história, chegando até seus textos mais marcadamente materialistas, como os que formam as teses de 1940 que mencionamos sobre a história. Para empreender da melhor maneira possível a tarefa a que me proponho, considerando haver no pensamento filosófico corrente duas acepções diametralmente opostas encerradas no termo alemão, aquela desenvolvida por Walter Benjamin e outra vulgar, decidi recorrer a Foucault no primeiro momento desta exposição a fim de delimitar o espaço que separa os dois sentidos. Para tal, tomarei como base o texto “Nietzsche, a genealogia e a história”, no qual o pensador francês define o sentido vulgar que buscamos compreender dentro da filosofia nietzschiana. Explicitada esta concepção, pretendo tentar definir as feições da origem como Ursprung na obra de Benjamin a partir

36

GOETHE. WA, parte II, v.II, p.74. Cit. BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no Romantismo Alemão. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 15. Grifo meu.

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do texto “Origem, Original e Tradução”, de Jeanne Marie Gagnebin, e do prefácio epistemo-crítico. Por ser uma categoria totalmente histórica, como diz Benjamin37, a exposição do conceito deverá ser necessariamente uma discussão sobre distintas concepções de história. Mas esse ponto só será desenvolvido na medida em que auxiliar a explicitação do termo referido.

2.1. O conceito vulgar de Ursprung

A questão da origem como Ursprung se coloca para Foucault no contexto de definição da tarefa da genealogia. Dentre suas atribuições, ele diz, estão a busca pelo que há de distinto, de desconhecido no material que serviu à construção da história, a observação minuciosa do que foi excluído da edificação deste amálgama, e a atenção a tudo aquilo que usualmente se considera anistórico, como, por exemplo, os sentimentos humanos e os instintos. Sua pesquisa não deve seguir a história tradicional. Esta direciona um olhar pretensamente objetivo para os acontecimentos e os organiza como se eles mantivessem uma relação de causalidade entre si. Deste modo, ela apresenta uma narração de fatos, de verdades coerentemente dispostas em uma seqüência contínua e linear. Tudo o que constituir esta narrativa está fora do devir, compondo uma totalidade una, constante e compreensível. A “história dos historiadores”, como Foucault a chama, tomando a expressão nietzschiana, constrói um ponto de apoio fora do tempo, um porto seguro que possibilita ao homem reconhecer-se, deixando de lado as particularidades dos acontecimentos, que poderiam atrapalhar a aparência da perfeita ordem da narrativa histórica. A genealogia, por outro lado, visa exatamente “demarcar as singularidades dos acontecimentos” para “reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenham papéis distintos”, e, assim, chegar a seu fim último, que consiste em reencontrar os pontos de formação e dissolução dos saberes. Para isto, ela não pode operar na linearidade dos elementos que se mostram na história escrita, e, principalmente, deve se opor a toda pesquisa que tome a origem como norte. Não todo tipo de origem, diz Foucault, mas apenas aquele pousado na concepção que a entende como essência exata de uma coisa, anterior à história. Nesse contexto, a própria definição da genealogia exige de Foucault um desdobramento que esclareça as diversas noções de origem com as quais a pesquisa que ele propõe se relacionaria positiva ou negativamente. 37

BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 67.

20

Toda investigação foucaultiana sobre a origem apresentada no texto em questão parte de uma observação do uso que Nietzsche faz da palavra Ursprung ao longo de sua obra. Segundo o pensador francês, é possível identificar dois empregos diferentes do vocábulo. Um deles corresponde ao uso indistinto da palavra, que aparece como sinônimo de Abkunft (origem ou ascendência), Herkunft (origem, proveniência ou ascendência), e Entstehung (origem ou gênese). O outro uso corresponde a um emprego específico que respeita um rigor conceitual. Esse é o emprego que nos interessa observar. Sobre isso, Foucault chama nossa atenção especialmente para os parágrafos 2, 3 e 4 do prefácio da Genealogia da moral, texto escrito por Nietzsche em 1887. No segundo parágrafo desse prefácio, Nietzsche delimita seu objeto de pesquisa na obra, a saber, a origem dos preconceitos morais — “die Herkunft unsrer moralischen Vorurteile”, afirma. A questão sempre esteve presente em seu pensamento como problema filosófico. Isso fica explícito quando, no parágrafo seguinte, Nietzsche inicia uma retrospectiva do modo como ela foi tratada em diferentes fases de seu pensamento. Desde muito cedo, segundo diz, sua curiosidade deveria “logo deter-se na questão de onde se originam — welchen Ursprung — verdadeiramente nosso bem e nosso mal”

38

.

Aos treze anos, Deus se mostrou a ele como a melhor resposta para o problema e fora designado, então, o Pai do mal. Este período, Nietzsche afirma, foi antes de ele aprender a separar preconceito teológico de preconceito moral, e de entender que uma pesquisa interessada em dar conta da questão não poderia buscar a origem do mal por trás do mundo — “den Ursprung des Bösen hinter der Welt”. Depois de aprender isso, Nietzsche conta que se deparou com um livro de Paul Rée, intitulado A origem das impressões morais (Ursprung der moralischen Empfindung). Na época, em 1877, esse livro exerceu sobre ele “aquela força de atração que possui tudo o que é oposto e antípoda”

39

, e

servindo como contraponto, deu ao filósofo base para que ele pudesse apresentar as hipóteses que serão desenvolvidas em seus textos posteriores, caracterizadas por Foucault como as análises propriamente nitzscheanas. A partir desse momento, Nietzsche evoca no prefácio trabalhos como Humano demasiadamente humano e Aurora, referindo-se às pesquisas como investigações sobre a Herkunft, como é possível ver no trecho que se segue: Foi então que, como disse, pela primeira vez apresentei as hipóteses sobre origens (Herkunfts-Hypothesen) a que são dedicadas estas dissertações, de 38

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das letras, 2009, p.9. 39 Ibidem, p.9.

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maneira canhestra, como seria o último a negar, ainda sem liberdade, sem linguagem própria para essas coisas próprias, e com recaídas e hesitações diversas. Confira-se, em particular, o que digo em Humano, demasiadamente humano (parágrafo 45) sobre a dupla pré-história do bem e do mal (a saber, na esfera dos nobres e na dos escravos); igualmente (§136) sobre o valor e origem (Werth und Herkunft) da moral ascética; igualmente (§ 96,99, e vol. II, 89), sobre a ‘moralidade do costume’, aquela espécie de moral mais antiga e primordial, que difere toto coelo [diametralmente] do modo de valorizar altruísta (que o dr. Rée, como todos os genealogistas da moral ingleses, vê como o modo de valorar em si); igualmente (§92), O andarilho (§26), Aurora (§112), sobre a origem (die Herkunft der Gerechtigkeit) da justiça como um acerto entre poderosos mais ou menos iguais (o equilíbrio como pressuposto de todo contrato, portanto de todo direito); do mesmo modo, O andarilho (§22, 33), sobre a origem do castigo (die Herkunft der Strafe Wand), ao qual a finalidade de intimidação não é essencial nem primordial (como pensa o dr. Rée – ela lhe é, isto sim, enxertada em determinadas circunstâncias, e sempre como algo acessório, adicionado). 40

A tese de Foucault ao observar os parágrafos aos quais nos referimos é a de que na época da Genealogia da Moral, e especialmente nesse trecho que citamos, Nietzsche estaria especialmente interessado em acentuar a oposição entre os termos Herkunft e Ursprung. Foucault chama nossa atenção para o fato de que se fizéssemos uma pesquisa em todos os textos aludidos por Nietzsche na retrospectiva que faz no prefácio, que ele relaciona diretamente à origem como Herkunft, a palavra que encontraríamos seria Ursprung. O pensador francês afirma que esse emprego de Herkunft no prefácio de Genealogia da Moral para designar as obras escritas a partir de 1877 é proposital, e serve para indicar uma negação do tipo de pesquisa que exercia na época em que “caligrafava filosofia”, uma oposição entre dois projetos que marcam fases distintas de seu pensamento com a qual o filósofo alemão não havia trabalhado antes. Segundo Foucault, o vocábulo Ursprung é especialmente utilizado por Nietzsche no prefácio para fazer referência a um momento de sua pesquisa em que ele acreditava na concepção metafísica para a qual há outra dimensão da realidade, suprassensível, em que platônicos e religiosos acreditam estar protegida “a luz sem sombra da primeira manhã”

41

, a essência em sua

perfeição. A origem relacionada a esta mentalidade seria o lugar onde está resguardada a ordem eterna que precede a história, o lugar da essência da coisa, despida de todo acidente, de tudo o que constituiria qualquer mobilidade aparente, mobilidade esta sempre estranha à forma imóvel do fundamento originário. Ursprung designa, portanto, a concepção vulgar de origem, que a toma como a morada anistórica do “segredo essencial” de tudo o que há. 40

Ibidem, p.10. FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história, in Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2009, p.18. 41

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Em suma, Ursprung é caracterizada por Foucault a partir dos três postulados que a fundamentariam, a saber: a crença na existência de uma essência exata das coisas; a pressuposição de que houve um começo onde está aquilo que nas coisas há de mais precioso e essencial, onde elas podem ser vislumbradas em seu estado de perfeição; e a crença de que a origem seria o lugar da verdade, uma verdade imune e anterior ao acaso da história. Estas pressuposições vão absolutamente de encontro à proposta da análise histórica foucaultiana, que se desenvolve no encalço da história efetiva (Wirkliche Historie), para a qual “o começo histórico é baixo”, irônico, e está “sempre pronto a desfazer todas as enfatuações”

42

. De acordo com o filósofo francês, a origem como

Ursprung “está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se canta sempre uma teogonia”, nela está todo pressuposto que sustenta a história tradicional, e por isso Foucault a critica. A pesquisa da origem como Ursprung é diametralmente oposta à pesquisa da origem entendida como Herkunft. A diferença presente entre os dois momentos está basicamente no fato de a origem como Herkunft, na qual se basearia segundo Foucault o pensamento nietzschiano de fato, posterior a 1877, não ignorar que ou não há essência, ou esta só pode existir como construção, tendo sido feita “peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas”, sem obedecer a qualquer necessidade que não à do acaso. Ela não ignora, portanto, a inexistência de uma essência idêntica a si, mas parte da identidade para buscar o diferente que a constitui. Para o pesquisador que reconhece isto, o pesquisador da história efetiva, a origem pode ser apenas Herkunft e Entstehung, O termo Herkunft é definido por Foucault43 como proveniência, ele é o “antigo pertencimento a um grupo”. Mas sua análise, ao contrário do que possa parecer, não quer encontrar o comum, o médio que permita estabelecer uma identidade que agrupe as diferenças, raças ou tradições: “longe de ser uma categoria da semelhança, tal origem permite ordenar, para colocá-las à parte, todas as marcas diferentes”

44

. A pesquisa da

Herkunft busca compreender o contexto que possibilitou o aparecimento e a consolidação de discursos que se apresentam como verdades. Ela parte do aspecto único de um conceito, indivíduo, idéia ou sentimento, ordenando e separando seus elementos extremos, para que o genealogista possa caminhar em direção aos fios entrecruzados que 42

Ibidem, p. 18. Ibidem, p. 20. 44 Grifo meu: apesar de Foucault afirmar que pretende reconstituir a articulação própria dos termos Entstehung e Herkunft, o autor continua se referindo a eles como origem (pelo menos na tradução brasileira na qual este trabalho se baseia), o que permite entender esta reconstituição como a do próprio conceito de origem, não como um simples afastamento desta noção a partir da crítica feita a Ursprung. 43

23

a constituem. Assim, ele será capaz de trazer à tona as redes embaraçadas escondidas sob as unicidades aparentes, deixando explícita a dinâmica dos jogos de forças que formam os emaranhados. Segundo Foucault, “a pesquisa pela proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo.” 45 O tipo de investigação que tem a Herkunft como objeto próprio não opera em uma continuidade ininterrupta, porque entende a origem como o lugar de uma fissura na história, do acidente, do desvio (inclusive e principalmente dos menores desvios, dos mais discretos) que propiciaram um começo. A este começo se atrela o outro sentido encerrado na noção de origem genealógica, o contido no termo Entstehung, que Foucault define como emergência. Pesquisá-la é buscar o momento em que as forças que disputam espaço na história entram em cena, se colocam frente a frente para o combate. Sobre isso, Foucault afirma: Enquanto que a proveniência designa a qualidade de um instinto, seu grau ou seu desfalecimento, e a marca que ele deixa em um corpo, a emergência designa um lugar de afrontamento; é preciso ainda se impedir de imaginá-la como um campo fechado onde se desencadearia uma luta, um plano onde os adversários estariam em igualdade; é de preferência — o exemplo dos bons e dos malvados o prova — um ‘não-lugar’, uma pura distância .(...) ela sempre se produz no interstício.46

No limite que se impõe entre as margens de cada uma delas, algo emerge sem participar de qualquer relação causal, o que não significa que ela seja neutra, já que sempre é fruto do jogo da vontade de poder. A partir das definições estabelecidas por Foucault dos termos que melhor designam o objeto da genealogia, podemos entender a origem genealógica, resumidamente, como uma noção que inclui não apenas os movimentos de insurgências no tempo (Entstehung), mas também as próprias insurgências, e as relações de força estabelecidas, tanto entre o que emergiu, quanto entre aquelas relações que possibilitaram seu fundamento (Herkunft), aspectos que constituem a descontinuidade da história.

45

FOUCAULT. Nietzsche, a genealogia e a história. In. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal, 2009, p.21. 46 Ibidem, p. 24.

24

2.2. Origens, histórias e o salto crítico

2.2.1. Entre Benjamin e Foucault No texto “Origem, Original, Tradução”, Jeanne Marie Gagnebin se propõe a definir a noção de Ursprung contida no pensamento de Walter Benjamin. Para isto, afirma, é imprescindível partir de uma relação com o tempo que não queira apreendê-lo em uma cronologia. Mas como se caracteriza esta noção de tempo? Com que tipo de pesquisa ela se relaciona? Assim como Herkunft e Entstehung servem para Foucault a uma pesquisa histórica que se opõe ao trabalho da história tradicional, para Benjamin, Ursprung é a base de uma historiografia que não pressupõe uma causalidade linear e exterior aos eventos. Trata-se do que ele chamará nas teses “Sobre o conceito de história” de história filosófica e história materialista. A perspectiva que a impulsiona difere da foucaultiana, antes de tudo, pelo fato de que, para o filósofo francês, o objeto de pesquisa está no tempo (triunfa ou sucumbe na história, onde tudo está, que com tudo se relaciona, mas que a tudo permanece externo), e a pesquisa de Benjamin fundamenta-se na idéia de que “o tempo está no objeto”47, como vimos. No caso de um texto literário, por exemplo, a história e a temporalidade estão condensadas nele. O objeto é o lugar onde se encontram sua pré e sua pós-história, que, segundo Jeanne Marie, não podem ser reduzidas ao desenvolvimento cronológico de uma gênese (Entstehung), base da pesquisa histórica tradicional. Como tempo-de-agora (Jeztzeit) o objeto se apresentará, portanto, como o lugar em que o presente do pesquisador encontrará o presente onde um ponto do tempo ficou imóvel48. Por isso, qualquer relação com o passado deve necessariamente partir do encontro com o objeto; os acontecimentos do passado só podem ser reencontrados por meio dele. O olhar que busca o Ursprung, portanto, deve buscá-lo ou na obra de arte ou no evento histórico a ser analisado. De acordo com Gagnebin, esta visão centrada no interior do objeto está ligada a um dos três modelos epistemológicos a que o autor recorreu para pensar uma teoria alternativa à história mecanicista, e que fundamenta sua teoria do Ursprung: o da historia naturalis. Este modelo corresponde a um pensamento clássico sobre a lei interna dos

47

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Origem, original, tradução. In : História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.11. 48 C.f. Tese XIV de “Sobre o conceito de história”. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 119.

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organismos vivos, desenvolvido em conjunto à pesquisa como prática da coleta de informações, seguida da separação e exposição dos elementos destes organismos, sem nenhuma pretensão de relacioná-los a partir de uma lógica cronológica ou de alguma outra que tivesse como pressuposto uma causalidade externa. Os objetos são os organismos vivos da filosofia de Benjamin, para a qual sua lei interna impõe-se, devendo reger, inclusive, o método a partir do qual eles serão investigados. Esta é a base sobre a qual se constitui a proposta epistemológica alternativa à oferecida, por exemplo, pela história tradicional. Esta proposta iria de encontro ao projeto foucaultiano por negar uma relação com o tempo em que o objeto é “colocado como por acidente num desenrolar histórico”, que, apesar de constituí-lo, é “heterogêneo à sua constituição” 49. Esta apresentação da práxis e do tempo com os quais o Ursprung se relaciona nos permite definir alguns elementos que o caracterizam, a saber: a origem está em um fluxo dentro do objeto; ela é uma categoria histórica; e por ser a base para uma nova prática da história, ela se opõe à gênese. Esta oposição entre Entstehung e Ursprung explicitada por Benjamin no prefácio epistemo-crítico ao livro Origem do Drama Barroco Alemão constitui uma das formas pelas quais este último conceito se apresenta: A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não tem nada que ver com gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção. A origem se localiza no fluxo do vir-a-ser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material produzido pela gênese.50

Esta formulação nos apresenta ainda mais um aspeto do Ursprung benjaminiano: sua natureza é móvel. Diferentemente da origem metafísica, ela não é um ponto fixo, mas emerge do fluxo de dois movimentos opostos, “do vir-a-ser e da extinção”, sendo constantemente restaurado.

2.2.2. O salto originário

Resta-nos agora tentar definir melhor a outra noção de origem contida no termo Ursprung. Segundo Gagnebin, ela tem como pilar três modelos epistemológicos. O primeiro deles, já mencionado, é o da historia naturalis. Com relação a esse elemento, não se pode deixar de mencionar a influência goetheana. Vale citar aqui um trecho do

49

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Origem, original, tradução. In. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.11. 50 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 67.

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livro das passagens retomado pela comentadora em que Benjamin afirma a influência do escritor no desenvolvimento dessa concepção: Estudando a exposição de Simmel do conceito de verdade de Goethe, ficou bem claro para mim que meu conceito de origem no livro sobre o Trauerspiel é uma transposição precisa e rigorosa deste princípio goethiano do âmbito da natureza para o da história. Origem – é o conceito de fenômeno originário [Urphänomen] extraído do contexto pagão da natureza e levado para a concepção judaica de história.51

A teologia judaica é o segundo modelo epistemológico apontado por Gagnebin, de onde proviria o espírito messiânico da filosofia do pensador, a “grande esperança religiosa e histórica afirmada na História do Exílio e da Redenção”

52

. Este modelo seria

um dos fundamentos para o projeto filosófico restaurativo de Benjamin, direcionado para a reconstrução de uma totalidade perdida. A partir destes dois primeiros fundamentos, a autora define o Ursprung como constituído de um aspecto estrutural, pois ele é a lei interna de um objeto monadológico, e outro conceitual, pois ele mesmo é um conceito que torna possível a salvação. Este espírito redentor está presente também no terceiro modelo adotado por Benjamin: o da filosofia platônica. Trata-se mais precisamente da doutrina platônica das idéias, “uma das mais profundas intuições da filosofia original”

53.

A idéia é entendida por Benjamin como um modo de configuração dos elementos do objeto que apresenta uma verdade possível, e a rememoração, nesse contexto, como o meio de se alcançar uma totalidade fundadora que foi perdida. A presença dupla da soteriologia do triplo fundamento apresentado por Gagnebin, inserida por meio da teologia judaica e da filosofia platônica, poderia levar o leitor a estabelecer uma aproximação da concepção de origem benjaminiana com um dos postulados em que se sustenta a noção metafísica do Ursprung. Entretanto, basta lembrar a oposição entre gênese e origem para que esta aproximação se mostre impossível. Considerá-la deste modo seria ignorar o fato de o Ursprung se opor exatamente a uma concepção de história que tem como base o tempo cronológico: a origem não está na cronologia, não é um começo na linha do tempo. Ela exige o encontro com a história no objeto. A rememoração, segundo Gagnebin, a única forma pela qual pode haver redenção dos fenômenos, pressupõe o encontro com um passado que só se apresenta por meio de um objeto, por estar contido nele: 51

. BENJAMIN, Walter cit. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Origem, original, tradução. In: História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 12. 52 Ibidem, p.12. 53 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.52.

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Não existem, portanto, reencontros imediatos com o passado, como se este pudesse voltar no seu frescor primeiro, como se a lembrança pudesse agarrar uma substância, mas há um processo meditativo e reflexivo, um cuidado de fidelidade teológica e/ou política a uma promessa de realização sempre ameaçada, pois passada no duplo sentido de vergangen (passado/desaparecido)54.

O caráter da salvação como promessa que nunca se cumpre talvez se mostre melhor no desdobramento de uma das definições que a autora dá ao Ursprung, a de origem como salto. Esta definição, por sua vez, pode ser mais bem observada se lançarmos o olhar ao processo de rememoração e ao modo como a totalização mostra-se irrealizável no momento em que se realiza. O processo de rememoração consiste na busca no objeto por aquilo que nele serve de testemunho a uma configuração ideal. Esta procura pode ser observada a partir tanto da pesquisa da filosofia da história quanto da crítica de arte propostas por Benjamin. Ela é a tarefa do materialista histórico. Em ambas as práticas, o pesquisador reconhece a necessidade do encontro com a materialidade do objeto. No caso da obra de arte, como vimos, o encontro se dá quando ela se apresenta pelo estranhamento positivo como o cristal, uma semente em que todas as forças tensionadas em determinado período histórico foram congeladas. Neste encontro, ele considera sua realidade interna, atentando para aquilo que constitui a singularidade do fenômeno, ou seja, para seus elementos extremos que escapam à classificação. Segundo Gagnebin, nestes elementos estão os indícios de outra configuração ideal. Mas o estabelecimento desta configuração só será possível por meio dos conceitos, que quebram o fenômeno, dissecando seus elementos. Não se trata de usar o conceito a fim de configurar uma nova estrutura rígida que se pretenda morada final da verdade. No contexto do prefácio epistemo-crítico, inclusive, a noção de idéia se opõe à de conceito entendido nesse sentido. Esta oposição está diretamente relacionada à crítica feita por Benjamin ao modelo tradicional de filosofia, sobretudo ao pensamento de Kant e Descartes, fundamentados na representação (Vorstellung) da verdade. Para este modelo, o conceito é a rede que ajuda o pensamento científico da filosofia a reter a verdade, tomar posse dela, conhecê-la, após seguir a coerência indutiva ou dedutiva de um sistema sem lacunas. “Conhecimento é posse”

55

,

diz Benjamin. Para ele, a doutrina platônica das idéias é o lugar no qual podemos ver que “conhecimento não coincide com a verdade”

56

, antes “a verdade é uma essência não-

54

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Origem, original, tradução. In: História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.14. 55 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 51. 56 Ibidem, p. 52.

28

intencional formada por idéias”

57

. A tarefa da filosofia — assim como as tarefas da

crítica e da história filosóficas — começa ao reconhecer que não é possível alcançá-la, mas apenas buscá-la incessantemente, procurando perceber na constituição empírica do objeto sinais de uma nova configuração ideal. Essa configuração é o que permite à verdade se apresentar. Apenas o engendramento da nova forma torna possível alguma reapresentação. Pensando na obra de arte, torna possível que a chama da vida brilhe mais uma vez. Esse é o único modo de o filósofo aproximar-se da verdade. Nesse sentido, o exercício filosófico, sua tarefa, é a reconstituição contínua do movimento de autoexposição da verdade na multiplicidade de idéias em que ela aparece. Por isso, Benjamin afirma que “é característico do texto filosófico confrontar-se, sempre de novo, com a questão da apresentação” 58. Contudo, para a filosofia da apresentação os conceitos não são absolutamente dispensáveis porque “as idéias não são dadas no mundo dos fenômenos”

59

, elas não se

relacionam diretamente com o âmbito empírico do objeto. Os fenômenos não entram integralmente no reino das idéias em sua existência bruta, empírica, e parcialmente ilusória, mas apenas em seus elementos, que se salvam. (...) Nessa divisão, os fenômenos se subordinam aos conceitos. São eles que dissolvem as coisas em seus elementos constitutivos. As distinções conceituais só podem escapar à suspeita de serem uma sofística destrutiva se visarem à salvação dos fenômenos nas idéias. 60

No projeto filosófico de Benjamin, a conceitualização instaura um duplo movimento, diz Gagnebin, estilhaça o objeto e o reconstrói, a partir da configuração ideal dos elementos. No que concerne à pesquisa histórica, este movimento significa resgatar aquilo que no objeto escapou à ordem estabelecida pela historiografia tradicional, trazer à tona novos sentidos do fenômeno, novas relações que até então não haviam aparecido. Para a crítica de arte, considerando o momento no qual uma obra determinada irá explodir da obra da vida de um artista, o movimento aponta para o surgimento de cada novo texto literário, por exemplo, nas interpretações imanentes. Em cada fenômeno de origem se determina a forma com a qual uma idéia se confronta com o mundo histórico, até que ela atinja a plenitude na totalidade de sua história.61

57 58 59 60 61

Ibidem, p.58. Ibidem, p.49. Ibidem, p.57. Ibidem, p.56. Ibidem, p.69.

29

Desta maneira, como historiador, o materialista quebra, na pesquisa sobre o evento, a linearidade em que o tempo foi apreendido, e como crítico, rasga a pele da massa rígida que parecia ser antes a obra de arte de uma vida, promovendo em ambos os casos um salto cortante, uma explosão a partir da qual momentos privilegiados emergem e brilham como estrelas, destoando do continuum linear e homogêneo. Estes momentos devem configurar-se como constelações, participando de uma totalidade surgida nas conexões estabelecidas a partir daquilo que é próprio a cada estrela. Este salto que possibilita a totalização, diz Gagnebin, é o salto da origem. Mais que isso, ele é a própria origem: Trata-se muito mais de designar, com a noção de Ursprung, saltos e recortes inovadores que estilhaçam a cronologia tranqüila da história oficial, interrupções que querem também parar este tempo infinito e indefinido, como relata a anedota dos franco-atiradores (Tese XV), que destroem os relógios na noite da Revolução de Julho: parar o tempo para permitir ao passado esquecido ou recalcado surgir de novo (ent-springen, mesmo radical que Ursprung), e ser assim retomado e resgatado no atual. 62

Como salto, extensivamente, a origem, portanto, pode ser definida como um movimento de quebra, destruição, fragmentação, restituição, dispersão, reunião, construção, que acontece de dentro para fora; movimento ascensional e amplificador da coisa. Esta mobilidade promove uma nova configuração dos elementos dos objetos, e o fenômeno, reconfigurado, reapresenta-se sempre outro:

O Ursprung não é simples restauração do idêntico esquecido, mas igualmente, e de maneira inseparável, emergência do diferente. Esta estrutura paradoxal é a do instante decisivo, do Kairos. 63

Deste modo, mesmo se a salvação buscada tivesse como paradigma um estágio primeiro, a origem instaura a redenção da totalidade a partir de uma abertura na história, a partir da emergência do diferente. Ela nunca leva ao mesmo, nunca permite o retorno a qualquer estágio de perfeição. Nisto consiste o que Gagnebin chama de paradoxo essencial do Ursprung de Benjamin, que o afasta da concepção metafísica. Ela instaura sempre uma abertura no tempo, operando no inacabamento tanto do objeto, que sempre se oferece à restauração, quanto da história, que, ao ser rompida, é sempre renovada. Esse procedimento permite fazer emergir uma nova obra da obra de uma vida, suprimindo e conservando esta naquela; assim como permite trazer à tona na 62

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Origem, original, tradução. In: História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2009. p.14. 63 Ibidem. p. 10.

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reconfiguração das forças de uma época da história uma nova época, suprimindo e conservando na nova configuração todo o decurso da história humana. Ele suprime e conserva também “na obra de uma vida, a época”. Como isso acontece em termos práticos é o que observaremos nas próximas páginas. Antes, porém, gostaria de fazer algumas considerações sobre o tempo, guiadas pelo que foi exposto até agora.

2.2.3. Tempo

A obra de arte encerra o tempo da Ideia e o tempo histórico em seus teores, estando este, como vimos, em constante transformação. No teor de verdade, a obra guarda sua temporalidade específica, o tempo do sem tempo; no teor de coisa, ela guarda a temporalidade que permitirá à Ideia ser configurada e que nos permitirá acessar o eterno na efemeridade da matéria. O vínculo dos teores é também o vínculo de duas temporalidades que a princípio não se cruzam. Mas é o encontro delas que permite as verdadeiras revoluções instauradas pelo salto originário. Nesse vínculo se instaura a temporalidade do aíon, “o tempo em seu caráter originário”

64

, entendido conforme a

etimologia proposta por Agamben, como derivação de ai-w, isto é, como duração, eternidade, como a força vital “que é percebida, no ser vivo, como algo de temporal”, ou em outros termos, como “a essência temporalizante do vivente”

65

. Esta temporalidade

identifica-se com a “pervivência”. Ao mesmo tempo, o aíon só é possível com a instauração da temporalidade como kairós, como tempo oportuno, como vimos, a partir do qual o movimento originário será engendrado. Para que isso ocorra, é preciso considerar também o tempo como chronos, essa duração objetiva, contínua que será rasgada. Tudo isso faz com que o breve instante em que a verdade tem plena posse das formas, o instante em que ela aparece ao materialista histórico, seja o breve instante em que ele consegue ter a plena posse não apenas da história, mas de todas as formas do tempo. Sobre o salto originário que acontece na história, a partir da reconfiguração de eventos, é preciso dizer ainda que se o tempo da idéia está intimamente ligado com o potencial messiânico da obra de arte, os eventos da história só terão potencial revolucionário se forem percebidos como obras de arte, ou seja, se forem percebidos como idéia configurada. 64

AGAMBEN, Giorgio. O país dos brinquedos. In: Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 88. 65 Ibidem, p. 89.

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Parte II: A práxis crítica

3. O materialismo histórico de Brecht

A partir de agora meu objetivo é observar o entrelaçamento entre arte e história na prática da crítica benjaminiana. Nele, pretendo discutir também a noção de materialismo histórico que aparece na tese XVII, mas farei isso a partir do modo como essa noção se mostrará na crítica. O movimento que irei empreender adiante partirá das análises das obras para a teoria, e não o contrário. Como podemos constatar na leitura dos textos produzidos por Benjamin ao longo da década de 1930, durante esse período o pensamento teórico sobre a crítica de arte dá lugar a um pensamento prático, ou melhor, à práxis do pensamento no fazer crítico. Desse modo, o período nos oferece uma gama de opções de ensaios que poderiam ser analisados aqui. O texto que se segue tratará especificamente de observar o ensaio “Franz Kafka: A propósito do décimo aniversário de sua morte”, publicado em homenagem ao escritor tcheco no ano de 1934, na revista Die Judische Rundschau. Nesse texto, Benjamin faz uma análise da obra kafkiana, voltando-se contra o que chama de “a insuportável teologia profissional” 66 que dominava quase todos os níveis de interpretação de Kafka até aquele momento, e contra as leituras psicológicas desenvolvidas no período. O seu maior alvo era Max Brod, que havia contribuído para a consolidação de uma leitura a partir da qual O Castelo representaria a esfera da graça, O processo, a esfera da danação, do julgamento, e Amerika, a vida na terra. Assim como dissemos do trabalho feito por Gundolf ao analisar Goethe, essas leituras seriam no máximo pseudocríticas, já que todas ignorariam o próprio texto. Essas pseudocríticas que caracterizavam a recepção de Kafka na época de Benjamin constituem o corpo homogêneo sobre o qual sua leitura irá atuar explosivamente. A realização de uma crítica verdadeira pressupõe que o leitor seja capaz de se relacionar com a obra a partir da perspectiva do materialista histórico, que seja capaz de espantar-se com a obra e de se relacionar positivamente com esse espanto, abraçando criticamente a alteridade que nele se apresenta. A obra de arte só se mostrará como um cristal redentor aos olhos que forem capazes de vê-la, o que para Benjamin é o mesmo que dizer: ela apenas se mostrará no encontro com o materialista histórico. Nem Gundolf

66

C.f carta escrita a Scholem em 20 de julho de 1934.

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nem Brod eram materialistas históricos. Brod via os escritos de Kafka como escritos de um amigo. Partindo de uma vida supostamente conhecida, ele tentou, de certo modo, desfazer o estranhamento provocado pelos textos herméticos de Kafka, escritor. Assim, ele incorreu ao mesmo tempo em dois problemas apontados por Benjamin no ensaio sobre as Afinidades Eletivas: derivou a obra literária como produto da essência e da vida do autor e ainda faz uso delas para torná-la “mais acessível à compreensão ociosa” 67. É curioso ver, entretanto, que esse tipo de análise heterônoma feita por Gundolf e Brod, que pensa a arte a partir da vida do artista, e o artista a partir do seu ser social, desconsiderando a alteridade da obra e tentando resolver o estranhamento, pode ser tranquilamente aproximada do tipo de leitura que Brecht, por exemplo, irá fazer dos textos escritos por Kafka. A princípio, ele também é um materialista histórico. Mas em “Notas de Svendborg” fica evidente que a obra kafkiana é um ponto privilegiado para observar a distância entre o pensamento do filósofo e o do dramaturgo. Em suas anotações, Benjamin não só deixa explícita a visão negativa de Brecht com relação a Kafka como também relata as duras críticas feitas pelo amigo ao seu ensaio. Uma das acusações proferidas pelo dramaturgo refere-se ao fato de que o texto de Benjamin se ocupava de Kafka de um ponto de vista fenomenológico, ou seja, tomava a obra, assim como o autor, como algo auto-suficiente, dissociado de todo contexto, inclusive do contexto da vida do autor. Eu [Benjamin] me ocupava exclusivamente com a questão da essência. 68

Segundo Brecht, um tema semelhante deveria ser abordado assim: devia ter se aproximado de Kafka perguntando que fazia? Como se comportava? Sobretudo fixando-se mais no geral que no específico. Então virá à tona: que viveu em Praga em um meio detestável de jornalistas, de literatos que se achavam importantes; em um mundo tal que a literatura era a realidade primordial, senão a única; que com essa forma de ver as coisas coincidem as debilidades e as forças de Kafka, seu valor artístico, mas também sua múltipla inutilidade. Foi um jovem judeu – que também podia ser apresentado como um jovem ariano – uma criatura indigente, pouco simpática, uma bolha na lagoa iridescente da cultura de Praga. Mas assim, desse ponto de vista, surgem certos aspectos determinados e bem interessantes. Eles deveriam ser trazidos à luz. 69.

Essas exigências de Brecht teriam afastado Benjamin tanto da crítica como do comentário. Elas indicam claramente que, se ambos são considerados materialistas 67

BENJAMIN, Walter. As Afinidades Eletivas de Goethe. In: Escritos reunidos sobre Goethe. São Paulo: Editora34, 2010, p. 56. 68 BENJAMIN, Walter. 5 de agosto. “Anotações de Svendborg. Verão de 1934”. PDF disponível em: http://www.revistaviso.com.br/pdf/Viso_9_WalterBenjamin.pdf. A partir deste ponto farei referência às anotações do diário a partir das datas em que foram redigidas. 69 Anotação de 6 de julho de 1934.

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históricos e se assumem o epíteto, cada um entende o termo de modo bastante distinto. Ao que parece, um dos aspectos que diferenciam as duas concepções está no modo como cada um compreende o termo “histórico”. O materialismo do dramaturgo parece buscar na própria história cronológica elementos para engendrar uma transformação social, enquanto o materialismo do filósofo, como vimos, parte de outra relação com o tempo, tentando encontrar na historicidade específica da obra de arte elementos para a transformação. Antes de abordar essa diferença é produtivo observarmos rapidamente a leitura que Brecht faz da obra de Kafka. O registro de Benjamin sobre a discussão acerca da obra de Kafka com Brecht começa em 6 de julho de 1934. Segundo Benjamin, o dramaturgo afirma que apesar de ser um grande escritor, como Kleist, Grabbe ou Büchner, Kafka é um grande autor fracassado70. A parte positiva se deve à clarividência de sua obra. “Brecht vê O Processo como um livro profético”

71

, diz Benjamin. Segundo a interpretação do dramaturgo, ele

seria o produto da percepção de um indivíduo historicamente situado, no caso, Kafka, capaz de imprimir em seu trabalho “os grandes e universais males” da humanidade então contemporânea. Para Brecht, a perspectiva que se apresenta nessa narrativa é a do indivíduo que experimentava o crescimento das grandes cidades. Ele se sente moído pelas engrenagens da sociedade industrial, sufocado pelas complexas relações de mediação e dependência em que está imerso, e demanda pela figura de um chefe, passível de ser responsabilizado por todos os seus problemas. Este poder de diagnosticar os traços históricos e sociais que culminariam nas catástrofes humanas testemunhadas por Benjamin e Brecht na primeira metade do século XX, como o nazismo, conferiria à Kafka, na opinião do dramaturgo, o real valor de sua obra, justificando considerá-lo um grande escritor. Entretanto, esta não é sua posição final. Após situar a perspectiva que recorta o mundo apresentado por Kafka no comentário sobre O processo, Brecht esmiúça a posição que o escritor, como ser social, toma frente à situação na qual está imerso. A partir da interpretação de “A preocupação do pai de família”, o dramaturgo apresenta e contrapõe dois tipos de pequeno burguês de sua época: um é o fascista, que se dispõe a enfrentar heroicamente a situação ruim na qual se encontra; o outro não oferece resistência, sua ação limita-se a questionar incessantemente se há garantias para sua situação, reconhecendo, ao mesmo tempo, que a sua única segurança é a de que todas as garantias possíveis seriam insuficientes frente à 70 71

Ibidem. Anotação de 31 de agosto de 1934.

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gravidade da situação em que se encontra. Esse é Kafka. Para Brecht o incessante questionar-se é sinal de um “pessimismo ilimitado”. Na análise que Stéphane Mosès faz das afirmações de Brecht, esse pessimismo sem limites72 se opõe à crença na capacidade de transformação do homem, base de todo o pensamento estético-político do dramaturgo. Ela é apresentada em peças como Um homem é um homem, e também é passível de ser observada em seus textos teóricos. Nos escritos que compõem Estudos sobre teatro, Brecht afirma que o mundo de sua época só poderia ser reproduzido pela arte se ele fosse concebido como um mundo suscetível de modificação. O teatro só poderia reproduzir o mundo se entrasse em consonância com ele, o que implicaria reconhecer-se parte de um momento em que a ciência já havia mostrado ao homem seu potencial de dominação ao gerar possibilidades de manipulação da Natureza em geral, não permitindo mais que ele se colocasse como vítima das circunstâncias, das adversidades impostas por um ambiente desconhecido73. A abertura trazida pela ciência deveria alcançar a natureza social, mostrando ser possível também modificar o convívio dos homens. Essa transformação no convício dos homens era a transformação da própria estrutura social, a instauração do processo revolucionário do qual Marx falara em seu Manifesto Comunista. Esta visão do homem como ser social ativo capaz de se transformar e de transformar o mundo é totalmente oposta àquilo que Brecht vê em Kafka. Isso fica explícito na interpretação que ele faz de “A próxima aldeia”, parábola que reproduzo a seguir: Meu avô costumava dizer: “A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que – totalmente descontados os incidentes desditosos – até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa”.74

Ele diz a Benjamin que a parábola apresentaria um contraponto à história de Aquiles e a tartaruga. O caminho percorrido pela cavalgada é interpretado como uma linha reta dividida em suas menores partes, que corresponde a infinitos pontos. À infinitude do caminho a ser percorrido se contrapõe a finitude da vida. Assim, qualquer vida será sempre curta para essa cavalgada. De acordo com a leitura de Mosès, Brecht veria “A próxima aldeia” como o lugar em que vemos a “deficiência fundamental do 72

MOSÈS, Stéphane. Brecht et Benjamin interprètent Kafka. Exégèse d’une legende: Lectures de Kafka. Paris – Tel-Aviv: Editions de l’éclat, 2006, p.87. 73 BRECHT, Bertolt. Poderá o mundo de hoje ser reproduzido pelo teatro? In: Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 74 KAFKA, Franz. A próxima aldeia. Um médico rural. São Paulo: Companhia das Letras, p.40.

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tempo”, isto é, do tempo histórico mesmo. No paradoxo apresentado na parábola, Kafka afirmaria a “impotência humana em geral: o homem seria incapaz de dominar o tempo histórico, de se servir dele ou de impor-lhe sua vontade. Sobre o caminho da história, ele será condenado a permanecer prisioneiro do instante presente, sem nunca conseguir atingir seu objetivo ”75. Brecht tenta salvar a parábola pensando que a divisão do caminho deve ser acompanhada por uma divisão do cavaleiro e por uma quebra na unidade de sua vida. Desse modo, a vida se torna infinita como o caminho, assim como o cavaleiro. A partir dessa leitura, o cavaleiro que chegaria ao destino seria outro diferente do que havia partido. Ao propor essa outra interpretação a partir de elementos totalmente exteriores à parábola, Brecht devolve o poder ao homem de dominar a história e de ser capaz de promover transformações “sobre seu caminho”. Além disso, ele também torna a parábola algo útil, conseguindo empreender o que em sua concepção seria uma boa crítica. Como vemos na nota de Benjamin de 31 de agosto de 1934, para Brecht uma boa análise da obra de Kafka seria exatamente aquela que fosse capaz de “formular as propostas praticáveis que podem ser extraídas de suas histórias”

76

, propostas que apontassem

soluções para os principais problemas do tempo. Mas extrair propostas úteis da obra em questão não era uma tarefa nada fácil. Para o dramaturgo, um dos maiores defeitos da obra de Kafka era sua obscuridade. Este seria também um dos motivos de seu fracasso. Desse problema decorreria outro grande defeito, sua inutilidade. Em seu diário, Benjamin afirma que Brecht compara a obra kafkiana a uma floresta em que encontramos troncos dos mais diversos tipos. Alguns são bastante úteis, mas outros são deformados e não servem para nada. Na perspectiva utilitária do dramaturgo, o hermetismo das parábolas kafkianas tornaria boa parte de sua produção inútil. Textos literários como O Processo trariam coisas úteis devido ao seu caráter profético, mas o restante da obra não passaria “de mania de segredos”. “Com a profundidade não se vai longe. Ela é uma dimensão que se basta a si.” 77, diz Brecht. Esse ponto de vista define a obra como produto do trabalho de um indivíduo perturbado com a forma da vida de seu tempo, incapaz de apresentar qualquer proposta útil para transformá-lo. “A perspectiva de Kafka é a do homem que foi atropelado” 78 e que devido ao choque está impossibilitado de trilhar o próprio caminho. Apresentada a “crítica” de Brecht, podemos agora voltar à questão que nos fez trazer essa análise à cena: o problema do materialismo histórico. Segundo Eric 75

MOSÈS, Stéphane. Brecht et Benjamin interprètent Kafka. Exégèse d’une legende: Lectures de Kafka. Paris – Tel-Aviv: Editions de l’éclat, 2006, p. 86. 76 Anotação de 31 de agosto. 77 Anotação de 5 de agosto. 78 Anotação de 31 de agosto.

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Hobsbawm em seu artigo “Marx e a história”, o materialismo histórico tem como fundamento a noção de que a análise de uma sociedade, a qualquer momento de seu desenvolvimento histórico, deve começar pela análise de seu modo de produção: em outras palavras, (a) a forma tecno-econômica do ‘metabolismo entre homem e natureza’ (Marx), o modo pelo qual o homem se adapta à natureza e a transforma pelo trabalho; e (b) os arranjos sociais pelos quais o trabalho é mobilizado, distribuído e alocado79.

Além disso, conforme o historiador afirma em “O que os historiadores devem a Karl Marx?”, esse materialismo tem em sua base uma concepção progressiva da história. Esse caráter não está apenas na dinâmica do desenvolvimento histórico, que caminharia progressivamente para o comunismo. O próprio motor desse desenvolvimento seria uma tendência evolutiva tecnológica que levaria a um estágio das forças de produção tal que elas se tornariam incompatíveis com o tegumento capitalista das relações produtivas. Hobsbawm ressalta o caráter evolucionista do materialismo histórico afirmando que o próprio Marx dispunha-se a dedicar o segundo volume do Capital a Darwin, e dificilmente teria discordado da famosa frase de Engels em seu túmulo, que o louvava pela descoberta da lei da evolução na história humana, tal como Darwin havia feito na natureza orgânica (certamente não teria desejado dissociar o progresso da evolução e, na verdade, acusou especificamente Darwin por converter o primeiro em mero subproduto acidental da segunda). 80

A leitura desses trechos após a observação da análise feita por Brecht deixa evidente que sua “crítica” se fixou em saber quais eram as relações sociais que estavam na base do trabalho de Kafka como autor, quais eram as forças responsáveis por sua mobilização, distribuição e alocação dentro da sua conjuntura então atual, de que modo elas atuavam e como Kafka se posicionava frente a essa rede. Toda a análise de Brecht tem como fundamento a preocupação em observar de que modo o escritor se comporta como ser social, com o intuito de perceber se o trabalho do autor como produtor oferece um item útil ou inútil à transformação do arranjo social de seu tempo. O texto será mais útil quanto mais ele for passível de apresentar um mundo mutável. No caso do texto literário, o modo dessa apresentação não parece ser mais do que alegórico, entendido aqui no sentido vulgar do termo, não no benjaminiano. Brecht lê o texto de Kafka como um mero veículo de idéias daquele que o escreveu. De acordo com Roland Barthes, “uma vez 79

HOBSBAWM, Eric. Marx e a história. In: Sobre a história. São Paulo: Companhia das letras, 2010, p.177. 80 HOBSBAWM. Eric. O que os historiadores devem a Karl Marx? In: Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 164.

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afastado o Autor, a pretensão de ‘decifrar’ um texto torna-se totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um mecanismo de segurança que o imobiliza, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura” 81. Apenas dotando a obra de um significado último é que Brecht pode classificar seu grau de utilidade. Procedendo dessa maneira, o dramaturgo parte de um método prévio, exterior ao seu objeto, que irá guiar toda sua leitura. A classificação prévia do texto por meio de sua interpretação – ou da impossibilidade de sua interpretação - afasta o estranhamento, impossibilitando, ao mesmo tempo, a aproximação positiva da obra de arte, como seria a do materialismo histórico de Benjamin, e a contemplação de seu potencial revolucionário. Aqui chegamos ao segundo ponto, o da temporalidade e da história incluídas nessa concepção de materialismo histórico. Ao ressaltar o caráter progressista do pensamento histórico marxista, Hobsbawm ressalta o tempo marxista como tendo um caráter estritamente cronológico, o que nos leva a concluir que a revolução buscada por Brecht quer se fazer na cronologia. Em seu artigo “Tempo e história: crítica do instante e do contínuo”, Agamben apresenta uma análise de diversas concepções de tempo e história desde a Antiguidade. Na parte dedicada a Marx, em contraposição ao pensamento hegeliano, Agamben afirma que o filósofo teria elaborado uma idéia de história, entendida como a própria natureza do homem, sem elaborar um pensamento sobre o tempo que desse conta dessa concepção. Para ele, Marx se afasta da “concepção aristotélica e hegeliana do tempo como sucessão contínua e infinita de instantes pontuais”82. Mas o trecho de Hobsbawm supracitado não deixa dúvidas que essa falta da elaboração de uma teoria do tempo dá espaço para que concebamos a temporalidade marxista em termos cronológicos. Benjamin não assimila o aspecto cronológico da temporalidade marxista. Em seu artigo, Agamben o inclui em uma parte dedicada aos pensamentos que sinalizam, de acordo com suas palavras, o fato de que “o crepúsculo da concepção do tempo que dominou por quase dois mil anos a cultura ocidental está próximo” 83. Assim, ele marca, por um lado, ao contrário do que afirmara textualmente, o fato de que Marx ainda pertence ao largo espectro desse domínio, e, por outro, que Benjamin não partilha dessa característica. Nesse ponto ele se afasta de Brecht. Benjamin atrela às duas noções fundamentais apresentadas por Hobsbawm não só a concepção messiânica do tempo como também a temporalidade da idéia. Desse modo, consegue 81

BARTHES, Roland. La mort de l’auteur. In : Le bruissement de la langue. Essais critiques IV. Paris : Senil, 1984. 82 AGAMBEN, Giorgio. Tempo e história: crítica do instante e do contínuo. In: Infância e história: Destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p. 121. 83 Ibidem, p. 124.

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vislumbrar uma revolução de maior alcance, capaz de pôr em movimento a partir da obra de arte os mais diversos períodos histórico-temporais. Resta-nos agora observar de que modo Benjamin faz isso.

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4. Benjamin leitor de Kafka: o problema da forma literária Um dos objetivos de Benjamin no ensaio “Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte”, escrito em 1934 é investigar os diversos temas que aparecem em seus textos. Segundo afirma, a obra em questão é atravessada por forças arcaicas que podem ser identificadas no mundo contemporâneo84 e essas forças só aparecem nos temas textualmente apresentados. A investigação que tem registro parcial no ensaio referido não se limita a uma pesquisa para a redação desse texto, mas ocupa boa parte da vida de Benjamin. Em uma carta escrita a Scholem em 15 de setembro de 1934, ele reconhece que irá precisar de muito tempo para que suas reflexões sobre a obra em questão sejam satisfatoriamente formuladas a ponto de se tornarem comunicáveis. Em seguida, ele ainda diz que, ao que tudo indicava, considerando as inúmeras releituras que havia feito do que escrevera até então e os comentários de seus amigos, a obra de Kafka tinha tudo para se tornar o ponto em que se cruzavam os caminhos de seu pensamento 85. O desejo do crítico de empreender uma formulação clara de seu Kafka permaneceu um projeto, e sua leitura ficou em muitos pontos obscura. Neste capítulo, irei me deter especialmente no problema da forma literária kafkiana, especificamente naquilo que Gatti chamou de “parábola sem doutrina ” 86. Para observá-la irei recorrer ao ensaio supracitado e às cartas trocadas pelo autor com Scholem. A partir da observação dessas fontes, esse tema nos mostrará como a busca pela essência da obra de arte, tão criticada por Brecht, suscita em Benjamin reflexões sobre a situação história do mundo moderno e permite que ele apresente uma visão bastante perspicaz da posição de Kafka no mundo. Como podemos observar no ensaio de 1934, a obra particular que suscita para Benjamin a reflexão sobre a forma literária de Kafka é a parábola “Diante da Lei”. Segundo o filósofo, as histórias alegóricas de Kafka são capazes de nos levar a reflexões intermináveis. No segundo capítulo de seu ensaio intitulado “Uma fotografia de criança”, ele levanta a hipótese de que O processo seria o resultado das diversas reflexões que a parábola mencionada teria suscitado no próprio autor.

84

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Magia e técnica, Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008, p.154. 85 BENJAMIN, Walter. In ______; SCHOLEM,Gershom. Correspondência, 1933-1940. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 193. 86 GATTI, Luciano. Constelações: crítica e verdade em Benjamin e Adorno. São Paulo: Loyola, 2009, p. 146.

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O processo fora publicado pela primeira vez em 1925 na forma como o conhecemos hoje, bastante distinta daquela pensada por Kafka. Em 1914, o autor deu início à redação de um verdadeiro “mosaico de capítulos dispersos”

87

, como o

caracteriza Stéphane Mosès. Em determinado momento de sua produção, Kafka passou a isolar os capítulos separando cada um em um envelope marcado com um título que tinha como mera função auxiliar sua memória. Após sua morte esses envelopes foram organizados e compilados por Max Brod, responsável por estabelecer o formato canônico do texto88. Nessa organização, Brod optou por deixar como penúltimo capítulo “Na catedral”, fragmento no qual encontramos “Diante da Lei”. Antes de aparecer integrada ao romance, essa parábola já havia sido publicada duas vezes como um texto literário autônomo. Uma dessas vezes foi em 1919, na coletânea “Um médico rural”, a que Benjamin se refere em seu ensaio. No capítulo em que a história do guardião da lei aparece, K. é encarregado por seu chefe de mostrar alguns monumentos a um amigo italiano do banco no qual trabalha. O dia está bastante chuvoso. O estrangeiro combina de encontrá-lo na catedral em poucas horas. Chegando lá, K. percebe que o italiano não vai aparecer. Esta falta, pensa, seria até bastante razoável, considerando a escuridão que os impediria de ver os quadros da catedral. No ambiente descrito por Kafka tudo é pouco visível. Cansado de esperar o italiano, K. decide permanecer na catedral durante mais algum tempo. Nesse momento, ele segue até a frente de um púlpito grande e artisticamente decorado, do qual até então não havia tomado conhecimento. Próximo a esse púlpito, ele se depara com um sacerdote. Quando o homem percebeu que estava sendo observado, começou a apontar para uma direção indefinida, parecendo querer mostrar a K. alguma coisa com a mão. Esse comportamento incompreensível parece ao mesmo tempo assustar e instigar K. O espanto faz com que ele acompanhe o sacerdote até a nave lateral da catedral. Nesse ponto, K. desiste de segui-lo e entra na nave principal para buscar um álbum dos monumentos da cidade que havia deixado lá quando chegou à igreja. Na nave ele atenta para uma lamparina em cima de “um pequeno púlpito secundário, muito simples, de pedra nua e pálida. Era tão pequeno que de longe parecia um nicho ainda vazio, destinado a acolher uma estátua de santo”. “Tudo nele era destinado a atormentar o pregador” 89. A lamparina sempre indica o início de um sermão, ele pensa. De fato, na parte de baixo do 87

MOSÈS, Stéphane. Exégèse d’une legende: Lectures de Kafka. Paris – Tel-Aviv: Editions de l’éclat, 2006, p.107. 88 CARONE, Modesto. Um dos maiores romances do século. In: KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 257. 89 KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.208.

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púlpito, K. encontra o sacerdote, que logo toma seu lugar e aumenta a chama da lâmpada. Quando percebe que o sermão vai começar, K. pega seu álbum e tenta fugir, mas é impedido. Ao chegar ao espaço livre entre os bancos da igreja e a saída, ele escuta o sacerdote: “— Josef K!”. Este chamado dá início a um diálogo entre o protagonista e o padre, que se apresenta agora como o capelão do presídio. A discussão que se segue tem como centro, a princípio, o processo de K. Enquanto eles conversam, lá fora o dia turvo dá lugar à noite e, dentro da igreja, o sacerdote apaga todas as velas do altar. Apenas a lamparina permanece acesa. Nesse momento, K. está abaixo do púlpito imerso em uma escuridão total. O sacerdote não pode vê-lo, mas ele pode ver o sacerdote iluminado pela lamparina no altar. K. pede então, que o sacerdote desça até ele. Este aceita seu pedido. K. o ajuda a descer e pergunta se ele teria algum tempo para que conversassem. O sacerdote responde afirmativamente e passa a lamparina para as mãos de K. O protagonista acredita que ao conversar com o sacerdote talvez fosse possível encontrar explicações para sua situação. É nesse contexto que Kafka insere a parábola “Diante da Lei”. Ao pedir a ajuda do padre, K. declara que ele é o único membro do tribunal em quem confia. O sacerdote alerta o condenado para que ele não se engane com relação ao tribunal. Em seguida, ele começa a narrar um texto introdutório à lei que diz ser exatamente sobre esse engano. Esse texto é a parábola a que nos referimos. O sacerdote da catedral conta, então, a história de um homem do campo cujo único desejo era entrar na lei. Mas esta lei era guardada por um porteiro. Ao ser questionado pelo homem sobre a possibilidade de sua entrada, o guardião lhe responde que um dia isto seria possível, mas não agora. Esta resposta faz com que o homem decida sentar-se ao lado da entrada para esperar o momento certo. Kafkianamente, ele acaba permanecendo ali, à espera, pelo resto de sua vida. Instantes antes de morrer, passa por sua cabeça uma pergunta que até então ele não aventara: se todos aspiram à lei, por que apenas ele, em todos aqueles anos, havia procurado por ela? E o porteiro responde: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora vou embora e fecho-a”. Assim que a parábola termina, K. afirma decidido sua visão: o porteiro enganou o homem. Mas em seguida, é advertido: “Não seja precipitado — disse o sacerdote — Não acolha sem examinar a opinião de estranhos. Contei-lhe a história segundo as palavras do texto. Ali nada consta a respeito de engano. (...) Você não dá atenção suficiente ao texto e altera a história”

90

. Assim tem início uma discussão hermenêutica, guiada por este, sobre a

parábola que havia contado. 90

KAFKA, Franz. O processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.215.

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Como é possível perceber, o capítulo em questão coloca em cena duas camadas narrativas. Na camada externa temos K. e o sacerdote; na interna, a história do homem e do porteiro. Ao olhar para as outras parábolas kafkianas como o texto de “Diante da Lei”, Benjamin atenta para sua estrutura e percebe que ele é construído de modo que seja possível narrá-lo e citá-lo com fins didáticos91. De fato, quando lemos esse texto isoladamente como acontece quando o encontramos em “Um médico rural”, por exemplo, percebemos logo que se trata de uma narrativa alegórica. Acostumados com essa forma, familiar para quem conhece a prosa ocidental, sabemos que toda parábola é um texto cujo significado lhe é exterior, e cujo objetivo é repassar um ensinamento moral ou uma sugestão prática, transmitidos como um ensinamento da tradição. Nesse sentido, a primeira coisa que chama a atenção do leitor, como chamou a de Brecht, é a obscuridade das parábolas kafkianas. Apesar de sua forma, não conseguimos identificar seu ensinamento. Ao construí-la, Kafka quebra nosso horizonte de expectativa, causando o estranhamento. Ao apresentar a forma de modo falho, ele a torna visível — como os autores alemães “medíocres” do século XVI tornaram visível para Benjamin a forma do Trauerspiel e com ela a idéia de seu gênero. No livro sobre a “Origem do Drama Barroco Alemão”, o filósofo afirma: uma coisa é encarnar uma forma, e outra, dar-lhe uma expressão característica. A primeira é prerrogativa do grande escritor, a segunda se manifesta de modo incomparavelmente mais marcante nas laboriosas tentativas do escritor secundário. A forma em si, cuja vida não é idêntica à da obra por ela determinada, e cuja manifestação é muitas vezes inversamente proporcional à perfeição de um produto literário, se torna evidente no corpo raquítico de uma obra medíocre, que funciona, num certo sentido, como o esqueleto dessa forma92.

A expressão característica criada por Kafka explicita a alteridade da obra em questão ao desmontar e problematizar o conceito “parábola”. Com relação ao procedimento crítico benjaminiano, este parece ser um dos conceitos que ajudam a quebrar o fenômeno. É curioso perceber que ele é dado pela própria obra de arte. Mas o conceito só pode ser acolhido por Benjamin porque é suspenso como definição. Ele é aberto e redefinido de modo não conceitual por uma obra particular que o crítico observa. Ao que parece é a sua redefinição que irá movimentar todo o conjunto textual e permitir

91

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Magia e técnica, Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008, p.148. 92 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 82.

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que Benjamin chegue à idéia de obra kafkiana. No ensaio de 1934, o filósofo nos apresenta a literatura kafkiana como sendo toda ela originalmente de parábolas93. No trecho apresentado, a forma que originalmente serve de suporte ao discurso da tradição não veicula mais qualquer mensagem determinada. Trata-se sim de uma parábola, entretanto muda, sem doutrina. Como Benjamin explica, ela não permite que o leitor a desdobre no sentido de “fazer dela uma coisa lisa, cuja significação caiba na palma da mão”

94

, como nas brincadeiras infantis as crianças desdobram um papel

dobrado em forma de barco. Ela apenas permite ser desdobrada como o botão se desdobra na flor, desenrolando-se em interpretações sem fim, ou, nos termos de Benjamin, explodindo continuamente. Por isso, diz o filósofo, as parábolas kafkianas seriam semelhantes elas mesmas à criação literária, nesse caso, a uma criação literária que se faz a partir do processo crítico do próprio autor. Se lembrarmos do modo pelo qual O processo foi concebido, se lembrarmos o fato de que as infinitas reflexões instigadas pela parábola que deram origem ao romance cessaram apenas com a morte do escritor, e se admitirmos ser o romance um desdobramento de “Diante da Lei”, como Benjamin sugere, a escritura dessa obra particular nos aparecerá como sendo a escritura kafkiana paradigmática, no sentido de que ela materializa o movimento essencial de explosão, de desdobramento, apontado pelo filósofo em sua análise. O desejo desse desdobramento da obra fica explícito quando lemos a parábola integrada ao romance. Aqui ela ocupa o lugar de uma narrativa interna e assume um caráter religioso. A história é contada por um sacerdote em uma catedral como se fosse uma parábola bíblica, e K. a escuta como quem ouve um conselho e acredita que os conselhos são destinados a responder perguntas. Mas ao final da discussão hermenêutica com o sacerdote, imerso na mais completa escuridão, ele afirma desnorteado que “aquela história simples havia se tornado informe”, que “queria se desembaraçar dela”, mas não conseguia. Ao sobrepor as narrativas, ao fazer da parábola uma narrativa dentro de outra narrativa, Kafka delimita o espaço em que devemos buscar a sua significação. Mas ao invés de encontrarmos qualquer sentido, o que encontramos nesse lugar é a afirmação da inapreensibilidade da verdade e a valorização do processo interpretativo ele mesmo. É importante perceber que ambas as coisas são postuladas por um padre, figura que, em geral, é a própria voz de uma verdade sagrada, de uma doutrina. Se levarmos a sério a 93

BENJAMIN, Walter. In: _____; SCHOLEM,Gershom. Correspondência, 1933-1940. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 304. 94 BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Magia e técnica, Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 148.

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figura do sacerdote e persistirmos na idéia da existência de um ensinamento sagrado a nos ser transmitido, seremos levados a considerar que as postulações constituem elas mesmas o ensinamento. No ensaio de 1934, Benjamin sugere que esse padre explicita no romance as interpretações do próprio Kafka sobre a parábola. A equiparação permite considerarmos a doutrina sacerdotal como sendo a doutrina do próprio escritor. Desse modo, tomamos o lugar de K, como Benjamin parece ter feito, e observamos a direção hermenêutica a que o padre nos leva. O que ele nos mostra é o fato de que os textos kafkianos desejam que o leitor dê atenção ao próprio processo interpretativo que se impõe na resistência do texto à interpretação. Mas essa resistência é invencível. Como diz Benjamin, ela recupera o sentido épico de sempre adiar o que está por vir. É exatamente neste ponto que parece residir a essência da obra kafkiana: entre a resistência à interpretação e a necessidade da leitura. Ela se apresenta a Benjamin como o próprio método de sua crítica, que podemos chamar de método kafkiano. Sobre esse modo de proceder, Benjamin afirma: Kafka dispunha de uma capacidade invulgar de criar parábolas. Mas ele não se esgota nunca nos textos interpretáveis e toma precauções possíveis para dificultar essa interpretação. É com prudência, com circunspecção, com desconfiança que devemos penetrar, tateando, no interior dessas parábolas. Devemos ter presente sua maneira peculiar de lê-las, como ela transparece na sua interpretação da parábola citada 95

Para tentar compreender a forma parabólica experimental de Kafka, Benjamin irá se debruçar sobre o espírito do tempo da obra, que, nesse caso, coincide com o espírito do tempo do crítico. A estranha forma narrativa proposta pelo escritor, que coloca em xeque a própria narratividade, está vinculada, segundo Benjamin, à experiência da tradição judaica e ao problema da organização do mundo moderno. Ela é o lugar em que esses pontos se relacionam. Esse elo é apresentado na carta-ensaio que Benjamin escreveu em 12 de junho de 1938 a Scholem, quatro anos após redigir seu ensaio. Na segunda parte deste texto, o crítico define a obra kafkiana como uma elipse cujos pontos centrais e bastante afastados um do outro constituem, por um lado, a experiência mística (que é sobretudo a experiência da tradição) e por outro a experiência do homem das grandes cidades modernas.96

Nesse texto, o problema da forma de existência do homem moderno das grandes cidades é identificado por Benjamin como uma camada de significação comum a todos os 95

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Magia e técnica, Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 149. 96 BENJAMIN, Walter In. ______; SCHOLEM,Gershom. Correspondência, 1933-1940. São Paulo: Perspectiva, 1993, p, 301.

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romances de Kafka. O autor teria experimentado como poucos a sensação de estar entregue ao mundo obscuro das chancelarias, dos aparelhos burocráticos cuja estrutura e cujo mecanismo de funcionamento permaneceriam sempre pouco ou quase nada visíveis. Essa opacidade da organização da vida é apontada como precursora da doutrina kafkiana já no ensaio de 1934, onde Benjamin também compara a sensação do escritor com a do espanto causado pelo encontro dos homens com as novas produções modernas, o cinema e o gramofone. “No cinema”, diz “o homem não reconhece seu próprio andar e no gramofone não reconhece sua própria voz. (...) A situação dos que se submetem a tais experiências é a situação de Kafka” 97. A descrição da experiência kafkiana por Benjamin se faz ainda por meio de uma analogia de Kafka com a figura do físico moderno, apresentada na carta escrita a Scholem. Para explicar a comparação, Benjamin cita uma passagem de Visão Mundial da Física, no qual Eddington apresenta como o simples ato de atravessar o batente de uma porta pode ser visto como uma aporia física. A insegurança do físico frente a todas as forças conhecidas e desconhecidas que atuam sobre seu corpo, a incerteza frente às infinitas possibilidades de coincidências do acaso, e o modo intenso por meio do qual o gesto é apresentado faz com que o trecho possa facilmente ser tomado como um texto kafkiano. A fragilidade do humano que o físico nos apresenta nos remete diretamente às idéias trabalhadas por Benjamin nos ensaios “Experiência e pobreza” e “O Narrador: considerações sobre Nicolai Lescov”, de 1936. O sentimento de Kafka também pode ser relacionado ao do indivíduo imerso no cenário devastado pela primeira guerra, integrante de uma paisagem em que “nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano”. 98 Segundo Benjamin, situações como essas nos fizeram cada vez mais pobres de experiências comunicáveis. De acordo com Inácio Oliveira99, a narração é a expressão discursiva da experiência, o discurso em que a função da transmissibilidade lingüística é ativada.

Frente

à

impossibilidade

da

experiência

comunicável

instauram-se

simultaneamente a impossibilidade histórica da narração e da transmissibilidade. Ao propor a forma experimental da parábola sem doutrina ele parece propor uma estrutura

97

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Magia e técnica, Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008, p.148. 98 BENJAMIN, Walter. O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, Arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 198. 99 OLIVEIRA, Luis Inácio. Do canto e do silêncio das sereias: Um ensaio à luz da teoria da narração de Walter Benjamin. São Paulo: Educ, 2008, p. 235.

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que encerra a própria tensão de narrar em um momento em que o ato torna-se historicamente inviável. Segundo Benjamin escreve na carta-ensaio, o mais “incrível e absurdo” é que essa experiência da modernidade a que ele relaciona a experiência kafkiana só pode ser percebida por Kafka por meio da tradição mística, da Kabbala. Em nota, Scholem chama nossa atenção para o fato de que o termo originalmente significa tradição. Benjamin sabia disso e teria feito uso do vocábulo propositalmente. A Kabbala se apresentaria a Kafka como uma tradição para a qual não existe mais uma consistência da verdade. Segundo Benjamin, Kafka escutava seus sussurros confusos, apesar de não haver nenhum ensinamento a ser transmitido. E era a partir desses ecos, desses restos que lhe chegavam delicadamente aos ouvidos, que o indivíduo se tornou capaz de construir como escritor um mundo complementar100. Kafka viveu nesse mundo complementar como indivíduo e como escritor. A realidade do mundo moderno não era ela mesma perceptível para ele. O que ele percebia eram os produtos da dissolução da verdade, que segundo Benjamin correspondem ao “boato das coisas verdadeiras” e à “insensatez que por um lado dissipou totalmente o conteúdo da própria sabedoria, mas por outro conserva a complacência e a serenidade que emanam do boato”101. Para o crítico, nesse sentido, ao ter nesses produtos seu fundamento e ao constituir ela mesma um complemento para a realidade daqueles que não escutam nem os sussurros, a realidade dos físicos contemporâneos, por exemplo, a obra kafkiana representaria uma doença da tradição. Sua grandeza estaria em ter criado um mundo complementar exatamente a partir da mobilização das forças dessa tradição a que se dedicou, forças que no período histórico da construção da obra se perdiam. Para Benjamin, a genialidade de Kafka está no fato de ele ter sido capaz de abrir mão da verdade para se ater à transmissibilidade. Nesse sentido, a leitura de Benjamin nos leva a pensar que, ao apostar na interpretação e ao deixar de lado o ensinamento, Kafka recupera em sua narrativa experimental o sentido mais fundamental da tradição, o próprio ato de entregar algo a alguém, o próprio gesto de transmitir. A própria narrativa é despida de seu caráter instrumental. Ela passa de Mittel para Medium, isto é, de um meio instrumental para um meio como matéria, cujo fim não lhe é exterior. 102 Em sua nova 100

BENJAMIN, Walter. In ____ ; SCHOLEM,Gershom. Correspondência, 1933-1940. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 303. 101 Ibidem, p. 304. 102 Sobre a distinção sobre esses conceitos, c.f. nota de Gagnebin à tradução do ensaio “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”, in: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora34, 2011, p. 53.

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forma, a tradição e a narração aparecem como Potemkin, personagem da anedota com a qual Benjamin dá início a seu ensaio de 1934, ou como o pai de O Veredito, um dos diversos personagens todo-poderosos da galeria kafkiana, que “têm sempre as características de quem afundou, ou está afundando, mas que ao mesmo tempo podem surgir, em toda a plenitude do seu poder”. 103 Além disso, ao promover o elo entre as duas experiências, a obra kafkiana é capaz de conjugar em sua temporalidade específica dois tempos históricos distintos. Assim, ela é capaz de trazer à tona um aspecto da tradição que estava esquecido, operando um movimento semelhante àquele que Benjamin entende como sendo o do salto originário. Kafka teria sido capaz de perceber o tempo exato em que seria possível mobilizar esses elementos do passado, mesmo que ele mesmo não tenha ainda conseguido perceber nitidamente o passado como passado.

103

BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 138.

48

Considerações finais Se nos voltarmos para o procedimento crítico propriamente dito da leitura benjaminiana, veremos que o modo como ele opera na interpretação da obra de Kafka é bastante distinto do que vemos em ensaios como “As Afinidades Eletivas de Goethe”, no qual ele se atém a uma obra de arte particular. Do mesmo modo como ocorre em diversos textos produzidos na década de 1930, no ensaio sobre o teatro épico de Brecht e no texto sobre a escrita sem conteúdo de Robert Walser, por exemplo, a análise proposta em “Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte” abarca toda a obra da vida de um escritor. Nesse caso, aquela obra de uma vida a que nos referimos na introdução, na qual há várias obras, é a totalidade da produção do autor. Por isso, a explosão da obra de arte não deve ser entendida aqui como o engendramento de uma nova interpretação de um texto literário, mas como a formulação de uma nova configuração ideal para a produção kafkiana como um todo. Nesse caso, os elementos que constituem esse conjunto são as obras particulares. Cada texto de Kafka é um ponto extremo para o qual o crítico atentou. Cada conto ou romance aparece como um indício da existência da possibilidade do surgimento de uma nova reconfiguração ideal para o todo. Para chegar a essa nova configuração, Benjamin recorre a certos conceitos que quebram o fenômeno, no caso, a concepção vigente da obra kafkiana, dissecando seus elementos, ou seja, todos os textos do escritor que ele lera. Ao serem quebradas, as obras particulares são reagrupadas formando uma nova visão do todo. Porém, antes de empreender essa reconfiguração total, Benjamin imerge em cada obra singular e explode cada uma delas. Esse é o primeiro passo. Apenas afastando-se das leituras correntes dos textos particulares ele pode reconfigurá-las constelativamente em uma nova totalidade, promovendo ao mesmo tempo o renascimento da obra como um todo, do escritor como escritor dessa nova obra, e da época que só pode se apresentar de outra forma por causa da interferência do crítico. Como apontamos, o elementos fundamental na interpretação do tema da forma é o texto “Diante da lei”. Ela ofereceu o conceito aberto da parábola sem doutrina, que se tornou ainda mais visível com os apontamentos do sacerdote. Para percebê-lo foi necessário acolher o estranhamento causado pela narrativa experimental kafkiana como sinal de sua alteridade. Mesmo sem que sua leitura estivesse clara — no fundo ela nunca esteve — o conceito possibilitou que Benjamin acessasse diversas camadas de significados dos textos que não se mostraram para Brecht ou Brod. A partir dele, o crítico 49

foi capaz de visualizar novas partes do fenômeno e de encontrar novos arranjos, alcançando a idéia de obra de arte kafkiana, sua verdade. O esforço para a compreensão do conceito kafkiano, por sua vez, obrigou Benjamin a se debruçar sobre a historicidade específica da obra, sua realidade. Ela permitiu a definição apresentada na carta-ensaio, em que o corpo literário atrela-se à aísthesis de seu tempo. Mas a identificação desse vínculo na temporalidade específica da obra não fez com que o texto literário fosse apresentado nem como um produto da vinculação das duas experiências mencionadas, nem como produto da vida de um indivíduo. De modo contrário, ela foi apresentada por Benjamin como o lugar que permitiu a vinculação das duas experiências. É ela que possibilitou a explicitação dessa vinculação histórica que, sem a forma da parábola sem doutrina, poderia nunca teria vindo à tona. Esse diagnóstico é acompanhado pelo desenho do perfil do próprio escritor, do modo como ele experimenta o mundo e se relaciona com ele, e pelo desenho da condição histórica da vida do homem moderno, daquilo que não tem mais lugar, e das possibilidades que estão aparecendo com o desaparecimento de uma outra maneira de sentir o mundo. Ao materializar no corpo lingüístico de seu ensaio a vinculação descoberta, Benjamin irá conferir vida histórica tanto a essa relação como à própria figura de Kafka como o homem responsável por sua criação. Desse modo, em sua escrita, Benjamin gera inúmeros elementos que serão responsáveis por mobilizar a linearidade da história, desorganizando e explodindo diversos instantes. Surgem simultaneamente uma nova obra, um novo autor, uma nova visão sobre o mundo moderno, sobre a tradição, e uma nova maneira de o corpo mudo se relacionar com a palavra, que agora se torna gesto. As reconfigurações empreendidas aqui possibilitarão ao próprio Benjamin desenvolver pensamentos presentes em trabalhos posteriores. As próprias noções apresentadas nas teses “Sobre o conceito de história” talvez possam ser vistas como um desdobramento deste trabalho crítico, caso lembremos que “o primeiro narrador grego foi Heródoto”. Elas poderiam ser uma tentativa de responder a seguinte pergunta imposta por Kafka: Afinal, em um mundo de palavras mudas, como é possível contar nossa História? Frente a ela, Benjamin se volta para a própria idéia da história, e desloca de seu eixo central a narrativa, colocando em seu lugar o gesto da origem, em que a palavra é o corpo revolucionário responsável por engendrar a dinâmica do Ursprung.

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de

Svendborg.

Verão

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PDF

disponível

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