A crítica literária: uma polêmica entre dois críticos: Álvaro Lins e Afrânio Coutinho

June 1, 2017 | Autor: F. Filho | Categoria: Literary Criticism
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A crítica literária: uma polêmica entre dois críticos



Cunha e Silva Filho

Nos anos de 1940 a 1960, sem querer pretender 
imprimir rigores cronológicos a datas, a crítica literária no país 
alcançou uma fase de apogeu, de alta na "Bolsa" das Letras. De apogeu e
ao mesmo tempo de turbulência, porquanto naquele recorte de tempo 
travava-se uma luta incessante de duas principais correntes críticas,
uma representando a estabilidade de seu domínio de influência, outra que
pretendia desbancar a primeira. As duas, respectivamente, eram
o impressionismo e o new criticism. Aliás, observa Adélia Bezerra, que
escreveu uma arguta dissertação de mestrado orientada por Antonio
Candido, A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica (MENESES
BOLLE, Adélia. Bezerra de. A obra crítica de Álvaro Lins e sua função
histórica. Petrópolis,RJ.: Vozes, 1979, p.47) que os anos 40 do século
passado foram pródigos em polêmicas no país, afirmação confirmada por
uma citação da ensaísta extraída da revista Careta (1944).
O desentendimento entre Álvaro Lins (1912-1970) e
Afrânio Coutinho (1911-2000) virou uma 'briga feia" como ouvi há pouco
de um famoso crítico brasileiro. Essa pendenga em jornais cariocas sobre
crítica literária fez história nos arraiais da vida cultural brasileira.
Polêmica feroz, implacável nos ataques, sobretudo ou quase tudo da
parte de Coutinho que, me parece, entrou na arena para tentar 
desbancar o prestígio já consolidado do crítico mais influente 
daquela época, ou seja, na segunda fase do Modernismo, levando-se em
conta aqui a divisão proposta por Alceu Amoroso Lima ( 1893-1983), ou
como era conhecido, Tristão de Athayde, quer dizer, a fase de nossa 
história literária que vai de 1930 a 1945.(apud COUTINHO,
Afrânio. Introdução à literatura brasileira, 5 ed.. Rio de Janeiro: 
Editora Distribuidora de Livros Escolares Ltda., 1968, p.277).
Conquanto a polêmica tivesse como seu vetor principal as
diferenças de visões e formas de fazer crítica dos dois estudiosos,
ela ainda tinha precedentes ligados à vida profissional e à atividade 
intelectual de ambos, primeiro um artigo de Lins, "Um segundo Afrânio:
um 'exercício' literário acerca de Machado de Assis", de 1940,
posteriormente publicado em livro (LINS, Álvaro. Os mortos de
sobrecasaca (1940-1960). 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1963, p.348-354), foi, em alguns aspectos, desfavorável à obra de
Coutinho, A filosofia de Machado de Assis (1940); segundo, o concurso 
para o qual ambos se inscreveram, em 1951, a fim de disputar a cátedra de
Literatura do tradicional Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro.
Recordemos que não foi só Lins que censurou o ensaio de Coutinho. Sérgio
Buarque de Holanda, no mesmo ano de 1940, também em artigo de 1940, de
título "A filosofia de Machado de Assis" estampado no Diário de Notícias,
depois publicado em livro (BUARQUE DE HOLANDA, SérgioCobra de Vidro. São
Paulo: Perspectiva/Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia de São Pulo.
s.d., p.53-58) ) fez sérias restrições ao ensaio de Coutinho.
É bom lembrar que Coutinho foi quem mais atacou seu 
oponente, Álvaro Lins, que o respondia de forma menos dura e, ao
que me consta, sem citar o nome de Coutinho. Os artigos, depois, de
parte a parte, foram publicados em livros. Já se falou que Coutinho,
 desde 1943, vinha fazendo ataques ferinos ou achincalhantes contra o
impressionismo e tendo por alvo principal Lins. Os seus ataques
incluíam também as criticas que fazia ao uso do rodapé de jornal no
qual os críticos da época escreviam. Coutinho se opunha a essa forma de
usar o jornal para fazer crítica literária.
Esquecia, porém, Coutinho que ele mesmo se utilizava do rodapé
 na sua conhecida coluna "Correntes cruzadas", editada no Suplemento
Literário do Diário de Notícias por largo tempo.Ademais, o que mais
atraiu a opinião dos leitores interessados em literatura era que
Coutinho, além de doutrinador da nova crítica sobre a qual, mais adiante
comento, escrevia artigos detratando as mazelas da vida literária no
país, cheia de mediocridades e de capadócios despreparados e
formadora de igrejinhas, grupelhos, compadrios, lideranças
inatingíveis, mandonismo literário, favores políticos e influências
num espaço em que mais tinha valor a vida literária do que as obras 
publicadas. Para ele o ambiente literário da época mantinha-se numa
deplorável inércia de autêntica e atuante dinâmica de vida
literária.
Esse quadro negativo e anacrônico de fazer literatura, segundo
Coutinho, tinha que ser passado a limpo por interesses sérios de 
atualizar os hábitos ultrapassados da crítica e dos estudos literários
feitos em geral de "achismos"(termo frequentemente empregado por
Coutinho) em análises e julgamentos da produção brasileira, duma
crítica sem sistematização nem padrões técnicos e fundamentação
objetiva de preparo para a vida literária e para o ensino e didática
 de Literatura no país. Coutinho fez-se portador dessa mudança que ele
deveria empreender a ferro e fogo. Por volta dos anos 1950, e mesmo
antes, já contava com novos críticos usando instrumentais semelhantes
aos de dele a fim de derrubar as lideranças. já estabelecidas no
comando da atividade crítica brasileira.
Fausto Cunha (1923-2004), Darcy Damasceno (1922-1988), de
Afonso Félix de Sousa (1925-2002) que, ainda bem jovens, escreviam, já sob
novas óticas de métodos analíticos do fenômeno literário. Isso na
revista Ensaio, como outros companheiros de Fausto Cunha já se mostravam,
anos antes, através da Revista Branca. opositores da liderança e sentido
de perpetuidade da judicatura crítica de Álvaro Lins (CUNHA, Fausto. A
luta literária. Rio de Janeiro: Editora Lidador, 1964). 
Ocorre, contudo, que Lins, pelo elevado nível da obra legada 
por ele era um crítico de esmerada formação cultural que desenvolvia
um crítica independente, original nos moldes dos críticos franceses,
"... pelo gosto da análise psicológica e moral," como lembrou Alfredo 
Bosi ( Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 .
ed.,. São Paulo: Cultrix. 2001, p. 492).
Desde os tempos de província, em Recife (nascera em Caruaru,
Pernambuco), onde se formara em direito, já tinha ganhado fama de 
intelectual precoce interessado na crítica, no magistério e no
jornalismo político. Tanto que no Rio de Janeiro logo galgou lugar de
relevo na imprensa, tornando-se redator-chefe do Correio da Manhã durante
bom tempo, dividindo-se entre o jornalismo político e a crítica literária
onde fez sucesso nacional.Chegou a ser Embaixador em Portugal no governo
de Juscelino Kubitscheck e lecionou Estudos Brasileiros.na Universidade
de Lisboa.
Naqueles tempos idos, para simplificar, dois nomes estavam em
evidência.Álvaro Lins, com o seu impressionismo e Afrânio Coutinho com
a sua nova crítica. Coutinho nascido em Salvador, Bahia, formara-se em
medicina, mas logo dela desistira e foi dar aula em escolas da capital
e escrever em jornais sobre assuntos vários, sobretudo literatura. Foi
para os Estados Unidos onde, na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque,
 passou cinco anos estudando literatura, principalmente nos campos da
crítica e história literária. Em outras universidades americanas
frequentara também cursos de sua especialidade. Fez ainda naquela
 universidade cursos de filosofia tendo sido aluno de Jacques Maritain
(1882-1973).
Ao voltar para o Brasil, procurou logo pôr em
prática a sua formação e saber no domínio da crítica, quando iniciou 
seu projeto de lançar as primeiras sementes de renovação do ensino e
estudos de Literatura no país através de doutrinação teórica e da
divulgação pela imprensa do Rio de Janeiro, onde passa a morar,
 do new criticism anglo-americano, ou melhor, da "nova crítica", e aqui
coloco a expressão em português para ser coerente com a visão de
Afrânio Coutinho, que preferia essa denominação, porque ela não era a
única corrente crítica de renovação de métodos e abordagens do fenômeno
literário, mas era uma dentro outros "movimentos teóricos" (expressão de
Jonathan Culler) que estavam surgindo no Ocidente, como a nouvelle
critique francesa, a estilística espanhola,o formalismo russo ou eslavo,
a fenomenologia, a Escola de Zurich, para não citar outros que surgiram
posteriormente.
O que Coutinho sublinhava era o fato de que a nova
crítica fazia parte de um vasto movimento teórico universal que ia
surgindo, segundo frisei atrás, com novos métodos de abordagens do
fenômeno literário e artístico, com fundamentação em estudos 
literários de feição científica, objetiva, dando ênfase maior aos
elementos intrínsecos da obra em si, centralizando sua atenção na
linguagem literária considerada na sua autonomia, aportando variados 
modos de se analisar, interpretar e julgar obras literárias, deixando
para trás o componente da subjetividade, das impressões e do bom ou
mau gosto do impressionismo.
.Deixava de lado aquilo que dois autores franceses
identificavam em síntese conclusiva sobre o impressionismo na crítica:
"O impressionismo possui o grande mérito de conservar na crítica um
charme, um prazer, os quais os 'críticos sérios' não mais logram
transmitir-nos. Além do quê, todavia, segundo vimos, a sua posição é
insustentável e dela amiúde somos, aos poucos ou de vez, impelidos a
nos afastar, não raro nos passa uma visão rápida e superficial das
obras. Um estudo paciente, atento, enfim, erudito, não parece, por
conseguinte, tão inútil quanto dele se diz."( CARLONI, J.C. FILLOUX, Jean-
C. La critique littéraire Jean-C. 6ème édtion, 1969, p.64. Paris:
Presses Universitaires de France – Que sais-je?).
Lins, por sua vez, se manteve no magistério e nos jornal
escrevendo artigos e publicando livros.Crítico rigoroso, polígrafo
notável, com estofo de pensador, seus julgamentos não tinham
compromisso com as amizades pessoais, mas com a obra literária, com o
valor de um escritor. Era difícil, ao criticar uma obra, não lhe apontar
as qualidades e os defeitos, não para destruir gratuitamente um autor, 
mas para fazer-lhe sugestões ou mostrar formas de um escritor 
melhorar a sua forma de elaboração ficcional, ou, quando não houvesse
jeito, não estimular a obra de alguém que não demonstrasse talento
para produzir literatura. Isso o fazia fosse um livro de ficção, de
poesia, de teatro, de história, de filosofia, não importasse o gênero.
Grande parte dos escritores de maior grandeza passaram por seu
julgamento nos anos áureos de militância deste "Imperador da Crítica":
Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, só para nomear uns
poucos de tantos outros talentos criadores.
Valorizando na obra tanto a personalidade literária do autor
quanto a qualidade da linguagem literária, sobretudo o componente
do estilo, da imaginação e da estrutura de composição, da unidade
estética em que o artefato literário se torna uma forma coerente 
quanto à correspondência e adequação a determinado gênero a que se
propôs o autor, Lins não dispensa outros elementos de estruturação da
obra, dando especial realce ao sentimento de vida e verossimilhança
 gerada pelos meios e técnicas criativos que se transformam numa
realidade humana possível com personagens, enredo, ações, espaço e
tempo prenhes de vida própria na sua autenticidade e na sua condição de
seres que pensam, agem, choram e vivem a humana condição no universo 
ficcional, nas imagens e metáforas de um poema ou na dinâmica viva das
cenas da dramaturgia de vidas criadas pelo imaginário do artista.
E tal procedimento na militância critica e nos livros vale
também e em alto nível de conhecimento de literatura universal ,
alicerçado em bibliografia atualizada. Sua competência crítica e
teórica cresceram , reconhecia os novos marcos de abordagens críticas
que vinham surgindo nos grandes centros do Ocidente. Seus últimos
ensaios testemunham e confirmam que o seu impressionismo humanístico 
não se mede por meros rótulos, muitos deles injustos e parciais .
Antigos adversários lhe reconhecem, anos depois, o talento e a
capacidade, além do valor de sua obra grande para o tempo que viveu,
que não foi muito. 
Os tempos passam, a polêmica continua até pelo menos a década de
60. Tem simpatizantes dos dois lados. Lins, sempre atento ao
desenvolvimentos dos estudos literários, publica seus últimos 
estudos com forte sinais de que se modernizou. Seu pensamento crítico
é de largo espectro e dele faz uma das vozes críticas mais
importantes surgidas no pais. Antonio Candido, com muita exatidão, o
define como o mais "puro " dos críticos brasileiros.
Descontada a fase polêmica de Afrânio Coutinho, e isso é 
oportunamente lembrado por Eduardo Portella (Dimensões I. 3 ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro/MEC,p. 32-33 ), Coutinho passou à fase das
realizações, do amadurecimento que os anos favorecem, vê concretizado
tudo que há tempos perseguia com sofreguidão, com determinação.
Sobretudo no meio acadêmico a sua doutrinação se tornou realidade.
Sua pregação por uma mentalidade atualizada nos estudos literários do
pais, no ensino superior de Letras bem com no ensino médio, mostrava
seus bons resultados. O meio acadêmico lhe deve isso.
Os estudos de Letras se puseram em sintonia com o que lá fora,
nos grandes centros, se tem feito para aperfeiçoar o nível dos
estudantes e a qualidade de nossos cursos de Letras, com a implantação da
pós-graduação, nos níveis de atualização e especialização lato sensu e
de progressivos e mais complexos níveis de pesquisa stricto sensu de
produção acadêmica, o mestrado, o doutorado, o pós-doutorado. No Rio
de Janeiro, tudo isso tem o dedo de Coutinho que ingressou na
Universidade do Brasil, primeiro como professor interino e, depois, como 
professor catedrático por concurso, de literatura brasileira do curso
de Letras daquela universidade, sucedendo ao grande crítico Tristão de
Athayde, que se aposentara.
Faz um ano um jovem ensaísta, Miguel Conde, que escreve
periodicamente para o Prosa & Verso, do jornal O Globo, retomou em
artigo de título "O dever de agredir"(20/10/2012) bastante lúcido a
questão da polêmica entre Lins e Coutinho mas tocou em alguns pontos de
ordem opinativa de leitor ao afirmar que não lhe parece serem mais 
motivadores os textos de Lins e muito menos os de Coutinho, ainda que 
tenha equacionado sua discussão sobre o tema da polêmica de forma 
equilibrada, isto é, sob perspectivas de leitor da atualidade.
Entretanto, não vejo como matéria de importância secundária a
releitura tanto de Lins quanto de Coutinho, sobretudo se tenho em vista 
uma pesquisa de revisão e resgate das obras dos dois críticos e ainda
mais quando tenho por objetivo uma visada daquilo de bom ou ótimo ou
mesmo de ruim na produção legada por ambos.
Ao contrário, ao pesquisador da história literária discutir o
nível dos vários aspectos dos atores que, ao longo dos tempos formaram
o corpus da história da crítica literária brasileira é oportuno,
 notadamente com o distanciamento que temos dos anos 40, 50 e 60, e
é o que venho fazendo em pesquisa no momento.
Desta reavaliação poderemos verificar até que ponto dois
críticos tão diferentes e com poucas semelhanças de vida intelectual,
 não obstante ambos dando provas de reais interesses de 
aperfeiçoamento de formação cultural, nos instigam a releituras que, pelo
menos para quem escreve este artigo, ainda têm muito a dizer e a
ensinar. Não, talvez, a quem se prende ao canto de sereia da
aventura intelectual do primado do presente, que julgo ser um dos 
exageros da gerações mais novas.Lembro, por sinal, neste fecho de
artigo, as palavras do velho crítico expressionista Tristão de Athayde
de; "Tudo é novo debaixo do sol, ao contrário do que considerava o
pessimismo do velho Salomão, exceto a escala intrínseca dos valores."
LIMA, Alceu Amoroso. Quadro sintético da literatura brasileira. 3 ed
revista e ampliada, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, p.152).
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