A CRÔNICA COMO GÊNERO HÍBRIDO: UM ESTUDO SOBRE O DIALOGISMO NAS OBRAS JORNALÍSTICO-LITERÁRIAS DE JOÃO DO RIO E IVAN ÂNGELO

June 2, 2017 | Autor: Ruam Oliveira | Categoria: Journalism, Bakhtin, Dialogism, Short story (Literature)
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A CRÔNICA COMO GÊNERO HÍBRIDO: UM ESTUDO SOBRE O DIALOGISMO NAS OBRAS JORNALÍSTICO-LITERÁRIAS DE JOÃO DO RIO E IVAN ÂNGELO Ruam de Oliveira Silva (IC) e André Cioli Taborda Santoro (Orientador) Apoio: PIBIC Mackenzie

Resumo Este estudo teve como objetivo analisar qualitativamente o hibridismo encontrado no gênero textual crônica. Para isso, utilizamos os conceitos de dialogismo apresentados pelo filósofo e linguista Mikhail Bakhtin. Para basear nosso estudo utilizamos alguns textos de João do Rio (1881-1921) e Ivan Angelo (1936 -) extraídos de coleções, livros e da revista Veja SP. O foco deste artigo é o pressuposto diálogo entre as crônicas de ambos os autores. Eles são de diferentes épocas e fazem parte de momentos distintos da produção jornalística no Brasil. Ao longo deste trabalho, alguns pontos observados pelos autores, como, por exemplo, a forma pela qual os brasileiros veem seu país e a maneira como vivem; questões sobre a desigualdade social, novos comportamentos etc. fazem parte da discussão, todos eles apresentados através da crônica, que é a mistura de jornalismo e literatura, e pelo conceito dialógico encontrado na obra de Bakhtin. Palavras-Chave: Dialogismo; Crônica; Jornalismo

Abstract This study analyze qualitatively the hybridism found in textual gender chronicle. To do so, we use the concepts of Dialogism presented by the philosopher and linguist Mikhail Bakhtin. We took to base our study some texts from João do Rio (1881-1921) and Ivan Angelo (1936-) extracted from collections, books and some magazines. The focus of this article is on the presupposed dialogue in both authors’ chronicles. They are from different times and are part of distinct moments of the journalistic production in Brazil. Along this paper some points observed by the writers like, for example, the way Brazilians see their country, and the way they live in; questions about social inequality, new behavior etc. make part of the discussion, all of them presented with the chronicle gender, that is the mix of journalism and literature, and dialogic concept found in Bakhtin’s work. Keywords: Dialogism; Journalism; Chronicle.

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Introdução A crônica é um gênero híbrido que mescla, dentro do seu campo de produção, jornalismo e literatura. Seu processo de criação começa mesmo com a ideia de tempo.

“Do grego

Cronikós, relativo a tempo (chrónos) pelo latim chronica, o vocábulo ‘crônica’ designava no início da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em sequência cronológica”. (MOISÉS,1928 p. 245). Logo em seus primeiros passos, a crônica não tem o caráter de contar histórias. Sua origem na história está somente no fato de organizar de maneira cronológica os fatos. “Sendo assim, quaisquer discursos que relatassem os efeitos de algum grupo social poderiam ser encarados como crônica, desde que fossem anunciados em um tempo linear, cronologicamente”. (PEREIRA, 2004, p.17). O sentido de relato histórico é o que faz com que esse estilo de escrita atravesse o tempo. Tal travessia fez com que a crônica, nas palavras de Wellington Pereira, assumisse uma característica mista: “ora relato histórico, ora ficção literária” (PEREIRA, 2004, p. 17-18). Seguindo a perspectiva de Jorge de Sá no livro “A Crônica”, ele apresenta Pero Vaz de Caminha como o primeiro cronista no Brasil, chamando a atenção para seu registro do contato que ele próprio (Pero) teve com os índios. “A observação direta é o ponto de partida para que o narrador possa registrar os fatos de tal maneira que mesmo os mais efêmeros ganhem certa concretude” (SÁ, 1985, p. 6). O relato histórico apresentado por Pero Vaz consolidou-se em uma crônica sobre as primeiras impressões de um estrangeiro em uma terra nova, escrita a partir de sua própria observação. Ainda utilizando o pensamento de Jorge de Sá, o escritor diz que Caminha “estabeleceu o princípio básico da crônica: registrar o circunstancial.” (SÁ, 1985, p.6), captado por todos os cronistas que se dispõem a ir em busca de algo que embase o que se quer repassar. A crônica tem – ainda mais demarcado com o passar do tempo – um caráter social muito forte e mesmo que não figure os altos escalões da literatura, ela tem enorme importância e valor cultural. Segundo Antônio Candido, “A crônica não é um gênero maior” (CANDIDO, 1993, p. 23). Candido relata a crônica como sendo menor devido a importância que lhe é dada. Em seu texto “A vida ao rés-do-chão” (1993) explica que por melhor que fosse o cronista, ele não ganharia, por exemplo, um prêmio Nobel simplesmente por não se imaginar “uma literatura feita de grandes cronistas” (CANDIDO, 1993, p. 23). Machado de Assis, em sua crônica “O nascimento da crônica”, descreve o gênero como de fácil desenvolvimento:

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Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica. (ASSIS, 1994, p.13)

Somente a partir do século XIX é que a crônica vai abandonar “a fidelidade a um tempo historicamente determinado” (PEREIRA, 2004, p. 23), voltando-se para a maneira como o mundo moderno, industrializado, compreende suas relações e onde posiciona seu foco. A crônica ganha uma maior liberdade de movimento, não se limitando somente ao historicismo. No entanto, ainda mantém-se em relação de dependência literária em questões estéticas, ou seja, a hibridização ocorre ao passo em que a característica literária no texto torna-se participante e inter-relacionada ao discurso jornalístico. “A crônica contemporânea não se prende às ‘literatices’, sequer desconhece a polifonia de vozes que perpassam, subrepticiamente, os gêneros do jornalismo opinativo.” (PEREIRA, 2004, p. 124). Quando diz que a crônica “não se prende a literatices”, Pereira também tenta expor o caráter de autonomia que esse estilo possui. Logo após ter se dissolvido da ideia inicial de relatar os fatos, a crônica expandiu-se e colocou o cronista como causador de “rupturas no próprio manejo da linguagem” (PEREIRA, 2004, p.34). Na construção de seu caráter híbrido, a crônica recebeu atributos autônomos, provenientes do movimento romântico literário e também certo tom transitório vindo do campo jornalístico. A relação com o jornalismo atribui à crônica um caráter efêmero. Por se abrigar nesse veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em “ficar”, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão. (CANDIDO, 2004, p. 24)

Por ser tão transitório, podendo circular livremente entre literatura e jornalismo, a crônica hospedou-se em folhetins – espaço separado dos jornais para as críticas literárias, ensaios, resenhas etc. As crônicas se inseriram ao jornalismo por transitarem entre o narrar dos fatos e interpretálos simultaneamente. Antônio Candido a considera “filha do jornalismo”, dizendo que ela não tem interesse em durar, e dentre suas características está a de ser lida em um dia e já no

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outro “é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha” (CANDIDO, 1993). Parte disto depende também da já citada posição do cronista, que também não deseja eternizar-se nas mentes dos leitores. Este último fator – o de que os autores não desejam eternizar-se - pode ser contestado, como no caso dos dois escritores que são objetos deste estudo. Tanto João do Rio quanto Ivan Angelo possuem carreiras sólidas devido ao sucesso e qualidade de seus escritos. Algumas crônicas foram publicadas em revistas, como no caso de Ivan Angelo na revista Veja SP, na qual escreve quinzenalmente e de onde foram retiradas diversas crônicas para análise deste estudo. Não ganharam prêmios Nobel, mas ficaram registrados na história do jornalismo brasileiro, assim como as crônicas que fizeram. Os dois autores discorrem sobre temas semelhantes, dialogam entre si, consecutivamente também dialogam com muitos outros enunciados. Esse conceito – chamado de dialogismo foi desenvolvido por Mikhail Bakhtin (1895-1975) e diz respeito ao intercâmbio de elementos entre relatos aparentemente distintos. Segundo o autor, “todo enunciado constitui-se a partir de outro enunciado, é uma réplica a outro enunciado. Portanto, nele ouvem-se sempre, ao menos, duas vozes.” (apud FIORIN, 2006, p. 24). Ou seja, o que foi dito agora, foi anteriormente citado por outras vozes e internalizado por nós ao mostrarmos o nosso próprio discurso. Dediquei um subtópico para debater de maneira mais aprofundada esta questão.

REFERENCIAL TEÓRICO Farei um breve relato bibliográfico dos autores aqui citados e sobre os de dialogismo apresentados por Bakhtin, na intenção de se obter o melhor resultado de compreensão ao longo da leitura. Este item dará espaço para melhor conhecer os cronistas que emprestam seus textos para esta análise, tal qual um pequeno texto sobre o efeito dialógico nos textos.

João do Rio No dia 26 de novembro de 1903 o nome João do Rio apareceu pela primeira vez no jornal Gazeta de Notícias, e desde então começou a ser utilizado pelo jovem jornalista, que á época estava com 22 anos de idade. O pseudônimo é fruto da junção de outros jornalistas que o cronista carioca admirava – não o nome em si, mas a ideia de criá-lo. Sua escrita e os temas que mais gostava de tratar foram extremamente influenciados por estes outros escritores que se valiam de um pseudônimo para fazer o seu trabalho jornalístico.

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Jean de Paris, pseudônimo de Napoléon-Adrien Marx, foi o possível molde inspirador para João do Rio. Os escritos de Napoléon tinham muito sobre a cidade, transformações urbanas, etc. em formatos de crônicas, servindo de modelo para o jornalista brasileiro. Nasceu como Paulo Barreto no dia 5 de agosto de 1881, e faleceu em 23 de junho de 1921. Ele foi interpretado, nas palavras de Cremilda Medina, como “consequência da transição do momento literário e do momento jornalístico” (MEDINA, 1978, p. 61), caracterizando-se dessa forma como primeiro objeto de estudos quando o assunto é crônica. Iniciou-se no ramo jornalístico bem cedo, antes dos dezoito anos, no jornal A Tribuna. Inovou ao implementar em suas reportagens a observação da realidade e a aproximação com suas fontes, a partir do contato direto com elas. Esses são grandes referenciais do trabalho do autor. Ocupando o 26º lugar na cadeira da Academia Brasileira de Letras, foi o criador da crônica social. Em seu livro de crônicas “A alma encantadora das ruas” (1908), João do Rio descreve a rua como sem importância por parte da perspectiva dos dicionários, mas ele próprio a enaltece: “Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!” (1908, online). O cronista gera uma discussão sobre todos os aspectos da rua e sobre o espaço urbano. E é exatamente esse aspecto que ainda perdura dentro da crônica. A pauta dos cronistas contemporâneos está em questões do dia-a-dia. “O cronista moderno não está preocupado com o exercício da memória nem com a demonstração da experiência. O seu mundo se encontra dilacerado; não é possível ordená-lo numa simples enunciação dos fatos.” (PEREIRA, 2004, p. 30). Para isso, o cronista tenta encaixar, dentro do seu texto, sua percepção quanto à sociedade, dando às suas crônicas temas que não seriam de grande valor jornalístico, como fatos sociais, comportamentos etc. Grande parte de seu trabalho foi influenciado por outros, como, por exemplo, os artigos de Jules Bois com Petites religions de Paris, os quais colocaria a cara brasileira, transformandoos em As religiões do Rio, livro composto por crônicas que retratam as diferentes formas de culto e religiões da cidade carioca. As crônicas de João do Rio possuem uma estrutura muito mais jornalística do que as de Ivan Angelo – também objeto deste estudo. Algumas crônicas de Ivan o colocam como ponto centralizado, expressos por meio de assuntos relativos à sua memória, seus gostos, percepções, etc. Tais fatos não desmerecem o valor de suas crônicas, mas tratarei deste assunto num momento próximo. Já as crônicas de Paulo Barreto, mesmo com a presença de suas percepções pessoais, etc., acabam centrando-se em pessoas e na sociedade. A cidade é o tema central da grande maioria de seus textos. Faleceu em 21 de junho de 1921 enquanto se dirigia à sua casa.

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Ivan Angelo Em 4 de Fevereiro de 1936, nasceu o Jornalista Ivan Ângelo, em Barbacena, Minas Gerais. Ao completar um ano de idade muda-se para Belo Horizonte onde anos mais tarde dará início a sua carreira jornalística. Sua primeira investida foi em 1956, na qual se filiou à revista de arte e cultura Complemento. Posteriormente, Ivan assina uma coluna de jornalismo literário no Diário da Tarde de BH, iniciando também um curso de Filosofia na Faculdade de Ciências Econômicas. Foi no Diário da Tarde que Ivan Angelo começou seu papel de repórter e copidesque, os quais o encantaram sobremaneira, fazendo-o largar as aulas de Filosofia. Aos 26 anos de idade publica seu primeiro livro intitulado “Duas Faces”, que reúne contos de uma publicação anterior e algumas novelas. Sua vida de cronista já estava em vigor quando se tornou editor do Correio de Minas. E no currículo ele tem passagem pelo Diário de Minas, a revista mensal Alterosa, Jornal da Tarde, entre outros. Toda esta aproximação com o jornalismo diário foi de grande força em sua obra, dando alguns moldes ao que o autor escreveria. As crônicas analisadas neste artigo foram retiradas de veículos impressos e também de coletâneas, e na maioria delas é notável que o cronista deixa um pouco de si, mas também acrescenta o seu olhar sobre a situação, sobre as coisas que movimentam a sociedade, fazendo uma ponte entre ele próprio e a maneira como enxerga o mundo. Pois o que é a crônica senão o olhar do cronista sobre o fato? Ivan Angelo, com maestria apresenta alguns pequenos momentos de sua vida unindo-os a momentos da cidade. Diferente de João do Rio, Ivan não se detém nas grandes transformações, ainda que as apresente. Suas crônicas são bem leves e perfeitamente condizentes com o momento. Tratam de temas não muito densos, não tão complexos, e fatos do cotidiano. É um enorme exemplo do que Antonio Candido disse sobre o gênero, como forma de “respiro” dentro do noticiário. Além de cronista e jornalista, ele também escreve romances. Um deles, intitulado A festa, rendeu-lhe o prêmio Jabuti – que está no mais alto ponto do escalão literário -, recebendo inclusive traduções para outros idiomas. Parecido com Paulo Barreto, mas em outro lugar, Ivan tem como pano de fundo de muitas de suas crônicas o estado de Minas Gerais, o qual aparece revelado através do clima, sobre as árvores, etc; e quando acrescenta a cidade de São Paulo à equação, faz comparações entre ambos os locais, seus admirados. Ainda está ativo no jornalismo e nas crônicas, trabalhando na revista Veja SP onde publica quinzenalmente desde 1999.

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Dialogismo Para melhor aplicar a percepção das análises é preciso expor alguns conceitos necessários ao artigo. Explicarei de modo breve os conceitos de dialogismo presentes na obra de Mikhail Bakhtin. Dialogismo é sucintamente o diálogo entre dois ou mais enunciados (vozes). Ao descrever um diálogo, pressupõe-se uma resposta a outra voz/texto. Em seu livro Introdução ao pensamento de Bakhtin (2006) José Luiz Fiorin diz que toda a compreensão é carregada de resposta, o que quer dizer que a partir do momento em que o leitor entende o que leu, seu cérebro já produziu uma resposta, o que Fiorin chamou de “compreensão responsiva ativa”, que é uma participação do leitor no texto, ou seja, um diálogo. “Palavras dialogam com palavras” (FIORIN, 2006, p. 19), logo, é preciso fomentar respostas para ter um diálogo (palavras soltas não são dialógicas). Uma palavra enquanto unidade de língua (palavra solta) é neutra, tem unicamente seu próprio sentido, já um enunciado traz consigo emoções, juízos de valor, etc. O dialogismo pode aparecer no texto por meio temático, estilístico, estrutural, viés filosófico, ideológico, temporal, etc. O diálogo é a presença de uma voz responsiva. Muitas vezes se baseia em uma construção de sentido. Diana Luz de Barros chama a atenção para as ideias que Bakhtin tinha “sobre o texto”. Segundo a autora, a construção do homem está representada na construção de seus textos (constrói-se enquanto objeto): “(...) o texto não existe fora da sociedade, só existe nela e para ela e não pode ser reduzido à sua materialidade linguística (empirismo objetivo) ou dissolvido nos estados psíquicos daqueles que o produzem ou o interpretam (empirismo subjetivo).” (BARROS, 2001 p.24) Utilizando as palavras de Bakhtin: “O locutor não é um Adão, e por isso o objeto de seu discurso se torna, inevitavelmente, o ponto onde se encontram as opiniões de interlocutores imediatos (numa conversa ou numa discussão acerca de qualquer acontecimento da vida cotidiana) ou então as visões de mundo, as tendências, as teorias, etc. (na esfera da comunicação cultural). A visão de mundo, tendência, o ponto de vista, a opinião têm sempre sua expressão verbal. (Bakhtin, 1992, p. 319-20)

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Ao descrever que não existe texto fora da sociedade, Diana apresenta a ideia de que não há um texto que esteja solto ou alheio, ou seja, todos eles possuem, ainda que de forma mínima, a presença de outras vozes (enunciados). O texto é uma composição social, que comporta além do que foi previamente pensado por quem o produziu. E é exatamente nisto que consiste o dialogismo: numa junção de falas que possuem relação umas com as outras. Bakhtin apresenta o “sujeito interacional” para falar sobre o dialogismo. Este sujeito é aquele que interage com o interlocutor (diálogos entre interlocutores), no entanto ele perde seu papel central, de voz central, ao apresentar-se como sujeito ideológico e histórico, composto por diferentes vozes sociais (BARROS, 2001, p. 28). Esta interação ocorre também porque os discursos não são individuais, como já citado, não existem textos alheios e todos eles dialogam entre si de alguma forma. Em uma definição mais precisa o dialogismo está mais presente nos textos monofônicos, pois ele é um diálogo mais escondido, dependente de construção e análise de sentido. Júlia Kristeva, filósofa búlgara, conhecida por tornar os conceitos de Bakhtin famosos e mais acessíveis, intitulou de Intertextualidade o dialogismo que se deixa transparecer (diálogos entre discursos). São considerados intertextos os enunciados que são rapidamente percebidos, que foram implantados de forma intencional – ou não necessariamente -, mas são perceptíveis sem grande profundidade de análise. E para dialogismo ela separou o diálogo entre os interlocutores, que envolve sua construção cultural como sujeito social, etc. Para a análise deste estudo não usarei estas distinções, cabendo o mesmo título para ambas as formas – tanto de discursos quanto de interlocutores. Quando tratou sobre as teorias de Bakhtin, Kristeva apresentou algo que se tornaria como consenso entre os estudiosos: O fato de que qualquer texto é “como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1967, p. 440).

MÉTODO Trata-se, portanto, de uma análise qualitativa, realizada por meio da comparação do trabalho desses cronistas em momentos diferentes da história da produção textual brasileira. Foram selecionadas crônicas contidas em volumes diferentes e publicações semanais ou em livros específicos. Todas as análises estão baseadas no conceito de dialogismo – que foi previamente aqui apresentado -, unido com a noção da construção de sentido. O confronto de ideias, estrutura, e principalmente de temas é o que tornou aplicável a análise dialógica do gênero textual que mistura literatura e jornalismo.

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RESULTADOS E DISCUSSÃO Dentro de muitas das publicações observadas, a possibilidade e a característica que a crônica possui em adentrar em temas específicos, porém de forma leve, se tornou muito presente e marcada. As temáticas discutidas e a estrutura deste gênero brasileiro dão margem ao cronista para que construa uma relação pessoal, mas também com certo tom abrangente. É um ponto de equilíbrio no noticiário. De grande parte dos textos, certos temas se tornaram mais presentes e marcados, o que possibilitou à análise melhor aplicação dos conceitos de Bakhtin. Temas como transformações sociais, patriotismo, e costumes sociais receberam grande destaque nas obras de ambos os cronistas, algo que foi igualmente observado neste estudo e seguem para discussão nos tópicos a seguir.

A) Reagindo às transformações O mundo transforma-se. A cidade entra em um período de mudanças. Ou quando não, o interlocutor muda-se para um novo local. Enfim ambos encaram novas situações, ambientação, etc. Vivenciam, em momentos diferentes da nossa sociedade, o assentar de outros costumes, movimentos urbanos, etc. Ao iniciar sua empreitada sobre “A alma encantadora das Ruas”, João do Rio deparou-se com a maneira como a urbanização atingiu o Rio de Janeiro, como ela levou a cidade a entrar em outro curso, mudando a aparência, ingressando numa bela época. Viu seus costumes serem rediscutidos e ressignificados com a implantação de novos prédios, a chegada da indústria automobilística, etc. O jornalista encontrou coisas novas acontecendo e deteve seu olhar a examiná-las. O flanar pelas cidades, presente em grande parte de seu trabalho, fez com que tais descobertas obtivessem no autor espaço amplo para discussão. Da mesma forma Ivan Angelo, muito tempo depois, também o fez ao chegar a São Paulo. Reparou nas vias, nas árvores que desapareceram aos poucos, substituídas e engolfadas pelas construções de cimento. Lugar tão diferente dos pontos de Minas Gerais tão seus conhecidos. Ambos os autores presenciaram a mudança, mas de formas diferentes. No caso de João do Rio, elas eram ditadas por movimentos de outros países, mentalidades de outras regiões do mundo. Era um momento de transformação, como expôs ao introduzir a série de crônicas que compôs o livro Vida Vertiginosa. “Este livro, como quantos venho publicando, tem a preocupação do momento. Talvez mais que os outros. O seu desejo ou a sua vaidade é trazer uma contribuição de análise à época contemporânea, suscitando um pouco de

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interesse histórico sob o mais curioso período da nossa vida social que é o da transformação atual de usos, costumes e ideias.” (VIDA VERTIGINOSA, 1911)

Dialogando entre si, ambos entregam-se a analisar o quanto as transformações atuam no caráter, na vida das pessoas, nos costumes, etc. Em sua crônica “Lembra-se?”, Ivan Ângelo aponta algumas destas mudanças de costumes, de usos, etc. A crônica discute muito o subtexto “público” em diferentes aspectos, como público socialmente falando, público versus pessoal, pessoa pública, o público (povo), atos públicos, comportamento etc. É uma contraposição entre passado e presente. O primeiro tópico é sobre o ato público de falar ao telefone. Na memória do autor podia ser em aparelhos de esquina, em corredores de shoppings, etc., mas em todos os casos havia certa intimidade no falar ao telefone. Era um ato velado que ninguém precisava ver ou ouvir. No entanto a modernidade trouxe tempos de “ostentação”, no qual fatores/ações ostensivas como o que possuir, como possuir e o propósito, estão sendo muito mais levados em conta do que o próprio ato de forma singular ou a própria necessidade. Ivan está chamando a atenção para a descaracterização de certos padrões não só consolidados – como que por convenção – como também uma maneira de ser/agir que se alterou. “Quando ligava de um posto da companhia telefônica, a pessoa fechava-se numa cabina. Trocavam-se palavras necessárias, pois dava trabalho deslocar-se até um aparelho.” (2006). Isto é, nossa sociedade se encontra banalizada. Como que perdendo o sentido de algumas práticas. Ivan usa diversos exemplos para destacar o quão banais algumas atitudes se tornaram. A pessoa fechava-se numa cabina e trocava palavras necessárias. Quer dizer que existia primeiro de tudo, uma preocupação em fazer uma ligação de forma particular, pessoal. Também havia propósito. “Agora, na era do celular, todo mundo fala alto [...]” (ANGELO, 2007, p.55) A introdução de novas tecnologias é o que possibilita, aos olhos do cronista, uma completa renovação dos usos. O “mais curioso período histórico da nossa vida social” como sugeriu Paulo Barreto, continua acontecendo na época de Ivan. Os diálogos estabelecidos entre épocas tão diferentes se dão por meio da inserção de novas ferramentas, como no caso do celular, ou se tratando da época de João do Rio, do automóvel. “Para que a era se firmasse fora precisa a transfiguração da cidade. E a transfiguração de fez como nas férias fulgurantes, ao tan-tan de Satanás. Ruas arrasaram-se, avenidas surgiram, os impostos aduaneiros caíram, e triunfal e desabrido o automóvel entrou arrastando desvairadamente uma

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catadupa de automóveis. Agora, nós vivemos positivamente nos momentos do automóvel, em que o chauffeur é rei, é soberano, é tirano. Vivemos inteiramente presos ao Automóvel. O Automóvel ritmiza a vida vertiginosa, a ânsia das velocidades, o desvario de chegar ao fim, os nossos sentimentos de moral, de estética, de prazer, de economia, de amor.” (A era do Automóvel, 1911, p.4)

Esta supracitada era dos automóveis figurou em muitas crônicas de João do Rio como um exemplo das grandes mudanças que ocorreram na cidade. O que mudou também devido a urbanização foram os já ditos costumes, vistos na crônica de Ivan como completamente diferentes. Existe sempre um confronto entre passado e presente nos textos. Cada interlocutor, nos limites de sua época, se permite observar como era e como se configura sua sociedade nos tempos contemporâneos. Ponto chave desde sempre são estas alterações que ligam um fato a outro, como, por exemplo, a inserção de tecnologias e da indústria modificando totalmente as relações que as pessoas possuem com a cidade e também umas com as outras. Ainda na crônica “Lembra-se?”, é possível perceber o desconforto que Ivan sente devido a estas tantas mudanças. Juntamente com as ruas e toda a cidade, a forma de se relacionar também mudou. Na crônica “O clube e os bairros”, Paulo Barreto revela um Rio de Janeiro afogado, mas que também é centralizado demais em si mesmo, trazendo um sentimento individualista, gerado pela própria planta da cidade. “O diabo é que cada vez o isolamento e o exclusivismo se intensivam. Hoje, quem mora no Leme deixa de se dar com o seu amigo mais íntimo se ele passa para o Méier. A princípio não se veem. Depois não tem mais o que dizer um ao outro. Pensam já de modo diverso. E, tanto o Leme como o Méier têm clubes, skatings, grounds, circos, teatros, sociedades – tudo próprio. Não falta nada. Nem o literato. Há poetas do Leme e poetas do Méier. [...]” (RIO, 2009, p. 275)

João do Rio foi intitulado por Edmundo Bouças e Fred Góes como um “cronista-espectador afeito a ilustrar as substâncias do circunstancial, cônscio de sua revolucionária modificação histórica (...)” (GOÉS E BOUÇAS, 2009, p. 12) O que transforma a característica híbrida da crônica em um elemento forte é justamente a possibilidade que traz em si de unir a percepção de mudança da cidade, de uma situação que ocorre no momento, com a insatisfação ou satisfação do escritor naquilo que vivencia , em

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seu modo de ver, etc. Sempre levado de acordo com os fatos que o entornam e não unicamente inventando. A crônica é o gênero textual onde o autor “lida” com os acontecimentos do seu dia-a-dia. Com um texto solto, “prosa fiada”, como disse Vinícius de Moraes, mas com a presença de um ponto firme, quase sempre contido nas manchetes de jornais. “Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e situações que, azar dele, criou porque quis.” (MORAES, 1991, online). A crônica é a prosa de linguagem despojada, mas que não é também totalmente um despropósito. Serve ao escritor para demonstrar o que vê e ao leitor para que enxergue, se assim desejar, argumentos e contra argumentos sobre coisas que viu no noticiário. Serve também, dentre tantas coisas, para transitar pela crítica sobre o seu país, sobre as coisas que andam acontecendo nele, e todo o sentimento que rege as pessoas.

B) Pátria amada, idolatrada, sauver, sauver Dentre os temas abordados por ambos os cronistas, a cidade dá espaço para que eles discutam o amor/interesse que cada um tem pelo seu próprio país. Para embasá-lo, duas crônicas serão utilizadas. Nos dois textos é possível construir de forma mais clara o dialogismo entre as questões. Ivan desenvolve os temas de suas crônicas geralmente através de pessoas. São elas as usadas para dar voz à sua insatisfação. Na crônica “Uma Brasileira Radical”, apresenta sua amiga que é uma “brasileira militante”. “Acha levianos aqueles que se contentam com ter nascido entre nossas fronteiras e torcer pela Seleção de quatro em quatro anos, relapsos ao resto. São brasileiros bissextos, como é bissexto o ano que se inicia. Ela não; é diária e incansável.” (ANGELO, 2007, p. 101) A brasileira de Ivan Angelo é daquelas que lutam por seu país, que conhece as frutas nativas, não se importa com as datas festivas, ama Ayrton Senna. Todos estes atributos são apresentados pelo jornalista como pontos positivos em um grupo de pessoas que, segundo o autor, está crescendo. Ainda assim, é a representação de uma reclamação, de quão poucos brasileiros vivem a sua “brasilidade”. Bastante presente em seus textos é a maneira como se importam com o país. De maneira muito mais marcada, João do Rio escreve “Quando o brasileiro descobrirá o Brasil”, crítica forte à mentalidade eurocêntrica da sociedade da época. Onde os ambientes de fora do país são “muito melhores” que aqueles encontrados aqui.

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“A base do estudo de um país – e eu creio não avançar um paradoxo assustador – é a corografia deste país. Cada nação faz questão capital de que os seus filhos a conheçam. A própria França, bem conhecida por não saber geografia, pode teimar em julgar o Rio de Janeiro capital de Buenos Aires e o Brasil um dos mais ricos departamentos do Chile. Mas não há francês que ignore o seu páis, a sua divisão política, a sua produção e a sua história. No Brasil dá-se absolutamente o contrário. Os filhos de gente rica vão estudar na Europa. Vêm de lá falando várias línguas e tendo isto aqui, não como pátria, mas como a cidade onde é preciso ganhar um pouco mais, ou melhor – como o lugar onde mora a família. Os remediados, cuja ambição em toda a parte é imitar os ricos, seguem o curso geral, e os pobres, como que marcados mentalmente por essa bizarra sensação de inferioridade, não tem outra opinião.” (RIO, 2009, p.87)

O interessante de todo esse discurso é o fato de que João do Rio, como os filhos dos ricos, estudou na Europa e voltou de lá falando muitos idiomas. Este fato não deslegitima o que ele acabou de dizer e toda a sua refutação por pessoas mais preocupadas com o Brasil, mas o enfraquece. Foi de Paris que Paulo Barreto tirou a inspiração para criar seu pseudônimo. Igualmente a amiga de Ivan, João tem orgulho em professar sobre a costa brasileira, sobre as matas, sobre Minas Gerais, mas torna-se um tanto frágil ao atribuir toda a culpa às classes. A mentalidade em voga na época de João do Rio era muito eurocêntrica, diferente do cronista mineiro que vive em um Brasil que já possui muitos patriotas. Ainda em minoria, mas presentes e com voz ativa. “O radicalismo já vai estragando mais uma frente de luta.” (‘ANGELO, 2007, p.103), diz Ivan, o que traz ao centro da questão o diálogo entre a radicalidade de um nacionalismo, exemplificando em ambas as lutas – tanto a de Paulo Barreto, quanto da voz central de “Uma brasileira radical” – que ser radical enfraquece a argumentação em ambos os casos. Desde o início de texto, João do Rio reclama do fato de que o que ocorre fora do país é muito mais aplaudido do que as “belezas” aqui existentes. Estragou a luta pelo reconhecimento à medida que usou exemplos concretos – mas com seu “teto de vidro” à mostra – e não optou por uma investida mais leve. A brutalidade de suas exigências fez com que elas fossem entendidas como inferiores. Abaixo do tema pátria, os enunciados são sobre a forma como os dois cronistas enxergaram e apresentaram o problema. Como já citado, a crônica tem também o dever de trazer certa reflexão ao leitor, fazê-lo respirar em meio ao emaranhado de fatos do hard News. Ivan não se colocou no texto diretamente – partindo do conceito de que é impossível isentar a si mesmo

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de qualquer texto, ainda que utilizando outras vozes -, mas apresentou alguém que destruiu a causa por conta da força empregada. João do Rio apresentou força em excesso ao querer seus compatriotas mais amantes da terra. Patriota ele era sim, mas a força exercida pela sociedade em si atribuiu a ele características que eram gerais à época. Como estudar fora e escrever em francês. Diretamente ligado a isto, está a presença das classes sociais.Todo sujeito está inserido em uma classe social e “dialoga os diferentes discursos da sociedade.” (BARROS, 2001, p. 28). Baseando nos conceitos de dialogismo, temos a presença do sujeito social, que tem inserido em sua voz central muitos outros discursos, como no caso explicitado de João do Rio e sua clemência na sociedade europeizada. Seus discursos estavam embebidos em enunciados também europeus devido à sua formação, criação, etc. Nennhum enunciado está sozinho. Ainda que de forma imprecisa ou em escala menor, há a presença de diálogos entre discursos ou interlocutores. Os dois cronistas deste estudo dialogam com sua sociedade de forma direta ou indiretamente.

C) Social e desigual Muitos escritores que são envolvidos com o jornalismo ocasionalmente preocupam-se com a condição social das pessoas. A crônica, em sua completude de gênero dá espaço para o debate de questões sociais de uma maneira mais livre, por ter os moldes não tão fixos e ser um gênero textual maleável. Os enunciados são ampliados à medida que o olhar do cronista alcança a sociedade. Desigualdade social é um tema debatido por Paulo Barreto e por Ivan de maneira que se percebe a preocupação dos dois. Levando em consideração que são autores muito distintos, de épocas diferentes, a “voz”, se assim puder chamar, que produz um efeito de resposta está presente. É atemporal e não envelhece. Em “Eu como paisagem”, Ivan Angelo traz consigo a ideia do “eu em detrimento do outro”, atribuindo um caráter crítico presente no jornalismo, mas com o apoio da leveza da crônica. “Não vale colocar no mesmo balaio os poetas e os filósofos, que partem do eu para meditar sobre o mundo. O egocentrismo que nos distrai no momento não nos leva a mergulhos profundos, seguimos com água pelas canelas. Políticos, por exemplo, não têm outra perspectiva senão o eu, enquanto falam em povo e sociedade; quando são líderes, transformam seu partido em extensão de si mesmos. O ponto de vista do adversário é sempre visto como deformação e falsidade.” (ÂNGELO, 2013, online)

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Bem distante da atual “geração selfie”, Paulo Barreto já havia presenciado não só o eu em detrimento do outro como também as divergências entre classes. Com a crônica “Mariposas de Luxo”, apresenta o mesmo lugar na visão de pessoas diferentes: “Já passaram as Professional beauties, cujos nomes os jornais citam; (...) os nomes condecorados das Finanças e os condes do Vaticano e os rapazes elegantes (...). Há um hiato na feira das vaidades: sem literatos, sem poses, sem flirts. Passam apenas trabalhadores de volta da faina e operárias que mourejaram todo o dia.” (RIO, 209, p.51-52). Apenas o cronista reparou nestas operárias, as quais deu o título de mariposas, inseto que possui hábitos noturnos e pode ser considerado como uma prima feia da borboleta. As borboletas são as belas damas, reconhecidas pela sociedade e de hábitos diurnos, já as operárias passam pela rua depois das seis da tarde, quando o movimento é menor. Andam mais devagar que os homens, porque estão sempre a observar as vitrines, as joias, os luxos que ficarão sempre expostos nas vidraças e nunca poderão possuir. “A rua não lhes apresenta só o amor, o namoro, o desvio... Apresenta-lhes o luxo. E cada montra é a hipnose e cada rayon de modas é o foco em torno do qual reviravolteiam e anseiam as pobres mariposas.” (RIO, 2009, p.53). Mulheres que estão presas à situação, não optaram por ela. Tal qual o jovem que sequestrou o ônibus da parada 174, tão conhecido do Brasil. “Finalmente e contra a nossa vontade éramos aquele bandido, aquele desdentado, mestiço, aquele que vivia nas ruas desde quando era menino e escapou do massacre da Candelária, criado em meio ao crime, destinado ao crime, sem família, sem escola, como tantos outros brasileiros largados por aí (...)” (ANGELO, 2007, p.305). Ele também era uma mariposa, silenciado quando já não possuía mais voz. O não dito, aos olhos do dialogismo, é muito mais valioso do que o dito. As palavras são dialógicas, e a desigualdade social apresentada pelos escritores também. Ainda que em épocas tão diferentes e com a sociedade sendo outra, não muda esse aspecto de divisão, segregação, e é algo que talvez não mude, cabendo ao jornalismo a função de debater e discutir assuntos para uma tentativa de transformação. O bom de transitar entre o factual e o literário é poder suavizar ou introduzir assuntos mais densos de uma maneira mais agradável. O sequestro do ônibus ou a triste e sonhadora situação das “mariposas” são desculpas para apresentar uma deficiência de nosso país. O hibridismo da crônica permite ao escritor que sejam ditos assuntos que nas manchetes soam muito chocantes.

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No jornalismo hard news, quanto pior melhor, ou seja, as maiores audiências estão presentes nas piores tragédias veiculadas. E opostamente a isso, a crônica é o alívio, o texto para fazer rir, como já citado, o respiro, sem pretensão, etc. o que também dá espaço para que a reflexão seja introduzida de maneira mais sutil. “Chegaste em um momento de muitas dúvidas. Em que possuímos muitas coisas que os outros não têm, não terão, e isso não nos irmana, antes nos separa. Inseguros e ansiosos buscamos ter mais, e assim alargamos o fosso.” (ANGELO, 2007, p.150) A disparidade entre as classes é apresentada a um bebê, que nada viu ou conhece. O leitor é também o bebê, a quem Ivan Angelo apresenta o “fosso” entre as classes. É factual a questão, mas é lúdica sua apresentação, como somente em um gênero híbrido é possível encontrar.

CONCLUSÃO Ivan Angelo, durante sua peregrinação como cronista, observou o sentimento humano de uma forma mais próxima. Falou sobre os amores – seus e de terceiros –, sobre amizades, boa vizinhança, família etc. Enquanto João do Rio se preocupou em discutir o país, o estado em que vivia. O cronista mineiro não ignorou as mazelas sociais existentes, e para isso dedicou textos também. Todavia apresenta muito de si mesmo, de como agem os do gênero humano. Já Paulo Barreto investiu e procurou conhecer fatos sobre a cidade, as emoções ficaram na superfície enquanto o contexto social era discutido. Não tratou do indivíduo, mas sim do grupo. O que faz com que suas obras se complementem, devido ao fato de que os lugares que ele tentou entender são compostos pelas pessoas que o Ivan apresentou. O país que o brasileiro não conhece é o que guarda em si uma brasileira radical, os gentlemans tão citados do Rio de Janeiro. É como se fosse um mecanismo fotográfico, no qual João do Rio observa a cena, e Ivan Angelo se detém nas personagens (como o zoom no detalhe), juntos formando uma obra homogênea. Porque ainda que os estilos de cada um sejam diferentes, o gênero híbrido os aproxima. Tratar da cidade é tão factual que os sentimentos precisam ser apresentados, para trazer a leveza e o escape característicos da crônica. João do Rio traz exemplos das emoções humanas, mas mantendo o foco nas questões sociais; enquanto Ivan Angelo apresenta o social, utilizando o indivíduo como instrumento principal. As abordagens são distintas, mas a qualidade híbrida da crônica não se altera.

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A crônica tornou possível a junção da complexidade jornalística e toda sua preocupação em “discutir a sociedade”, com a beleza da literatura, dando espaço para que os diálogos sociais e culturais se construam de forma natural. Dialogismo é uma expressão natural presente na linguagem do ser humano. Escrever sobre a cidade em que vive, mesmo que não seja a mesma ou em épocas diferentes, contribui para estabelecer um diálogo. A ideia de dialogismo inclui o poder de unir assuntos aparentemente contrários. João do Rio não escreveu sobre Belo Horizonte da forma como fez Ivan, mas escreveu sobre suas vivências no Rio de Janeiro. A vivência é a ponte que une um escritor ao outro. O gênero com que escolheram trabalhar também é o fator comum. É o que torna o diálogo possível.

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