A crônica de cinema no Recife dos anos 50

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A CRÔNICA DE CINEMA NO RECIFE DOS ANOS 50

LUCIANA ARAÚJO

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Aos meus pais, Mário e Maria Alice

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AGRADECIMENTOS Este livro foi escrito originalmente como dissertação de mestrado, defendida na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, em maio de 1994. Para publicação, mantive o texto original, com algumas poucas modificações. Agradeço a Maria Rita Galvão - pela orientação precisa e tranquilizadora aos amigos Maria Bacellar, Arthur Autran, Fernando Trevas Falcone e Kátia Halbe pelas conversas, correções e total apoio aos jornalistas Alexandrino Rocha, Celso Marconi, Jomard Muniz de Britto, José de Sousa Alencar e Luís Maranhão Filho; ao médico Rildo Saraiva; e ao cineasta Romain Lesage (em memória) - pelos depoimentos às instituições CAPES e FAPESP que viabilizaram este trabalho através de bolsas de estudos; Arquivo Público Estadual de Pernambuco; Fundação Joaquim Nabuco; Fundação de Cultura da Cidade do Recife; TV Universitária de Pernambuco; Cinemateca Brasileira

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APRESENTAÇÃO Jean-Claude Bernardet

Os estudos sobre a história do cinema brasileiro têm-se deslocado nos últimos anos. Tradicionalmente, o objeto do historiador era a produção cinematográfica, ou mais precisamente: os filmes. Os documentos encontrados à sua volta eram capitalizados para a história dos filmes, inclusive os textos críticos que o comentavam. Mais recentemente, o historiador tem procurado novos objetos. Um deles são justamente os textos críticos que, há ainda pouco tempo, eram colocados a serviço dos filmes. A novidade é que se busca entender o pensamento referente a cinema, e mais particularmente referente a cinema brasileiro. Os estudos sobre tais textos são trabalhos sobre a ideologia cinematográfica produzida no Brasil. Mas por que estudar críticas de filme para pensar a ideologia cinematográfica no Brasil? Em outros países não se procederia necessariamente dessa forma. É que o Brasil é um fraco produtor de teoria do cinema. Daí a necessidade de rastrear essa ideologia nos textos em que ela está sendo aplicad, na crítica cinematográfica, nas entrevistas, nas crônicas, onde a ideologia e as idéias teóricas nem sempre - digamos até, raramente são clara e explicitamente formuladas. Elas e suas contradições estão em atuação de forma latente e subjacente. O pensamento cinematográfico tem então ue ser caçado, é a análise que o faz aflorar. O que exige um trabalho lento, minucioso, em que o analista vira por vezes um detetive. É esse trabalho que Luciana Sá Leitão Corrêa de Araújo faz maravilhosamente sobre a crítica cinematográfica do Recife nos anos 50, evidenciando as idéias referentes a cinema naquele período. Esse tipo de análise é recente e a bibliografia é das mais escassas. A crônica de cinema no Recife dos anos 50 enquadra-se assim numa linha de ponta das pesquisas relativas a cinema brasileiro. Ele é relevante, não apenas por nos informar sobre a ideologia cinematográfica vigente nos Recife dos anos 50 mas porque nos informa também sobre o pensamento cinematográfico brasileiro em geral, e também porque, no quadro ainda incipiente desses estudos no Brasil, ele faz uma proposta metodológica que terá de ser levada em consideração.

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ORELHA Celso Marconi

Embora que hoje seja, quase, uma atividade sem muito prestígio, pelo menos quando feita com maior aprofundamento, o estudo de Luciana Araújo sobre a crônica cinematográfica dos anos 50 do Recife, apresenta, sem dúvida, um especial interesse àqueles que buscam conhecer a realidade cultural pernambucana. Mesmo nos anos 50, a atividade de comentar cinema nos jornais teve uma dubiedade entre o pensamento reflexivo e o simples noticiar fatos amenos, que se interligavam no mundo mítico tanto do filme europeu quanto do hollywoodiano. E Luciana passeia, com muita propriedade, na sua pesquisa, entre as figuras que apresentavam suas crônicas buscando uma realidade ou outra. O cinema traz nele mesmo uma dimensão que comporta praticamente todos os níveis. Do onírico ao realismo. E nos anos 50 era um autêntico facho de luz atraindo aqueles menos acadêmicos. E podemos sentir que todos os cronistas apresentados na pesquisa possuíam (ou estavam possuídos de) dilemas ideológicos para decifrar. Até uma Renata Cardoso, por dentro de suas brincadeiras, não ficava só no inconsciente. O estudo de Luciana Araújo consegue, por isso mesmo, documentar um momento rico da atividade cultural do Recife, numa área restrita e definida do jornalismo. É expressivo que jovens como Luciana Araújo, Alexandre Figueirôa, Diana Moura e outros, em seus estudos acadêmicos, se voltem para atividades pernambucanas não acadêmicas. Principalmente em regiões como o Recife, pobres, mesmo hoje o cinema continua a ser um objeto pouco definido para o contexto cultural/social. E Luciana consegue marcar sua pesquisa por uma visão pessoal. Não assume um lado, nunca. Todos os figurantes têm o seu espaço, mas ela, como espectadora privilegiada, esboça a sua visão. E abre ao leitor a melhor compreensão do período. Do que foi o Recife cultural nesses anos estudados. Certamente que após a publicação dessa tese sobre a crônica cinematográfica recifense dos anos 50 muitos passarão a compreender melhor porque o nosso Estado é marcado, no panorama brasileiro, como de vocação para a produção do cinema. E como está retomando esse caminho, com a realização de curtas e até de um longa. O estudo de Luciana é a teoria que serve para dar embasamento à prática.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..............................................................................................07 Capítulo 1: A CENA CINEMATOGRÁFICA DA “3ª URBE” ....................................16 Capítulo 2: O CINEMA COMO DEVE SER ..................................................................50 Capítulo 3: O CINEMA BRASILEIRO VISTO DA PROVÍNCIA ..............................67 Capítulo 4: O CANTO DO MAR: ALBERTO CAVALCANTI NO RECIFE .............91 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................126 ANEXO 1. COELHO SAI ...............................................................................................131 2. TRANSCRIÇÕES ........................................................................................136 3. CRÔNICAS SOBRE O CANTO DO MAR .................................................150 BIBLIOGRAFIA.............................................................................................169

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INTRODUÇÃO

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O movimento inicial da pesquisa se deu na direção de abordar as atividades do cineasta Alberto Cavalcanti no Recife, em 1952 e 1953, quando filmou na região O Canto do Mar. Mas o levantamento de informações nos jornais diários da época revelou uma crônica cinematográfica ativa e relativamente numerosa. O que acabou por modificar substancialmente o trabalho. O objetivo tornou-se, então, o levantamento da produção da crônica cinematográfica nos jornais diários do Recife nos anos 1952/53. A partir daí não só rastreamos a repercussão do trabalho de Cavalcanti na cidade como também procuramos compreender as concepções sobre cinema que marcam o pensamento dos cronistas locais, e quais as posturas diante da produção estrangeira, da estética e da linguagem cinematográfica, do cinema brasileiro, e da própria função da crítica de cinema. Além disso, levantamos informações sobre a cena cultural do Recife da época no que diz respeito às manifestações ligadas ao cinema, desde os cineclubes e círculos de estudos até a produção de cinejornais e dos cineastas amadores, sem deixar de lado a atuação da Igreja Católica. Alguns jornalistas em textos dos anos 50 chegam a apontar o ano de 1949 como o marco do “reaparecimento” da crônica cinematográfica no Recife. Jovens colaboradores e veteranos que voltam à ativa restabelecem o vigor da crônica praticamente estagnada desde meados dos anos 40 -, estimulados pelo neo-realismo italiano, pelas produções hollywoodianas do pós-guerra, pelas experiências de cinema industrial no Brasil, Vera Cruz à frente. Tal retomada acontece num contexto diferente dos anos anteriores em relação aos novos procedimentos implantados na imprensa. Na década de cinquenta começa a se consolidar o jornalismo especializado, que coloca em xeque a tradicional figura do cronista de assuntos gerais, que transita com desenvoltura e com maior ou menor propriedade entre diversas áreas. Por outro lado, o cinema deixa de ser mero passatempo e passa a ser encarado com “seriedade”, falando-se até em “cultura cinematográfica”. Cria-se, então, um campo específico, com repertório e vocabulário próprios. Um interessante testemunho dessas mudanças é dado pelo jornalista Mário Melo, figura tradicional da imprensa pernambucana, em atividade desde o começo do século, que assina diariamente a “Crônica da Cidade”, no Jornal do Commercio: “Depois da invenção do que intitulam ‘imprensa especializada’ - jornalistas com exclusividade para tratar de desportos, ou de cinema, ou de teatro, ou de música, para o que abusam alguns do vocabulário estrangeiro, em desprezo completo ao vernáculo - é até perigoso para os que não fazem parte das panelinhas, nem pretendem exibir erudição bestialógica, entrar na seara deles. Confesso que não sei o que, em cinematografia, é ‘close-up’ de que tanto falam os ‘especializados’ e por isso ignoro se qualquer dos dois filmes [Melo dedica a crônica do dia ao comentário de O Canto do Mar e Sinhá Moça] tem defeito de ‘close-up’ ou de ‘close-down’.” (JC, 09/out/53, p.2) E Melo está cercado de ‘especializados’. Os seis jornais diários que circulam no Recife ostentam pelo menos um cronista cinematográfico regular, sem contar os colaboradores - alguns assíduos, outros um tanto bissextos. São essas colunas de cinema que interessam ao nosso trabalho. Deixamos de lado o material da tradicional página cinematográfica publicada nos suplementos dominicais, porque na grande maioria das

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vezes não traz textos de cronistas, mas simplesmente reproduz o material de divulgação enviado pelas distribuidoras. Trata-se de um espaço bem mais publicitário do que propriamente jornalístico, opinativo. Uma exceção que merece registro é a página dominical do Diário de Pernambuco, com textos assinados de diversos colaboradores, comentando os filmes em cartaz ou abordando temas e personalidades ligados ao cinema. A seguir, elaboramos uma rápida apresentação dos jornais pesquisados e seus cronistas e colaboradores entre 1952 e 1953 1: DIÁRIO DA NOITE (DN) - vespertino fundado em 1946, de propriedade da Empresa Jornal do Commercio S.A., dirigida por Francisco Pessoa de Queiroz. Na primeira página, ao lado do nome do jornal, segue-se a frase: “Um jornal do Nordeste a serviço do povo”. Orgulha-se de ser um jornal de todas as classes, desde o usineiro até o operário, afirmando não se alinhar com nenhum partido. Em 1949, o jornal promove uma polêmica com a Folha da Manhã, criticando as atividades de Agamenon Magalhães, então a maior força política no estado, do qual foi Interventor na época do Estado Novo e governador de 1951 até sua morte no mês de agosto do ano seguinte. Não circula aos domingos. Cronistas e colaboradores: - Duarte Neto: advogado formado em 1952. Colabora regularmente na coluna “Para o Diário da Noite escreve”, publicada na terceira página. Em março de 1953, aproximadamente, transfere-se para a Folha da Manhã (Vespertina). - Jorge Abrantes: editorialista, escreve também sobre assuntos gerais na coluna “Boa Tarde”. Dedica diversas crônicas e editoriais a assuntos cinematográficos. - Luiz Vieira: chefe de publicação, assina a seção “Cinelândia”, em 1952, na qual mistura comentários pessoais e reproduções de releases dos filmes em cartaz. Em meados do ano seguinte, Vieira reaparece com a seção “Cinema”. - André Gustavo Carneiro Leão: engenheiro, um dos programadores do Cine Clube do Recife, responsável pela seção “Cinelândia” no segundo semestre de 1952. Colabora também na página cinematográfica do suplemento dominical do Diário de Pernambuco. - Paulo Fernando Craveiro: colabora no jornal a partir do segundo semestre de 1953 na coluna “Para o Diário da Noite escreve”. DIÁRIO DE PERNAMBUCO (DP) - o “jornal mais antigo em circulação na América Latina”, fundado em 1825. Em junho de 1931, passa a fazer parte dos “Diários Associados Ltda.”, de propriedade de Assis Chateaubriand. O suplemento dominical dedicado à literatura, cinema, rádio e assuntos femininos começa a circular em maio de 1952. Não circula às segundas-feiras. Cronistas e colaboradores: - José de Sousa Alencar: advogado formado em 1952, colega de turma de Duarte Neto. No suplemento, assina a coluna “Sétima Arte”, da página cinematográfica “Mundo de luz e som”, na qual comenta um ou mais filmes em cartaz, seguido de suas respectivas cotações. Colabora também no Jornal do Commercio - e, eventualmente, no Diário da Noite -, com o pseudônimo “Ralph”. - L. : pseudônimo de Luís de Andrade, que também escreve como Luiz Ayala (em outras fontes: Luís Aiala) para o Diário da Noite a coluna de assuntos gerais “Na linha média”. 1

Aqui nos valemos especialmente das informações sobre os jornais diários do Recife In: NASCIMENTO, Luiz do. História da imprensa de Pernambuco, v.III. Recife, Imprensa Universitária - Universidade Federal de Pernambuco, 1967.

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Editor da página de artes e espetáculos da Folha da Manhã (Vespertina). Depois de ter abandonado a crônica cinematográfica, que exerceu nos anos 40, ele retorna no início de 1951, escrevendo diariamente na coluna “Mundo de luz e som”, publicada na página seis (aos domingos, encontramos duas “Mundo de luz e som”: a coluna de L. e a página de cinema do suplemento). Com frequência, abre espaço em sua coluna para outros colaboradores, como Valdir Coelho, Jomard Muniz de Britto e Renata Cardoso, ou transcreve textos do Serviço de Cinema da Liga Operária Católica. - Valdir Coelho: militante católico, membro da Ação Católica e diretor do cineclube Vigilanti Cura. Responsável pelo material sobre cinema da “Seção Religiosa” publicada no Jornal do Commercio, que entre outros serviços oferece a “cotação moral” dos filmes em cartaz. - Jomard Muniz de Britto: adolescente de 15 anos, em 1953, membro do “Conselho Deliberativo” do Vigilanti Cura e um dos organizadores do “Cine-Forum”. - Renata Cardoso: pseudônimo de Alexandrino Rocha. A “cronista” comenta não só os filmes em cartaz mas principalmente a atuação de seus colegas, numa crônica de bastidores marcada pelo humor provocativo. A ideia de criar o personagem surgiu em conversas com L. e Duarte Neto. Com esse último, Alexandrino escrevia as crônicas de Renata “praticamente, a quatro mãos” 2. - Juvenal Félix: poeta, colabora esporadicamente na página de cinema do suplemento dominical. - André Gustavo Carneiro Leão: colaborador ocasional da página de cinema do suplemento dominical. - Paulo França: assina a coluna “Refletor” na página de cinema do suplemento dominical. FOLHA DA MANHÃ (EDIÇÃO MATUTINA) (FM/M) - fundado em 1937 pelo então ministro Agamenon Magalhães, adotando formato pequeno, em seis colunas. Na primeira página do primeiro número do jornal são publicadas fotos de Getúlio Vargas, do interventor federal em Pernambuco, General Azambuja Vilanova, e de Agamenon. Na década de cinquenta, o suplemento dominical dedica duas páginas às notícias cinematográficas. Não circula às segundas-feiras. Publicado até 1959. Cronistas e colaboradores: - Mauro (Almeida): assina a coluna “Cinema”, publicada diariamente. Diretor do Jornal do Fan, “semanário noticioso independente” que traz notícias sobre rádio e cinema. - Alexandrino Rocha: responsável pela seção de cinema no semanário O Dia, torna-se cronista cinematográfico da Folha a partir de novembro de 1953. Escreve também com o pseudônimo de Renata Cardoso. FOLHA DA MANHÃ (VESPERTINA) (FM/V): surge em 1938, impresso num formato pequeno, em seis colunas, em papel verde-claro; conhecido como “a folhinha”. Como a edição matutina, é também órgão de propaganda do Estado Novo, de Getúlio Vargas e de Agamenon Magalhães, seu proprietário. Nos anos 50, transcreve regularmente artigos sobre cinema do jornal Última Hora, que também apoia o governo Getúlio Vargas. Não circula aos domingos. Publicado até 1959. Cronistas e colaboradores: - Paulo Fernando Craveiro: assina a coluna diária “Ronda Cinematográfica”. - Renata Cardoso: assina a coluna diária “Câmera Lenta”. - Duarte Neto: a partir de março de 1953, assina a coluna diária “Cinema”. 2

Depoimento de Alexandrino Rocha.

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- José Laurênio de Melo: no início de 1953, é responsável, por pouco tempo, pela coluna de cinema. JORNAL DO COMMERCIO (JC) - fundado em 1919 por João Pessoa de Queiroz para defender os “interesses das classes conservadoras”. Nos anos 40, publica a coluna de Carlos Lacerda “Tribuna da Imprensa”. Na década seguinte, o suplemento dominical dedica entre uma e duas páginas aos assuntos cinematográficos. Não circula às segundas-feiras. Cronistas e colaboradores: - Ralph: pseudônimo de José de Sousa Alencar. Assina a coluna diária “Telas e Palcos”, chamada posteriormente de “Cinema”. - José do Rego Maciel Júnior: colaborador na página “Cinematografia” do suplemento, a partir de setembro de 1953. JORNAL PEQUENO (JP) - como o próprio nome indica, jornal de pequeno porte, “órgão independente e noticioso”, com seis páginas, que ostenta na primeira, ao lado do nome do jornal, a frase “A Verdade Nua e Crua”. Na década de quarenta, atua como órgão das Oposições Coligadas. Não circula aos domingos. Cronista: - Ângelo de Agostini: cronista cinematográfico e, com menor frequência, teatral, na coluna diária “Cinemas e Teatros”. O espaço dedicado às artes e aos espetáculos obedece a critérios semelhantes entre os seis jornais diários que circulam no Recife nos anos de 1952/53. Nos dias da semana, colunas de cinema, rádio e teatro ocupam apenas uma página do jornal - e nem sempre gozam de exclusividade no espaço que lhes cabe. No Diário de Pernambuco, a página de artes e espetáculos inclui também “Vida Religiosa” e o colunismo do “Diário Social”; enquanto no Jornal Pequeno a coluna “Cinemas e Teatros” vem ao lado das notícias sociais e da crônica policial. Uma comparação com a crônica esportiva seria humilhante. Nos grandes e abastados jornais como o Commercio ou o Diário de Pernambuco, o esporte ganha até duas páginas inteiras, fartamente ilustradas com fotos e desenhos, numa concepção visual arejada e atraente, que chega a contrastar com o resto do jornal. A página de espetáculos, por sua vez, se conforma com uma diagramação “quadrada”, sem maiores atrativos além das fotos de artistas de Hollywood e das estrelas dos programas de rádio locais. Ou ainda, como na Folha da Manhã (Matutina), publica-se a foto do cronista ilustrando sua coluna. O que nos permite conhecer a compenetrada fisionomia de Mauro, metido em terno e gravata, numa fotografia estilo 3x4. Aos domingos, o cinema ganha uma página (às vezes duas, dependendo da época e do jornal), farta em material promocional e fotografias, nos suplementos do Commercio e da Folha (Matutina). É o espaço privilegiado das distribuidoras, que aí veiculam releases sobre as estreias e os filmes que permanecem em cartaz, num circuito com mais de trinta salas de cinema na região do grande Recife. Já no suplemento dominical do Diário de Pernambuco a página cinematográfica “Mundo de Luz e Som” mostra-se mais opinativa, com resenhas e comentários regulares de José de Sousa Alencar e Paulo França (que assinam as colunas “Sétima Arte” e “Refletor”, respectivamente) e com a colaboração de Juvenal Félix e André Gustavo Carneiro Leão. Apesar das diferentes linhas editoriais, as páginas dominicais sobre cinema desses três jornais obedecem à mesma hierarquia editorial que rege os suplementos. Nos três casos, o lugar de honra que é a primeira página está reservado à literatura críticas, resenhas, poemas - e, em menor escala, às artes plásticas. Da segunda página

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em diante, seguem-se as seções de “Cinema”, “Rádio”, “Crônica Jurídica”, “Página Cristã”, “Economia”, “Vida Rural”, “Mundo Canino” (os títulos variam entre os jornais, mas os temas são quase sempre os mesmos). Na página diária de espetáculos, os assuntos cinematográficos podem ganhar até quatro “seções” (chamaremos assim, apesar de nem todas serem colunas fixas, regulares e com nome determinado): a crônica de cinema assinada por um jornalista local; a coluna dos filmes em cartaz, que traz a relação das salas de cinema e suas respectivas atrações; a reprodução de material enviado pelas agências internacionais e companhias brasileiras; e, como já mencionamos, as fotos das estrelas do cinema americano e europeu - às vezes em poses de estúdios outras em “flagrantes” (não menos posados) -, acompanhadas por legendas redigidas em estilo publicitário, menos interessadas em oferecer informações recentes sobre os astros do que em louvar suas qualidades artísticas e pessoais. A essas “seções”, acrescente-se outro procedimento adotado pela Folha da Manhã (Vespertina) que é o de reproduzir material publicado originalmente no jornal Última Hora, o que inclui artigos sobre cinema assinados por Vinicius de Moraes, Topaze e Carmen Nícias de Lemoine. Em 1952, na página “Espetáculos” do jornal, editada por Luiz Ayala (o “L.” do Diário de Pernambuco), encontramos as seções “Cinema”, “Música”, “Folha nos Teatros” e “Folha no Rádio”. As colunas assinadas trazem os nomes de Luiz Ayala (“Na Linha Média”, coluna sobre assuntos gerais, escrita na primeira pessoa), Hermilo Borba Filho (“Fora de Cena”, teatro) e Paulo Fernando Craveiro (“Ronda Cinematográfica”). No ano seguinte, a Folha reestrutura a página de espetáculos e forma um conceituado time de cronistas culturais. A coluna “Pintura” fica sob a responsabilidade do artista plástico Aloísio Magalhães; o escritor Ariano Suassuna escreve sobre “Literatura”; Geraldo Menucci assina “Música”; Hermilo Borba Filho e Paulo Fernando Craveiro permanecem como colaboradores (com a diferença que “Fora de Cena” tornase “Teatro”). Ao examinar a relação entre a crônica cinematográfica e a crônica voltada para outras formas de produção cultural, percebemos como principal ponto em comum o fato do objeto de crítica encontrar-se, quase sempre, entre as atrações oferecidas ao público pelo circuito local. Na grande maioria dos casos, comenta-se o filme ou a peça em cartaz, o concerto apresentado, as obras de arte em exposição. Mas justamente aí encontra-se a principal diferença. Enquanto o circuito teatral, musical ou de artes plásticas é frequentado majoritariamente por produções locais, o circuito cinematográfico não exibe qualquer longa-metragem pernambucano (com exceção da apresentação em cineclubes dos filmes do Ciclo do Recife), pela simples razão de não haver uma produção cinematográfica no estado, além dos cinejornais. Claro que na crônica teatral, por exemplo, há espaço para o comentário de peças encenadas no Recife por grupos teatrais de outros estados ou para informações sobre a obra de Pirandello ou Maeterlinck. Assim como nas colunas de literatura e artes plásticas encontramos textos críticos sobre Flaubert e Picasso (para citar os temas de duas crônicas de Ariano Suassuna e Aloísio Magalhães, respectivamente). Mas nada comparável à proporção de títulos estrangeiros presentes no circuito de cinema local e, consequentemente, objeto da crônica especializada. Ao contrário da produção crítica literária que também pode ser encontrada em revistas como Resenha Literária e Presença, a crítica - impressa - de cinema concentrase essencialmente nos jornais diários. Outras publicações voltadas para assuntos cinematográficos resumem-se ao Jornal do Fan - que circula apenas durante algumas

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semanas de 1953, trazendo as últimas do cinema e do rádio - e a Cine-Filme, órgão oficial da Associação de Cinegrafistas Amadores (A.C.A.). Apesar de entrar tantas vezes no rol de promessas e projetos dos cineclubes locais, textos impressos seja na forma de revista ou de programas mais extensos não chegam a ser produzidos. Se escaparmos da esfera da mídia impressa, nos deparamos com o “CineForum”, promovido pelo Cine Clube Vigilanti Cura, onde a crítica de cinema é exercitada através de debates e discussões. E também não podemos deixar de chamar atenção para a crônica cinematográfica exercida nos programas de rádio como “Cinelândia” e “Epopeia do Cinema”, que apresentam não só comentários sobre os filmes da semana como também realizam entrevistas com cronistas locais. Essas entrevistas, por sua vez, ganham a mídia impressa quando reproduzidas nas colunas especializadas. É o jornal, portanto, o campo de ação por excelência da crítica cinematográfica local. Na classificação informal de Renata Cardoso, existem os cronistas diários - L., Ralph, Mauro, Paulo Fernando Craveiro, Agostini - e os bissextos - ela mesma, Duarte Neto, Alexandrino Rocha, Juvenal Félix, André Gustavo Carneiro Leão (FM/V, 28/out/52, p.7; cf. ANEXO). A regularidade pode variar entre cada caso, mas no que se refere ao critério de escolha da pauta a variação é mínima. Todos escrevem, basicamente, sobre os filmes em cartaz. Este ou aquele perfil de diretor, produtor ou artista é quase sempre motivado pelas produções exibidas naquele momento pelos cinemas. Movimento semelhante se dá em relação às considerações em torno do cinema nacional e estrangeiro. A se julgar pelo material pesquisado, o próprio cronista define a pauta, o que na prática significa escolher, entre os filmes do circuito, aquele que irá comentar. Uma orientação editorial mais definida talvez não permitisse que em um mesmo jornal dois cronistas comentassem na mesma semana um ou dois filmes iguais - o que acontece, por exemplo, nas colunas de Paulo Fernando Craveiro e Renata Cardoso na Folha (Vespertina); ou, ainda, podemos supor que com um maior controle editorial talvez não houvesse espaço para textos onde domina a subjetividade do cronista, por vezes completamente desvinculada de temas cinematográficos. Como é o caso de certas crônicas de Craveiro e Duarte Neto, que adotam um estilo literário e “impressionista”, no sentido de traduzir suas impressões e humores pessoais, sem remeter necessariamente a fatos e notícias da área. Apesar de exercida por um grupo composto por vários jovens, a crônica de cinema da época não deixa de manter uma característica tradicional da imprensa pernambucana: o gosto pela polêmica. Sobre esse ponto, o historiador Antônio Brasil constata: “Outro fator preponderante no desenvolvimento e na forma de expressão do espírito crítico entre nós é, sem dúvida, o costume da polêmica, dando à crítica que deveria ser erudita, um sabor de verrinas, mais em tom jornalístico, que essencialmente analítico.” 3 No caso, Brasil se refere à crítica literária no Recife dos anos 40, mas o parágrafo não poderia definir melhor - excetuando, é verdade, a exigência de erudição o aspecto polêmico que se verifica na crônica cinematográfica dos anos 1952/53. Brasil 3

Cf. BRASIL, Antônio e outros. Um Tempo do Recife. Recife, Arquivo Público Estadual/Secretaria da Justiça, 1978.

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credita boa parte do espírito polêmico da produção crítica literária à tradição bacharelesca com sua “linguagem candente” e “crítica verrinosa” formada na Faculdade de Direito do Recife. Também entre os cronistas de cinema encontramos bachareis. Dos advogados formados pela Faculdade de Direito que se destacam na produção crítica cinematográfica, Luiz Ayala (o L.), Jorge Abrantes, José de Sousa Alencar e Alexandrino Rocha fazem carreira na imprensa, enquanto Duarte Neto, posteriormente, deixa o jornalismo para se tornar Juiz de Trabalho. Fazendo jus a outra tradição da imprensa da época, dificilmente encontramos um cronista colaborando apenas na área de cinema e trabalhando para um só jornal. Abrantes, que não se define como crítico especializado, nem assina coluna de cinema, trabalha no Diário da Noite e no Jornal Pequeno; L. divide suas atividades entre a Folha da Manhã, o Diário de Pernambuco e um emprego público estadual; Mauro chega a dirigir por algum tempo um Jornal do Fan; Alexandrino alterna revisão no Diário de Pernambuco, crônica de cinema em diversos jornais e até atua como locutor na Rádio Tamandaré. Quando se fala em crítica especializada, portanto, entenda-se especializada de acordo com os padrões da época, que não exclui a atuação do cronista em outras áreas. A especialidade do cronista define-se por outros critérios que não o da exclusividade. E um dos pontos diferenciadores é certamente o acesso a textos sobre cinema produzidos no Brasil e no exterior. Numa época em que tanto se afirma a importância de uma “cultura cinematográfica”, as informações são valiosas porque garantem desde a intimidade com o vocabulário específico até o acompanhamento das principais tendências do cinema mundial. Na década de cinquenta, uma rápida lista das leituras obrigatórias entre os cronistas de cinema do Recife inclui O Cinema, sua técnica, sua economia, de George Sadoul, a Cartilha do Cinema de Carlos Ortiz e, entre as revistas, a mineira Revista de Cinema, a francesa Cahiers du Cinéma e a britânica Sight and Sound - as duas últimas, vale frisar, “obrigatórias” mas não necessariamente lidas, já que nem todos dominam línguas estrangeiras. Complementando a lista, vêm as colunas de cinema dos jornais e revistas brasileiros, assinadas por profissionais de peso como Moniz Viana (Correio da Manhã), Almeida Salles (O Estado de S. Paulo), Pedro Lima (O Cruzeiro) e Salvyano Cavalcanti de Paiva (Manchete). Optamos por delimitar o trabalho aos anos de 1952/53. Antes de tudo, porque é esse o período de filmagem de Canto. As atividades de Cavalcanti no Recife representam um poderoso estímulo à crônica cinematográfica local, colocando questões importantes no que se refere à produção brasileira e pernambucana. Apesar de se deixar levar inúmeras vezes por preconceitos e rivalidades pessoais, a crônica não se furta a abordar tais questões. Canto é um momento privilegiado porque aproxima a crônica da esfera da produção. Aqui, não se trata de comentar “de camarote” um filme estrangeiro ou mesmo nacional, mas de acompanhar de perto as etapas de realização de um produto que trabalha com profissionais e temas “da terra”. Ainda insistindo no estímulo gerado pela produção, desta vez em nível nacional, vale a pena lembrar que em 1952/53 a Vera Cruz conhece seu período de maior prestígio. Lança com regularidade seus filmes no mercado brasileiro e conquista prêmios internacionais para O Cangaceiro e Sinhá Moça, mobilizando ainda mais a crônica em torno do cinema industrial paulista. No final de 1953, a crise financeira da companhia vem à tona e daí por diante a situação não melhora.

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O recorte temporal efetuado motiva-se também pela repetição de temas e abordagens que observamos na crônica especializada da época. Como nos anos 1952/53 a crônica local se encontra particularmente estimulada e aborda uma significativa variedade de tópicos, o período escolhido nos parece dar conta das preocupações da época, ao mesmo tempo em que nos permite um olhar que, se perde em extensão, ganha com um exame mais próximo e detalhado. Por outro lado, isso não impede de traçarmos, eventualmente, pontes de ligação com outros momentos da década, seja para trazer informações complementares a determinadas trajetórias, seja para estabelecer sugestivos contrapontos. Com relação ao material pesquisado, em alguns momentos optamos pela designação genérica de “texto” ou, nos casos mais específicos, indicamos se se trata de entrevista, reportagem, nota ou material publicitário (release). Mas na maioria das vezes utilizamos os termos “crônica” e “cronista”, no lugar de “crítica” e “crítico” mais comuns hoje em dia. Os primeiros nos parecem definir melhor a natureza do material não só porque correspondem ao vocabulário da época (basta lembrar que o órgão da classe chamava-se Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos) mas também porque dão conta do caráter imediato, voltado para o momento, que norteia as atividades dos profissionais estudados. Eles escrevem comentários diários ou semanais impulsionados pelos assuntos do dia, pelos filmes em cartaz, e uma de suas funções é orientar o público quanto às opções oferecidas no circuito. A reflexão histórica, a preocupação em analisar aspectos que vão além da informação imediata, acontecem inseridas no espaço da crônica diária e quase sempre tomam como ponto de partida filmes recém-lançados. No final, apresentamos um Anexo, dividido em três partes. A primeira traz informações coletadas na imprensa e em depoimentos sobre Coelho Sai, o único longametragem de ficção produzido em Pernambuco entre o Ciclo do Recife e O Canto do Mar. Na segunda parte, transcrevemos na íntegra crônicas publicadas em 1952 e 1953, optando, geralmente, entre aquelas que não ganharam maior destaque no corpo do trabalho, mas são o que poderíamos chamar de textos “característicos” de cada cronista. A reprodução das crônicas publicadas na imprensa recifense por ocasião da pré-estreia e do lançamento em circuito de O Canto do Mar constituem a terceira parte do Anexo.

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CAPÍTULO 1 A CENA CINEMATOGRÁFICA DA “3ª URBE”

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Em torno de 1950, o recifense deseja ver em sua cidade uma metrópole e convive diariamente com a melancolia da província. Os números, cifras e estatísticas colocam Recife no posto de terceira maior cidade do país, atrás da Capital carioca e da locomotiva paulistana. Mas a realidade nem sempre está à altura dos ideais inevitavelmente associados a tamanho status. Com isso, criam-se exigências: muitas coisas passam a ser inaceitáveis e outras tantas, indispensáveis. O lazer, por exemplo. É inconcebível que uma cidade como Recife não ofereça um variado leque de opções na área de diversões. Inconformado com essa situação, Gerson Cariry escreve uma crônica a respeito para o Jornal do Commercio, onde observa com pesar: “A pobreza do nosso mundo diversional continua, assim, a desafiar o espírito melancólico de nossa melancólica gente.” (JC, 18/nov/51, 2ª Seção, p.5) “Péssimos” e “insuportáveis”, os filmes mexicanos frequentemente exibidos nas salas de cinema do Recife também não poderiam ter lugar numa metrópole, segundo o cronista José de Sousa Alencar: “Pelas barbas do profeta, como será possível que numa capital como o Recife, terceira cidade do Brasil, centro de progresso e cultura que influencia e orienta o Nordeste, com 534 mil habitantes, serviço de táxi, brevemente a televisão e tanta coisa mais que pode credenciá-la como verdadeira metrópole, deixe-se apanhar inativa e conscientemente por uma nova praga, não de gafanhotos, como sempre acontece, mas de maus filmes.” (DP, 17/jun/51, 2ª Seção, p.3) Alencar parece disposto a instalar definitivamente na cidade hábitos que considera dignos de uma metrópole. É assim que, à sugestão de L. de se criar sessões às 12h30, para os espectadores aproveitarem o horário de almoço, Alencar não só endossa a ideia como propõe também que o horário das 22h30 das noites de sábado seja dedicado a avant-premières. Motivo: “precisamos quebrar essa monotonia provinciana” (DP, 15/jul/51, 2ª Seção, p.4). A propósito das dificuldades encontradas pelo Cine Clube Do Recife, Barradas de Castro retrata o descompasso entre, digamos, as atribuições de uma metrópole e a mentalidade provinciana: “Nossa capital, apesar do nome pomposo de 3ª urbe do país, em pouquíssimas coisas corresponde ao batismo. Com o ambiente ricamente intelectual e culto que possuímos não podemos nem manter uma fundação do porte e fim do Cine Clube. É francamente lamentável. Mais do que isso: é constrangedor tamanho desinteresse entre nós pelas coisas elevadas e úteis.” (DP, 29/out/50, 2ª Seção, p.3) De um lado, o “ambiente ricamente intelectual e culto”. De outro, o desinteresse pelas coisas “elevadas e úteis”. A oposição deixa claro que o “nós” usado pelo jornalista é puramente retórico - trata-se de grupos distintos e Barradas se filia claramente a um deles. Se a cidade possui um refinado e culto meio intelectual que produz (e aqui os jornalistas estão incluídos), esse se contrapõe ao público que consome e não possui qualquer critério para discernir o que é ou não elevado.

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Para escapar desse impasse, uma das soluções seria a educação do público. E, pelo menos na área de cinema, a função de formar e orientar os leitores recebe os mais elevados conceitos no papel atribuído ao cronista - pelos outros e por ele mesmo. Em 1950, o artigo “Precisa-se de críticos de cinema” lamenta que não haja “um só crítico ou mesmo cronista de cinema” em atividade no Recife, quando já houve excelentes profissionais como Danilo Torreão, Evaldo Coutinho, Paulo do Couto Malta e Luís de Andrade. O texto justifica a importância dos cronistas cinematográficos nos seguintes termos: “Uma coisa necessária numa cidade já do desenvolvimento artístico da nossa são críticos de arte. Temos crítico de música, de teatro, mas não temos críticos de cinema. Não simples comentadores de enredo de filmes, mas analistas do filme como obra de arte. Críticos como Moniz Viana, do Correio da Manhã do Rio de Janeiro. (...) Estamos precisando disto aqui. De um bom guia para fitas de cinema a fim de que não nos deixemos levar cegamente pelo título ou pela fama dos realizadores ou intérpretes.” (JC, 23/abr/50, 2ª Seção, p.6) Quando os filmes recebem o tratamento de “obra de arte” - deixando de ser apenas a “maior diversão” -, o público não pode mais ser largado à própria sorte, sem orientação. Nesse ponto, mais do que nunca, revela-se a importância do cronista enquanto elemento-chave no desenvolvimento da chamada “cultura cinematográfica”. Quem explica o processo é Ralph (pseudônimo de José de Sousa Alencar), numa crônica de 1951, época em que o panorama retratado na crônica anterior mostra-se substancialmente alterado, com a atuação na imprensa de jovens profissionais (e também a volta do veterano Luís de Andrade, o L.) dedicados à crônica de cinema. O interesse por encarar o cinema “com mais seriedade” e não como um “passatempo inconsequente” é detectado com satisfação por Ralph, que salienta a importância de se adquirir uma “cultura cinematográfica”, “pois o cinema já passou a fazer parte dos nossos hábitos”. Prova disso, segundo ele, foi a polêmica despertada por Sansão e Dalila (direção de Cecil B. DeMille, 1949): “A crítica local (como a crítica de todo mundo) estraçalhou a película de Cecil B. DeMille. O público, lendo essas crônicas (devemos acrescentar que aumenta sensivelmente o número de leitores de crônicas cinematográficas), procura discutir e apresentar suas opiniões, concordando ou não com o cronista.” (JC, 23/out/51, p.4) É dessa forma, na opinião de Ralph, que se vai formando a cultura cinematográfica do público, ampliada pelos “núcleos especializados onde podemos destacar o Clube de Cinema do Recife, dirigido pelo Hermilo Borba Filho, o cronista José de Sousa Alencar e o recente Cine Clube Vigilanti Cura que, em boa hora, fundou o seu Círculo de Estudos Cinematográficos. A iniciativa merece aplausos. É verdade que o simples hábito e prática de assistir a bons filmes educa realmente, mas não basta. É necessário que à prática se acrescente a teoria, a crítica das películas apreciadas, onde seus principais detalhes são anotados e estudados.” (Idem, ibidem)

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A formação desta “cultura cinematográfica” também parece estar presente entre as preocupações de Mauro, ao publicar uma espécie de profissão de fé como cronista, elegendo a objetividade como principal valor a ser seguido. Uma postura que privilegia o texto que seja capaz de acrescentar informações ao leitor ou, em outras palavras, capaz de enriquecer sua “cultura cinematográfica”. Na opinião de Mauro, “Toda a crítica deve ser objetiva. A missão do crítico não é filosofar em torno da película exibida. Por pior que ela seja, há material sobre cinema e não meras divagações sobre assuntos de colunas sociais. “A crítica cinematográfica pernambucana, nesta sua nova fase, não tem mais do que três anos. Surgiu com um impulso e vigor nunca igualados e os cronistas já começaram a ser lidos antes de se comprar o bilhete de entrada. Isto é coisa realmente sintomática que pode ser tomada como índice seguro do interesse comum pelas boas programações.” (FM/M, 03/set/52, p.11) Quando Mauro observa que o público lê os cronistas antes de escolher o filme, ele aproxima-se das opiniões de Ralph e do redator não-identificado da crônica de 1950. Todos atribuem ao crítico a função de guiar, de orientar o público. Se existe entre público e crítica um “interesse comum pelas boas programações”, como Mauro indica, não se trata de uma coincidência, mas dos frutos colhidos pela orientação dos próprios cronistas. Ralph, por sua vez, chega a cogitar eventuais discordâncias entre os cronistas e seus leitores, mas discordâncias despertadas a partir da leitura das crônicas. Refletindo sobre a atuação do cronista de cinema, L. tenta se desvencilhar do soberano papel de guia, afirmando: “Pode-se admitir que o crítico chegue a deter certa influência moral sobre os seus leitores - mas nunca que estes se mostrem obedientes ao seu conselho.” O cronista que “não se imagina censor de cinema nem orientador de fãs de cinema, o mais que pode almejar é que o considerem sincero na maneira como se desempenha de sua tarefa. Nem crítico nem espírito esclarecido. Apenas um apaixonado pelo cinema; e que escreve não para os críticos e sim para os apaixonados como ele.” (DP, 26/mar/52, p.6) Recusando o papel de orientador, L. estabelece outro vínculo com os leitores: o da paixão pelo cinema. E, nesse aspecto, cronista e leitor estão no mesmo pé, sem hierarquia. É uma visão romântica (pouco confortável, ao que parece, diante do jornalismo especializado) que contrasta com o tom atrevido e cínico adotado por Duarte Neto nas “Confissões do cronista”. Na falta de assunto (“o maior inimigo do cronista”), ele escreve sobre o exercício da crônica: “Se o leitor concorda com a opinião do cronista chama-o de inteligente, se discorda diz que é absurdo. O mesmo pensa o cronista do leitor. Ambos estão separados por uma mútua antipatia: nem o cronista considera o leitor nem o leitor, o cronista. Mas há outro tipo de gente que o cronista despreza com muito maior intensidade: outro cronista.” (DN, 08/ago/52, p.3) Segundo Duarte, os cronistas “dizem que o cinema é a mais importante das artes somente para valorizar a sua função”. Ainda na área promocional, Duarte afirma que

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existe uma “infinidade de maneiras” de ser original, e a sua é não gostar dos maus filmes franceses e italianos. E continua: “Sempre que escrevo errado o nome estrangeiro de diretores e artistas me apresso em dizer que foi culpa da revisão. Mas não foi. Quando reclamam contra o meu estilo digo que escrevi com pressa. Mas nunca escrevo apressado. Na verdade, procuro escrever da melhor maneira que posso, menos por amizade aos leitores que por mim próprio. “Tenho em casa vários livros sobre cinema, mas nunca consegui ler até o fim um único que fosse. (...) Não conheço outra leitura tão aborrecida. Cinema foi feito para ser visto e não para ser lido, e tudo quanto se escreve, até hoje, sobre o assunto, com raras exceções, não tem maior valor que uma crônica de jornal.” (Idem, ibidem) Seja para expor suas particularidades de cronista, seja para se exibir, ou - como afirma - para driblar a falta de assunto, o certo é que nesta crônica Duarte não fala “por amizade” a si mesmo, mas dialoga com interlocutores que diz desprezar: o leitor e os colegas da crônica. E, de uma forma ou de outra, sem largar mão do sarcasmo e da provocação, ele lhes dá satisfações sobre sua postura. Uma atitude pouco usual, mesmo entre aqueles cronistas que têm (ou dizem ter) os leitores em alta conta. A conclusão das “Confissões do cronista” coloca numa vala comum grande parte da literatura em torno do cinema - e a mais comum das valas parece ser a crônica de jornal. Mas se levarmos o final ao pé da letra, veremos que Duarte se equipara à maioria dos que escrevem sobre cinema: não são mais nem menos que ele. Com essas considerações, Duarte acrescenta mais uma parcela à sua vasta contribuição ao clima de polêmicas e controvérsias que marca a atividade jornalística no Recife e, por extensão, a crônica de cinema. De antipatias pessoais a discordâncias quanto à ideia de como deve ser a verdadeira arte cinematográfica, motivos não faltam para que os cronistas embarquem em discussões e desavenças. Até colunistas de outras áreas participam, expondo sua opinião sobre temas cinematográficos. E, graças aos seis jornais diários que circulam na cidade (consideramos separadamente as duas edições da Folha da Manhã), não falta espaço para quem quiser se pronunciar . No rastro dessa inclinação para a polêmica, surge a cronista Renata Cardoso, pseudônimo adotado pelo jornalista Alexandrino Rocha. Além de escrever resenhas dos filmes em cartaz, Renata dedica-se especialmente a comentar, com um estilo venenoso e sem rodeios, as últimas da crônica e dos cronistas. Estreando em julho de 1952, na coluna “Câmera Lenta”, Renata não demora muito para expor sua opinião sobre os colegas: “Trabalha um ou dois e o resto leva o tempo a usufruir dos louros conquistados por aqueles que realmente têm valor. (...) Eles não precisam de ninguém. As companhias de cinema, aí estão, distribuindo sinopses a torto e a direito. E o que o povo gosta é de biografias. (...) E se o povo gosta, pra que contrariar o povo? Hein ‘seu’ Agostini? (...) Coisa rendosa, essa. O ‘crítico’ com tal prática [copiar sinopses] tem direito a inúmeros privilégios. Sim! Assim como o crítico esportivo e o policial, o cinematográfico também tem as suas com permanente individual.” (FM/V, 28/jul/52, p.5)

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Em outro momento, Renata observa que a crônica está “discreta”, não esquecendo de recomendar a Alencar maior cuidado com os artigos que publica no Suplemento do Diário de Pernambuco: “estão ficando cada vez mais longos e massantes” (FM/V, 31/jul/52, p.5). Em outras ocasiões, revela os autores supostamente plagiados por Alencar, numa lista que inclui Vinicius de Moraes, Alex Viany e Moniz Viana (FM/V, 21/nov/52, p.6 e 05/dez/52, p.6). Sobre a volta de Duarte Neto, “depois de uma longa ausência”, Renata prevê que ele dará sequência “à série interminável de conselhos e previsões apocalípticas” e, em tom de falsa admiração, comenta: “e como ele fala bem dos filmes que não assistiu!” (FM/V, 29/jul/52, p.5). Ao receber carta do leitor “Dardo”, reclamando por ela falar pouco sobre cinema, detendo-se em criticar os colegas, Renata argumenta que prefere não escrever sobre os péssimos filmes em exibição e que, através dela, o público poderá saber de “fatinhos pitorescos, tolices” (FM/V, 04/nov/52, p.6). Quanto ao que acredita ser a função da crônica de cinema, Renata escreve que o crítico “explica para o público, em linguagem mais ou menos acessível, os efeitos técnicos e artísticos da película que está sendo projetada em tal casa de espetáculos. Compete aos leitores ler e seguir ou não o conselho do colunista. (...) A função do crítico deve ou não limitar-se à crítica do filme? Sou de opinião contrária, por vários motivos. (...) Ele deve falar também das condições em que se encontram as instalações onde o filme está sendo exibido; deve falar no tratamento dispensado, pelo dono da Casa, ao público; deve bater-se pela estabilização do preço do ingresso; enfim, aconselhar esse ou aquele detalhe.” (FM/V, 30/jul/52, p.5) À princípio, a reação de Ralph/Alencar à chegada da nova “colega” parece ser amistosa, a julgar por seu acolhimento cúmplice e bem-humorado à estreia “brilhante” de Renata: “Dona de um estilo fluente, saboroso, de imaginação, bom senso e sobretudo muito humor (...) assinando algumas das coisas mais deliciosas que tenho lido na vasta literatura sobre cinema, ultimamente.” (JC, 01/ago/52, p.4) L. também embarca no jogo, dizendo acreditar que o nome seja verdadeiro e que Renata Cardoso exista mesmo. Saúda a nova colega em nome da classe, que é “pequena, bastante desunida, e esta colunista nela conta com sólidas e espontâneas desafeições” (DP, 31/jul/52, p.6). Mas as “desafeições” só vieram depois do episódio envolvendo uma foto de Simão, o Caolho entregue pessoalmente por Alberto Cavalcanti a Alexandrino Rocha, mas publicada na coluna de Renata Cardoso (pseudônimo de Rocha) como se “ela” a tivesse recebido das mãos do cineasta. Indignado, Ralph agora se refere a antes “brilhante” colega como uma “personagem fictícia, feita especialmente para produzir confusão e ridicularias”, condenando: “Que Renata Cardoso e Alexandrino brinquem de esconde-esconde quando procuram ridicularizar os colegas do batente está certo, mas por favor não incluam pessoas de responsabilidades em suas brincadeiras de mau gosto e pouco recomendáveis.” (JC, 26/ago/52, p.4)

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Em sua coluna “Cinelândia”, no Diário da Noite, Luiz Vieira vai além, identificando na atuação de Renata Cardoso uma “campanha para levar ao descrédito a crônica cinematográfica do Recife”. Enquanto os cronistas de Salvador permanecem unidos, participando do cineclube local, o terceiro do Brasil, em Recife “com exceção de uma reduzida minoria, o panorama geral é de confusão, de deliberação para lançar o descrédito e o ridículo numa crônica que começa a se firmar na opinião do público.” (DN, 28/ago/52, p.8) Renata tenta explicar o mal-entendido na crônica “Ralph e Alexandrino”, onde nega ser o cronista Alexandrino Rocha, mas reconhece que não chegou a encontrar pessoalmente com Cavalcanti, como afirmava a legenda da foto de Simão, o Caolho. Segundo Renata, seu nome apareceu “graças a uma brincadeira do organizador desta Seção”. Quanto a pseudônimos, “o sr. Ralph seria o último a poder falar no caso” (FM/V, 27/ago/52, p.5). Declarações de Alexandrino esclarecendo o “equívoco” são publicadas na Folha da Manhã (Vespertina) (28/ago/52, p.5) e no Jornal Pequeno (27/ago/52, p.4). Até que, finalmente, L. assume “inteira responsabilidade pela pérfida legenda”. Diante da reação de Alencar, que ameaça “desancar Alexandrino pelos jornais”, L. conclui: “Se você vai ficar zangado com alguém, este alguém tem de ser este velho ‘L.’, seu Alencar. Mas por que cargas d’água vai você ficar zangado com uma pilhéria feita ao Alexandrino e não a você!” (DP, 29/ago/52, p.6) A esterilidade de polêmicas nas quais o cinema passa ao largo das discussões, dando espaço às susceptibilidades e aos ressentimentos dos envolvidos, motiva o jornalista Aparício Catunda a escrever sobre a crônica de cinema local: “(...) uma surpreendente geração espontânea de ‘experts’, superlotando as páginas dos nossos matutinos e vespertinos, causando confusão em lugar da ordem, imitando, fugindo à finalidade da crítica, e deixando o público sem uma orientação segura. (...) Hoje temos nada menos de dez cronistas para cinco jornais que, de vez em quando, ‘polemizam’ por despeito ou infantilidade, substituindo o cinema até mesmo por assuntos femininos.” (DN, 26/set/52, p.8) As divergências, no entanto, não impedem que surja a ideia de formar uma associação de cronistas cinematográficos. Quem apresenta a sugestão, no final de 1951, é o cronista L.: “A cidade está cheia de cronistas de cinema. Verificando isso, um companheiro de batente propõe (penso que a sério) a fundação de um grêmio que reúna os atuais - e impeça a proliferação da espécie que ele, no íntimo, considera altamente perniciosa aos interesses do público, desde que só lhe recomenda filmes herméticos (ver Citizen Kane) e impõe excomunhão infalível aos ‘hits’ que o povo saboreia.” (DP, 22/dez/51, p.6) Mas L. acredita que ainda é pequeno o número de cronistas para se formar um clube (mesmo depois de escrever que a cidade “está cheia de cronistas de cinema”). Ele

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cita os sete em atividade: Alencar, Ralph, Mauro, Paulo Fernando Craveiro, Ângelo de Agostini, Alexandrino e ele próprio. Segundo o “companheiro” que sugeriu a ideia do clube, nele deve haver “uma porção de setores”: uma sala para Craveiro com um retrato do “mestre” Vinicius de Moraes; outra sala para Mauro e Alexandrino com a tabuleta “Aqui repousam os homens definitivos da crônica”, pois “com eles é pão, pão, queijo, queijo”; e outra sala para a dupla Ralph e Alencar - esse último, inclusive, “pode se gabar de ter chefiado há dois anos o movimento de recuperação da crítica cinematográfica no Recife” (idem, ibidem). Craveiro compra a ideia, que segundo ele merece uma acolhida digna. Apenas ressalta que a associação não deve vedar o aparecimento de novos cronistas, mas congregar os observadores da cidade, defendendo seus interesses (FM/V, 04/jan/52, p.4). Em outra crônica, Craveiro aceita com bom humor a sala - com a foto de Vinicius - que lhe foi “designada” pelo “amigo do batente” de L. e promete desenvolvê-la, apesar do seu atual “desequilíbrio financeiro” (FM/V, 10/jan/52, p.4). O projeto da Associação, entretanto, não vai adiante e só volta à tona quase seis meses depois, desta vez encabeçado por Alexandrino Rocha e Ângelo de Agostini. Novamente, Craveiro defende a ideia: “Caso haja uma perfeita compreensão e colaboração de todos os militantes do ambiente cinematográfico da província, não teremos dúvidas quanto ao sucesso da associação. Isenta de política, má vontade, desorganização e outros elementos negativos coesos geralmente a empresas desse quilate, brevemente podemos realizar em bases sólidas a união em conjecturas, caso contrário teremos apenas a lamentar mais um fracasso entre as coisas de cinema da nossa terra.” (FM/V, 25/jun/52, p.5) A próxima referência à Associação vem em setembro, em nota não assinada (provavelmente Craveiro), informando que Alencar, Alexandrino e Craveiro conversam “acerca de se concretizar a ideia da Associação dos Cronistas Cinematográficos de Pernambuco. Porém nada ficou acertado. O que está faltando é interesse.” (FM/V, 22/set/52, p.5) No mês seguinte, outra nota de Craveiro fala da futura sucursal recifense da Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos, que terá como “provável presidente” Alexandrino Rocha (FM/V, 15/out/52, p. 6). Mas a ideia não se concretiza e, ao longo dos anos 50, encontramos apenas outras três referências a uma associação de cronistas. No final de 1954, Jomard Muniz de Britto escreve nota sobre a reunião dos cronistas para “discussão das bases em que se fundamenta a sua associação”. A diretoria eleita é composta por Ângelo de Agostini (presidente), Mircio Miranda (vice); Jomard (primeiro secretário); Celso Marconi (segundo secretário); e Boris Trindade (tesoureiro) (DP, 05/nov/54, p.6). Pouco depois, a Associação Pernambucana de Cronistas Cinematográficos envia correspondência datada de 16 de dezembro ao crítico Pedro Lima, da revista O Cruzeiro, comunicando a fundação da entidade que “pretende congregar todas as pessoas militantes em seções especializadas ou mesmo que

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escrevem avulsamente”. De acordo com a carta, o presidente da Associação é Ângelo de Agostini e o 1º secretário, Celso Marconi 4. No ano seguinte, Ralph escreve nota se desligando publicamente da Associação, na qual foi “incluído como sócio”, porque “depois de um curto período experimental constato que não vale a pena”. Ele pede para que não coloquem seu nome na lista apresentada aos donos de cinema para conseguir permanente (JC, 14/jan/55, p.6). Ao que tudo indica, a Associação exerceu por pouco tempo suas atividades. Em dezembro, Ralph comenta a atitude de um grupo de “meninos” que pretende “ressuscitar a extinta e impraticável Associação de Cronistas Cinematográficos”, a fim de conseguir novos permanentes para 1956 (JC, 30/dez/55, p.6). Em relação a associações, congressos e festivais que acontecem em outras partes do país, o comportamento da crônica recifense é basicamente observar à distância, sem maiores envolvimentos diretos. Enquanto Duarte Neto, por exemplo, critica a “batalha política” na qual se transformou o Festival de Cinema do Rio de Janeiro, com comunistas de um lado e anticomunistas de outro (DN, 24/mar/52, p.3), L. por sua vez escreve com entusiasmo sobre o 1º Congresso Nacional de Cinema que considera “uma urgente solução para alguns dos mais prementes problemas do cinema nacional” (DP, 30/mar/52, p.6). Esse mesmo Congresso ganha reportagem na Folha da Manhã (Vespertina), que traz entrevistas com as atrizes Fada Santoro e Ilka Soares e com o cineasta Moacir Fenelon, presidente da Comissão do evento (FM/V, 07/out/52, p.6). O cronista Ralph chega a elogiar a atuação da Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos (que logo estaria entre os organizadores do 1º Congresso Nacional de Cinema Brasileiro), identificando aí um “novo impulso” para a cinematografia brasileira (JC, 02/ago/52, p.4). Em outra crônica sobre o interesse no Brasil pelo cinema, Ralph destaca a organização de festivais como um dos principais pontos deste “movimento renovador” (JC, 03/ago/52, p.4). Mas depois da realização do Congresso, a opinião de Ralph se modifica radicalmente e a simpatia inicial dá lugar à crítica mais ferrenha. Ele garante que o encontro “quase não teve repercussão no Recife, como no nordeste do Brasil” e esse esquecimento “é salutar desde que não acreditamos no valor e nas finalidades deste 1º Congresso” (JC, 03/out/52, p.4). A seguir, Ralph envereda num discurso sobre as necessidades do cinema brasileiro - que “não precisa mais de discussões”, mas “de quem se decida a trabalhar” -, demonstrando forte influência das ideias de Cavalcanti (de quem Ralph/Alencar é assistente em O Canto do Mar), cujo projeto do Instituto Nacional de Cinema (INC) recebeu críticas sistemáticas durante o Congresso. O afastamento de Ralph não só em relação ao Congresso, mas também à atuação da Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos é reforçado na crônica sobre a Primeira Retrospectiva do Cinema Brasileiro, promovida no final do ano em São Paulo, que contará com uma palestra de abertura de Cavalcanti sobre o cinema brasileiro e o INC. Segundo Ralph, o “Festival do Cinema Brasileiro” (como o cronista se refere ao evento) “favorecerá a reunião, em São Paulo, dos dissidentes da ABCC, para debater a estrutura e a criação do Círculo de Críticos de Cinema, entidade independente da ABCC e que deverá abranger jornalistas especializados de todo o país.” (JC, 29/out/52, p.4) 4

Arquivo pessoal de Pedro Lima, depositado na Cinemateca Brasileira.

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Notícias esparsas dão conta da realização do Festival de Cinema da Bienal, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (FM/V, 14/jan/52, pp. 02 e 10); da Retrospectiva do Cinema Silencioso, promovida pelo Círculo de Estudos Cinematográficos (JC, 13/jul/52, 2ª Seção, p.1); e dos preparativos para o I Festival Internacional de Cinema do Brasil, que acontecerá em fevereiro de 1954 em São Paulo (FM/V, 01/ago/52, p.5; JC, 22/nov/53, 2ª Seção, p.7; e DP, 08/dez/53, p.6). No final de 1953, Duarte Neto escreve sobre o 1º Festival de Cinema do Distrito Federal, que acompanhou pessoalmente. Sua opinião já vem resumida no título da matéria: “Um ‘Festival’ sem cinema e muito voto comprado” (FM/V, 28/nov/53, p.5). As raras participações de cronistas recifenses em eventos nacionais; as visitas ocasionais ao longo dos anos 50 de Luiz Alípio de Barros (do Círculo de Estudos Cinematográficos do Rio de Janeiro) e de Caio Scheiby (da Cinemateca do MAM/SP, futura Cinemateca Brasileira); o intercâmbio com cronistas de outras cidades do nordeste; e eventuais correspondências trocadas com os colegas de regiões mais distantes são os contatos mais diretos que podemos observar (a partir dos textos dos jornais que pesquisamos) entre os cronistas locais e a crônica de outros estados. O trânsito de informação se dá bem mais através de leituras (jornais, revistas) do que através do contato pessoal. Se por um lado detectamos um certo isolamento da província, por outro encontramos no circuito cinematográfico local um quadro semelhante ao que acontece em vários outros pontos do país: uma euforia em relação aos “assuntos cinematográficos” que se manifesta não só no vigor da crônica especializada, que conquista seu espaço junto aos leitores, como também na formação de cineclubes e círculos de estudos, na organização de festivais, cursos e palestras. O rádio também dá sua contribuição à cena cinematográfica local. Além do programa apresentado diariamente na Rádio Clube pelo cronista Ângelo de Agostini e de “Epopeia do Cinema” apresentado por Jota Soares aos sábados na Rádio Tamandaré, a partir de fevereiro de 1952 vai ao ar todos os domingos na Rádio Jornal do Commercio o programa “Cinelândia”, saudado por Ralph como “a tentativa mais séria que já se fez no rádio nordestino, em matéria de assuntos cinematográficos” (DN, 05/fev/52, p.4). Isso sem contar com os horários reservados pela Igreja Católica às orientações cinematográficas (que veremos mais adiante). À frente do “Cinelândia”, “nomes de entendidos conceituados como Teófilo de Barros, cineasta teórico e prático da cinematografia nacional”; Luiz Felipe Vieira, que possui amplo arquivo; e Ademar Lima, responsável pela seleção musical. Na descrição de Ralph, o primeiro programa “começou com uma pequena resenha crítica sobre os filmes em exibição nos cinemas lançadores”; depois veio a entrevista com Jota Soares, seguida de “notas técnicas e tiradas da história do cinema, biografia de um ator” e lançamento de um concurso (JC, 05/fev/52, p.4). As entrevistas do “Cinelândia” ganham regularmente as páginas da imprensa, através dos cronistas que reproduzem suas próprias declarações ou as de colegas. A lista dos convidados do programa inclui: L., Duarte Neto, José de Sousa Alencar, Jorge Abrantes, José Laurênio de Melo e Valdir Coelho. O mercado exibidor, entretanto, parece não acompanhar todo esse entusiasmo. E os cronistas não se cansam de reclamar do baixo nível da programação, especialmente nos cinco cinemas “lançadores”. A inauguração do luxuoso Cine São Luiz (no dia 06 de setembro de 1952) não altera o quadro, já que, com sua inclusão, o Boa Vista passa à categoria de “segunda linha”. As salas lançadoras permanecem, então, em número de

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cinco: Art Palácio e Trianon, do grupo Hugo Sorrentino, representado por Gunter Bohn; São Luiz, Parque e Moderno, do grupo Severiano Ribeiro (FM/V, 09/out/52, p.6). O cronista L. não se conforma com a “lastimável organização dos programas oferecidos aos fãs da cidade nos nossos melhores cinemas”, com “reprises injustificáveis e lançamentos cretinos”. Para piorar a situação, do final de maio até aquele momento o Trianon “está relegado à posição de ‘reprisador’”. Os bons filmes, segundo L., deixam de ser exibidos por não terem a mesma bilheteria de certas reprises e estreias de qualidade inferior (DP, 06/jun/53, p.6). Vez por outra, os cronistas comentam as precárias condições das salas. Como a irônica referência de Craveiro ao Trianon, que chama de “furna do diabo” por causa da ventilação deficiente (FM/V, 10/jan/52, p.4). Ou as considerações de Jorge Abrantes em torno do cinema Roial, famoso por ter exibido os filmes do Ciclo do Recife, mas agora conhecido como o “poeira”, com péssima fama quanto à moralidade e ao conforto. Na opinião de Abrantes, o cinema deveria se dedicar às sessões “passatempo”, que têm “freguesia certa no Rio” (DN, 09/fev/53, p.3). Com a programação do circuito comercial deixando a desejar, abre-se espaço para eventos alternativos que supram o desejo de um público ansioso por ampliar sua “cultura cinematográfica”. Nesse sentido, o grande acontecimento de 1952 é a Semana do Filme Francês, promovida pelo cronista José de Sousa Alencar, o cinegrafista Romain Lesage e Jean Orechioni, com a colaboração do Cine Clube do Recife e do Cine Clube Vigilanti Cura. Incluindo filmes de ficção e documentários, sempre acompanhados de palestras, e com data marcada inicialmente para a última semana de agosto, a Semana do Filme Francês apresenta a seguinte programação: No Cinema da Rádio Clube de Pernambuco: . Dia 24 - Les Parents Terribles, de Jean Cocteau. Apresentação de Jean Orecchioni. No Gabinete Português de Leitura: . Dia 25 - La Bête Humaine, de Jean Renoir, e o documentário Les Chateaux de la Loire. Apresentação do dr. José Césio Regueira Costa. . Dia 26 - Les Dames du Bois de Boulogne, de Robert Bresson, e o documentário Barrage de la Girotte. Apresentação Jorge Abrantes. . Dia 27 - Le Ciel Est à Vous, de Jean Grémillon, e os documentários Le Vampire e L’Effort Medical Français. Apresentação de Romain Lesage. . Dia 28 - La Belle et la Bête (que entrou no lugar de Orphée), de Jean Cocteau, e um documentário a cores sobre a cidade de Paris. Apresentação de André Gustavo Carneiro Leão. . Dia 29 - início da apresentação de documentários, incluindo-se os filmes poéticos e sobre assuntos variados. Apresentação de José de Sousa Alencar. . Dia 30 - exibição dos documentários sobre arte. Apresentação do sr. Paul-Antoine Evin. O Círculo Católico, primeiro local escolhido para sediar o evento, recusa-se a ceder suas instalações, alegando a “imoralidade” dos filmes franceses. Lamentando o motivo apresentado pelo Círculo, L. lembra que a maioria dos filmes programados são documentários e curtas-metragens, entre eles O Evangelho da Pedra. E, entre os longas, está Les Dames du Bois de Boulogne, do cineasta “reconhecidamente católico” Robert Bresson. L. vê nessa recusa “o mal muito brasileiro da generalização”. Se algumas películas francesas são “picantes”, não quer dizer que o cinema francês seja imoral (DP, 09/ago/52, p.6).

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Editoriais do Diário da Noite dedicam-se a elogiar a Semana, “uma das mais interessantes iniciativas já realizadas no Recife, em matéria de cinema” (DN, 06/ago/52, p.3), cujo programa é “do mais fino gosto intelectual e artístico” (DN, 08/ago/52), acompanhando de perto as dificuldades encontradas pelos organizadores. A morte do então governador Agamenon Magalhães adia em uma semana o início da exibição dos filmes. Mas o adiamento não chega a comprometer o grande sucesso alcançado pelo primeiro dia da Semana. Quem conta é Renata Cardoso: “Quem foi domingo à Rádio Clube notou que a crítica especializada exerce, de fato nos dias que correm, uma certa influência sobre o público. Nada mais lisonjeiro, para nós, do que isso. Uma verdadeira multidão acorreu às dependências do Palácio do Rádio Oscar Moreira Pinto, abrilhantando com sua presença a feliz iniciativa da realização da Semana do Filme Francês.” (FM/V, 02/set/52, p.5) Enquanto Renata critica a primeira película exibida, Les Parents Terribles, mas não deixa de parabenizar os “promotores da festa”, Craveiro observa que com o “soporífero” filme de Cocteau a Semana começou “muito mal mesmo” (idem, ibidem). A frequência do público, no entanto, contradiz as expectativas negativas de Craveiro. Outro Editorial do Diário da Noite registra o sucesso da Semana, a tal ponto que os organizadores tiveram que “desdobrar” as sessões, realizando duas por dia, às 18h e 20h. O êxito prova “o prestígio que o cinema desfruta hoje em dia” (DN, 03/set/52, p.3). Mas nem todos compartilham tamanho entusiasmo. Ao escrever sobre a sessão de La Bête Humaine, Craveiro critica a desorganização da Semana: superlotação, projeção precária, sala improvisada. Na sua opinião, a grande maioria do público compareceu porque o evento é de graça. Renata Cardoso comenta as figuras que viu na “irrequieta tela do Gabinete Português de Leitura”, porque “entender o que elas diziam não foi possível”. Além do filme não ter legendas, “o aparelho de som estava péssimo”. Ela sugere a distribuição de convites: “o conforto é um grande fator para o sucesso” (idem, ibidem). Duarte Neto ironiza a ausência de legendas, afinal “um filme francês é sobretudo legenda” (DN, 05/set/52, p.3). Para contornar as deficiências técnicas, os organizadores conseguem da Mesbla “aparelhos e operadores, eliminando assim os intervalos existentes entre as partes” (FM/V, 04/set/52, p.5). O último Editorial do Diário da Noite sobre a Semana lamenta a baixa frequência no dia em que só foram exibidos documentários. Relaciona os filmes: Bateau Ivre (sobre Rimbaud), Pacific 231 (“visualização” da peça musical de Arthur Honegger), La Rose et le Roseda (poema de Aragon) e o “natural” sobre a região da Touraine (DN, 08/set/52, p.3). No final da Semana do Filme Francês, Alencar faz o balanço do evento: “Excedendo às mais otimistas das expectativas, esta pequena amostra da arte cinematográfica vem confirmar a importância que o cinema assume e conquista em cada dia que passa. (...) a Semana do Filme Francês tem um duplo significado: divulgar a eficiência, o valor cultural e artístico da cinematografia francesa, e compensar o erro de distribuição, facilitando o contato com as películas francesas.” (DP, 07/set/52, 2ª Seção, p.3)

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Alencar faz uma lista dos “pecados” da Semana: filmes que não chegaram a tempo, “pequenos desarranjos em máquinas”, atrasos no início das sessões, falta de controle com o grande número de pessoas que compareceram. “Felizmente, tudo foi decorrente do sucesso”, avalia. Promete para o próximo ano um “novo festival mais amplo e eficiente” (idem, ibidem). Mas ficou na promessa. A Semana do Filme Francês talvez seja o apogeu de um trabalho de formação de um público interessado nos chamados “filmes de arte” - e não importa se as pessoas compareceram por interesse, mera curiosidade ou em busca de um programa gratuito. Elas compareceram. Na base desse trabalho, está a atuação dos cineclubes. O primeiro a surgir no Recife do pós-guerra é o Clube de Cinema. Em março de 1950, o Diário de Pernambuco publica a nota: “Clube de Cinema - A Diretoria de Documentação torna público que será realizado hoje, 9 do corrente, às 17h, no nono andar do edifício dos Bancários, a reunião inicial para a fundação de um Clube de Cinema nesta cidade. Além de todas as pessoas interessadas no assunto convida especialmente as que adiante são relacionadas: Luiz Felipe Vieira, Geraldo dos Santos Alves, Aloisio Bezerra Coutinho, Lucilo Varejão Filho, Jota Soares, os cronistas cinematográficos Benício Whatley, Walter Mota, Frutuoso Coelho, Firmo Neto, Alexandre Berzin, Delson Lima, Luiz Andrade, Paulo do Couto Malta (...), Marcelo Pessoa, José Laurênio de Melo, Galba Pragana, Ariano Suassuna (...), Mauro Lauria (...), Clênio Wanderley, Sebastião Vasconcelos, Berguedof Eliot (...).” (DP, 09/mar/50, p.6) Realizada na Discoteca Pública Municipal da Diretoria de Documentação e Cultura, a reunião contou com “inúmeras pessoas que se interessam pelos assuntos cinematográficos em nossa cidade”, aclamando uma “junta provisória” para a elaboração dos estatutos, composta por José Césio Regueira Costa, Hermilo Borba Filho, Jota Soares, Berguedof Eliot, José Laurênio de Melo e Firmo Neto. A próxima reunião é marcada para o dia 30, “quando deverão ser aprovados os estatutos e eleita a diretoria que deverá comandar os destinos da sociedade durante o corrente ano” (DP, 11/mar/50, p.6). A diretoria escolhida no dia 30 conta com Laurênio Lins Lima, presidente; Gastão de Holanda, vice-presidente; Berguedof Eliot, secretário; Orlando Ferreira, tesoureiro (DP, 05/abr/50, p.6). No dia 13, a diretoria reune-se novamente para adotar “várias providências de caráter administrativo”, entre as quais as nomeações dos “srs. Hermilo Borba Filho, Ernani Cerdeira, Genivaldo Vanderlei e Jorge Abrantes para exercerem, respectivamente, as funções de diretor técnico, bibliotecário, filmotecário e diretor de propaganda” (DP, 16/abr/50, p.6). A sessão inaugural do Clube de Cinema acontece às 20h do dia 28 de abril, uma sexta-feira, no Teatro do Derby. No programa, o “Festival de Cinema Pernambucano”, com a exibição de dois filmes do Ciclo do Recife: Aitaré da Praia (direção de Gentil Roiz, 1925) e Jurando Vingar (direção de Ary Severo, 1925) (DP, 23/abr/50, p.6). A primeira exibição regular para os sócios é anunciada para o dia 09 de maio, com a apresentação de Três Dias de Amor (direção de René Clément, 1949), com Jean Gabin e Isa Miranda. Informa-se ainda que a mensalidade dá direito a quatro espetáculos por mês, com mais de um acompanhante (idem, ibidem). A partir de maio as sessões acontecem regularmente às terças-feiras e, nos jornais, o nome “Clube de Cinema” dá lugar ao “Cine Clube do Recife” - como fica

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sendo chamada a organização daí por diante. O cancelamento de algumas sessões indica as dificuldades de programação. Ao informar pela terceira vez que não haverá sessão, o Cine Clube explica o motivo: “por impossibilidade de ser conseguido um filme que preencha as finalidades artísticas a que se propõe o referido Clube” (DP, 13/jul/50, p.4). Com exceção dos dois filmes pernambucanos exibidos na inauguração, o cinema brasileiro não marca presença na programação do Cine Clube. A preferência recai em produções norte-americanas, entre outras razões pela maior facilidade em adquirir as cópias em 16mm. Entre os filmes apresentados durante o ano de 1950, estão: O Fantasma Camarada (direção de René Clair, 1935), Alma em Suplício (direção de Michael Curtiz, 1945), Adúltera (direção de Claude Autant-Lara, 1947), A Bela e a Fera (direção de Jean Cocteau, 1946), O Grande Segredo (direção de Fritz Lang, 1946), Obsessão (direção de Luchino Visconti, 1942), O Condenado (direção de Carol Reed, 1947), Anjo Perverso (direção de Henri-Georges Clouzot, 1949) e Ivy, a História de uma Mulher (direção de Sam Wood, 1947). O Cine Clube do Recife chega ao primeiro ano de atividade promovendo um concurso de crônicas em torno do filme O Silêncio é de Ouro (direção de René Clair, 1947), cuja exibição no dia 01 de maio comemora o aniversário (JC, 28/abr/51, p.2). O primeiro lugar fica com Juvenal Félix (que viria a integrar o elenco de cronistas locais, escrevendo eventualmente para alguns jornais) e o segundo, com Amauri Catão (DP, 27/maio/51, 2ª Seção, p.4). Desde abril, fala-se na realização, em setembro, de um festival organizado pelo Cine Clube, sob o patrocínio da Diretoria de Documentação e Cultura e com a colaboração do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Seriam exibidos filmes antigos do Recife, produções inéditas e filmes cedidos por outras instituições (DP, 27/abr/51, p.6). Quase no final do ano, Alencar comenta o festival que acontecerá em janeiro de 1952 (11/nov/51, 2ª Seção, p.2). Finalmente, no ano seguinte, Craveiro lamenta que o Festival de Cinema não tenha se concretizado e aponta como as “razões do desmoronamento” do festival “o restringimento monetário, a inércia dos seus organizadores, ou o alheamento e má vontade dos que pretendiam fazer a festa sobre cinema” (FM/V, 10/jan/52, p.4). No início de 1952, Ralph (programador e membro do CCR) informa os planos do Cine Clube para o novo ano: conferências sobre cinema e uma revista especializada, além da exibição regular de filmes antigos e/ou inéditos (JC, 17/jan/52, p.2). A primeira palestra, “Hemingway e o cinema”, acontece em fevereiro, trazendo Luiz Alípio de Barros, presidente do Círculo de Estudos Cinematográficos do Rio de Janeiro (FM/V, 08/fev/52, p.4). Mas a essa palestra não se seguem outras, tampouco acontece o lançamento de uma revista ou a exibição regular de filmes pouco conhecidos. O Cine Clube do Recife consegue manter uma programação semanal constante - e é a isso que se resume, basicamente, sua atuação. Quando L. critica a situação, Alencar defende-se, em entrevista ao “Cinelândia”, alegando que o número de sócios ainda é pequeno, daí a falta de verbas para organizar eventos, distribuir críticas dos filmes exibidos, etc. Para L., a solução é “ampliar os quadros sociais da entidade; trazer para ela os favores dos poderes públicos (...); além da colaboração de todos” (DP, 25/mar/52, p.6). No balanço de 1952, Duarte refere-se, de passagem, à “decadência” do Cine Clube do Recife (DN, 13/jan/53, p.3). Mas em abril, ele é mais categórico, sugerindo: “vamos fechar o Cine Clube”. Segundo Duarte, que vem escutando inúmeras reclamações dos sócios, essa é a melhor solução diante dos graves problemas da entidade, na qual um dos auxiliares “pacífica e sorrateiramente foi absorvendo todos os

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poderes e implantou uma ditatura que se vem prolongando até hoje” (FM/V, 17/abr/53, p.6). A “decadência” observada por Duarte tranforma-se em “agonia” nas palavras de Mauro, que escreve a crônica “Agoniza o Cine Clube do Recife”, recapitulando desde a fundação - com o apoio da PM, que cedeu a sala de projeção - até a deterioração da aparelhagem e consequente debanda dos sócios. O Comando da PM responde aos apelos, garantindo que “já se encontram a caminho os materiais necessários a uma completa reforma”. Mauro alerta: “Se não for tomada uma providência séria e urgente, dentro de mais três meses, se tanto, seremos obrigados a fechar as portas. O que será uma pena, pois assim perderemos a oportunidade de vermos os filmes que marcaram época na história do Cinema, ao mesmo tempo que damos mais uma prova de que tudo que se faz nesta terra em benefício da cultura tem poucas probabilidades de viver.” (FM/M, 23/abr/53, p.11) Não foram necessários os três meses previstos por Mauro. Uma semana depois, Ralph comunica o fim do cineclube, devido às péssimas instalações, poucos sócios, falta de apoio financeiro. E acrescenta: “É lamentável que isto tenha acontecido. Quando o cineclube de Salvador com mais de mil sócios promove conferências, publicações e festivais, quando Aracaju funda um Clube de Cinema e consegue clássicos da cinematografia (em colaboração com a filmoteca do Museu de Arte de São Paulo) para exibir, quando João Pessoa, através de José Rafael de Menezes, discute os estatutos para uma futura associação cinematográfica, o Recife perde o seu Cine Clube.” (JC, 30/abr/53, p.4) O mesmo Duarte Neto que havia proposto o fechamento do CCR se diz surpreendido com a notícia divulgada por Ralph. Na crônica “E o Cine Clube fechou”, ele acusa Ralph, secretário do Cine Clube, de agir por conta própria, suspendendo as exibições sem convocar qualquer assembleia para debater a questão. Para Duarte, se não houve conferências, publicação de revistas, realização de festivais, aumento do número de sócios - como aconteceu nos cineclubes de outros estados - é porque o próprio Cine Clube não tratou de promover esses eventos, nem se empenhou na propaganda e na divulgação. Ele assegura que não faltou apoio oficial: a Diretoria de Documentação e Cultura cedeu o espaço, pagou mensalidades, prontificou-se a auxiliar na realização de um festival. Alegando que os estatutos não foram obedecidos, Duarte critica Ralph por ter agido como “único responsável, e, talvez, o proprietário do Cine Clube” (DN, 09/maio/53, p.3). A tentativa de retomar as atividades do cineclube tem início logo em seguida através do sócio de primeira hora Marcelo Pessoa. Em carta publicada na coluna de L., Pessoa procura, através de um discurso exaltado, mobilizar o público para salvar o Cine Clube do Recife que “não morreu nem vai morrer; porque, afinal, não pertence ele nem a A nem a B, mas a todos os que o idealizaram e o tornaram uma realidade”. Ele condena a decisão “apressada” (“para não dizer mesmo leviana”) e a falta de “coragem de trabalhar e de investir contra o marasmo e a rotina” (DP, 17/maio/53, p.6). A iniciativa de Pessoa parece surtir efeito, aliada à pressão exercida pela Diretoria de Documentação e Cultura, que pede a devolução do patrimônio caso o Cine

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Clube venha mesmo a encerrar suas atividades. O presidente do CCR, Hermilo Borba Filho, convoca os associados para uma reunião no Auditório da Discoteca Pública Municipal da DDC, “com a finalidade de reestruturar a mencionada associação, com eleição de nova diretoria e a escolha do novo local onde possa continuar as suas atividades” (FM/M, 21/maio/53, p.11). Mas à reunião comparecem apenas Hermilo, Marcelo Pessoa e Duarte Neto - como conta o cronista Duarte, que convoca os sócios a votar em Pessoa para a presidência do CCR nas próximas eleições (FM/V, 29/maio/53, p.6). Até outubro, nada se resolve. Hermilo Borba Filho segue para São Paulo, deixando sem solução o “caso” do Cine Clube do Recife. Segundo Duarte Neto, Hermilo só aceitou a presidência “com a condição expressa de não fazer força, e foi um mal para ele”, porque “na hora precisa, todos os seus auxiliares o abandonaram”, deixando-o com todas as responsabilidades. Ainda segundo Duarte, o Cine Clube deve “mil e tantos cruzeiros” a uma companhia cinematográfica e “outros tantos cruzeiros” à Editora da Casa do Estudante, do Rio, por livros recebidos. No total, os débitos somam “mais ou menos cinco mil cruzeiros”, de acordo com os cálculos do cronista. Ele chama a público o encarregado dos livros do Cine Clube (não cita nomes, mas se trata de Alencar) para uma prestação de contas (FM/V, 05/out/53, p.4). No final do mês, Ralph informa a provável volta do Cine Clube do Recife, “graças ao idealismo e esforço de Marcelo Pessoa e ao apoio prometido pelo Departamento de Documentação e Cultura”. A nova diretoria eleita é composta por Jorge Abrantes, presidente; Isaac Gondim Filho, vice; Marcelo Pessoa, secretário; Antônio Paulo do R. Pereira, tesoureiro (JC, 17/out/53, p.4). Um Editorial do Diário da Noite dá conta que o grupo de sócios e amigos do CCR já conseguiu, “a título precário”, o Auditório Tamandaré (outra nota fala do “antigo auditório ‘B’” da Rádio Tamandaré, no 3º andar do Diário de Pernambuco - DP, 25/out/53, p.6) para exibição de filmes que, espera-se, sejam de “interesse real” e não apenas reprises comerciais (DN, 27/out/53, p.3). Finalmente, no dia 30 de novembro, o Cine Clube do Recife reinicia suas atividades, desta vez no auditório do Colégio Estadual de Pernambuco (a sede “definitiva”), exibindo documentários franceses e o filme Vítimas do Destino, de Julien Duvivier 5 (JC, 02/dez/53, p.4). Não se fala mais em promover eventos e publicações. A simples regularização da programação semanal já se configura como um projeto dos mais ambiciosos. Enquanto o Cine Clube do Recife amarga crises sucessivas, o Cine Clube Vigilanti Cura expande sua atuação. Criado em meados de 1951, apoiado na sólida estrutura do Serviço de Cinema da Liga Operária Católica (LOC), o Vigilanti promove debates, círculos de estudos, cursos de cinema e palestras, além da exibição de filmes. À frente do cineclube, estão Valdir Coelho, Vicente Vanderley, Marilda Vasconcelos, Jomard Muniz de Britto e Lauro de Oliveira. A ênfase nas discussões e debates indica a preocupação do Vigilanti em orientar o público. Em entrevista ao programa “Cinelândia”, o diretor Valdir Coelho expõe a tensão provocada pela capacidade de influência dos filmes, ao responder a pergunta “O que mais lhe impressiona no cinema?”:

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Não encontramos esse título em português na filmografia de Duvivier. Cf. EWALD FILHO, Rubens. Dicionário de cineastas. Porto Alegre, L&PM, 1988.

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“O seu mágico poder de sugestão no espectador. Quando bem feito, um filme pode levar-nos a sentir e sofrer com os seus intérpretes. Por isso a necessidade de que o cinema seja bem orientado. No Círculo de Estudos Cinematográficos do Vigilanti Cura temos estudado como certos filmes falseiam inteiramente a verdade, fazendo com que o espectador desprevenido ache tudo normal. O que mais me impressiona no Cinema é o seu poder de sugestão que, em minha opinião, somente pode ser combatido pela aquisição de uma maior cultura cinematográfica.” (JC, 10/jul/52, p.2) (grifo nosso) Se identificarmos na opinião de Coelho as diretrizes do Vigilanti, observamos que o trabalho do cineclube não encara a formação da cultura cinematográfica como um fim, mas como instrumento de orientação no sentido da compreensão adequada, da recepção correta do que é mostrado e sugerido na tela. Em outras palavras, instruir o público para melhor se defender da magia e do poder sugestivo do cinema. Em outro trecho da entrevista, publicado na coluna de L., Coelho rebate as críticas que o Vigilanti vem recebendo. Ele admite que, no início, exibiram filmes “sem nenhum valor artístico”, mas garante que os próximos lotes terão uma escolha “mais criteriosa”. Coelho explica a posição do cineclube: “As críticas que nos tem sido dirigidas por pessoas que ignoram nosso ponto de vista não têm razão de ser. Julgam que exigimos, para exibir um filme, que seja apenas recomendável. Isto é falso. Jamais exibiremos filmes como Jesus de Nazaré ou Rei dos Reis, O Milagre dos Sinos ou Sublime Ideal. Fazemos questão que os filmes tenham boa qualidade artística e moral. Achamos que uma película com argumento moralmente bom, mas executada numa linguagem cinematográfica deficiente é comparável a um livro de grande função moralizadora, mas escrito num estilo desagradável e cheio de erros (...) Não queremos fazer do Vigilanti Cura um grêmio para exibição de sermões filmados. Deus nos livre disso. O cinema jamais deverá assumir o aspecto de um pregador. Queremos apenas que os filmes contenham argumentos construtivos ou, ao menos, que não destruam. E que, ao lado disso, eduque como Arte, como técnica cinematográfica (...).” (DP, 19/jun/52, p.6) Uma das iniciativas mais caras ao Vigilanti é o “Cine-Forum”, instituído em janeiro de 1953. Trata-se da exibição de um filme seguida por um debate orientado por “monitores”. Inaugurando a “Coluna do leitor” da Folha da Manhã (Vespertina) (espaço para que assuntos artísticos sejam tratados por jovens “que se iniciam e que muito têm a dizer a respeito dos seus pontos de vista”), J. José Muniz de Britto, “estudante do Colégio Estadual de Pernambuco e membro do Círculo de Estudos Cinematográficos, com 15 anos de idade”, escreve sobre a primeira sessão do “CineForum”. Antes da projeção de Desencanto (direção de David Lean, 1945), houve uma apresentação feita por Jomard (o J. que assina o artigo) e Celso Marconi Lins. Eles definem a Sessão Cine-Forum como “uma realização para incentivar o gosto do público pelo bom cinema. É um debate do próprio público, sob a nossa orientação, sobre os pontos positivos e negativos do filme em questão. Escolhemos Desencanto por tratar-se de um filme muito elogiado em todo mundo por suas qualidades técnicas, artísticas e morais.” (FM/V, 02/mar/53, p.6)

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Definindo em termos de “utilíssima” a primeira reunião do “Cine-Forum”, Valdir Coelho também escreve sobre o evento, estimando que apenas 15 das 80 pessoas que compareceram “tomaram parte ativa nos debates”. A análise de Desencanto obedeceu à seguinte ordem: “qual o tema, julgamento do mesmo, análise do cenário, do ritmo visual, do ritmo musical, da interpretação e da fotografia. Após os debates, foi tomada uma conclusão final”. Segundo Coelho, houve uma “grande disparidade de opiniões”: “se alguns acharam o filme com ‘uma belíssima mensagem cristã’, outros julgaram-no ‘indigno de ser exibido em um cineclube católico’”. Com aprovação da maioria, o “Cine-Forum” passa a ser realizado mensalmente (DP, 03/fev/53, p.6). Revelando o desejo de uma penetração mais abrangente, que não se restrinja ao público católico, o Vigilanti proclama inúmeras vezes sua autonomia em relação à orientação da Igreja (até apresenta filme “indigno” de ser exibido em um cineclube católico). Mas isso não impede que o cineclube mantenha inalterável o compromisso diante da instituição da qual faz parte - uma postura percebida nitidamente na preocupação em analisar moralmente os filmes, levando em conta seus pontos “negativos” e “positivos”. Na prática, a “autonomia” do Vigilanti não se comprova, como fica claro por exemplo no texto divulgado na Seção Religiosa do Jornal do Commercio, no qual a LOC “apoia e recomenda a todos a frequência às sessões do Cine Clube Vigilanti Cura do Recife que, embora não seja um serviço da Ação Católica, só exibe filmes de comprovado valor moral e artístico.” (JC, 12/fev/52, p.12) Nesse mesmo texto, a LOC afirma apoiar “todas as iniciativas que venham a incentivar o Cinema, tanto artística quanto moralmente”. Lembra, entretanto, “que a arte não deve nunca ir de encontro à Moral, porque então não será arte verdadeira” (idem, ibidem). A “autonomia” do Vigilanti será colocada em questão em dois momentos, especialmente: na recusa em sediar a Semana do Filme Francês devido à “imoralidade” das obras programadas e na polêmica em torno da possível junção do Vigilanti com o Cine Clube do Recife (que veremos mais adiante). De qualquer forma, com maior ou menor autonomia, o Vigilanti Cura integra o amplo e bem estruturado programa da Igreja Católica dedicado à orientação do público nas questões de cinema - um programa com espaços consolidados na imprensa e no rádio. A coluna “A que filmes assistirei, esta semana?”, publicada regularmente na Seção Religiosa do Jornal do Commercio, traz a cotação moral dos filmes em cartaz. A própria seção se encarrega de justificar porque as indicações devem ser seguidas: “Quando você vai assistir a um mau filme escandaliza os outros porque não se pode conceber que um católico, que tem a obrigação de ser a ‘luz do mundo’, o ‘sal da terra’, dê o mau exemplo. Ora, dirão os outros, fulano que é tão católico foi ver tal filme, por que eu não posso vê-lo? Você já pensou que também é responsável pelo seu próximo e que com o seu mau exemplo, poderá arrastá-lo até a perdição eterna? Será que ainda vale a pena ver um mau filme? (Divulgação do Departamento Arquidiocesano de Cinema e Teatro da Ação Católica Brasileira).” (JC, 02/mar/50, p.12) (grifos do texto) Mas as atividades relacionadas ao cinema promovidas pela LOC não se restringem às cotações morais, como faz questão de frisar o longo e informativo texto

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publicado na coluna de L. no Diário de Pernambuco sobre a “LOC e cinema”. Funcionando há dez anos (“embora com outras denominações”), a organização tem “grandes planos: cursos de cinema - cineclubes nos colégios - conferências e palestras sobre cinema - formação dos espectadores por todos os meios ao nosso alcance”, além da “campanha pela observância das leis de proteção à Infância e Juventude” que vem desenvolvendo “com eficácia graças ao apoio das autoridades e de jornalistas como L. do Diário de Pernambuco” (DP, 09/out/52, p.6). A LOC também presta “auxílio” a exibidores e distribuidores: “Aos exibidores orienta na escolha dos filmes, recomendando não só os moralmente aceitáveis mas também os que terão possibilidades de dar lucros, de acordo com a cidade em que serão exibidos. Aos distribuidores tem fornecido a relação dos bons filmes em seu poder, o que sobremodo lhes facilita a realização de contratos com os cinemas católicos.” (Idem, ibidem) O Serviço de Cinema mantém coluna semanal no Jornal do Commercio e em A Tribuna, onde informa a cotação moral dos filmes em exibição nas cidades de Recife, Olinda, Jaboatão, Tiúma e Escada. Na Rádio Tamandaré, apresenta programa às segundas e domingos, trazendo cotações e comentários sobre cinema. A LOC dispõe também de um serviço de orientação para formação de cineclubes, prestando “informações de toda ordem aos interessados”. O texto não esquece de citar a realização de palestras, conferências e eventos como a Exposição de Cinema Católico (“franco sucesso”) e o Círculo de Estudos Cinematográficos, fundado sob a orientação da LOC, que “vem contribuindo para formar uma equipe de críticos e de bons espectadores de filmes”. No final, o Serviço de Cinema informa seu endereço e telefone, colocando-se “à disposição de todos, gratuitamente (...) para prestar qualquer ajuda ou informação nos setores acima indicados” (idem, ibidem). Como reconhece o texto da LOC, a coluna de L. é espaço privilegiado para divulgação das ideias e das atividades da Igreja na área cinematográfica. Com frequência, o cronista transcreve na íntegra matérias enviadas pela LOC ou passa a palavra aos colaboradores Valdir Coelho e Jomard Muniz de Britto, figuras-chave nos quadros do Vigilanti, que escrevem sobre o cineclube, comentam filmes em cartaz ou discutem temas ligados à militância católica. Ao abordar a censura, por exemplo, L. reproduz trecho de um boletim do Serviço de Cinema da Ação Católica (SCAC), no qual a organização admite “matizes” na classificação de filmes, que podem variar entre os países, devido à diferença de cultura, de educação, mas “nos pontos básicos e essenciais em relação aos preceitos fundamentais da moral cristã não há duas maneiras de ver: o suicídio, o roubo, o adultério, o divórcio, a obscenidade ostensiva, o nudismo integral.” (DP, 22/jul/52, p.6) Algum tempo depois do encerramento da Exposição de Cinema Católico - que acontece entre 29 de junho e 06 de julho de 1952, em comemoração ao 16º aniversário da encíclica Vigilanti Cura -, L. publica o balanço realizado pelo Serviço de Cinema: mais de 500 pessoas visitaram a Exposição e uma média de 80 assistentes frequentaram as palestras. Entre os treze itens que integram as “Conclusões” tiradas nos “animados debates” após as palestras, destacam-se:

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“conseguir que os exibidores excluam das matinês infantis trailers de filmes impróprios ou pouco decentes”; “denunciar ao Serviço de Censura às Diversões Públicas ou ao Juizado de Menores todas as infrações às leis de proteção à Infância e Juventude”; “conseguir que os cinemas católicos observem as cotações morais, retirando de suas telas ao menos os filmes cotados como ‘só para adultos de sólida formação’ e ‘condenados’.” (DP, 16/ago/52, p.6) De acordo com a matéria, o Serviço de Cinema “conta também com o apoio dos críticos de cinema José de Sousa Alencar e dr. Luís de Andrade, aos quais certamente unir-se-ão os demais componentes da crítica especializada” (idem, ibidem). Em outra ocasião, a LOC divulga na coluna de L. os dez mandamentos do militante católico do cinema, uma adaptação “para o nosso meio” dos “10 Comandements pour les militants du film catholique”, publicado pela Associação Católica do Filme, de Viena. São eles: “1º - Recrutar sócios para o cineclube Vigilanti Cura do Recife e frequentadores para o seu Círculo de Estudos Cinematográficos. Quanto mais numerosos forem os frequentadores do CEC, mais poderosa será a palavra que poderá dizer em relação ao Cinema contemporâneo. Ler sempre as cotações de filmes publicadas n’A Tribuna e no Jornal do Commercio. “2º - Recortar estas cotações morais, afixando-as nos quadros de avisos das Igrejas, colégio, hoteis e casas comerciais. “3º - Inscrever-se como crítico no Círculo de Estudos Cinematográficos. “4º - Fundar um cineclube paroquial. São necessárias apenas 3 pessoas para fundar um clube de cinema, a fim de discutir o filme lançado no cinema do bairro ou no do centro. (Um cineclube não é, necessariamente, um exibidor de filmes, mas uma associação para estudar cinema) “5º - Juntamente com os membros do cineclube paroquial ou sozinho, levantar a situação local: há cinemas? Quais os filmes que são exibidos nele? (Comunicálos semanalmente ao Serviço de Cinema da LOC) Quem é o proprietário? Se possível, estabelecer contato com ele. “6º - Esforçar-se para influenciar na programação do cinema local. Naturalmente por meios legítimos. Mas, se necessário, por enérgicos protestos. “7º - Organizar ou suscitar conferências e palestras de iniciação ao Cinema e aos filmes em sessões de estudo para o público ou nas associações religiosas e esportivas, especialmente as de juventude. Se necessário, solicitar conferências ao Serviço de Cinema da LOC. “8º - Organizar ou suscitar programações especiais de filmes culturais e religiosos. Dirigir-se ao Serviço de Cinema da LOC, que facilitará os trabalhos. “9º - Como cineasta amador, preferir motivos religiosos para estas sessões, das festas, por exemplo. Frequentar assiduamente o Círculo de Estudos Cinematográficos. “10º - Dar uma atenção especial à questão ‘Juventude e Cinema’. Fazer com que sejam observadas as leis de interdição aos filmes impróprios, por exemplo.” (DP, 19/out/52, p.6) Sempre colaborando com o Serviço de Cinema da Ação Católica, L. passa a divulgar, a partir do segundo semestre de 1953, “sumárias noções (...) sobre aspectos peculiares da sétima arte, que a todos fãs interessa conhecer” (DP, 08/ago/53, p.6).

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Entre outros temas, fala-se sobre a função do diretor (idem, ibidem), o “significado da imagem” (DP, 26/set/53, p.6), os efeitos sonoros (DP, 28/set/53, p.6), a cor e a Terceira Dimensão (DP, 30/set/53, p.6), “plástica” e “beleza visual” (DP, 01/out/53, p.6), o ritmo (DP, 03/out/53, p.6), a fotografia (DP, 05/dez/53, p.6). A colaboração de Valdir Coelho vai dos textos sobre o Vigilanti e o circuito católico em geral às resenhas dos filmes em exibição, além de intervenções diversas como o pedido de redução do preço dos ingressos (DP, 14/nov/52, p.6) ou o protesto contra a presença de crianças de até cinco anos nas salas de cinema (DP, 19/dez/52, p.6). Seguindo à risca os mandamentos da LOC, Coelho não descuida da moralidade e chega a insistir mais de uma vez junto ao Serviço de Censura às Diversões Públicas para que seja revisto o certificado de censura livre para A Ponte de Waterloo (direção de Mervyn LeRoy, 1940). Afinal, o filme mostra a trajetória de uma moça “honesta” que vira prostituta e acaba por matar-se. O suicídio mostrado como “A SOLUÇÃO” ou como natural é combatido por Coelho, que pede censura 14 anos (DP, 06 e 19/nov/52, p.6). A atuação da Igreja na área cinematográfica não se dá sem conflitos relacionados, basicamente, a questões de censura. Um desses conflitos, que acontece em nível nacional, repercute também na imprensa recifense. Um texto não assinado ocupa a coluna de L., rebatendo o artigo de Pedro Lima em O Cruzeiro, no qual ele lastima o fato de o Ministério da Justiça ter autorizado o Circuito de Cinemas Católicos de São Bernardo a exibir os filmes nacionais considerados de “boa qualidade”, somente quando aprovados pela censura católica. Para Lima, estaria se criando um duplo serviço de censura, permitindo que os “maus cinematografistas” [no caso, refere-se aos exibidores] se filiem ao Circuito Católico e escapem do decreto de obrigatoriedade (DP, 26/nov/52, p.6). O texto na coluna de L. argumenta que esses “cinematografistas” não estão dispostos a assumir os compromissos exigidos pelo Circuito Católico, e certamente não iriam se recusar a exibir filmes de bilheteria, mas proibidos, como Arroz Amargo (direção de Giuseppe De Santis, 1948). O prejuízo financeiro, portanto, não compensaria a entrada no Circuito Católico. No que se refere ao cinema nacional, o texto só lamenta que o Circuito não seja mais poderoso porque aí sim a medida influiria na produção de filmes brasileiros, “tornando-os mais de acordo com a moral, com o que seriam aprovados pela censura católica” (idem, ibidem). A propósito do Circuito de Cinemas Católicos, que conta com 11 salões afiliados, Valdir Coelho classifica de “inteiramente absurda” a ideia, colocada por um amigo, de que o Circuito pretende concorrer com os exibidores estabelecidos. Coelho pergunta como uns cineminhas, em 16mm, com 100 lugares ou um pouco mais, podem concorrer com uma sala de 800 lugares, confortável, em 35mm. Além disso, convém lembrar que os filmes em 16mm só são alugados depois que suas cópias em 35mm já percorreram os cinemas comuns. Filmes em exibição nos cinemas próximos às salas de 16mm também não são alugados. A finalidade do Circuito, segundo Coelho, é “facilitar aos proprietários de pequenos salões a programação de filmes, conseguindo-se a preços razoáveis, aquisição de máquinas e acessórios em melhores condições, cuidar da legalização do seu cinema, etc.” (DP, 06/nov/53, p.6) Outro momento de conflito entre a Igreja e a crônica especializada, desta vez local, acontece em torno do filme italiano OK Nerone, cuja exibição provoca pedidos

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de censura por parte de grupos católicos (DP, 20/set/53, p.6). Sobre a atitude da Ação Católica em condenar o filme, Valdir Coelho lamenta que só agora os católicos do Recife tenham tido a coragem e a oportunidade para “lançar um protesto desta natureza” (DP, 22/set/53, p.6). Os protestos surtem efeito. Atendendo aos pedidos de “dezenas de associações católicas desta cidade”, o Juizado de Menores baixa portaria mudando a censura de OK Nerone de 14 para “impróprio para menores de 18 anos” (DN, 28/set/53, p.6). Comentando o episódio, Ralph sugere que a censura católica “talvez tenha se excedido” desta vez, já que o filme “nada apresenta de pornográfico ou imoral”. Conclui: “OK Nerone é um filme artisticamente falho, esta é a verdade. Quanto à sua moral nada encontramos que possa diferenciá-lo de tantos outros filmes exibidos regular e discretamente.” (JC, 15/set/53, p.4) No dia seguinte, vem a resposta do Serviço de Cinema da Ação Católica - na mesma coluna e com maior número de linhas - ao artigo de Ralph. Depois de elogios ao cronista (“consagrado crítico”, “tido por muitos como o mais abalisado da cidade”), o golpe: “Que os CRÍTICOS CINEMATOGRÁFICOS se limitem às suas atividades, são os nossos votos. Deixem o campo da MORAL e da CENSURA RELIGIOSA aos que dele estão encarregados pela autoridade arquidiocesana.” (JC, 16/set/53, p.4) A reação dos profissionais da imprensa não tarda. O cronista de assuntos gerais, Dias da Silva, defende o ponto de vista exposto por Ralph. Este por sua vez agradece ao colega por ter feito “apreciações honestas e lúcidas, sem deturpar frases, ou viciar ideias e conceitos” (JC, 20/set/53, p.4). Provocativa, a resenha assinada por Luciano Converso elogia OK Nerone pelas “suas excepcionais qualidades artísticas, pela alegria e despreocupação que vos oferecerá”. Trata-se de uma “sátira deliciosa”, com a presença da bela Silvana Pampanini (JC, 20/set/53, 2ª Seção, p.6). E até mesmo o cronista L., fiel aliado da LOC e seu serviço de cinema, critica a atuação das entidades católicas e judiciárias, que asseguraram ao filme “um êxito que ele normalmente não poderia obter” (DP, 02/out/53, p.6). Pouco tempo depois, a Ação Católica demonstra que as considerações de L. não foram em vão. Quando Jomard Muniz de Britto reclama censura a É Fogo na Roupa (filme “deprimente, vil e sem nenhum valor técnico ou artístico” - DP, 27/out/53, p.5), o SCAC observa que o filme é “tão ridículo que não merece a reação pedida pelo sr. Jomard, pois isto, sim, seria fazer propaganda” (DP, 02/dez/53, p.6). Quanto a Ralph, depois de publicar uma notinha registrando que a censura americana (“das mais rigorosas”) liberou OK Nerone (JC, 25/set/53, p.4), escreve o que diz ser sua última crônica sobre o assunto. Ele lembra seu direito de falar sobre o filme, “usando de um privilégio que me cabe como cronista cinematográfico, e de um direito que possuo como membro de uma democracia”. Ralph escreve ter estranhado “a maneira da Ação Católica, que tanto admiro pela maneira liberal, inteligente e sensata de agir, reagir contra o direito que tenho de expressar-me sobre

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qualquer assunto, sobretudo quando apenas ‘ousava’ discordar da maneira como a campanha era feita, e não de sua finalidade.” (JC, 01/out/53, p.4) Citando com frequência as iniciais V.C. [Valdir Coelho], Ralph identifica por trás desta polêmica “pessoas desejosas de aparecer, (...) de pedir colunas emprestadas, de achincalhar cronistas cinematográficos” (idem, ibidem). Atingido, Valdir Coelho ressente-se dos “ataques pessoais” de Ralph, que sequer merecem resposta (DP, 10/out/53, p.6). Como consequência imediata da polêmica, Alencar deixa de participar do curso de arte cinematográfica promovido pelo SCAC - no qual falaria sobre “Arte e técnica cinematográfica” -, “devido a motivos de ordem particular” (DP, 24/set/53, p.6). No ano seguinte, Ralph volta a comentar o episódio, referindo-se ao “‘censor nº um’ do Recife”: “Porque ‘ousei’ defender a exibição de OK Nerone fui alvo dos desaforos de um moralista mal orientado que, sem prestígio pessoal, usou o nome de associações católicas para desferir os seus ataques. Fiquei quieto, certo de que a iniciativa do rapaz seria permanente. Entretanto, passada a fase escandalosa da exibição do filme tudo voltou à surpreendente indiferença de antes.” (JC, 21/jul/54, p.4) A julgar pelo tom pessoal que toma a polêmica entre Ralph e o SCAC, tudo indica que é Valdir Coelho o responsável pela redação do texto divulgado pela Ação Católica, aconselhando os críticos a não interferir nos assuntos da Moral e da Censura Religiosa. Texto que guarda semelhanças com a resposta de Valdir Coelho às críticas de Duarte Neto sobre o próximo Curso de Arte Cinematográfica, promovido pela LOC, que segundo ele visa formar “entendidos e futuros críticos, apenas por 50 cruzeiros” (DN, 02/out/52, p.3). Coelho rebate nos seguintes termos: “Seria mais interessante que o sr. Duarte Neto usasse da pena para dar alguma sugestão positiva, para melhorar um pouco o que tão ineficientemente estamos promovendo. Não nos parece ser tarefa de um CRÍTICO meter no ridículo uma iniciativa como esta, a primeira feita entre nós procurando divulgar seriamente conhecimentos sobre cinema.” (DP, 04/out/52, p.6) Não é só a utilização de palavra em destaque que aproxima essa resposta de Coelho a Duarte àquela dirigida pelo SCAC a Ralph. Nas duas prevalece a mesma atitude normativa, que impõe uma determinada conduta a ser seguida pelos cronistas. Antes do episódio envolvendo a censura de OK Nerone, uma ruidosa polêmica também contrapõe a crônica especializada à militância católica. Tudo começa em meados de 1953 quando Duarte Neto propõe, como saída para a crise do Cine Clube do Recife, a junção com o Vigilanti Cura. L. publica texto de Jomard Muniz de Britto sobre a “junção provisória” sugerida por Duarte, que irá depender “de um acordo quanto à programação e outros detalhes”. Jomard se prontifica a colaborar na tentativa de reabertura do CCR, ressaltando, entretanto, que não pertence à diretoria do Vigilanti nem exerce influência sobre ela (DP, 11/ago/53, p.6). Reservado, L. apenas registra a sugestão de Duarte, encarregado de distribuir os convites de uma sessão, promovida pelo Vigilanti, que será aberta aos sócios do CCR (DP, 19/ago/53, p.6). Segundo Valdir Coelho, o recém-criado Conselho Deliberativo do Vigilanti aprovou a “possível junção”, portanto quem se afastou do CCR por não

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concordar com a antiga orientação, “não tem mais motivos para tal” (DP, 21/ago/53, p.6). A polêmica se instaura quando Mauro publica a crônica “Uma união pouco proveitosa”, que sai exatamente no dia da sessão de cinema organizada pelo Vigilanti Cura para os sócios do CCR, “no sentido de se verificar a possibilidade de se unir àquela agremiação o Cine Clube do Recife”, até que se possa retomar suas atividades independentemente. Mauro expõe, sem reservas, seu ponto de vista: “Sou absolutamente contrário à ideia e assim me defino não apenas como sócio do CCR como também um dos seus membros da direção, de vez que ocupei o cargo de secretário em seus últimos meses de vida. E se assim falo é porque antevejo que esta união será maléfica para a possível ressurreição do Cine Clube do Recife. Escorado no Vigilanti Cura, feneceria gradualmente todo interesse no sentido de realevantamento do CCR. “Isto por um lado. Por outro, poderiam surgir, depois, graves inconvenientes de várias ordens, devidos à mudança de diretores, que poderiam não olhar com bons olhos as nossas intervenções na escolha dos programas. Isto porque, não adianta negar, apesar de se julgar uma associação independente, que não possui ligações com este ou aquele grupo, o Vigilanti Cura se encontra sobejamente ligado a uma facção religiosa, onde membros do clero e simpatizantes têm considerável influência. Diante do Fato, não é possível se admitir uma ligação entre um clube de cinema absolutamente independente como o CCR, e uma associação visceralmente sectária como o Vigilanti.” (FM/M, 22/ago/53, p.11) Na segunda parte da crônica, Mauro reitera sua posição, mesmo sem saber os resultados da reunião. Ele insiste: “O Cine Clube Vigilanti Cura, não se esqueçam, é uma associação intimamente ligada a uma facção religiosa, que possui normas rígidas e arcaicas acerca do que sejam formas de expressão e Arte. Os regulamentos e as múltiplas ordens a que estão sujeitos os que nele militam são de ordem a limitar as suas atividades e as suas preferências. Um organismo de tal ordem, jamais poderá propugnar independências mental e artística. E como é que uma organização absolutamente independente como o Cine Clube do Recife poderá se adaptar a semelhante situação? Como se poderia proceder à escolha de filmes se em todas as vezes em que se tivesse de fazê-lo, os diretores do Vigilanti afirmassem: ‘este não pode ser, porque há uma encíclica contra’, ou então, ‘este também não, porque é condenado pela Liga de moral, fé, etc’? Com que cara ficaríamos nós, do CCR, que estávamos lá de encosto, quando isto acontecesse? Nada poderíamos reclamar, porque estaríamos na condição de parentes recebidos DE FAVOR, em casa de primos mais afortunados, ao mesmo tempo que a nossa independência, o maior patrimônio, ficaria reduzido a pedaços. Que se pense noutra solução qualquer, mas que não venha, como esta, pôr em perigo a indispensável e absoluta liberdade de escolha, como havia no Cine Clube do Recife.” (FM/M, 27/ago/53, p.11) Se no caso OK Nerone Valdir Coelho rebate as críticas de Ralph no papel de militante católico - fazendo as vezes de um assessor de imprensa da LOC e do SCAC aqui ele fala também como diretor do Vigilanti. Coelho repudia a expressão

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“visceralmente sectária”, utilizada por Mauro para caracterizar o Vigilanti, que já exibiu “até” filmes protestantes, e que “não leva em conta o caráter religioso de um filme”, nem faz restrição religiosa a seus sócios”. Coelho nega a influência do Clero no Vigilanti, que exibe “QUALQUER película, desde que tenha boas qualidades artística e moral, isto é, que não seja indecente” (DP, 27/ago/53, p.6). Mais ou menos nestes mesmos termos segue a resposta do Conselho Deliberativo do Vigilanti Cura, reproduzida na coluna de L. (DP, 29/ago/53, p.6). Ao se propor a responder “ponto por ponto” as duas crônicas de Mauro, Valdir Coelho faz questão de ressaltar, antes de tudo, que mantém “boas relações de amizade com os principais críticos do Recife” e que essa disputa é “apenas por questões ideológicas”. Ele avisa que a união entre os dois cineclubes não acontecerá “pelo simples fato de que o número de sócios do Cine Clube do Recife que compareceu à sessão experimental não foi suficiente, dentro do mínimo exigido”. A única vantagem dessa polêmica será o “esclarecimento das ideias e objetivos” do Vigilanti, que “sairá dele mais conhecido e melhor compreendido”. Coelho desafia Mauro a apontar sectarismo num clube que exibe filmes como Ninotchka (direção de Ernst Lubitsch, 1939), Farrapo Humano (direção de Billy Wilder, 1945) e Desencanto, que contêm elementos “condenados” pela Igreja (DP, 04/set/53, p.6). Na sua última crônica sobre o episódio, Coelho cita filmes que serão apresentados pelo Vigilanti - Pânico nas Ruas (direção de Elia Kazan, 1950), Ninho de Abutres, Fui Comunista para o FBI (direção de Gordon Douglas, 1951) -, lembrando que o cineclube já exibiu películas protestantes, de ideias contrárias àquelas que eles, do Vigilanti, professam. “Enquanto nós argumentamos com FATOS, ele [Mauro] tenta responder com hipóteses”, afirma Coelho, ressaltando que uma encíclica não condena determinado filme, apenas fornece uma “orientação geral”. De qualquer maneira, para os católicos, seja no Oriente ou no Ocidente, os 10 mandamentos são os mesmos. Coelho pergunta se, em nome “da tão decantada liberdade”, eles seriam “obrigados” a exibir A Besta Humana (direção de Jean Renoir, 1938) e Êxtase (direção de Gustav Machaty, 1933). Mauro não esquece de reprovar a atitude de “um colega da crônica cinematográfica” [Duarte Neto], antigo sócio do Cine Clube do Recife, que “deixou de prestar valiosos serviços à entidade” porque “não possuía relações de amizade com um dos seus mais proeminentes elementos”. O colega “se manteve à distância, assistindo à agonia, sem esboçar nenhum gesto, nem apresentar nenhuma ideia, para evitar o fechamento que cedo se deu”. Em vez disto, apresentou “uma proposta que (...) não solucionará o problema” (FM/M, 28/ago/53, p.11). Respondendo à questão colocada por Valdir Coelho - alguém pode ser taxado de intolerante, pelo simples fato de ser religioso? -, Mauro escreve: “(...) se se trata de pessoa, não é defeito pertencer a nenhuma organização de caráter religioso, porém se se trata de uma entidade qualquer, cuja missão precípua é divulgar uma arte, cujas atividades devem ser absolutamente independentes de qualquer religião, então a coisa muda de figura. (...) Não tem importância que os diretores do Vigilanti Cura sejam católicos ou pertençam a qualquer das centenas de seitas conhecidas. O que não é admissível é que a formação religiosa de cada um deles se faça presente nas diretrizes da organização.” (FM/M, 01/set/53, p.11) (grifo do texto)

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A propósito do argumento de “imoral”, lançado pela Igreja para condenar um filme, Mauro considera: “Cinema é Arte, não pode e nem deve sofrer restrições em nome de nenhuma moral. Se um filme possui qualidades cinematográficas comprovadas, deixa de pertencer a qualquer facção, de ser moral ou imoral. (...) O Vigilanti Cura se diz uma instituição livre, mas de saída assegura-se o direito de barrar todo filme que for imoral!... (...) basta mostrar como agem os membros do Conselho do CCVCR quanto à seleção, pela base Moral (é de se morrer de rir...) para que se note como aquela associação é independente.” (FM/M, 01/set/53, p.11) Curiosamente, o mesmo Mauro havia comentado no ano anterior o filme francês Olivia, que aborda o lesbianismo e “tem requintes dignos de um Sade”, e concluído: “um grande fracasso como cinema e uma vergonha como Moral” (FM/M, 11/out/52, p.11). No rastro dos precursores Cine Clube do Recife e Vigilanti Cura surgem outros cineclubes. No primeiro semestre de 1954, Valdir Coelho contabiliza seis cineclubes na cidade: Cine Clube do Recife, Vigilanti Cura, Cine Clube do Estudante Universitário, Cine Clube Universitário (CICLU), Cine Clube do Náutico e o Clube de Cinema do Iate. Coelho registra a fundação da União Regional dos Cine Clubes, que pretende unir os clubes de cinema do nordeste “em um trabalho de defesa e divulgação da arte cinematográfica”, a fim de “manter um intercâmbio efetivo entre si e com museus e filmotecas do Brasil e do exterior” (DP, 05/maio/54, p.6). Além dos cineclubes citados por Coelho, Recife conta também (em diferentes épocas ao longo dos anos 50 e com atividades nem sempre regulares) com as sessões de cinema promovidas pela AIP (Associação de Imprensa de Pernambuco) - que tem o apoio da filmoteca da Mesbla S/A -; por paróquias como a da Soledade e das Graças; por colégios (Nóbrega e Osvaldo Cruz, por exemplo); por clubes sociais (Iate, Náutico, Internacional, Português); por diretórios acadêmicos como o de Direito e Arquitetura. A cidade de Caruaru, no interior do estado, ganha seu cineclube em 1955, organizado por Ivan Soares. No ano seguinte, ao comemorar seu primeiro aniversário, o Cine Clube de Caruaru promove palestras e exposição de livros e revistas de cinema. O cronista Ralph, um dos palestrantes, comenta: “Enquanto o Cine Clube do Recife desapareceu, o de Caruaru continua firme” (JC, 14/set/56, p.6). No final da década, o panorama chega a ser desolador. O desejo de um Cine Clube vem à tona, com o sucesso da exibição dos filmes apresentados no Recife por Caio Scheiby, da Cinemateca Brasileira. A presença do público mostrou que “existe ambiente no Recife para se voltar a falar na possibilidade de se fundar, mais uma vez, um Cine Clube”, conta Alex (pseudônimo adotado por José de Sousa Alencar no final da década para sua coluna social). Marcelo Pessoa chega a propor um cineclube bem exclusivo, para 50 ou 100 sócios, talvez patrocinado pela Escola de Arquitetura, cujo diretor é o crítico e filósofo Evaldo Coutinho. Com o Cine Clube, a Cinemateca Brasileira enviaria os filmes. Alex lamenta: “O movimento teatral vai de vento em popa, enquanto que, no setor cinema, temos de depender de filmes comerciais apresentados nas quatro casas exibidoras do centro.” (JC, 13/mar/60, p.6)

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Incentivado por Evaldo Coutinho, o Centro de Estudos Cinematográficos da Faculdade de Arquitetura conseguiu da Cinemateca Brasileira o compromisso de enviar “filmes clássicos do cinema” para exibição no Recife. A diretoria do Centro é formada por: Cláudio Marinho, presidente; Fernando Borba, vice; Augusto César Campos da Silva, secretário; e Cristina Jucá, bibliotecária (JC, 08/out/60, p.13). De volta à primeira metade dos anos 50, a cena cinematográfica local se completa com a presença de uma significativa produção de cinejornais e filmes amadores. Fundado em 1949, o Foto Cine Clube do Recife reúne os cinegrafistas amadores da cidade, promovendo encontros e concursos, além de participar do Cine-Filme, órgão oficial da Associação dos Cinegrafistas Amadores, editado mensalmente a partir de novembro de 1951. “Cresce o interesse pela fotografia e pelo cinema de amadores em Pernambuco”. É o título da matéria que o Jornal do Commercio publica em 1950 sobre o Foto Cine Clube, que cada dia tem mais sócios. Aos domingos, são organizadas excursões “nas quais os amadores estão registrando com suas câmeras os flagrantes mais pitorescos da paisagem e dos motivos regionais de Pernambuco” (JC, 15/out/50, 2ª Seção, p.6). As dificuldades ficam por conta da “barreira alfandegária”: eles reivindicam que o filme não comercial seja isento do pagamento de direitos alfandegários (DN, 23/ago/52, p.3). Um dos principais eventos promovidos pelos amadores do Recife, juntamente com a Associação de Cinegrafistas Amadores do Brasil (A.C.A.), é o I Concurso Nordestino de Cinegrafistas Amadores. Realizado no final de 1952, o Concurso tem o cineasta Alberto Cavalcanti na presidência do júri. Ao ser indagado se a qualidade dos filmes será boa, Cavalcanti responde: “Isto não é bem uma pergunta, é um pedido de palpite. Como só voltei ao Brasil há três anos, ainda não sou um mestre em profecias, que como você sabe é um hábito exclusivamente brasileiro.” (DN, 08/nov/52, pp.1 e 2) Em artigo sobre “Cine-amadorismo no Brasil”, Cavalcanti afirma ter se surpreendido ao encontrar no Recife “uma vasta atividade entre os cinegrafistas amadores”, comentando os trabalhos apresentados no Concurso que o impressionaram pela alta qualidade (JC, 26/abr/53, 2ª Seção, p.6). Na categoria “Documentário”, os vencedores do I Concurso foram: Alguns Dias em Bertioga, de São Paulo (1º lugar) e O Livro de Rosinha, de Armando Laroche, do Recife (2º lugar) (FM/V, 12/dez/52, p.6). Na categoria “Cenário” [roteiro], o primeiro lugar ficou com Du Crepuscule à l’Aube, de Lucien Chevalier, de Paris, e o segundo lugar, com Quando o Instinto Peca, de Nilson Mendes, do Recife (FM/V, 17/dez/52, p.6). Cocos e Coqueiros, de João Batista de Carvalho, do Recife ganhou a taça Estímulo (FM/V, 18/dez/52, p.6). Quando as produções premiadas vão ser exibidas na AIP, em sessão especial para os jornalistas e suas famílias, a nota no jornal informa que “os filmes foram confeccionados em 16mm, e são todos musicados e narrados” (FM/V, 23/dez/52, p.6). Em novembro de 1954, acontece o II Concurso Nordestino de Cinegrafistas Amadores, de âmbito internacional, promovido pela Associação de Cinegrafistas

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Amadores do Brasil (A.C.A.), que tem sua sede em Recife, em colaboração com o Foto Cine Clube do Recife e ainda “sob os auspícios” do Departamento de Documentação e Cultura (JC, 23/jul/54, p.4). O Grande Prêmio A.C.A. fica com o documentário Etapas do Velho Mundo, de Geraldo Junqueira, de São Paulo; Armando Laroche, duplamente agraciado, recebe o Prêmio Robatto por Asas Brancas, “filme folclórico” em cores, e também o Prêmio de Documentário com O Mundo de Mestre Vitalino que divide com Geraldo Junqueira de Oliveira e seu Terra do Fogo; o Prêmio Mesbla de Estímulo vai para o documentário Açúcar, de Adamir Menezes, de Pernambuco (JC, 26/nov/54, p.6). Presidente da A.C.A., Armando Laroche é uma das figuras de ponta do movimento de cineamadorismo local e nacional, ou, nas palavras de Ralph, um “autêntico cineasta”, um “pernambucano que tem coleção de prêmios em festivais internacionais de cinema amador” (JC, 26/ago/56, p.6). Alguns momentos da “coleção de prêmios de Laroche”: em 1953, recebe a Taça de Prata e o Prêmio de Documentário no Festival de Mônaco com O Livro de Rosinha (segundo lugar do I Concurso Nordestino de Cinegrafistas Amadores) (DP, 14/jun/53, 2ª Seção, p.5); em 1956, ele conquista o Grande Prêmio no Festival Internacional de Cinema Amador, na França, com Riacho dos Meus Sonhos; no ano seguinte, o Festival Internacional de Rapallo, na Suíça, premia dois filmes pernambucanos - Medalha de Ouro para Joãozinho de Goiana, de Laroche, e Medalha de Bronze para Fosfato para o Brasil, de Paulo Duarte e Elvio Della Nora - e uma produção paulista, Aquarela do Brasil, de Geraldo Junqueira, que fica com a Taça Societá Italia. Segundo Ralph, Laroche também ganhou prêmios em festivais internacionais (infelizmente o cronista não especifica quais) por Asas Brancas e Mestre Vitalino (JC, 26/ago/56, p.6) - este último uma produção em cores sobre os trabalhos em barro do artesão de Caruaru, com música de Nelson Ferreira e narração de Waldemar de Oliveira (DP, 09/ago/53, 2ª Seção, p.3). Através dos diversos concursos - nacionais e internacionais - e das sessões organizadas pelo Cine Foto Clube, os amadores têm garantido um circuito de exibição, restrito mas expressivo, para seus filmes. O mesmo não acontece com os cinegrafistas profissionais que produzem os cinejornais, que dependem de negociações com os exibidores do circuito comercial, Gunter Bohn (grupo Hugo Sorrentino) e Julio Campanha (grupo Luiz Severiano Ribeiro). L. retrata a situação: “Se o produtor chega a comover o coração de um desses representantes está salvo, e seu jornal vai para a tela. Em caso contrário, a mercadoria tem de ficar mofando dentro da lata.” (FM/V, 09/out/52, p.6) Principal cinematografista do Recife, Firmo Neto foi responsável por toda a parte técnica de Coelho Sai, primeiro filme sonoro de enredo produzido em Pernambuco, em 1942 (cf. ANEXO), conseguindo manter uma produção regular de curtas e médias metragens - entre documentários, institucionais e cinejornais. “Apadrinhado” por Paulo Germano Magalhães, deputado e diretor do jornal Folha da Manhã, Firmo realiza a partir de 1952 várias edições do cinejornal Folha da Manhã na Tela, através de sua Empresa Tropical Cinematográfica (ETC), com a colaboração de Ivan Seixas, responsável pelas legendas. A iniciativa merece total apoio de um entusiasmado L., que vê aí a possibilidade de se concretizar o que considera o procedimento ideal para a produção cinematográfica em Pernambuco. Antes do Folha da Manhã na Tela chegar aos cinemas, L. escreve uma crônica, defendendo a importância do cinejornal. Lembrando

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os filmes mudos de enredo produzidos no estado como uma exceção, uma “bela demonstração de audácia e loucura”, L. afirma que depois disso as intenções de rodar um longa em Pernambuco foram “com o propósito imediatista de ganhar dinheiro, embora para isso devesse produzir uma abominação do tipo Coelho Sai”. O cronista sugere que “devíamos refazer o caminho - começando pelos jornais cinematográficos”. Mesmo com o apoio do governo, estes jornais não seriam convertidos em “arma de propaganda administrativa ou política” e teriam de ser editados regularmente, “à razão de, no mínimo, dois por mês”. A produção pernambucana obedeceria à seguinte progressão: “Depois dos jornais, os shorts, o educativo, o documentário. E de filmes de enredo, nada - durante muito tempo!” (DP, 10/fev/52, p.6) Alguns meses depois, L. encontra-se com Firmo, fica sabendo que ele tem dois cinejornais prontos, sem ter sala onde exibi-los e, finalmente, acerta suas diferenças quanto a Coelho Sai: “No final das contas, somados, pesados e cotejados os argumentos, o cronista tinha razão: o mal de Coelho Sai fora a irresponsabilidade de quem o imaginara, a ponto de se rodar um filme de enredo, de longa-metragem, com a ação e os diálogos imaginados e criados no momento diante da câmera. Dessa improvisação teria de resultar um filme sórdido - e resultou. Numa coisa porém o cronista estava errado: a coelhada fora rodada sem o mínimo auxílio do governo estadual.” (DP, 25/maio/52, p.6) Esclarecida a má impressão deixada por Coelho Sai, L. torna-se o maior defensor do Folha da Manhã na Tela, do qual elogia a “constância” e o “bom gosto”, a “regularidade e honestidade”. Nada de improvisação, portanto. O cinejornal de Firmo “atende a uma aspiração generalizada, e talvez mesmo corresponda às exigências unânimes do nosso público cinematográfico” (DP, 24/jul/52, p.6). Um editorial do Diário da Noite vem confirmar, pelo menos em parte, as considerações de L., opinando sobre o Folha da Manhã na Tela: “É agradável, a despeito dos defeitos técnicos naturais numa atividade principiante, a gente ver na tela do Trianon um ‘natural’ sobre coisas recifenses, e que a gente sabe feito no Recife. “(...) Há muita gente que condena os ‘naturais’ brasileiros, obrigatórios por lei. Eles são interessantes inclusive pela sua função didática, pois ensinam o Brasil pela imagem.” (DN, 31/jul/52, p.3) A “aspiração generalizada” detectada por L. esbarra na desaprovação aos “naturais” e sua obrigatoriedade, como lembra o editorial. Nem por isso o cinejornal de Firmo deixa de ganhar, na época de sua estreia, elogios e incentivos por parte da imprensa. Na medida em que novas edições do Folha chegam aos cinemas, os elogios dão espaço às restrições, que se concentram principalmente na desatualização das “atualidades” de Firmo. Crítico ferrenho e incansável a Coelho Sai, L. torna-se defensor número um de Firmo em sua nova investida:

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“Se me dissessem há tempos que o Firmo Neto conseguiria chegar ao nº4 do seu jornal, eu teria um gesto qualquer indicativo de incurável ceticismo. “Mas chegou - e em grande estilo, eis a verdade. Algumas pessoas o têm empurrado para frente, outras para trás. Firmo se aguenta, e animado por igual com o estímulo dos amigos e com a má vontade dos que não lhe compreendem a coragem e o idealismo, prossegue fazendo com que Pernambuco tenha o seu jornal cinematográfico. “(...) A única restrição a fazer-se diria respeito ao fato de que, a rigor, os acontecimentos filmados não se incluem em determinado período de tempo. Não são ‘fatos da semana’, como seria o ideal, nem mesmo ‘fatos do mês’, o que o público não estranharia. A razão, porém, e amplamente justificativa, consiste em dificuldades de ordem técnica, entre elas a necessidade de fazer o jornal viajar para o Rio, a fim de receber o som.” (DP, 06/jan/53, p.6) Em outra crônica, L. volta a expor as dificuldades na finalização das reportagens que Firmo “realiza com tanto esforço e não menor senso artístico”. A saída vislumbrada por L. envolve a entrada em cena da iniciativa privada: “O ideal seria atrair para tal campo de atividades alguns dos capitalistas da terra. (...) Com essa cooperação, seria lícito esperar que a cinematografia do Recife, novamente incipiente, lograsse se autonomizar, lucrando, entre outras vantagens, a da rapidez na apresentação do Folha da Manhã na Tela.” (DP, 20/fev/53, p.6) Tais argumentos, L. irá reproduzir em suas considerações sobre o cinema brasileiro (como veremos no Capítulo 3). Encarando com reservas a participação do governo na produção cinematográfica (uma de suas críticas a Coelho Sai - que, por sinal, se revelou equivocada - seguia essa direção), L. propaga as vantagens da colaboração dos “capitalistas da terra”. Outro ponto fundamental para o cronista diz respeito à técnica. E também aqui Firmo é exemplo bem-sucedido. Sobre o jornal Pernambuco Perde seu Líder, que registra os funerais do governador Agamenon Magalhães, L. escreve: “Com esse sentido puramente reportageante, o jornal de Firmo Neto responde ao que daqui tantas vezes temos defendido como exigência do nosso progresso: a necessidade de estarmos aparelhados tecnicamente para fixar no celuloide todos os acontecimentos de importância, ocorridos no Recife.” (DP, 01/nov/52, p.6) O domínio da técnica é certamente um dos motivos pelos quais L. prioriza a realização de cinejornais, curtas e documentários para só então se chegar aos filmes de enredo. E é a valorização dos cinejornais que leva o cronista a colocar a competência do Folha como fator determinante no processo da “novamente incipiente” cinematografia do Recife. Ao contrário daqueles que vêem o termo “cinematografia” como sinônimo de produção de filmes de enredo. A produção do Folha da Manhã na Tela prossegue até o primeiro semestre de 1953, chegando até o número oito, além da edição especial, Pernambuco Perde seu Líder. O principal motivo da interrupção diz respeito ao fato do Governo ter

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“praticamente” cortado a importação de filme virgem, queixa-se Firmo Neto (FM/M, 08/abr/53, p.11). Entre os “temas” registrados nos cinejornais, encontramos: - Folha da Manhã na Tela Nº 1: rápida reportagem sobre as instalações do presídio da Ilha de Itamaracá; “interessantes” aspectos regionais colhidos na tradicional festa de Prazeres. - Folha da Manhã na Tela Nº 2: disputa no Prado da Madalena do Grande Prêmio Cidade do Recife; Olimpíada do Centro de Preparação dos Oficiais da Reserva; visita de Getúlio Vargas a CHESF; detalhes do incêndio de um batelão de óleo em Afogados; tomadas de vista da chamada batalha da pavimentação “que constitui uma grandiosa realização pública”; “notas” sobre a jangada, “essa embarcação típica do nordeste”. - Folha da Manhã na Tela Nº 3: aspectos da exposição Ex-Libris; presença de Dean Acheson, secretário de Estado dos EUA, no Recife; festa da padroeira do Carmo; tomada de vista da inauguração de melhoramentos na Mirueira. - Folha da Manhã na Tela Nº 4: inauguração de um grupo escolar pelo “saudoso” Agamenon Magalhães; Parada da Primavera; mesa-redonda para discutir Paulo Afonso. - Folha da Manhã na Tela Nº 5: posse do novo delegado do IAPI; chegada ao Recife da imagem da Virgem de Fátima; parada militar de Sete de Setembro; jogo de futebol entre Santa Cruz e Náutico. - Folha da Manhã na Tela Nº 6: dia de Finados no Recife; prova hípica no Jóquei Clube; desfile de modas no Iate Clube. - Folha da Manhã na Tela Nº 7: posse do governador Etelvino Lins; posse do prefeito José Maciel; aspectos da Capela Dourada. - Folha da Manhã na Tela Nº 8: visita do governador de São Paulo, Lucas Nogueira, ao Recife; pesca de lagostas em Ponta Negra; inauguração do novo edifício do IPASE. Além de Firmo Neto, também o cinegrafista Valter Mota, da Novarel Filmes, realiza cinejornais - como lembra L. ao jornalista Luiz Vieira, que disse ser Firmo o único na cidade a dedicar-se exclusivamente a uma “oficina cinematográfica”. Mota produziu dois cinejornais, em 1951 e em 1952, e se não seguiu adiante é porque esbarrou nas mesmas dificuldades encontradas por Firmo no quesito exibição, já que, nas palavras de L.: “Os cinemas do Recife não somente se recusam a pagar um centavo que seja pelo aluguel do jornal feito no Recife, como ainda só o incluem no seu programa, depois de muita adulação e quando o produtor conseguiu forrar-se de pistolões que lhe dão prestígio para abrir a porta do céu, quanto mais a do Parque ou do Art.” (DP, 10/ago/52, p.6) No final da década, os próprios exibidores lançam-se na produção de cinejornais. Em 1958, estreia Pernambuco em Foco, realizado pela Vitória Filmes, cujos diretores são Gunter Bohn, Gastão Sorrentino (do grupo Hugo Sorrentino) e Luciano Converso. Quem opera a câmera é Hilário Marcelino, técnico de som de O Canto do Mar (JC, 17/ago/58, 2º Caderno, p.8). A opinião da crônica especializada, L. à frente, certamente influencia o programa inaugural do luxuoso cinema São Luiz, que exibe em sua primeira semana de atividade, em setembro de 1952, dois complementos pernambucanos: o Folha da Manhã na Tela, mostrando as “solenidades fúnebres em honra do professor Agamenon Magalhães”, e um cinejornal sobre a Campanha Pernambucana Pró-Infância realizados, respectivamente, por Firmo Neto e Valter Mota, “dois cinegrafistas que

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procuram filmar todos os acontecimentos importantes na vida melancólica da nossa cidade” (FM/V, 19/set/52/52, p.5). Melancolia à parte, um dos assuntos mais constantes nos cinejornais produzidos em Pernambuco é o carnaval. Em 1952, Firmo Neto realiza um “filme documentário em longa-metragem do carnaval do Recife, com a colaboração da Associação dos Cronistas Carnavalescos e da Art Filmes”, que irá distribuir o filme por todo país (FM/V, 01/mar/52, p.4). Mesmo não sendo uma “obra-prima da cinematografia”, escreve Mauro, o trabalho de Firmo Neto servirá para “mostrar aos pernambucanos e ao Brasil como se faz o mais animado carnaval do mundo”, atraindo turistas para o Recife (FM/M, 06/mar/52, p.11). Firmo volta a filmar o carnaval de 1955, desta vez um curtametragem, que ganha elogios de Ralph para a “boa técnica”, a “fotografia nítida” e por dar “uma ideia bastante sugestiva do que é a festa tradicionalmente popular” (JC, 21/mar/56, p.6). Em dezembro de 1952, é exibido Carnaval no Recife, filme colorido de 40 minutos, dirigido por Durval Rosa Borges (JC, 11/dez/52, p.4). No ano seguinte, é a vez de Valter Mota registrar a “nossa festa máxima”, segundo Mauro, contando com a colaboração do técnico de som Hilário Marcelino, responsável pela “gravação da banda sonora diretamente dos salões de baile, o que nenhum jornal do Rio ou de qualquer parte do Brasil faz”. Mauro elogia o ritmo imprimido aos três minutos iniciais do filme, mostrando as pessoas que chegam na cidade para o carnaval: “Este trecho, mesmo com o ridículo do personagem que encarna o tipo que vem de avião, possui uma linguagem que, como dissemos, lembra o documentário.” (FM/M, 10/mar/53, p.11) A observação de Mauro revela a presença de elementos de ficção inseridos numa produção caracterizada pela abordagem cinejornalística. Recorrer à ficção talvez não seja um procedimento tão raro - o que explicaria o elogio de L. ao caráter “puramente reportageante” do cinejornal de Firmo Neto sobre os funerais do governador Agamenon. Enquanto os cinejornais mantêm um ritmo de produção regular, a despeito das dificuldades na feitura e na exibição, as tentativas de realizar filmes de enredo sequer chegam a sair da fase de projeto. Um desses projetos parte da Novarel Filmes, empresa dedicada a filmagens diversas - desde casamentos, batizados e outros eventos sociais até os cinejornais -, que tinha entre seus proprietários o dono de uma loja de ferragens e o cinegrafista Valter Mota. Financiado parcialmente pelo governo do estado - com parte da renda a ser revertida para a campanha pela erradicação dos mocambos -, o longametragem se chamaria Nas Garras do Destino e teria como protagonista o deputado Alcides Teixeira, o popular “Vovozinha”, cujo programa de rádio, de grande audiência, fazia sucesso entre as ouvintes mais idosas, também suas fieis eleitoras. Para escrever o roteiro e dirigir o filme, é convidado o cineasta francês Romain Lesage, na época trabalhando no Recife. Mas depois de filmada uma sequência, acontecem mudanças na política local que acabam por cortar as verbas destinadas a Nas Garras do Destino. Lesage volta-se para a realização de um ambicioso projeto: um filme “biográfico” sobre o Recife, para o qual consulta autores como Gilberto Freyre e Mário Sette, informando-se sobre “o nosso passado e as nossas tradições” (DN, 28/mar/53, p.3). Promovido pelo então Instituto, hoje Fundação, Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, com assessoria do historiador José Antônio Gonsalves de Mello Neto, e contando com verba prometida pelo Governo Federal, o filme integraria as

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comemorações em torno do terceiro centenário da saída dos holandeses da cidade, que teria sua história revisitada como se conta a história de uma pessoa, reforçando mais o fato anedótico do que a “grande história”. Mas é justamente a “grande história”, a história oficial, que sela o destino do filme: com a morte de Agamenon e as mudanças no quadro político do estado, o presidente Getúlio Vargas não assina a liberação da verba para as comemorações do terceiro centenário. No intervalo das pesquisas para o filme histórico, Lesage filma o documentário de média-metragem sobre o bumba-meu-boi, O Bicho Misterioso dos Afogados, produzido pelo Instituto Joaquim Nabuco 6. Quanto ao deputado “Vovozinha”, ele não se deixa vencer pela interrupção de Nas Garras do Destino. Em 1953, Alcides Teixeira surge nas telas num curta-metragem sobre retirantes, que merece uma acolhida pouco favorável por parte da crônica especializada. Opinião de Ralph: um “magnífico espetáculo de ridículo” (JC, 31/maio/53, p.4). Além dos filmes de amadores, dos cinejornais e de eventuais documentários, a produção pernambucana alimenta-se também de projetos irrealizados, alguns francamente mirabolantes. Em 1950, o “Clube Cinematográfico de Pernambuco” publica carta no Jornal do Commercio, anunciando a realização de um filme “com técnicos e atores da nossa cidade”. Seguem-se nove perguntas ou informações do tipo “Você deseja ser astro ou estrela?” ou “Valor das ações” (JC, 01/out/50, 2ª Seção, p.6). A iniciativa não vai adiante. Melhor sorte não tem a “Cooperativa Cinematográfica Mauriceia Ltda.”, fundada em julho de 1954, que planeja realizar O Rio das Luas e chega a abrir inscrições para os interessados em integrar o elenco (13 “elementos masculinos” e 7 femininos) (DP, 31/jul/54, p.6). Segundo nota publicada por Ralph, a Mauriceia pretende “fazer renascer as tradições cinematográficas de Pernambuco através de um filme que será iniciado em agosto próximo, caso chegue o filme virgem importado da Alemanha. O filme projetado terá o título de O Rio das Luas, constituindo um semi-documentário sobre o êxodo das populações dos mangues, causado pelos constantes aterramentos. Ari Severo, diretor do antigo cinema pernambucano, será o responsável pela direção desse filme ‘genuinamente pernambucano’ a ser filmado em Afogados às margens do rio Jiquiá.” (JC, 20/jul/54, p.4) Depois de toda publicidade inicial, a Mauriceia some das páginas dos jornais. É pouco provável que o filme tenha sido realizado - neste caso, certamente teria havido divulgação na imprensa. No campo dos projetos mirabolantes, destaca-se a figura de Josias Cotias, apresentado por Ralph como um “entusiasta do cinema brasileiro” que vem “elaborando há anos uma relação dos filmes nacionais, que pretende publicar”. Além disso, Cotias tem um sonho que é o de “fundar uma companhia cinematográfica no Recife e realizar filmes”. Para tanto, ele já tem um terreno em Piedade [praia do grande Recife] e “quase uma centena de projetos”, que vão de filmes de aventuras e seriados a 6

As informações sobre a Novarel, Nas Garras do Destino e os projetos de Romain Lesage estão no depoimento concedido a nós pelo cineasta Lesage, exceto quando citada outra fonte.

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produções de temática religiosa. Para viabilizar o projeto, uma das metas de Cotias é “se associar na criação da Brasil Progresso (?) [sic]”, uma “gigantesca companhia a ser construída em Sergipe, com dezenas de departamentos, campo de aviação, estação ferroviária”, etc. Cotias convida Ralph para “dirigir alguns filmes e cenarizar alguns originais”, mas “por absoluta falta de tempo” o cronista não aceita e passa o convite a L., do Diário de Pernambuco (JC, 28/jul/54, p.4). Os projetos frustrados e as ocasionais promessas tão mirabolantes quanto infundadas imprimem em grande parte da crônica especializada uma espécie de descrença, ora resignada ora indignada, no que diz respeito à produção de filmes de enredo em Pernambuco. Reagindo diante da anunciada estreia de um filme interpretado pelo deputado “Vovozinha”, com direção de “um tal dr. Ubirajara”, Alencar não poupa munição: “Como é fácil prever, isto não passa de uma grande ‘chanchada’ para ludibriar o público, portanto devemos ficar alertas. Não é possível que sejamos logrados mais uma vez. Basta de tanta desmoralização artística.” (DP, 19/ago/51, 2ª Seção, p.2) Numa crônica dirigida a Alberto Cavalcanti, Paulo Fernando Craveiro ressalva que foram incontáveis “os realizadores fracassados no empreendimento de produzir películas sonoras”, mas afirma confiar na “capacidade diretorial” de Cavalcanti, “esperando, juntamente com todos os pernambucanos, a queda desse tabu pernicioso”. E acrescenta: “apesar de nunca ter havido uma película apresentável no norte, concebo que algum dia se fará alguma coisa menos medíocre” (FM/V, 28/ago/52, p.5). Antes a ausência do que a mediocridade - é o que coloca Alencar ao comentar, no balanço do ano de 1951, a posição de Pernambuco no cenário cinematográfico brasileiro: “Diante de toda esta balbúrdia [INC, 8x1, saída de Cavalcanti da Vera Cruz], Pernambuco permaneceu como mero espectador. Nem mesmo com a realização de um filme (como sucedeu com Minas e Rio Grande Do Sul) nossa terrinha deu o ar de sua graça, e fez muito bem. Assistiu de camarote e fez seus comentários a respeito das mostras que chegaram às telas do Recife.” (DP, 13/jan/52, 2ª Seção, p.2) Neste caso, o “camarote” designa bem mais a distância em relação ao centro dos acontecimentos, o temor do comprometimento, do que a conquista de uma localização privilegiada. Nos próximos capítulos, veremos como se movimentam, no seu camarote de “meros espectadores”, os profissionais da crônica de cinema do Recife e seus “comentários” em relação a questões gerais da arte cinematográfica e, mais especificamente, ao cinema brasileiro. E, num terceiro momento, a reação da crônica quando Pernambuco ameaça “dar o ar de sua graça”, servindo de palco para realização de um longa-metragem brasileiro de ficção, O Canto do Mar.

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CAPÍTULO 2 O CINEMA COMO DEVE SER

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Juntamente com os profissionais veteranos, a nova geração de cronistas cinematográficos que começa a surgir no Recife por volta de 1950 irá não apenas transitar pelos temas e discussões presentes na cena contemporânea da época (tanto no contexto nacional quanto internacional) mas também deverá deter-se em reflexões características a momentos anteriores do pensamento cinematográfico. Neste sentido, observamos a retomada de um tema caro aos teóricos idealistas franceses dos anos 10 e 20: a defesa de um cinema puro, que não se deixa “contaminar” pelas demais artes, especialmente o teatro 7. Na radicalização desta proposta, chegamos a algumas passagens da crônica local onde se dá a exaltação do cinema mudo como sendo o verdadeiro cinema. Por exemplo Jorge Abrantes, cronista de assuntos gerais mas estreitamente ligado a cinema, considera que “o cinema mudo é o cinema em estado puro (...) sua expressão mais alta” (DN, 13/maio/52, p.3). Abrantes não precisa ir muito longe, aliás, para encontrar um aliado e mentor às suas ideias. Apoia-se em conversas com o filósofo Evaldo Coutinho, defensor intransigente do cinema mudo, para quem o sonoro veio truncar o “apuramento” do silencioso (DN, 20/jun/53, p.3). Coutinho continua a manter, nos anos 50, a mesma postura que marca seus artigos sobre cinema publicados em jornais e revistas a partir do final da década de vinte, nos quais segue a linha de pensamento da revista O Fan, do Chaplin Club, defendendo a supremacia do cinema mudo. Em plena década de cinquenta, encontramos os cronistas pernambucanos envolvidos numa discussão que, dez anos antes, já se revelava tardia na célebre polêmica capitaneada por Vinicius de Moraes nas páginas de A Manhã, em 1942, da qual participaram leitores e um expressivo grupo de intelectuais, todos dispostos a expor sua preferência na disputa mudo x sonoro. Quando, em meados de 53, comenta-se a notícia de que Hollywood voltaria a produzir filmes mudos, Jorge Abrantes vê, então, a possibilidade de se continuar a evolução do cinema - mudo -, que é “puro, perfeito, inigualável” (idem, ibidem). Vale observar que tal “notícia”, questionável enquanto dado histórico, e cuja fonte não é referida em momento algum, deve ser encarada sobretudo como o catalisador de comentários e discussões. Especialmente entre os cronistas veteranos. É também a perspectiva do retorno a uma arte cinematográfica mais pura, tanto estética quanto comercialmente, que orienta a adesão do cronista Luiz Vieira à causa do cinema mudo. Saudado por Ralph como “um dos nossos maiores entendidos em cinema e batalhador da velha guarda” (JC, 26/jun/53, p.4), Vieira coloca-se a favor da realização de filmes mudos, pois o som, “que apareceu para dar mais vida e valor à imagem, o que fez foi dar a mão à industrialização desenfreada da arte” (Idem, ibidem). O “novo projeto hollywoodiano”, que afinal não se concretizou, não obteve, porém, maiores repercussões entre os jovens cronistas. Assim como o apoio, também a reação a ele parte de um profissional já reconhecido. O jornalista Jota Soares, um dos protagonistas do Ciclo do Recife, reconhecendo a “riqueza do som” (JC, 19/jun/53, p.4), classifica o projeto como “uma regressão” (DN, 20/jun/53, p.3). Recusando a nostalgia em torno do cinema mudo, Soares alinha-se com o pensamento dos cronistas recém-chegados para os quais, se a utilização do som envolve certos problemas, a solução certamente não estará na recusa das possibilidades sonoras. Descartada esta solução extrema, isso não impede que a questão inicial do cinema puro seja abordada sob outros aspectos. Com maior ou menor intensidade, ela é

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Cf. XAVIER, Ismail. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo, Perspectiva, 1978.

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constante no percurso da crônica cinematográfica deste período. Em 52, Duarte Neto escreve: “O grande mal do cinema moderno não está no som, mas no abuso dos elementos sonoros, tanto pela palavra sonora como pela música e pelos outros ruídos. Dentro destes casos podemos colocar todas as transposições de peças de teatro para o cinema ou as teatralizações de novelas, dentro do cinema, em que os elementos do palco foram conservados. (...) No cinema-teatro os atores se impõem à plateia, o que não acontece com o cinema legítimo, onde os atores são, apenas, surpreendidos pela plateia. Assim a gesticulação dos atores e a liberdade dos atores em cena podem ser substituídas, no cinema, pelo corte, sem nenhum prejuízo para a mensagem. (...) E o cinema é tanto mais limpo quanto menos influência sofrer dos atores.” (DN, 15/mar/52, p.3) Nesse texto, reconhecemos ecos do discurso dos idealistas franceses, na medida em que se afirma a concepção de um “cinema legítimo”, “limpo” (correlato do “cinema puro”), em contraposição ao “cinema-teatro”, às narrativas fílmicas teatralizadas calcadas em procedimentos cênicos e na forte presença dos atores. Aqui também está evidenciado um dos traços característicos dos escritos de Duarte: a ênfase no corte (montagem) enquanto elemento diferenciador do “cinema legítimo”. Para fortificar suas posições, Duarte transcreve trecho de um artigo de 1925 escrito por Fernand Léger, onde este assegura que “os valores negativos que entorpecem o cinema atual são o assunto, a literatura, o sentimentalismo, em resumo, a competição com o teatro.” (FM/V, 07/maio/53, p.6) A crítica à teatralização detectada em diversos filmes recorre a um argumento, pouco preciso e genericamente explicado pelos cronistas, que poderia ser definido como o “específico” cinematográfico. A respeito de Meu Destino é Pecar (1952), produção da Maristela dirigida por Manuel Pellufo, Ralph afirma ser uma “narrativa prolixa, sem noção de ritmo, continuidade, corte, composição cênica, controle de atores, em síntese, sem as principais características que fazem do cinema uma arte autônoma e única.” (JC, 01/abr/53, p.4) A afirmação permanece vaga e sem maiores esforços no sentido de abordar a questão mais detalhadamente. E é esta a postura predominante entre os cronistas ao confrontar cinema e teatro. Tem-se a impressão de que a condenação ao “teatro filmado” é uma espécie de argumento-coringa pronto para ser retirado da manga e aplicado seja em filmes baseados em peças de teatro, seja em produções consideradas precárias e deficientes. Por outro lado, tal argumento pode ser colocado facilmente em segundo plano, perdendo espaço para o gosto pessoal do cronista. Observamos esse deslocamento particularmente em duas resenhas de Ralph, de Os Contos de Hoffman (direção de Michael Powell e Emeric Pressburger, 1951) e Orfeu (direção de Jean Cocteau, 1949), onde ele acentua um certo descaso quanto aos elementos que ressaltou na crônica sobre Meu Destino é Pecar:

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“Controvérsias não podem deixar de surgir diante de filmes como Os Contos de Hoffman. Todavia devemos por à margem as estéreis discussões entre o que seria cinema, o teatro, a ópera e o balé, estritamente isolados em seus modos de expressão, e encarar esta película inglesa como um espetáculo cinematográfico dos mais fascinantes e autênticos.” (JC, 19/mar/53, p.4) (grifo nosso) “Resta-nos falar nesta película como um trabalho de cinema, desde que este detalhe faz parte do ‘métier’. Direi apenas que o filme possui tudo aquilo que se costumou chamar de linguagem cinemática correta. Ritmo, montagem, corte, angulação, ‘close-up’, detalhe. Cocteau porém é sempre um artista, um poeta, e dá especial relevo, especial beleza às cenas, às composições, conseguindo com que Orfeu seja a sua mais importante realização como cinema.” (JC, 17/ago/52, p.4) Toda a admiração de Ralph por Jean Cocteau não impedirá, contudo, que o cineasta francês torne-se um dos alvos de ataque preferidos de alguns cronistas no que diz respeito ao tópico “cinema x teatro”. Tanto Paulo Fernando Craveiro quanto Renata Cardoso investem no mesmo ponto ao comentar O Pecado Original (1948). Craveiro: “Em O Pecado Original, Cocteau exprime claramente a sua personalidade pretenciosa e agitada. De uma peça teatral pretendeu produzir um filme, esquecendo-se porém dos elementos essenciais ao cinema com o único objetivo de alguma coisa diferente confeccionar. “(...) A monotonia é o fator de maior relevância na sua construção, isso mesmo acompanhado de perto pela movimentação teatral dos personagens, aliás o primeiro elemento negativo é uma consequência lógica deste último onde sobressaiu-se a vasta dialogação, um atentado à sétima arte e absolutamente indispensável no teatro.” (FM/V, 03/set/52, p.5) Renata Cardoso: “Película monótona e excessivamente dialogada, à maneira do teatro. Aliás, é baseado numa peça do famoso poeta de Orfeu. Não há cinema ali. O que vimos foi teatro filmado; com abertura de cortina; entrada de teatro; marcação e gestos sofisticados.” (Idem, ibidem) Ao tentarmos situar o “específico” cinematográfico a partir destes textos, é pela negação que ele melhor se coloca. O “cinema legítimo” não abusa dos elementos sonoros, principalmente da palavra e da “vasta dialogação”; não tira sua força da presença e do desempenho dos atores; não se fundamenta em procedimentos cênicos como a marcação rígida dos movimentos e gestos; enfim, o “cinema legítimo” se define por oposição ao teatro e aos elementos considerados teatrais. Seu caráter afirmativo, através do qual se constroi enquanto linguagem “autônoma”, instala-se especialmente na montagem (corte e continuidade) e nos planos próximos, como o close e o planodetalhe. Confrontados com modos diversos de olhar e fazer cinema, com diferentes projetos de cinematografia, os cronistas explicitam, através de suas preferências, as concepções de cada um quanto ao que viria a ser o cinema legítimo, verdadeiro. Mesmo incorporando variáveis, exceções, contradições, tais concepções apontam quase sempre

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em direção a um determinado ideal, a um modelo cinematográfico. As discussões e polêmicas em torno das propostas dos cinemas americano e europeu constituem o paradigma deste percurso. No início de 1952, uma polêmica entre Duarte Neto e José de Sousa Alencar consolida a polarização detectável no grupo dos cronistas cinematográficos: de um lado, os partidários do cinema americano (Duarte à frente); do outro, os defensores dos filmes europeus, capitaneados por Alencar. Este “racha” não apenas reflete diferentes pressupostos teóricos e estéticos, mas extrapola para esferas mais pessoais - daí as mensagens cifradas, as indiretas, as entrelinhas, que pontuam as crônicas do período. A polêmica tem início com um certo ar de conspiração: na terceira parte de sua retrospectiva do ano cinematográfico de 1951, Duarte Neto condena a “trama” que vem sendo armada contra o cinema americano por parte de críticos cujo “histerismo é maior nas conversas particulares” (DN, 24/jan/52, p.3). Depois de assegurar que “entre nós, singularmente, o vício fez raízes profundas”, Duarte passa a criticar o responsável pela seleção de filmes no Cine Clube do Recife, que priva os espectadores, durante semanas seguidas, de “obras-primas do cinema americano”, porque acredita “ser a Europa a pátria do bom gosto cinematográfico” (idem, ibidem). Uma semana depois, é publicado no mesmo jornal o artigo “Em torno de um equívoco” (DN, 31/jan/52, p.3), onde o cronista José de Sousa Alencar, o criticado programador do Cine Clube, rebate as afirmações de Duarte e esclarece algumas de suas próprias ideias e preferências. Alencar diz estar surpreendido com as críticas dirigidas à programação do Cine Clube, que contradizem a relação mesma dos filmes exibidos entre julho de 51 e janeiro de 52: 21 filmes americanos, 6 franceses e 5 de outras nacionalidades. Quanto às críticas endereçadas ao programador, estas merecem por parte de Alencar uma longa explanação. De início, refere-se a Duarte Neto como “este discípulo de Plínio Sussekind Rocha”. Nas conversas quase diárias que costumava manter com Duarte, Alencar lembra ter elogiado da mesma forma os cinemas americano, francês e italiano. Ao invés de partir em defesa desta ou daquela cinematografia, Alencar prefere levar suas considerações na direção de uma diversidade do fazer cinematográfico, adotando uma postura aparentemente conciliatória, mas que na verdade polemiza ainda mais com o ponto de vista de Duarte, como veremos mais adiante. Alencar: “Sem pretensões ao virtuosismo e ao formalismo, que considero extremos perniciosos, acredito que se pode fazer bom cinema de maneiras diferentes. E se a escola americana (baseada na montagem pura, na rápida sucessão de shots, na importância do detalhe, resultando num ritmo intenso e acelerado, muitas vezes em prejuízo da própria continuidade da película), conquistou o meu entusiasmo para grande número de películas, o realismo do atual cinema italiano e francês também merece a minha admiração. “(...) Claro está que, para o cinema europeu e para muitos cineastas americanos ou mesmo ingleses, [dentre os] quais citaria o próprio Wyler e Olivier, o uso constante do corte não é uma condição necessária para o cinema, surgindo em oposição a teoria da continuidade absoluta ou relativa, ou a técnica subjetiva em que a câmera substitui a visão ou as emoções do personagem (...) e inúmeras outras maneiras de se procurar realizar cinema segundo concepções e valores diferentes.” (Idem, ibidem)

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Neste ponto, Alencar trilha um caminho delicado, já que o elogio a essas “concepções diferentes” implica colocar no segundo plano a própria montagem, unanimemente reconhecida como pedra angular do “específico” cinematográfico. Se, posteriormente, como vimos, o cronista irá situar o ritmo, a continuidade e o corte entre “as principais características que fazem do cinema uma arte autônoma e única” (JC, 01/abr/53, p.4), aqui ele não hesita em afirmar que “o uso do corte não é uma condição necessária para o cinema”. Para legitimar seus argumentos, Alencar examina o “ponto capital em matéria de cinema - o movimento”, diferenciando três tipos: o movimento interior, dentro do quadro; o movimento exterior, a movimentação da câmera; e o movimento que resulta da “sucessão de várias imagens ou quadros diferentes” (DN, 31/jan/52, p.3). E acrescenta: “Sem preferir, isoladamente, a um destes movimentos, sou pela inteligente combinação dos três, ou mesmo pelo predomínio de um deles desde que o cineasta saiba empregá-lo inteligentemente, de maneira sugestiva e artisticamente aceitável. (...) Quanto ao humanismo é para mim o principal valor não somente da cinematografia como de qualquer expressão artística. E teimo em não aceitar o vazio e a mediocridade da maioria das películas americanas, nas quais a suntuosidade e o estrelismo (...) são empregados para compensar sua pobreza humana”. (Idem, ibidem) Elegendo o humanismo como meta e “principal valor”, e deixando de lado, pelo menos momentaneamente, a questão da autonomia cinematográfica, Alencar abandona uma possível tentativa conciliadora inicial. Mesmo negando a existência de uma trama contra o cinema americano, insiste em que este não pode ser levado a sério, devido à “estandartização”, à “produção em massa”, à “preocupação de agradar o público”. Considera como exceção as duas dezenas de bons cineastas americanos “responsáveis por grande número de películas realmente excepcionais” (idem, ibidem). Enquanto prepara sua resposta a Alencar, Duarte dispara ligeiro comentário, no início do quarto artigo da série sobre “O ano cinematográfico de 1951”. Com ares de polemista, ele conclui, diante do que considerou uma negação por parte de Alencar de sua preferência pelo cinema europeu: “Ora, meu prezado amigo, era justamente isso que desejava que você dissesse” (DN, 02/fev/52, p.3). Pouco depois, escreve “Em torno de vários equívocos”, percorrendo alguns pontos do artigo de Alencar, a quem chama de “o decano dos novos cronistas do Recife” (DN, 09/fev/52, p.3). Sem ter como persistir nas críticas à programação do Cine Clube (os números apresentados por Alencar desmentem o suposto boicote aos filmes americanos), Duarte volta-se para as ideias expressas pelo programador, dirigindo a ele, diretamente, o seu discurso. À afirmativa de Alencar de que a escola americana é baseada na montagem pura, na sucessão de shots e no detalhe, Duarte argumenta: “Não sei, Alencar, eu pensava que o cinema em si fosse uma decorrência da sucessão dos ‘shots’, não constituindo nenhum privilégio da ‘escola americana’ essa maneira de ser.” (Idem, ibidem) Em relação aos cineastas Laurence Olivier e William Wyler, desconhece qualquer filme dos dois que tenha “desdenhado do corte” (grifo do texto). Além disso, discorda de Alencar quanto aos três tipos de movimento:

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“Engano, amigo, o ritmo exterior da imagem que você confunde com ‘travelling’ não é a mesma coisa. O ritmo exterior é consequência do corte, principal elemento gerador do ritmo, no cinema. Em todo caso o que vale a opinião de um neófito diante da fabulosa experiência do veterano!” (Idem, ibidem) (grifo do texto) Ao longo de sua colaboração na imprensa, Duarte irá reiterar frequentemente, com maior ou menor detalhamento, esse ponto de vista em relação ao cinema, tornando-se um defensor feroz, e quase folclórico, dos filmes americanos - isto tudo sem esquecer de acrescentar ao seu texto doses generosas de ironia e provocação pessoal. Ele próprio dará a entender que esta atitude não exclui um traço de estratégia promocional, quando escreve: “Há uma infinidade de maneiras do cronista ser original. A minha, por exemplo, consiste em não gostar dos filmes franceses e italianos, quando são maus.” (DN, 08/ago/52, p.3) Se Duarte detectou uma “trama” contra o cinema americano, poderíamos seguir na mesma linha conspiratória e encontrar uma campanha sistemática empreendida pelo cronista contra os filmes franceses e italianos - cinematografias que não se ajustam às suas concepções. Para ele, a questão do corte, da montagem, é fundamental, por isso não admite a classificação do movimento esboçada por Alencar. Ao comentar Um Dia na Vida (direção de Alessandro Blasetti, 1946), Duarte observa que a maior parte das cenas se passa em interiores e que “ambientes fechados não se prestam às cenas de ação” (DN, 22/fev/52, p.3). Aponta, então, o corte como o único recurso para evitar a calmaria de um filme sem ação. Acrescenta: “Aquelas cenas demasiadamente longas e dialogadas parecem mais longas ainda devido à ausência do corte (...) Além de tudo, por motivos artísticos que não consigo entender, o travelling é que faz a ligação das cenas distantes no espaço, e todos nós sabemos que o travelling, substituindo o corte, que é o elemento rítmico essencial do cinema, torna o filme parado, longo, monótono e enervante.” (Idem, ibidem) (grifos do texto) Em outro texto, o cronista estende tais considerações, englobando o movimento neo-realista em geral: “Entre o chamado, impropriamente, realismo italiano e a linguagem cinematográfica, essencialmente rítmica, vai entretanto uma distância enorme. Poucas foram as contribuições que atingiram o equilíbrio desejado, padecendo o cinema italiano, geralmente, da falta de movimentação; da ausência de uma boa equipe de coordenadores e de escritores especializados, até mesmo de detalhes técnicos importantes, como sejam uma fotografia bem cuidada e um bom emprego de luz e de som.” (DN, 19/jan/52, p.3) Valorizando sobretudo a ação e o ritmo, Duarte subordina - ou no mínimo equipara - o tratamento temático ao formal, já que é este último, segundo ele, que proporciona à narrativa fílmica seu caráter especificamente cinematográfico.

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Caminham nesta direção seus elogios a dois filmes que toma por exceções dentro da produção italiana. Entusiasma-se diante de Ladrões de Bicicleta (1948), pois Vittorio de Sica “apresentando a sua história não descuidou-se da forma” (DN, 19/jan/52, p.3). A este filme vem juntar-se na lista dos eleitos O Caminho da Esperança (direção de Pietro Germi, 1950). Ambos são “a vanguarda do cinema italiano moderno, ao mesmo tempo em que valoriza[m] o movimento chamado ‘neo-realista’, dando-lhe força e consistência cinematográfica” (DN, 06/abr/53, p.3). Duarte lamenta em inúmeras ocasiões a supervalorização do argumento, procedimento que insere dentro de um contexto de utilização indiscriminada do som, cujo surgimento fez o cinema correr o risco de se transformar em teatro (DN, 07/jun/52, p.3). Ensina-se que cinema é imagem em movimento, lembra Duarte, e “encontramos, na prática, uma coisa inteiramente diversa”, isto é, “um abuso de elementos sonoros, tanto pela palavra como pelos ruídos, ficando a imagem, ou seja o cinema, numa posição subalterna” (DN, 30/jan/52, p.3). Responsabiliza a crônica cinematográfica por “este mal”, porque confunde o público ao elogiar produções que “geralmente não se conciliam com a velha conceituação de cinema” (idem ibidem). Na opinião de Duarte, o moderno cinema americano (Wise, Huston, Mankiewicz, entre outros) resgatou o cinema da “morte aparente” na qual foi lançado pelos “cineastas teatralizados” (DN, 07/jun/52, p.3). Aponta Punhos de Campeão (direção de Robert Wise, 1949) como o filme que veio restaurar o equilíbrio entre a técnica e a arte, e a partir do qual o cinema sonoro deixou de ser um campo de ensaios (idem, ibidem). Percebemos aqui a retomada dos ideais do cinema puro, no sentido da elaboração de um modelo de cinema a ser seguido, um modelo livre de “contaminações” como o teatro, o uso excessivo do som, etc. Assim, os critérios adotados por Duarte opõem os cineastas americanos - que limitam o som e valorizam a montagem - aos cineastas europeus - que enfatizam o assunto “até as últimas consequências” (DN, 30/jun/52, p.3). Provocativo, Duarte intitula “Uma semana sem cinema” a sua crônica em torno de A Bela e a Fera (direção de Jean Cocteau, 1946), em exibição na cidade. Perguntase: “O que seria do cinema se abdicasse do seu ritmo e da sua agilidade e procurasse seguir caminho à Jean Cocteau? Quem seria capaz de suportar continuamente aquela atmosfera pesada, aquela lentidão, aqueles diálogos extensos, aquelas histórias malucas (o maravilhoso mundo do irreal), débeis, pretensiosas e inconsistentes. (...) Na verdade A Bela e a Fera é uma boa pândega.” (FM/V, 29/abr/53, p.6) Na segunda parte do comentário sobre o filme de Cocteau, Duarte Neto centra fogo na crítica ao “assunto”. Transcreve artigo de Léger e como bom discípulo de Plínio Sussekind (como definiu Alencar) cita declaração do mestre: “Só o valor do assunto como tal é um valor negativo e todas as produções europeias preocupadas em conservá-lo foram fracassos cinematográficos”. (FM/V, 07/maio/53, p.6) Para Duarte, este é o caso de Cocteau. Em outra ocasião, referindo-se à Semana do Filme Francês, promovida pelo Cine Clube do Recife, que exibe películas em versão

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original, o cronista ironiza: “um filme francês é sobretudo legenda” (DN, 05/set/52, p.3). Duarte atua como verdadeira sentinela, atenta aos mínimos indícios de uma capitulação ao assunto. Comentando uma entrevista concedida por Cavalcanti à imprensa local, o cronista vê aí “uma preocupação, talvez exagerada, pelo valor das histórias, e, paradoxalmente, o que deveria valorizar o cinema muitas vezes ocorreu em seu prejuízo. Sentimos, dia a dia, cada vez mais se acentuando, a decadência da linguagem cinematográfica em favor das histórias”. (DN, 27/ago/52, p.3) Ele teme as “intenções sociais” de Cavalcanti (mesmo acreditando que o “cinema evidentemente deve contribuir para o bem social”) pois “não podemos mais ouvir falar nesses termos sem o temor de deparar com um novo monstrengo neorealista” (idem, ibidem). Depois de manter, durante todo o ano de 1952, marcação cerrada sobre a cinematografia italiana, Duarte Neto observa, satisfeito: “Que os italianos, dia a dia, vão acentuando a sua incapacidade de fazer bons filmes: eis um ponto que se vai tornando pacífico no debate sobre cinema” (DN, 26/fev/53, p.3). E conclui, vitorioso mas pouco esclarecedor, na retrospectiva “O ano cinematográfico de 1953”: “Vi confirmadas as minhas previsões de que o neo-realismo italiano não atingiria a idade de cinco anos (afirmei isto em plena febre do neo-realismo)” (FM/V, 26/dez/53, p.4). De volta aos lances da polêmica entre Duarte e Alencar, em princípios de 1952, não será nas páginas do Diário da Noite - onde ela começou tendo como elemento desencadeador a programação do Cine Clube do Recife - que iremos encontrar a resposta de Alencar às novas estocadas do colega. As duas crônicas que, a nosso ver, encaram de maneira mais direta o tema polemizado, referindo-se implicitamente à figura de Duarte Neto, foram publicadas no Jornal do Commercio. A primeira delas, na coluna diária sobre cinema que Alencar escreve sob o pseudônimo “Ralph”; a segunda, no suplemento cultural dos domingos. Na crônica dedicada ao filme Com as Horas Contadas (1950), de Rudolph Maté, Ralph comenta a escola semidocumentarista americana, influenciada pelo neorealismo italiano. Identifica duas características comuns a ambos os movimentos: filmagens em locação e grande parte dos argumentos baseados em acontecimentos verídicos. Em seguida, aponta os pontos divergentes: “A diferença consiste no aprimoramento técnico das películas de Hollywood; na escolha dos temas americanos, em sua quase totalidade assuntos policiais; e de um ritmo mais intenso, exigido pelo próprio tema. Os italianos, ao contrário, desenvolvem assuntos mais humanos, de maior valor social, e sua forma cinematográfica é mais simples, e menos rebuscada; o ritmo, menos intenso, desde que não têm histórias galopantes a contar.” (JC, 13/fev/52, p.4) Acrescenta ainda uma opinião que já vimos indicada no seu artigo para o Diário da Noite, e direciona suas críticas a “indivíduos” que não chega a nomear, mas cujas características assentam-se sem maiores dificuldades na figura de Duarte Neto: “Muitos indivíduos desavisados e intolerantes julgam que somente o filme de Hollywood, em virtude de sua forma e técnica aprimorada, de sua intensidade narrativa, possui valor como cinema. Uma preferência desta espécie é bastante

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injusta e apenas denota uma limitada visão ao encarar o cinema como arte. Uma arte tão ilimitada que não pode nem deve ser restringida apenas à forma e ao virtuosismo.” (Idem, ibidem) Alencar insiste aqui mais uma vez na capacidade do cinema em acolher diferentes enfoques quanto à produção e realização. Entretanto, é curioso observar que, nas mãos do cronista, este argumento funciona menos como um fator conciliatório entre os cinemas americano e italiano do que como um instrumento de valorização do neorealismo. Pois é este movimento que vem resgatar aspectos importantes como o “valor social” e os “assuntos mais humanos”, restituindo ao cinema seu caráter de arte “ilimitada” ao libertá-lo dos estreitos parâmetros do virtuosismo formal. Antes de abordarmos a segunda crônica em resposta a Duarte, convém nos determos numa observação complementar. Na verdade, não se trata de uma crônica (no sentido da crônica diária, coloquial, escrita em função dos filmes em cartaz), mas de um longo artigo na primeira página do suplemento dominical, normalmente dedicada a artigos sobre literatura e artes plásticas, escritos por intelectuais renomados seja no circuito local ou nacional. Os poucos textos sobre cinema trazem a assinatura de nomes famosos, como Érico Veríssimo, Rubem Braga, ou Roger Bastide - não há qualquer espaço para os cronistas cinematográficos da imprensa pernambucana. A exceção é o artigo de Alencar, o que demonstra o prestígio do cronista dentro do jornal, a ponto de ele inserir o cinema (esta “arte menor”) numa página quase que exclusivamente dedicada às “grandes artes” e colocar seu nome num espaço reservado a escritores e intelectuais de renome. Esse fato nos faz refletir sobre a visível hierarquia artística reguladora dos critérios editoriais da primeira página do suplemento, espelho de uma determinada visão de mundo cujo interesse pelo cinema caminha à margem da rota principal que são as discussões em torno das “artes nobres”. Neste longo artigo sobre “Cultura Cinematográfica” que Alencar publica no suplemento dominical, ele volta a refletir sobre os temas presentes na polêmica com Duarte (forma, realismo, cinema americano, europeu), introduzindo passagens de sua própria formação cinematográfica. É um texto-síntese do seu pensamento crítico, onde se filia claramente a uma determinada concepção estética do cinema. O artigo não se destaca por alguma contribuição inédita ou inovadora, mas ganha interesse por ser uma tentativa de reflexão estética, alimentada pelas informações e ideias que circulavam naquele momento. O cronista - procurando talvez honrar a tradição da página onde está sendo publicado - ambiciona envolver o cinema numa discussão estética mais ampla. No início, ele parte de considerações generalizadas sobre arte para só depois chegar ao cinema. Não é à toa que começa por definir o que seja, na sua opinião, “cultura artística” (e não “cinematográfica”, como no título): “É a capacidade de compreender ou sentir os vários meios de expressão de uma arte. A maneira de transpor os limites objetivos da forma. Assimilar o transcendente, o poético, o abstrato, o valor humano e social (...) A verdade é que a polêmica sobre estética, ou baseada na catalogação dos princípios fundamentais de uma arte, é sempre estéril, e agoniza em nossos dias (...) O cinema é uma arte. Uma arte nova e ampla, cujos meios de expressão ainda estão por ser explorados em toda sua grandeza e autenticidade.” (JC, 02/mar/52, 2ª Seção, p.l)

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Reiterando sua defesa da diversidade cinematográfica, Alencar cita diferentes possibilidades já desenvolvidas por esta “arte nova e ampla”: do filme “abstrato” de Cocteau a Disney, do suspense de Hitchcock ao formalismo de Reed e Powell. Em seguida, engata uma discussão entre realidade e forma que, mesmo qualificando de improdutiva, traz as bases que norteiam seus posicionamentos, críticas e preferências. “Como acontece em todas as artes o cinema tem sido campo fértil para o eterno e improdutivo antagonismo entre a realidade e a forma. De um lado estão os formalistas, os defensores do cinema puro, da montagem como base estética do filme. Nas realizações elogiadas por estes senhores o drama, geralmente, não emociona, a ideia não tem valor, mas a técnica e a forma rebuscada causam admiração.” (Idem, ibidem) Para o cronista, esta posição “escraviza o homem ao serviço da técnica”, levando a defender uma forma “arbitrária e limitada” de beleza. Enumera os filmes que admira e que o fizeram evoluir como estudioso de cinema - Punhos de Campeão, Cais das Sombras (direção de Marcel Carné, 1938), A Besta Humana (direção de Jean Renoir, 1938), Cidadão Kane (direção de Orson Welles, 1941) - mas assegura que “apesar de continuar admirando o formalismo de certos filmes, não estacionei na técnica e na forma, felizmente”. Neste ponto, fica claro que, para Alencar, o realismo é uma evolução não só no contexto cinematográfico mas artístico em geral; é uma esfera superior ao estágio inicial do formalismo. Demarcadas as linhas do embate “estético” (formalistas x realistas), saldada a sua dívida para com algumas produções formalistas, Alencar segue desenvolto a trilha que leva à condenação quase geral do cinema americano. Para ele, a “técnica perfeita” dos filmes produzidos em Hollywood substitui “a falta de expressão, a carência de conteúdo da maioria de suas películas. O resultado é que, na sua quase totalidade, os filmes são produtos típicos de uma indústria poderosa em lugar de autênticas criações de uma arte. Isto não significa que o cinema de Hollywood não tenha valor. Pelas realizações de um reduzido grupo de cineastas realmente admiráveis, verdadeiras exceções naquele poderio industrial e técnico do filme, o cinema americano, graças a estes artistas excepcionais, merece o nosso respeito como arte. O resto, ou melhor, noventa por cento de sua produção são mercadorias que eles confeccionam, enlatam e exportam para o mercado mundial como fazem com os amendoins salgadinhos. Para os industriais da Califórnia, o verdadeiro e o sincero não tem interesse; eles procuram o brilhante e o sensacional.” (Idem, ibidem) Na falta de outros exemplos relacionados no texto, podemos inferir que, para o autor, o formalismo cinematográfico confunde-se (salvo as exceções) com o próprio cinema americano. Há uma identificação praticamente completa entre uma opção estética, uma cinematografia e, mais além, um determinado tipo de produção - no caso, industrial. Continua Alencar: “Contrário aos formalistas exclusivistas estão os realistas, aqueles que fazem da arte um reflexo da vida, e como tal tem de ser um reflexo simples e sincero, sem grandes artifícios e grandiloquência. (...) Para o realista, a forma não é um fim, é

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um meio. O símbolo, isoladamente, nada significa. O puro artifício formal quase sempre é tido como uma mistificação para ludibriar os sentidos. O realista não se escraviza à forma. A sua principal preocupação é a mensagem que tem a dizer ou expressar. (...) Através dos tempos e das artes, o realismo vem se apresentando como uma arte rebelde, sempre renovadora e atual, uma espécie de ‘esquerda artística’.” (Idem, ibidem) Quando Alencar se refere ao realismo como uma “espécie de ‘esquerda artística’”, talvez seja possível detectar aí ecos do discurso dos colaboradores da revista Fundamentos, envolvidos numa discussão política do cinema e da produção nacional 8. Sem reproduzir o engajamento deste grupo, Alencar adota uma perspectiva diluidora e romantizada do que seja esta “esquerda artística”. Se em alguns momentos do texto percebe-se uma tentativa de matizar a questão, predomina, entretanto, uma forte polarização, contrapondo formalistas e realistas. Mas como os termos não são excludentes (como ignorar totalmente a “forma” ou o “real”?), segue-se uma hierarquização de valores, uma linha evolutiva que subordina a forma ao realismo. É uma visão oposta àquela expressa por Duarte Neto. Este por sua vez abomina a supremacia do “assunto” em detrimento da forma. São pontos de vista contrários, mas que têm em comum a mesma postura dualista, que aponta um certo e um errado cinematográficos (malgrado a ideia de diversidade promovida por Alencar). E em ambos os casos estes certo e errado coincidem na totalidade com uma ou outra das cinematografias em debate: a americana e a europeia. No final do seu artigo, Alencar elabora um esboço da história do realismo cinematográfico que “até pouco tempo, foi uma característica e um privilégio do cinema francês”. Refere-se ao neo-realismo italiano como “a mais significativa contribuição à Sétima Arte nestes últimos anos”, mas deixa o tema para ser apreciado “brevemente” - o que não acontece. Como em relação aos formalistas, o exemplo apontado de realismo cinematográfico é um só: o cinema europeu. Forma e conteúdo também funcionam como baliza nos escritos do cronista Ângelo de Agostini, do Jornal Pequeno. Com a diferença de que ele não hierarquiza os critérios valorativos entre os termos, mas aspira a um ideal conciliador. Antes de comentar Orgulho e Ódio (1950), de Robert Stevenson, escreve: “Até os próprios inimigos incondicionais à cinematografia norte-americana reconhecem a quase perfeição técnica dos filmes saídos dos estúdios de Hollywood. (...) O que falta, isto sim, é humanidade nas películas americanas, argumentos sérios e não baseados em medíocres novelas, próprias para mocinhas ingênuas, histórias que nos falem ao coração, temas sociais, humanos afinal. Isto sim, o que falta ao cinema norte-americano. Se os cineastas americanos se dispusessem a deixar de lado os temas folhetinescos, as histórias absurdas e fantasiadas, e se voltassem para os argumentos sérios, não resta dúvida que nenhum outro poderia competir com o estadunidense do norte, em todos os sentidos.” (JP, 15/fev/52, p.2) Certamente influenciado pelo artigo de José de Sousa Alencar no Diário da Noite, Agostini salienta aqui um ponto caro ao colega: o humanismo. Confirmando a 8

Cf. GALVÃO, Maria Rita e BERNARDET, Jean-Claude. Cinema - repercussões em caixa de eco ideológica. São Paulo, Brasiliense, 1983.

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influência de Alencar, o cronista irá bater-se, logo mais, pelo realismo cinematográfico, lamentando a falta de lógica (distanciamento do “real”) do cinema americano: “Mas com tudo isto de técnica e de perfeição, o cinema norte-americano é um desacreditado perante as pessoas de sensibilidade artística à flor da pele, diante do espectador sensível às coisas belas da arte. Isto porque a cinematografia ianque, infelizmente, é perita na fuga à realidade e no abraço reconfortante com as coisas ilógicas e sem nexo. Diga-se a verdade, fale-se claro: o cinema norteamericano é um cinema falso. Parece-nos que os cineastas ianques sentem verdadeiro pavor da verdade, da realidade, do fato lógico.” (JP, 07/jun/52, p.4) É interessante observar como a intensidade das críticas ao cinema americano parece redobrada, acentuada, em relação ao texto anterior. Vale a pena lembrar que no espaço de tempo entre essas duas crônicas foi publicado o artigo de Alencar sobre “Cultura Cinematográfica”, onde ele condena o cinema americano justamente pela ausência de realismo em suas produções. Seguindo a trilha do colega, Agostini envereda no sentido de encarar o realismo dentro de uma perspectiva que não se restringe apenas ao cinema, mas estende-se a esta esfera superior e nobre do “artístico”. Tendo ou não por critério o realismo, é certo que os filmes europeus encarnam para muitos o paradigma do cinema de arte. A discussão sobre forma e conteúdo desloca-se, então, para o embate entre arte e indústria. Essa colocação é frequente nos artigos de Jorge Abrantes, no Diário da Noite, em especial naqueles que transcrevem sua apresentação no segundo dia da Semana do Filme Francês, promovida pelo Cine Clube do Recife em agosto de 1952. Eximindo-se de comentar os filmes, porque ainda não os conhece, Abrantes prefere sublinhar a importância do cinema francês enquanto um “alongamento” da influência francesa no terreno da cultura que vem se processando “há séculos” (DN, 03/set/52, p.3). Mais adiante, como não poderia deixar de ser, Abrantes contrapõe o cinema americano ao francês. Segundo ele, se por um lado a França desde o começo procurou elevar o cinema “à categoria de arte”, por outro lado nos EUA era “antes de tudo a aventura industrial” (DN, 04/set/52, p.3). Conclui reafirmando para a França a “supremacia espiritual do mundo” (idem, ibidem). Na entrevista que concede ao programa de rádio “Cinelândia” - também transcrita na sua coluna -, ele já havia abordado o tema, afirmando que o cinema europeu é o “que melhor realiza, no cinema moderno, o ideal do cinema de arte. Merece todas as honras” (DN, 13/maio/52, p.3). Por ocasião da Semana do Filme Francês, encontramos alguns editoriais entusiasmados do Diário da Noite dedicados ao evento. O estilo, o tipo de abordagem, o tom - tudo indica Abrantes como o autor destes editoriais 9. Neles estão retomadas e por vezes desenvolvidas as opiniões expressas pelo jornalista em sua coluna. Os editoriais não poupam elogios à Semana, cujo programa é “do mais fino gosto intelectual e artístico” (DN, 08/ago/52, p.3), e comemoram o grande sucesso alcançado junto ao público. Segundo o editorialista, o êxito da Semana prova, não só o “prestígio que o cinema desfruta hoje em dia”, como também o crescente interesse pelo cinema

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Uma consulta ao livro de Luiz do Nascimento confirma a suposição. No corpo redacional do Diário da Noite de dezembro de 1954, Abrantes vem como “editorialista e cronista”. IN: NASCIMENTO, Luiz do. História da imprensa de Pernambuco, v.III. Recife, Imprensa Universitária - Universidade Federal de Pernambuco, 1967.

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francês, e europeu em geral, em detrimento do cinema americano (DN, 03/set/52, p.3). Acrescenta: “Muita gente se cansou da torpe exploração comercial do cinema feita pelos senhores de Hollywood. Muita gente não suporta mais a mediocridade geral da produção norte-americana, que apenas se reabilita por intermédio de uma ou outra obra de real valor. O cinema europeu, as elites e o povo em geral o identificam como o cinema que tem arte, espiritualidade, penetração psicológica, verdade, humanidade.” (Idem, ibidem) Duarte Neto, longe de adotar as ideias de Abrantes e sempre pronto a interceder em defesa de suas preferências, indigna-se com o argumento, frequente, de que Hollywood salva-se da mediocridade apenas pela atividade de uma dúzia de diretores. Escreve, então, a crônica “Este caluniado cinema americano” (DN, 06/out/52, p.3), onde relaciona quase 50 cineastas americanos, ou estrangeiros que lá trabalham, cujo prestígio e talento considera incontestáveis. Duarte rompe, desta forma, a dicotomia entre arte e indústria estabelecida especialmente nos textos de Abrantes, mas presente também nas crônicas de Alencar e Agostini. Ao atrelar o cinema europeu à esfera do artístico e o cinema americano ao aspecto industrial, a crônica especializada do Recife aborda um tema recorrente ao longo da história do pensamento cinematográfico. É preciso salientar, no entanto, que a maneira como esta questão é desenvolvida pelos cronistas locais pouco acrescenta de novo ao volume de ideias já formuladas sobre o assunto. Os argumentos, os enfoques, as opiniões, em quase nada diferem, por exemplo, daqueles expostos nas páginas da revista A Scena Muda, na segunda metade dos anos 20 10: a mesma crítica ao comercialismo de Hollywood, interessada apenas em obter lucros crescentes às custas de filmes “frívolos” e padronizados; o mesmo elogio aos filmes europeus, para onde convergem as expectativas de um cinema artístico, que não envergonhe os intelectuais e o “espectador sensível às coisas belas da arte”. No rastro da polêmica entre cinema americano e europeu, surge de maneira embrionária e pouco desenvolvida a questão da autoria cinematográfica. Não é, contudo, um tema que mobilize os cronistas. Apesar de já em 1950 o Diário de Pernambuco reproduzir o artigo de Henri Agel “Qual é o autor de um filme?” (DP, 10/set/50, 2ª Seção, p.3), será a partir da segunda metade da década (um pouco mais adiante do período aqui abordado) que a “política dos autores” empreendida pelo grupo da revista francesa Cahiers du Cinéma colocará a questão na ordem do dia 11. Entre os cronistas do Recife que abordam o tema, este é instrumentalizado no sentido de favorecer o cinema americano, seja em sua totalidade, seja em relação a determinados casos particulares. Neste segundo grupo, a reflexão é mediada pela influência do pensamento da crítica francesa - uma trajetória que pode ser exemplarmente observada nos dois artigos de André Gustavo Carneiro Leão dedicados ao cineasta William Wyler. Nesses e em outros textos de Leão percebe-se que ele é bem 10

Cf. QUEIROZ, Eliana de Oliveira. A Scena Muda como fonte para a história do cinema brasileiro (1921 - 1933). Dissertação de Mestrado, ECA/USP, 1981. 11 No que diz respeito à autoria cinematográfica e, particularmente, à “política dos autores” tomamos como referência nossas anotações feitas durante o curso “O conceito de autor no cinema”, realizado pelo Prof. Jean-Claude Bernardet no segundo semestre de 1990, na ECA/USP.

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informado: pelas fontes que cita, pelo conhecimento que exibe das discussões da época, pelos temas que escolhe e a maneira como os aborda. Marcadamente influenciado pelo crítico francês André Bazin, é a ele que Leão recorre para embasar seus elogios a Wyler e explicar porque ele “apresenta um dos estilos mais pessoais do cinema de hoje” (DP, 22/jun/52, 2ª Seção, p.3). Na verdade, quase poderíamos dizer que se trata mesmo de um movimento inverso: é Wyler que serve de instrumento para Leão melhor transmitir sua admiração pelas ideias de Bazin. Conjecturas à parte, o que vemos é a retomada de pontos cruciais apontados pela análise baziniana, desde a “continuidade” dos planos (os planos-sequência) até a profundidade de campo 12. Leão refere-se explicitamente a Bazin, ao citar uma de suas frases sobre Wyler: “Não há um só plano de Perfídia, de Jezebel ou de Os Melhores Anos de Nossas Vidas, um só minuto destes filmes que não seja cinema puro”. Com isto, o cronista pretende rebater possíveis críticas daqueles “puristas” que defendem o corte e a montagem como base do cinema (idem, ibidem). A questão da autoria, insinuada ao longo do texto (“um dos estilos mais pessoais...”), aparece também na conclusão da segunda e última parte do artigo: “Diretor honesto, dono de uma filmografia admirável, Wyler traçou uma estética própria, que ele defende, utiliza e aperfeiçoa em cada película”. (DP, 29/jun/52, 2ª Seção, p.3) (grifo nosso) Mesmo sem a referência direta a conceitos como “autor” e “autoria”, podemos entrever traços que compõem a base de sustentação da “política dos autores”: o estilo enquanto marca pessoal do cineasta, a via de acesso para a realização de um cinema em primeira pessoa; a reiteração deste estilo (estética própria) em cada filme, de maneira a acionar mecanismos de variações em torno dos mesmos temas e procedimentos, retomados continuamente e “defendidos” pelo cineasta que os “aperfeiçoa em cada película” (concepção de linha ou ideia central que orienta cada projeto do autor); a valorização do cinema americano, não enquanto indústria, mas a partir de um enfoque particular, individual, que elege determinados diretores e seus “estilos”. No caso do cronista André Gustavo Carneiro Leão, estas ideias que incorpora via Bazin, crítico francês, legitimam seus elogios a Wyler, diretor hollywoodiano, sem que esta sua postura contradiga o apreço pelo cinema europeu, demonstrado em várias crônicas. Dentro da polarização, bastante marcada na época, entre cinema europeu e americano, a categoria do “autor cinematográfico” viabiliza aos cronistas “partidários” dos filmes europeus a oportunidade de dar vazão ao seu entusiasmo por cineastas americanos - as “exceções” dentro do mercantilismo hollywoodiano -, sem com isto se desviarem da rota do pensamento dos intelectuais europeus. Este procedimento reflete-se também nos elogios endereçados pelo cronista Ralph a cineastas como Billy Wilder, Joseph Mankiewicz e John Huston, destacando o caráter superior destes cineastas. Seus filmes são verdadeiras ilhas de qualidade em meio “ao grande número de películas medíocres realizadas em Hollywood” (JC, 19/mar/52, p.4). Quanto a Wilder, o aval europeu é ainda mais forte, já que Ralph não esquece de apontar a influência europeia e principalmente expressionista na obra do austríaco Wilder (JC, 08/mar/52, p.4).

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Cf. BAZIN, André. O Cinema - Ensaios. São Paulo, Brasiliense, 1991.

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Assim como Leão, Ralph não adota diretamente a palavra “autor”, pelo menos não com o mesmo alcance que o termo adquire na “política dos autores”. Ainda assim, transparece nas suas crônicas uma perspectiva que é fruto de informações gerais - por vezes um tanto diluídas - sobre o assunto. É o que podemos notar no comentário que escreve sobre Moulin Rouge (1952), dirigido por John Huston: “Todos os filmes de John Huston revelam não somente a sua personalidade como a sua atitude perante a vida (...) Seus personagens estão sempre em crise, em luta íntima (...) Ora, a figura amargurada e singular do pintor Toulouse Lautrec enquadra-se admiravelmente no mundo de Huston”. (JC, 20/nov/53, p.4) Ralph não se limita, contudo, ao círculo dos cineastas. Ele chama atenção frequentemente para a atuação decisiva de certos produtores que imprimem marcas características em seus filmes, tanto ou mais do que os realizadores que os dirigem. Entre os produtores que considera sinônimo do “bom cinema atual”, cita Val Lewton, Dore Schary e David O. Selznick, além de cineastas que produzem seus próprios filmes, como Mankiewicz, Huston e Wilder. Mas a preferência confessa do cronista é outra; ele acrescenta após a listagem: “nenhum porém assume a importância de Stanley Kramer” (JC, 26/jun/53, p.4). Ralph não mede elogios aos traços de “realismo e verdade humana e social” desenvolvidos nos filmes produzidos por Kramer (idem, ibidem). Curiosamente, as reservas quanto ao aspecto da autoria cinematográfica são despertadas em Ralph por um filme realizado fora dos domínios de Hollywood por um dos mais consagrados cineastas europeus, ninguém menos que Jean Renoir. Na resenha de O Rio Sagrado (1951), o cronista condena a hegemonia de uma visão de mundo excessivamente pessoal que acaba resvalando para o hermetismo e a arbitrariedade: “Justamente por se ter integrado tanto com o tema, Renoir apresenta um estilo absolutamente pessoal, hermético mesmo, onde chega a sacrificar até mesmo a clareza cinematográfica, com detalhes e processos dificilmente justificados”. (JC, 20/set/53, p.4) Se Ralph chega a questionar a conveniência de um “estilo absolutamente pessoal” em um filme de cineasta europeu, é Duarte Neto quem descarta por completo a possibilidade do diretor assumir-se enquanto autor em cinematografias como a italiana, a francesa e no “cinema comercial americano”. Isto devido ao “papel relevante” do roteirista, nas duas primeiras, e do produtor e distribuidor, no terceiro (DN, 24/jul/52, p.3). Neste artigo, intitulado “Cinema e direção”, Duarte discute diretamente a questão da autoria cinematográfica, qualificação que deveria, segundo ele, caber ao diretor, mas que, como nos exemplos citados, acaba por diluir-se na interferência excessiva de roteiristas, produtores e distribuidores. Distingue os cineastas em dois grupos: os técnicos e os artistas. Os técnicos são aqueles que se submetem ao argumento e às exigências comerciais impostas pela produção e distribuição. Entre eles, relaciona os italianos Luchino Visconti, Pietro Germi e Augusto Genina, e cineastas do cinema americano como Frank Capra, Leo McCarey e William Seiter. “São eles autores de obras cinematográficas? Eis a questão: dirigir cinema inclui o uso da sintaxe cinematográfica, reclama conhecimento das possibilidades de sua estética. Cabe ao diretor adaptar o assunto à sua maneira própria de dirigir.

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Então teremos arte cinematográfica no seu justo sentido. O denominador comum para o julgamento de um filme é o diretor e não as ideias do cenarista ou da obra literária a ser adaptada. Este o motivo que nos leva a pensar em David Lean, se vemos As Grandes Esperanças, de Dickens; e em Doistoievsky, se O Eterno Marido de Pierre Billon”. (Idem, ibidem) Ao definir o papel do autor cinematográfico, Duarte retoma coerentemente ideias já expostas em outros textos. Avesso à supremacia do tema, do argumento, ele exclui o roteirista da esfera da autoria. Admirador de uma montagem que poderíamos classificar de dinâmica e da narrativa regida pela ação, ele destaca o diretor como o verdadeiro autor na medida em que manipula com desenvoltura a linguagem cinematográfica (movimentos de câmera, planos, ângulos, montagem, etc) no sentido de subordinar o assunto à direção. Novamente o “assunto”. Na discussão em torno da autoria o tema é posto em questão não só por Duarte como também por Alencar. Mas enquanto o primeiro exclui a possibilidade de autoria em um contexto de supervalorização do assunto, o outro encontra na forte integração com o tema a causa mesma que proporciona a construção de um “estilo absolutamente pessoal”. Estes dois enfoques, em princípio opostos, convergem em pelo menos um ponto: o caráter negativo do “tema”, seja por impedir ou acentuar excessivamente a autonomia do autor cinematográfico. O leque de tópicos aqui abordados, referente às ideias e posicionamentos diante da arte cinematográfica, proporciona o delineamento da figura de alguns cronistas, ao mesmo tempo em que traz à tona determinados modelos e ideais de cinema que transitam na cena da época. A seguir, quando abordarmos os textos relacionados com o cinema brasileiro, veremos a repercussão de tais modelos na reflexão sobre a produção nacional.

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CAPÍTULO 3 O CINEMA BRASILEIRO VISTO DA PROVÍNCIA

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No final de 1951, o balanço da produção cinematográfica brasileira oferece um panorama dos mais promissores. Enquanto a Atlântida garante o sucesso popular com suas comédias e chanchadas carnavalescas, o ambicioso projeto da Companhia Cinematográfica Vera Cruz - fundada em 1949, tendo Alberto Cavalcanti como produtor geral - coloca no mercado filmes de grande orçamento e alto nível técnico. Entre as produtoras em atuação, destacam-se também a Maristela e a Cinédia. A existência de uma produção regular de filmes coloca com maior intensidade o cinema brasileiro na pauta das crônicas cinematográficas. Não se trata mais de especular sobre a inexistência ou a criação do cinema nacional, mas de refletir sobre filmes, orçamentos e bilheterias concretas. Nota-se uma abertura maior em relação à produção nacional - mesmo que seja para criticá-la. O que antes provocaria uma lacônica rejeição, agora pode conquistar até alguma simpatia. Quando Aguenta Firme, Izidoro (direção de Luiz de Barros para Cinédia, 1950) substitui um filme mexicano em determinada sala do circuito, Ralph ousa dizer que “Mesmo considerando que a produção nacional não corresponde à expectativa, é sempre melhor suportar um abacaxi nosso do que tolerar produtos importados e imprestáveis.” (JC, 11/ago/51, p.2) Da sua coluna no Diário de Pernambuco, L. não se conforma com a declaração do colega e escreve uma longa crônica a respeito, salientando as diferenças - que considera fundamentais - entre os abacaxis mexicanos e brasileiros. “Quanto a mim, dispenso os abacaxis; e como não sou ufanista, devo reconhecer que a ruindade dos nacionais, via de regra, supera avantajadamente os concorrentes da outra bandeira hemisférica.” (DP, 12/ago/51, p.6) L. está longe de admirar os dramalhões e critica severamente as películas que giram em torno de “cabarés e desregramentos sexuais”, mas salienta o “bom lastro técnico” da produção mexicana. Diretores, fotógrafos, produtores, o pessoal, enfim, que trabalha por trás das câmeras: “não são improvisados amadores e sim técnicos preparados (é verdade que mal preparados muitos deles) à sombra dos americanos e em alguns casos até de franceses e italianos. O pior, no filme mexicano, é sempre o assunto - e o cenário que o assunto exige. Quanto a nós, só o que vale é a improvisação, e, ao lado da improvisação, a gana de ganhar dinheiro fácil à custa do mal aplicado sentimento patriótico do notoriamente pacóvio público dos cinemas no país. De cinema entendemos pouco ou nada (vamos deixar de lado Cavalcanti e o, em estudos, Instituto Nacional de Cinema que são coisas fresquíssimas e uma delas ainda em perspectiva), o que não impede a contínua fabricação de longas e curtas metragens sem o mínimo valor técnico e artístico.” (Idem, ibidem) Ralph, por sua vez, procura no conteúdo, e não na técnica, uma explicação para sua preferência pelos “abacaxis” brasileiros.

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“Não é patriotismo, nem querer estimular o ruim para redundar no pior. O filme nacional, por pior que seja, revela sempre uma realidade nossa. Suas músicas, seus ambientes, suas piadas, revelam, sob qualquer aspecto, o espírito brasileiro. (...) Isso não implica em aceitação da qualidade da maioria dos filmes brasileiros que é péssima. Sei que predomina o espírito de exploração, do lucro fácil.” (JC, 22/ago/51, p.2) Isso posto, Ralph enumera as falhas de Aguenta Firme, Izidoro (“Falar sobre suas qualidades cinematográficas é o mesmo que contar anedota” (idem, ibidem)). Demonstrando que as ideias de L. funcionaram como uma ducha de água fria em seu entusiasmo, Ralph assim conclui, algumas semanas depois, a crônica sobre a exibição de três filmes nacionais por mês, anunciada pelos cinemas locais: “Depois dos ‘abacaxis’ mexicanos, surge a possibilidade de o recifense ser intoxicado pelos azedos produtos nacionais.” (JC, 19/out/51, p.2) Os ânimos variam, as opiniões nem sempre coincidem, mas o ponto em comum entre a crônica de cinema no Recife é a expectativa para 1952 de um cinema brasileiro “honesto” e “de qualidade”. As ideias sobre o desenvolvimento do cinema brasileiro passam pelo papel do Estado: como se dá a atuação do governo no setor cinematográfico?; essa atuação é necessária ou prejudicial? Fala-se sobretudo no decreto de obrigatoriedade (o “8x1”) e no Instituto Nacional de Cinema (INC). Instituído em novembro de 1951, o decreto nº 30 179 torna obrigatória a exibição de pelo menos um longa-metragem nacional para cada oito estrangeiros, modificando a legislação anterior, que não estipulava proporções, apenas exigia a exibição de três filmes nacionais “de entrecho e de longa-metragem” por ano 13. Também em 1951, antes mesmo de tomar posse, o presidente eleito Getúlio Vargas “encomenda” a Alberto Cavalcanti estudos e levantamentos que desembocam na proposta de criação do Instituto Nacional de Cinema. O anteprojeto formulado pelo cineasta e seus colaboradores (entre eles o crítico Vinicius de Moraes) enfrenta duras oposições por parte de críticos e profissionais de cinema. Nas mesas-redondas e no I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro, promovidos pela Associação Paulista de Cinema entre 1951 e 1952, e no I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, realizado em setembro de 1952, o INC é um dos pontos de maior polêmica e discussão. Em duas crônicas de 1951, L. reproduz trechos do manifesto contra o INC redigido pela Associação Paulista de Cinema, com o qual concorda em vários pontos. Alinhando-se às propostas levantadas no documento, L. reivindica das autoridades “medidas de alcance real e imediato”, livrando a atividade cinematográfica de um “protecionismo que, no final de contas, resultará simplesmente demagógico” (DP, 11 e 12/dez/51, p.6).

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Cf. Viany, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura e Instituto Nacional do Livro, 1959.

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Encaminhado ao Congresso Nacional em 1951, o anteprojeto do INC recebe aprovação da Câmara dos Deputados no ano seguinte para depois amargar interminável espera no Senado 14. A indefinição do Congresso quanto ao INC parece amortecer o impacto do projeto junto à crônica recifense, a ponto até de ser considerado assunto encerrado. Fazendo a retrospectiva do ano de 1951, Alencar lamenta a “morte de grandes ideias” (grifo nosso) como a atividade de Cavalcanti na Vera Cruz e a criação do INC - cujo anteprojeto completa seis meses no Congresso, sem qualquer resposta (DP, 13/jan/52, 2ª Seção, p.2). Não existe propriamente uma troca de ideias sobre o INC. Os textos publicados na imprensa do Recife em 1952/53 são na maior parte matérias “oficiais”, releases. Os cronistas não se pronunciam sobre o Instituto, a não ser ocasionalmente. Em um desses momentos, ao escrever sobre “Cavalcanti e o cinema nacional” (DN, 27/ago/52, p.3), Duarte Neto põe em questão o INC (e por tabela provoca Cavalcanti e seu grupo, que filmam na cidade O Canto do Mar), indagando-se: “Quem me dirá, por exemplo, se esse Instituto não irá servir de pasto a parentes de deputados, ministros, senadores, transformado num paraíso de radiantes sinecuristas?” (Idem, ibidem) (grifo do texto) Além da probabilidade do INC tornar-se um mero cabide de empregos, Duarte chama atenção também para o perigo do novo órgão vir a ser uma espécie de DIP, atuando bem mais como censura do que como estímulo e amparo ao cinema brasileiro. No segundo semestre de 1952, as transcrições na imprensa recifense de trechos de documentos que trazem o aval do Presidente da República encarregam-se de salientar a importância do INC. À divulgação do texto que enumera as principais “atribuições” do Instituto (FM/V, 27/ago/52, p.5), seguem-se mais duas matérias “oficiais”. A primeira - uma nota assinada por Getúlio Vargas - dá destaque especial à participação de Alberto Cavalcanti no projeto (JC, 03/out/52, p.4). A segunda reproduz a mensagem enviada ao Congresso pelo presidente ao encaminhar o projeto do INC, além de trazer um trecho da avaliação elaborada por Cavalcanti, que mapeia a situação do cinema brasileiro e faz um levantamento das iniciativas que deverão ser tomadas pelo Governo (JC, 05/out/52, 2ª Seção, p.6). Pouco tempo antes, Cavalcanti já havia reafirmado suas posições, em entrevista à imprensa local, durante breve passagem pelo Recife para preparar as filmagens de O Canto do Mar. Lamentando a falta de organização, o desperdício de capital e o interesse individual que prejudicam a indústria do cinema no Brasil, ele não vê nenhuma esperança “enquanto não existir o Instituto Nacional de Cinema, enquanto não se fizer uma revisão na lei de obrigatoriedade de 8 por um”. E acrescenta: “o governo muito poderá fazer por nossa indústria cinematográfica” (DN, 20/ago/52, p.1). O apoio estatal defendido por Cavalcanti, entretanto, não é ponto pacífico entre os cronistas recifenses. Curiosamente, é tomando por base declarações do próprio Cavalcanti, que o cronista L. justifica sua postura contrária à ação do governo na indústria cinematográfica. Segundo L. (sem identificar a fonte da informação), o cineasta

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Cf. Souza, José Inácio de Melo. Congressos, patriotas e ilusões: subsídios para uma história dos congressos de cinema. 1981. Texto datilografado na Cinemateca Brasileira.

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“situou a verdadeira posição que devemos defender para a indústria cinematográfica brasileira: em primeiro lugar o planejamento industrial; em segundo a revisão dos atuais métodos de distribuição; em terceiro os melhoramentos técnicos; e em quarto e último, e só então, o auxílio oficial.” (JC, 17/nov/51, p.6) Tomando impulso, L. acrescenta: “o que mais importância tem é o arrojo da iniciativa privada” e não o auxílio oficial (idem, ibidem). O cronista retomaria tal postura ao comentar o discurso de um deputado que defende a contribuição financeira do governo federal à produção da Sacra Filmes, produtora católica do Rio de Janeiro: “O dinheiro público não deve servir para empreendimentos particulares. Para auxiliar o desenvolvimento desta indústria no país, o governo já fez mais do que devia inclusive obrigando a exibição de um filme nacional para oito estrangeiros.” (JC, 09/mar/52, p.6) (grifo nosso) O mais do que devia caminha na ambiguidade: excesso proveitoso ou equivocado? Se levarmos em conta o artigo anterior de L., ganha a segunda opção. Mesmo porque L. não será o único a colocar objeções ao “8x1”. O jornalista Altamiro Cunha chega até a explicar o aumento no preço dos ingressos de cinema como “culpa exclusiva da defesa por parte do Governo dos filmes nacionais”. Segundo ele, o governo protege os “abacaxis” brasileiros, o público se retrai, causando prejuízo às empresas exibidoras, que repassam esse prejuízo para o preço dos ingressos (DN, 02/abr/52, p.4). O “8x1”, portanto, torna-se criticável na medida em que abre caminho para a exibição de “abacaxis” que, ao invés de estimular o cinema nacional, servem para afastar dele o público que tanto deseja conquistar. O cronista Paulo Fernando Craveiro também insiste nesse ponto, sem poupar ironia: “A inconveniência da lei de obrigatoriedade nos proporcionou o inconveniente Inconveniência de ser Esposa, deixando-nos inconvenientemente agressivos com o cinema nacional.” (FM/V, 08/mar/52, p.4) A propósito de Barnabé, Tu és Meu (direção de José Carlos Burle, 1952) (FM/V, 24/set/52, p.5) e Tocaia (direção de Eurides Ramos, 1951), O Preço de um Desejo (direção de Aloísio de Carvalho, 1952) e O Rei do Samba (direção de Luiz de Barros, 1952) (FM/V, 06/nov/52, p.6), Craveiro volta a criticar o “8x1” que se lança mais uma vez agressivamente contra o público, “expelindo” esses e outros “celuloides que definem a fragilíssima cinematografia nacional” (idem, ibidem). No caso de Barnabé, o cronista não esquece também de se referir à Atlântida, que, segundo ele, “continua no seu itinerário de desclassificação no panorama de cinema de todo o Brasil, beneficiada com o decreto de obrigatoriedade e expelindo coisas inaceitáveis pelo país inteiro” (FM/V, 24/set/52, p.5). A se deduzir pelas crônicas de Craveiro, governo e produtoras se confundem nesse processo “agressivo” e denegridor de lançar no mercado filmes medíocres. Sob nenhum aspecto, o cronista encontra vantagens proporcionadas pelo “8x1”. A atitude inicial do cronista José de Sousa Alencar não é menos condenatória. No balanço do ano de 1951, ele define o decreto de obrigatoriedade como “uma verdadeira calamidade” (DP, 13/jan/52, 2ª Seção, p.2).

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Em outra crônica, sob o pseudônimo de Ralph, Alencar considera o decreto “injusto e arbitrário”, devido à precariedade da indústria cinematográfica brasileira (JC, 10/jan/52, p.4). No lugar de proteger o cinema, o resultado é o “aumento de filmes péssimos, películas vergonhosas que não possuem sequer o mínimo de qualidades artísticas” (idem, ibidem). Ele faz questão de frisar que não é contra medidas que “defendam e amparem” o cinema nacional, mas reivindica “uma proteção lógica, mais ampla, que, de início, ajude a confecção, a realização de boas ou pelo menos regulares películas, para que depois se obrigue os exibidores a programá-las. Como surgiu, este decreto é o mesmo que pretender construir uma casa começando pelo telhado.” (Idem, ibidem) E para conseguir tudo isso, impedindo a ação dos produtores dispostos ao “lucro fácil”, Ralph pede uma “censura artística”, que auxilie antecipadamente o aprimoramento técnico dos filmes (idem, ibidem). Pouco tempo depois, Ralph se diz mais simpático à proteção que o Governo vem prestando aos produtores (JC, 05/abr/52, p.4). Não seria impossível detectar nessa simpatia a influência do cronista Vinicius de Moraes. Colaborador de Alberto Cavalcanti no projeto do INC e entusiasta do cinema brasileiro, Vinicius sai em defesa da produção nacional nas crônicas que escreve para o jornal Última Hora, algumas delas publicadas na Folha da Manhã recifense. Em uma delas (FM/V, 18/jan/52, p.4), Vinicius explica porque o “Roteiro do Fan” da Última Hora prestigiou o nacional Garota de Minas 15. Ele chama atenção para o fato de que a “incipiente” indústria de cinema no Brasil, “eivada de erros básicos” e lutando com as maiores dificuldades, está à mercê de um truste de distribuição e exibição que privilegia os lucrativos filmes hollywoodianos: “Daí a necessidade de prestigiar. O cinema nacional necessita do dinheiro do povo para se manter, para poder tocar para frente. O fato de haver maus filmes, feitos por maus diretores, não obriga menos o povo a este dever básico: de prestigiar primeiro o que é nosso.” (Idem, ibidem) Mesmo possivelmente influenciado pelos argumentos expostos por Vinicius, Ralph ainda teme pelos “maus filmes” e insiste na “censura artística” como forma de evitar “os excessos de comercialização da nossa indústria, garantindo o lado estético das películas” (JC, 02/ago/52, p.4). Ralph não é o único a apelar para a “censura artística”. Trata-se de um procedimento sugerido com certa frequência. Exaltando o caráter educativo do cinema, um dos melhores meios de “divulgação cultural e cívica”, Nelly Saroldi (do Rio de Janeiro) defende uma “censura artística”, “orientada por membros competentes”, que “proporcione ao público filmes de boa qualidade” (FM/V, 05/mar/52, p.4) (grifo do texto). Mas não chega a explicar como seria a escolha desses censores ou que tipo de “competência” os caracterizaria. Também não deixa de ser “educativo” o motivo que leva Mário Melo a pedir “censura cinematográfica” para O Sertanejo, que Lima Barreto planeja filmar em breve. 15

Na filmografia elaborada por Alex Viany na Introdução... não consta o filme Garota de Minas, mas existe outro com o título Garota Mineira (direção de H. Leopoldo, 1951). Provavelmente deve se tratar do mesmo filme.

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Melo deseja, assim, evitar um “pretendido atentado” empreendido pelo filme às peculiaridades da geografia e cultura nordestinas, pois Barreto já cometeu erros em O Cangaceiro (1953) ao “colocar o caipira paulista e o capiau mineiro como se fossem sertanejos”; ou mostrar rios “mansos e permanentes”, sendo que no sertão os rios (quando existem) “descem com intrepidez na corrente”; ou ainda apresentar índios nordestinos falando “neengatu”, língua que não é a deles (JC, 20/ago/53, p.2). Com o título bombástico de “Não serão mais tolerados filmes mal feitos”, Carmen Nicias de Lemoine, do Rio de Janeiro, anuncia em artigo que “a Censura Cinematográfica está desejando fiscalizar de perto não só a parte moral como também a qualidade dos filmes nacionais” (FM/V, 16/abr/52, p.4). A cronista Topaze também comemora a “moralização do cinema nacional”, que deve deixar de lado “iscas” para o público fácil como “pernas de fora, beijos quilométricos, mocinhas violadas e galãs de franjinha”, já que segundo a cronista carioca “desejamos poder um dia expandir nossa balbuciante industriazinha de cinema, ainda bem mais pra cá do que pra lá, do conceito de bom gosto: e para tal, necessitaríamos do código de comportamento de todos os países do mundo a fim de não chocar sensibilidades.” (FM/V, 27/mar/52, p.4) À parte questões “artísticas” ou “morais”, o recrudescimento dos apelos à censura sinaliza a significativa penetração dos filmes brasileiros no mercado e o interesse por parte da crítica e da sociedade em relação ao cinema nacional. Não haveria tamanha preocupação em zelar pela qualidade e retidão das produções brasileiras, caso elas não tivessem qualquer repercussão junto ao público. Popular ou “popularesca”, comercial ou “aproveitadora”, a chanchada torna-se o alvo preferido quando o tema é censura e moralidade. Com o agravante - inúmeras vezes ressaltado pelos cronistas da época - de não ostentar o mínimo de qualidade cinematográfica. Protestando contra a exibição de É Fogo na Roupa (direção de Watson Macedo, 1952), Jomard Muniz de Britto condena veementemente o filme, taxando-o de “deprimente, vil e sem nenhum valor técnico ou artístico” (DP, 27/nov/53, p.6). Mesmo quando determinado cronista se diz partidário do cinema brasileiro, a simpatia inicial não é suficiente para promover um veredicto menos feroz do que o proferido por Jomard. Esta trajetória - da boa vontade ao desapontamento - está exemplarmente retratada na crônica de Mauro para Barnabé, Tu és Meu: “A fim de evitar que intimamente me sinta parcial, sempre vou assistir a um filme brasileiro com a maior das boas vontades. Isto não deixa de ser parcialismo, sabemos, mas é melhor que ele se manifeste a favor, do que contra a coisa que vamos julgar. Com o mesmo espírito de sempre, encaminhei-me ontem para ver o último filme carnavalesco da Atlântida exibido entre nós e que já vem com um grande atraso. “(...) O certo é que não há boa vontade que chegue para se aturar um filme daqueles. Tentei fazer tudo. Lembrei-me que não era mais do que um filme de carnaval, puramente comercial, feito às pressas, autêntico caça-níqueis, com um elenco miserável, etc. Mas não houve jeito. Se ele fosse defeituoso no argumento (o que acontece, também...) ainda se suportava, mas as falhas são

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primaríssimas em tudo, desde a interpretação até à montagem, passando por fotografias (uma das cenas começa inteiramente fora de foco) 16, ao décor. “(...) As únicas coisas que nos fazem esquecer as ruindades são as presenças de Grande Otelo e Oscarito. Mas, coitados, estão se repetindo enormemente. Enfim, enfim, coisa nenhuma, porque para semelhante droga não há necessidade nem mesmo de conclusão.” (FM/M, 24/set/52, p.11) O desprestígio das chanchadas (e, por extensão, da produção “comercial” carioca) chega a ser anedótico. Os cronistas se superam em desancar esses filmes que, afinal de contas, sequer consideram como cinema. Em algumas de suas crônicas, L. ressente-se das características de “show radiofônico” exibidas pelas chanchadas. Esse é um dos motivos pelos quais É Fogo na Roupa implica, segundo o cronista, “num retrocesso tanto técnico como artístico” (DP, 25/nov/53, p.6). O filme “Não satisfaz como comédia, por ser uma colcha de retalhos de ‘gags’ acumuladas arbitrariamente; nem como musical, por nos trazer as marchinhas e os sambas menos audíveis da temporada; nem como coreografia, que esta é de quinta classe com a turma do rádio se comportando exatamente como se estivesse diante de um microfone e não em frente de uma câmera.” (Idem, ibidem) Chanchada ou não, a pior acusação que um filme pode receber parece ser mesmo a desclassificação enquanto obra cinematográfica. Ralph chega a definir Destino (direção de Samuel Markenzon, 1952) como “uma novela radiofônica de mau gosto visualizada de maneira primitiva e sem noção absoluta do que seja a linguagem cinematográfica” (JC, 25/mar/53, p.4) e de Meu Destino é Pecar (direção de Manuel Peluffo, 1952) afirma ser “uma narrativa prolixa, sem noção de ritmo, continuidade, corte, composição cênica, controle de atores, em síntese, sem as principais características que fazem do cinema uma arte autônoma e única” (JC, 01/abr/53, p.4). Sobre Tocaia, Paulo Fernando Craveiro decreta: “A película desenrola-se no mesmo nível da generalidade das produções nacionais, sem história, sem ritmo, sem intérpretes, sem coordenação e sem nada que mereça registro como fator cinematográfico.” (FM/V, 06/nov/52, p.6) (grifo nosso) Crônica após crônica, Craveiro desfia sua indignação diante das produções brasileiras. Para ele, por exemplo, Três Vagabundos (direção de José Carlos Burle, 1952) não deve ser assistido “por uma questão de higiene”, já que possui a “sordidez permanente dessa indigesta ‘indústria cinematográfica brasileira’” (FM/V, 28/nov/52, p.6). E, como se não bastasse, os realizadores nacionais ainda apelam para o plágio, deixando-se “influenciar pelo que existe de menos recomendável na cinematografia comercializada de Hollywood.” (FM/V, 24/set/52, p.5). É o que diagnostica Craveiro a propósito de Barnabé, Tu és Meu, cujo plágio está “evidente”. Vale lembrar que em

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O desfoque da cena não teria sido devido à mudança de rolo? Nesse caso, a falha estaria na projeção e não na fotografia do filme.

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nenhum momento utiliza-se o termo “paródia”; a relação da chanchada com o cinema americano é classificada simplesmente de “plágio”, imitação. Aí Vem o Barão (direção de Watson Macedo, 1951) segue o mesmo caminho, imitando (ou tentando imitar) os filmes policiais americanos, e por isso merece por parte do cronista o comentário: “somente num país de loucos consente-se tamanha besteira como a película brasileira Aí Vem o Barão. Consente-se e aplaude-se” (FM/V, 26/maio/52, p.5). Craveiro volta ao tema, especulando sobre o “modesto e reumático cineminha fabricado no Brasil”, cuja propensão para o ridículo é “imensa”, e onde “tudo é possível”, inclusive a influência do “comercialismo tão característico nos celuloides norte-americanos” (FM/V, 30/set/52, p.5). E acrescenta: “Quando os shows carnavalescos iniciaram a sua visível decadência, livrandonos de realizações retrógradas, eis novas manifestações inqualificáveis, onde a mediocridade junta-se com a pouca vergonha numa coesão comprometedora. “(...) Substancialmente falhos, tecnicamente imperfeitos, artisticamente falsos, direcionalmente insuficientes e ainda com produtores sem a mínima noção do irrisório, percebe-se um futuro pretíssimo para a indústria cinemática da nossa terra, verificando-se sua atualidade negra.” (Idem, ibidem) Como não poderia deixar de ser, a indignação com os filmes provoca o desprezo por seus realizadores: “aventureiros”, “mercenários”, “despreparados”, sem “cultura” ou “bom gosto”. Seguindo uma certa “tradição” do ramo, um dos alvos preferidos pelos cronistas recifenses é o cineasta Luiz (Lulu) de Barros, especialista em comédias leves, com prazos de filmagem e orçamento mínimos, e responsável por uma espantosa filmografia de mais de sessenta títulos como diretor. Os proverbiais ataques à produção de Luiz de Barros encontram um de seus melhores momentos quando o crítico Moniz Viana, ao comentar Esta é Fina! (direção de Luiz de Barros 17, 1947) em fevereiro de 1948 na sua coluna no Correio da Manhã, lamenta que Barros não tivesse escolhido outro ramo de negócios, pois ele daria “um excelente pintor de paredes ou um taqueiro dos mais hábeis” 18. Os cronistas do Recife não ficam para trás. Reservam termos nada amigáveis quando o que está em pauta são os filmes de Luiz de Barros. Se para Ralph falar sobre as qualidades cinematográficas de Aguenta Firme, Izidoro é o mesmo que contar anedota (JC, 22/ago/51, p.2), para Craveiro O Rei do Samba é simplesmente uma “realização das mais perniciosas para o cinema nacional” (FM/V, 18/set/52, p.5). Não satisfeito, Craveiro continua a bombardear o filme: “Produzida por Carmem Santos, essa medíocre fita indígena deveria ter vedada sua exibição pela polícia, não somente pela desonestidade, como também pela falta de escrúpulos de uma meia dúzia de mulheres decadentes que, despindo-se nas sequências do celuloide, esperam uma determinada projeção no ‘bas-fond’ carioca e provocar curiosidade, patenteando a insuficiência do cidadão Luiz de

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Em Introdução..., de Alex Viany, consta também o nome de Moacyr Fenelon na direção. 18 Citado por Sérgio Augusto em Este mundo é um pandeiro (Rio de Janeiro, Companhia das Letras/Cinemateca Brasileira, 1989), p.24.

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Barros como cineasta. Há um descaramento coletivo de técnicos, cenaristas, produtores, diretores e intérpretes.” (Idem, ibidem) Em nota sobre a estreia de É Pra Casar?, Ralph nem precisa ver o filme para, através de indícios que considera infalíveis (entre eles a reputação de Luiz de Barros), apresentar seu parecer: “Pelos cartazes, pelo ‘trailer’, ou pelo nome de Luiz de Barros como responsável pela direção, o público deve ter concluído que este É Pra Casar? trata-se de mais uma chanchada cinematográfica, feita unicamente para explorar a boa vontade do público. Piadas e comicidade grosseiras constituem a nota característica dos filmes de Lulu de Barros, indignos de um comentário mais longo.” (JC, 11/ago/53, p.4) É interessante lembrar que a polêmica entre Ralph e L., em meados de 1951, em torno da superioridade dos “abacaxis” nacionais em relação aos estrangeiros, teve como pivô um filme de Luiz de Barros: Aguenta Firme, Izidoro. Dois anos depois, as posições se invertem, num movimento que registra as oscilações da crônica e dos cronistas. Enquanto Ralph nada salva em É Pra Casar?, L. mostra-se até simpático à nova produção de Barros. Apesar de não passar de “teatro filmado”, o filme é conduzido de forma bem-humorada e as curvas das moças do balé aquático do Fluminense “pagam o preço da entrada” (DP, 12/ago/53, p.6). À parte o encantamento de L. pelas formas generosas das nadadoras, os (poucos) exemplos de elogios a chanchadas variam entre destacar progressos na área técnica e “artística” ou aprovar o humor “limpo” alcançado por determinado filme. Na verdade, tais comentários favoráveis pouco têm de elogiosos, pois, como a carga negativa em relação às chanchadas está sempre presente, o cronista não esquece de acrescentar críticas e reservas, equilibrando o comentário e deixando claro que não aprova nem recomenda o filme. Este “equilíbrio” não exclui a contradição. Escrevendo sobre Carnaval Atlântida (direção de José Carlos Burle, 1952), Mauro reconhece que o “nível artístico” das produções carnavalescas vem, lentamente, aumentando. Chama atenção para o “bom trabalho” de Carlos Manga na concepção de alguns números musicais para depois concluir: “o resto é má direção, falsidade de tipos e caracteres, ruindade no corte, na montagem, etc.” (FM/M, 11/mar/53, p.11). Ora, com tantos “defeitos”, como se deu a elevação do “nível artístico”? O cronista não explica, e nos deixa como dado positivo apenas a benéfica contribuição de Manga. Agostini é mais pródigo em elogios ao comentar Barnabé, Tu és Meu, que “não é lá dos piores” e, de qualquer maneira, “infinitamente superior” a Aí Vem o Barão (JP, 23/set/53, p.4). Apesar do “argumento imbecil”, que não deve ser levado a sério, e da “história sem pé nem cabeça”, o filme possui uma “boa linguagem cinematográfica”, tirando proveito dos números musicais e da atuação de Oscarito (“um dos melhores atores humoristas do cinema”). Definitivamente: “é bom o desenvolvimento do celuloide, não atingindo a monotonia” (idem, ibidem). Menos generoso, Ralph destaca alguns pontos de Aí Vem o Barão, mas o adjetivo “cinematográfico” está fora de cogitação: “Sem valor como cinema, o que é comum em nossas películas, o filme tem a felicidade de ser uma película limpa, sem piadas e comicidade grosseira, com

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um acentuado progresso técnico, o que vem demonstrar que, neste gênero, a Atlântida progrediu.” (JC, 18/maio/52, p.4) A defesa da comicidade sem grosseria também ganha vez junto ao cronista L., que aproveita o comentário de um colega - que considera “limpo” o humor da produção paulista Simão, o Caolho (direção de Alberto Cavalcanti, 1952) - para escrever sobre o tema: “Se o cronista observou exatamente pode-se dizer que Cavalcanti lavrou um tento. A regra, entre os nossos produtores, é confundir espírito com chalaça, e sal com pimenta. Quando um filme no Brasil pretende ser engraçado, tudo quanto logra obter é enveredar, sem a mínima cerimônia, pela mais grossa liberdade verbal e de trejeito; em outras palavras, torna-se libertino.” (DP, 13/jan/53, p.6) O humor não é o que mais incomoda Agostini, fã de Oscarito. A propósito de Três Vagabundos, ele aponta um dos grandes defeitos das comédias cinematográficas brasileiras: o “confusionismo [sic] em suas histórias” (JP, 01/dez/52, p.4). “Por qualquer coisa, os nossos cineastas embrulham o argumento, encaixando nele situações complicadas e, pior, desnecessárias. (...) Em outras ocasiões a história é tão inverossímil que cai numa pândega grotesca.” (Idem, ibidem) Três Vagabundos não escapa à regra, com “situações hilariantes, bem imaginadas, mas que estão como que soltas dentro da película. Não existe ritmo no filme, ademais, nem um sentido mais amplo de concentração de ideias e de situações.” (Idem, ibidem) Em geral, os filmes não são levados a sério, a não ser como motivo de lamentação, desânimo ou indignação. Tal atitude se modifica diante das produções da Vera Cruz. A proposta formulada pela Companhia de realizar filmes “sérios”, investindo no acabamento formal, no profissionalismo técnico, vem ao encontro das aspirações dos cronistas em relação a um cinema brasileiro com bases industriais, livre de “abacaxis” e “aventureiros”. Em setembro de 1950, às vésperas da estreia de Caiçara (direção de Adolfo Celi, 1950), Alencar escreve a crônica “Vera Cruz: uma esperança”, recapitulando o surgimento da companhia e apostando em seus projetos: “É por contar com esse valioso material humano e com um equipamento técnico dos melhores, que a Vera Cruz promete estar em condições de fazer cinema artístico e industrial, na mais rigorosa acepção destes dois termos.” (DP, 10/set/50, 2ª Seção, p.3) Quase dois anos depois, indagado sobre cinema nacional, Jorge Abrantes sintetiza a opinião de seus colegas ao afirmar, depois de dirigir elogios a Caiçara e Terra é Sempre Terra (direção de Tom Payne, 1951): “o cinema brasileiro volta às suas origens e começa a ser encarado como arte e não como ‘show’ carnavalesco. Ainda bem” (DN, 14/maio/52, p.3).

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A se tomar pelo cronista, a Vera Cruz restitui ao cinema brasileiro o status de produção artística. Abrantes se refere às origens - artísticas - do cinema brasileiro que estariam sendo retomadas, sem especificar que origens são essas. Tal referência a uma tradição anterior recuperada - exposta por Abrantes - contrapõe-se à ideia também presente entre os cronistas de que o cinema industrial paulista (o que inclui não só a Vera Cruz como também a Maristela e a Multifilmes) é o ponto de partida que marca o início do cinema nacional. Entre esses dois pólos - retomada ou princípio - oscila a crônica cinematográfica. Entusiasmado com o cinema brasileiro, Luiz Vieira escreve na coluna “Cinelândia” sobre a “imensa atividade dentro dos nossos estúdios, denunciando uma epidemia de trabalho como antes nunca houve - um trabalho persistente e mais ou menos cadenciado e organizado” (DN, 14/ago/52, p.4) (grifo nosso). Segundo ele, aumenta a produção e também o número de profissionais (“sobretudo da Itália”) que correm para cá, “atraídos pela miragem de uma futura Canaan cinematográfica, no Brasil” (idem, ibidem). Acrescenta: “Tudo indica, assim, que somente vantagens advirão, para nós, desse enriquecimento de valores e dessa incomum atividade dos nossos estúdios, que já registram o aparecimento de melhores e mais sólidas possibilidades para o nosso filme.” (Idem, ibidem) (grifo nosso) Por ocasião do “modesto” prêmio oferecido em Cannes para O Cangaceiro, o Editorial publicado no Diário da Noite não poupa otimismo, considerando essa distinção o marco de “uma era nova no cinema brasileiro, encerrando a fase de predomínio dos ‘abacaxis’ para consumo interno” (DN, 02/maio/53, p.3) (grifo nosso). Para o cronista L., o filme Areão (direção de Camilo Mastrocinque, 1952), da pequena produtora paulista Inca Filme, supera O Cangaceiro por ter tido a coragem de cortar cenas que pudessem comprometer a unidade e a estética do filme. Conclui, categórico: “Para nós, e embora os entendidos nos desacompanhem, o cinema nacional começou mesmo em Areão” (DP, 12/jun/53, p.6) (grifo nosso). Ralph prefere falar em termos de “movimento renovador” que vem sendo criado a partir do “acentuado interesse no Brasil pelo cinema”, presente “seja no progresso que se observa na realização de nossas películas, na construção de estúdios e companhias cinematográficas; seja na fundação de cineclubes, de círculos de estudos, de filmotecas e principalmente na realização de festivais” (JC, 03/ago/52, p.4). No comentário para Perdida pela Paixão (novo título utilizado para o relançamento de Quando a Noite Acaba - direção de Fernando de Barros, 1950), Ralph afirma que “este filme iniciou com Caiçara uma nova etapa para o cinema nacional, mais séria, com maiores cuidados técnicos e possuidora de uma consciência artística mais honesta e bem intencionada.” (JC, 19/dez/53, p.4) (grifo nosso) Enquanto L. aponta Areão como ponto de partida do cinema brasileiro e Ralph identifica Perdida pela Paixão e Caiçara como marcos de uma nova etapa, para Agostini é a produção da Atlântida Amei um Bicheiro (direção de Jorge Ileli e Paulo Wanderley, 1952/53) que “parece ter iniciado a trilha certa para a longa caminhada do cinema nacional” (JP, 31/jan/53, p.4).

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Nos textos de Agostini, se distingue com nitidez uma atitude também perceptível ocasionalamente na produção de outros cronistas e que pode ser vista como um prolongamento dessa postura de encarar o momento atual como o marco zero para o cinema brasileiro. Cada novo filme nacional comentado por Agostini carrega em si a salvação ou a desgraça do cinema brasileiro como um todo. Como as experiências anteriores não são levadas em conta, cada novo filme tem um caráter inaugural, projetando seu valor (ou ausência de) sobre as produções que virão a seguir. É assim que filmes como A Mulher do Diabo (direção de Milo Harbisch, 1952) “comprometem para sempre o nosso ainda irregular e incipiente cinema, e acabam por abater o entusiasmo sincero dos que, efetivamente, lutam por dar um lugar ao sol à cinematografia nacional.” (JP, 23/jul/52, p.4) (grifo nosso) Aos elogios dirigidos a Amei um Bicheiro, que inicia a “trilha certa” para o cinema nacional (JP, 31/jan/53, p.4), segue-se a decepção de Agostini diante de Uma Pulga na Balança (direção de Luciano Salce, 1953): “As fitas brasileiras de categoria regular - hoje, sabemos bem - nada mais são do que faíscas, lampejos rápidos que logo desaparecem para ceder lugar à penumbra, ou pior, à total escuridão. (...) Não, amigos, tiremos as máscaras, deixemos de lero-lero e falemos a verdade: o cinema nacional ainda continua como antes, ou quase assim. O progresso foi diminuto e quase imperceptível. Há que se trabalhar ainda muito para que filmes como Uma Pulga na Balança não sejam feitos. Quem assim fala é um entusiasta pelo cinema brasileiro, tão entusiasta que, às vezes, deixa-se levar pelo fervor patriótico e diz coisas de que se arrepende depois.” (JP, 04/jul/53, p.2) A “esperança no cinema brasileiro” é restituída ao cronista em outubro, com a exibição de Sinhá Moça (direção de Tom Payne e Osvaldo Sampaio, 1953) (JP, 10/out/53, p.4). Mas logo depois vem É Fogo na Roupa, uma “punhalada” que nos faz “retroceder à época negra do cinema brasileiro, a uma época que as chanchadas eram somente o que os nossos estúdios fabricavam” (JP, 28/nov/53, p.4). É Fogo na Roupa traz a pior das desgraças: restitui ao futuro do cinema brasileiro um passado negro e lamentável. À parte as chanchadas, dificilmente a história pregressa do cinema brasileiro deixa de ser uma alusão difusa para ganhar informações e dados, tornando-se um referencial concreto. O que poderia vir a ser colocado como “tradição” (a “volta às origens”, mencionada por Abrantes) perde-se em considerações vagas e, no final, é como se não fizesse muita diferença a contribuição ou não de experiências anteriores. Se levam em conta o passado do cinema brasileiro ou partem do zero, desviando de qualquer tradição, as ideias dos cronistas terminam por coincidir, por assumir, muitas vezes, uma perspectiva idealista. Podemos detectar pelo menos dois motivos que levam a essa postura. Primeiro o desconhecimento de qual tenha sido exatamente a história do cinema brasileiro. O interesse pelo levantamento histórico da produção cinematográfica brasileira começa a se fortalecer na década de cinquenta, e nos anos 52 e 53 ainda são escassas as publicações e artigos sobre o tema. Não seria arriscado afirmar que os cronistas detinham poucas informações a respeito, ainda mais se tratando a maioria de profissionais jovens (que não conheceram,

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pela experiência, outros períodos do cinema nacional e tinham acesso restrito, pela leitura, a textos sobre o tema). Daí a névoa de indefinição que cerca as referências ao passado cinematográfico. Mesmo o Ciclo do Recife, que aconteceu na cidade durante os anos 20 e cujos filmes ganham reprises eventuais, torna-se objeto de orgulho e exemplo de pioneirismo, mas não recebe um tratamento mais informativo que esclareça, por exemplo, os tipos de filmes realizados, os temas abordados, os esquemas de produção ou a receptividade do público. Um outro motivo - de certa forma decorrente do anterior - que explica o desejo e o empenho por parte dos cronistas em acreditar numa “era nova” para o cinema brasileiro tem relação com a produção contemporânea da época e a dos anos imediatamente anteriores: as chanchadas, os filmes “comerciais” e oportunistas. Numa palavra, os abacaxis. É este o cinema brasileiro mais vivo na memória e na experiência diária. Uma produção tão pouco “honrosa” que mal pode ser considerada cinema e que, espera-se, seja superada pelos novos tempos. O comentário de Mauro para Tico-Tico no Fubá (direção de Adolfo Celi, 1952) ilustra exemplarmente essa postura. Sem esquecer do “bom número” de defeitos do filme (“marcas inconfundíveis de uma incipiente indústria cinematográfica”), o cronista ressalta que “o interesse de fazer alguma coisa de séria, de honesta, de fazer realmente Cinema, fugindo às palhaçadas tipo Fenelon e Watson Macedo, fazem-nos ver esta produção da Vera Cruz com a maior das boas vontades, que é plenamente justificada pelo todo.” (FM/M, 23/out/53) Depois de enumerar os “defeitos” do filme (na técnica, no roteiro, etc), Mauro conclui: “Mas tudo isto a gente esquece (...) quando vemos que houve de fato (e está havendo, por parte da Vera Cruz) vontade e interesse de fazer um filme cuja apresentação não nos encha de vergonha na poltrona. E, isto apenas, numa terra como a nossa, já é uma qualidade valiosa.” (Idem, ibidem) A cronista Topaze, da Última Hora, segue a mesma linha ao escrever sobre Ângela (direção de Abílio Pereira de Almeida e Tom Payne, 1951). Critica algumas cenas hollywoodianas “desnecessárias” e a representação muito teatral, mas acrescenta: “nada disso impede que a gente saia do cinema com a melhor das impressões e sem aquele complexo de inferioridade que nos dão geralmente os filmes nacionais.” (FM/V, 31/jan/52, p.10) Debelar o complexo de inferioridade em relação ao cinema brasileiro e sua história é o desejo que, implicitamente, se manifesta na crônica de Luiz Ayala (o L. do Diário de Pernambuco), em sua coluna “Na Linha Média”, por ocasião da morte de Valter Medeiros, cineasta gaúcho diretor da Pampa Filmes, que acabou por abandonar o cinema pelo rádio. Ayala o compara a Jota Soares, pela sua “obstinação” e “entusiasmo”, lamentando o fato do cinema brasileiro não possuir mártires que lembrem as dificuldades do pioneirismo. Chama Medeiros de um “pioneiro quasemártir” (FM/V, 03/jun/52, p.5).

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Sob o ponto de vista de Ayala, para que as dificuldades do pioneirismo sejam lembradas, não basta a atuação de talentos “obstinados”, como Medeiros e Soares. O ideal seria a existência de mártires, verdadeiros ícones de um passado glorioso, nobre e digno de orgulho. Essa visão permeada de romantismo coloca de lado a contribuição fundamental de tantos pioneiros e profissionais, muitas vezes anônimos, que tornaram possível fazer cinema no Brasil 19. Mas como entre eles figuram incontáveis “cavadores” e “aventureiros” o passado deixa de ser motivo de glória e orgulho. Pelo contrário, contribui para acentuar ainda mais o incômodo “complexo de inferioridade”. É dentro dessa tendência a ignorar o passado (e mesmo o presente), considerado pouco honroso, que a Vera Cruz se instala, colocando-se como um empreendimento inteiramente desvinculado das produções “que nos enchem de vergonha”, como diria Mauro. Em estudo dedicado ao cinema brasileiro dos anos 30, 40 e 50, Maria Rita Galvão e Carlos Roberto de Souza delineiam o contexto da época do surgimento da Vera Cruz: “Em São Paulo, o desprezo por todas as tentativas ou formas de cinema anteriores no país é total. Vista da capital paulista, a produção carioca se resume à chanchada - e a chanchada, como vimos, não é cinema. A Vera Cruz descarta explicitamente o tom popular e vulgar da chanchada e até mesmo o conjunto dos técnicos e artistas que lhe garantiram a produção.” 20 O isolamento da Vera Cruz em relação ao que se faz no cinema brasileiro (leiase, carioca) encontra respaldo ao mesmo tempo em que faz eco a essa postura que, longe de ser exclusividade da crítica paulistana, manifesta-se de maneira significativa em outros centros, como Recife. Assim como os colegas de São Paulo, os cronistas recifenses tendem a colocar de lado o passado e as experiências “vergonhosas”, apostando num promissor ponto de partida que irá finalmente proporcionar o “verdadeiro” cinema nacional. Correndo por fora da eterna competição entre São Paulo e Rio de Janeiro, os recifenses nem por isso deixam de tomar partido. Em 1958, Ralph publica sua resenha para A Doutora é Muito Viva (direção de Ferenc Fekete, 1957), produção paulista, onde compara o cinema realizado no Rio e em São Paulo. O texto vale também para os anos 52 e 53, não só pelo seu caráter 19

Neste ponto, pensamos especialmente nas considerações de Maria Rita Galvão (Crônica do cinema paulistano. São Paulo, Ática, 1975) e Jean-Claude Bernardet (Filmografia do cinema brasileiro 1900-1935 - Jornal O Estado de S. Paulo. São Paulo, Secretaria da Cultura/Comissão de Cinema, 1979) sobre o papel dos documentários e cinejornais das primeiras décadas do século que sustentaram um mecanismo de produção e comercialização de filme brasileiros, em contraposição aos longas-metragens de ficção que, embora considerados como o “verdadeiro cinema”, constituíam a exceção. 20 Cf. “Le Parlant et les tentatives industrielles: années trente, quarante, cinquante” In: PARANAGUA, Paulo Antonio (org.). Le Cinema bresilien. Paris, Editions du Centre Pompidou, 1987. No original: “A São Paulo, le mépris pour toutes les tentatives ou formes de cinéma qui ont précédé dans le pays est total. Vue de la capitale pauliste, la production carioque se résume à la chanchada - et la chanchada, nous l’avons vu, n’est pas du cinéma. La Vera Cruz écarte explicitement le ton populaire et vulgaire de la chanchada et jusqu’à l’ensemble du personnel technique et artistique qui en a assuré la production”.

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retrospectivo, mas também porque a atitude em relação ao tema permanece, basicamente, a mesma. Para Ralph, o cinema paulista “leva a melhor” em comparação com o carioca, porque “está abrindo um caminho certo e digno de ser imitado, para o cinema nacional” (JC, 25/fev/58, p.6). E pergunta-se: “O que nos oferece o Rio em matéria de cinema salvo as chanchadas carnavalescas e invariavelmente indecentes ou as fitas da Atlântida com a equipe de sempre, liderada por Grande Otelo, Oscarito, Cil Farney? Excetuando isto apenas uma película de exceção como foi Rio 40 Graus.” (Idem, ibidem) Além disso, destaca Ralph, São Paulo tem projetado o Brasil no exterior, com O Cangaceiro, Sinhá Moça e “o nosso conhecido e injustiçado O Canto do Mar” (idem, ibidem). Também nesse ponto a situação pouco se modifica. Tanto no final quanto no início da década, o ufanismo conta pontos valiosos para a Vera Cruz. A premiação de O Cangaceiro no Festival de Cannes em 1953 (melhor filme de aventura e menção especial para música) desencadeia uma onda generalizada de otimismo e orgulho nacional. Dois editoriais do Diário da Noite abordam o sucesso do filme no exterior. O primeiro, como vimos, vê na premiação o início de uma “era nova” para o cinema brasileiro (DN, 02/maio/53, p.3). Com o título “O Brasil e o cinema”, o segundo editorial entusiasma-se diante de uma foto publicada no Diário de Pernambuco, mostrando a fachada de um cinema em Paris onde está sendo exibido O Cangaceiro. Segundo o texto, “com seu moderno cinema, o Brasil pela primeira vez se afirma plenamente perante o mundo através de uma arte” (DN, 15/out/53, p.3). O reconhecimento internacional de O Cangaceiro acentua mais do que nunca a tendência de julgar os filmes brasileiros tomando como referência a produção mundial e de especular sobre suas chances no mercado exterior. É essa a postura de Agostini diante de Tico-Tico no Fubá, meses antes da “consagração” em Cannes do filme de Lima Barreto. Para o cronista, Tico-Tico já possui “algo de cinema (...) cinema melhor do que o apresentado por muitos celuloides norte-americanos, italianos, franceses e pela totalidade quase dos mexicanos”; o filme “não desonra em absoluto a nossa cinematografia, podendo ser exibido sem susto em países onde a arte de filmar já atingiu alto nível de produção caprichada e boa” (JP, 24/out/52, p.4). A preocupação com o mercado externo remete diretamente às ambições colocadas desde o início pela Vera Cruz e à posição defendida por Alberto Cavalcanti de que a “única salvação para o cinema brasileiro está na realização de filmes internacionais na fatura e nacionais na sua concepção” (citado por Ralph em JC, 16/jan/53, p.4). Para alcançar os padrões de uma “fatura internacional” a resposta é indústria. A satisfação com a perspectiva de industrialização do cinema brasileiro ganha status de quase unanimidade entre os cronistas recifenses. Em meados de 1952, Luiz Ayala (assinando L.A.) transcreve sua entrevista para o programa de rádio Cinelândia, onde se declara descrente quanto ao cinema nacional: “a produção de filmes exige tudo aquilo de que não dispomos, desde o maquinário e a película virgem ao mercado”. Para ele, uma indústria cinematográfica é empresa para a

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qual “não estamos, e não estaremos por muito tempo, preparados material e culturalmente” (FM/V, 11/jul/52, p.5). Quase um anos depois, Ayala mostra-se menos pessimista. Na coluna cinematográfica no Diário de Pernambuco (onde assina L.), o cronista comenta os próximos projetos anunciados pela Vera Cruz e pela Multifilmes, constatando: “Das notícias que me chegam sobre as atividades reinantes nos estúdios nacionais, a gente tem de chegar à conclusão seguinte: bem ou mal vamos enveredando com firmeza no campo da indústria de filmes.” (DP, 30/maio/53, p.6) Pouco tempo depois, L. volta a elogiar a atuação da Multifilmes que lança Destino em Apuros (direção de Ernesto Remani, 1953), filme colorido cuja equipe técnica foi “importada”. Agindo dessa forma, a empresa “enveredou pelo melhor caminho, pois evidentemente cinema não é coisa à base de autodidatismo. Atraindo quem sabe para fazer e ensinar a fazer, o paulista está dando um exemplo de equilíbrio, inteligência e argúcia.” (DP, 26/nov/53, p.6) A importância do domínio técnico, sempre ligado à contribuição de profissionais estrangeiros, é traço constante nas crônicas de L.. Em relação a O Cangaceiro, por exemplo, ele credita à presença de técnicos estrangeiros o fato do filme mostrar “um certo nível ainda não atingido até agora por nenhuma película nacional” (DP, 10/maio/53, p.6). Ao discordar de Alencar sobre a superioridade dos abacaxis nacionais em relação aos mexicanos, L. lança como principal argumento o “bom lastro técnico” da indústria mexicana, apoiada em técnicos preparados, e não em amadores (DP, 12/ago/52, p.6). Especulando sobre as possibilidades de se criar uma indústria de cinema em Pernambuco, L. aborda a “questão do pessoal”: “Insiste-se em fazer cinema aqui com o pessoal da terra quando só podemos encontrar cavadores (a maioria) ou pessoas bem intencionadas ou decentemente entusiasmadas mas com totais desconhecimentos da técnica do cinema. Isso de querer fazer cinema nacional somente com a prata da casa é tolice.” (DP, 26/out/51, p.6) A industrialização do cinema paulista entusiasma o cronista Mauro, na medida em que, com as “fábricas de filmes” (Vera Cruz, Maristela, Multifilmes), o cinema brasileiro “melhorou consideravelmente em seus aspectos mais importantes” (FM/M, 02/set/53, p.11). A julgar pelo panorama da época, o cronista confia que “muito em breve, os nossos estúdios passarão a abordar com mais assiduidade os nossos temas e as nossas coisas, plenamente capazes de oferecer excelente material para a realização de grandes filmes. A parte técnica, a mais difícil, já se encontra vencida. A outra, a da honestidade dos propósitos, talvez leve um pouco mais de tempo, mas aqui fica consignada a esperança para uma breve solução.” (Idem, ibidem)

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O texto de Mauro nos leva de volta à segunda parte da receita de Cavalcanti. Para salvar o cinema brasileiro, não basta o padrão técnico “internacional na fatura”, é preciso também trabalhar o caráter nacional do filme - ou, nos termos de Mauro, abordar “os nossos temas e as nossas coisas”. Influenciado pelas ideias de Cavalcanti e sob a forte impressão causada pelos filmes do neo-realismo italiano, Alencar/Ralph reivindica constantemente a presença de temas humanos e nacionais nas produções brasileiras. Para ele, a cinematografia nacional “precisa justamente de quem se decida a trabalhar, procurando, nas suas diretrizes, fazer cinema. Cinema honesto e bom, aproveitando, quanto possível, as nossas tradições, o regional, o folclórico, para que o nosso filme possa atingir o mercado exterior, representando realmente a alma e o sentimento brasileiros.” (JC, 03/out/52, p.4) Por essa época (outubro de 1952), Alencar está empenhado na realização de O Canto do Mar, trabalhando como assistente de direção. Suas crônicas refletem claramente a influência de Cavalcanti, de quem transcreve com regularidade declarações sobre cinema brasileiro. É o caso do discurso proferido por Cavalcanti antes da projeção de Filme e Realidade (Film And Reality - edição de Alberto Cavalcanti, 1939/42), no qual alerta: “Enquanto o povo brasileiro não for esclarecido sobre os valores cinematográficos, sobre a expressão do seu próprio caráter e não rejeitar energicamente o veneno que há tantos anos estão lhe engurgitando diariamente, estragando o seu gosto, enganando o seu instinto, sob os pretextos mais falaciosos, que tão mal encobrem dois motivos dos mais baixos: o ganho e o desprezo. “Enquanto este nosso público não aprender a reagir, a se afirmar realmente nós nunca teremos um verdadeiro cinema nacional.” (JC, 11/jan/53, 2ª Seção, p.6) (grifo nosso) A condenação dos baixos interesses que comprometem o cinema brasileiro bem poderia ter saído da pena de qualquer cronista local, escrevendo sobre a chanchada alvo habitual. A diferença é que Cavalcanti direciona suas críticas também à Vera Cruz, jogando até com o duplo sentido da palavra “veneno”, referência velada a uma das recentes produções da companhia, o melodrama Veneno (direção de Gianni Pons, 1952). Seguindo a linha de Cavalcanti, Alencar não poupa críticas e restrições à atuação da Vera Cruz. Na época de lançamento de Tico-Tico, ele encara o filme como um suicídio artístico (porque não tem características próprias, e nele não se identifica o Brasil) e financeiro (uma “extravagância criminosa” gastar 12 milhões numa cinematografia “incipiente” como a nossa) (DP, 01/nov/52, 2ª Seção, p.3). Ângela não merece melhores comentários por parte do cronista, para quem o filme é “mais uma extravagância da Vera Cruz” que “não chega nem a decepcionar pois nada esperávamos deste trabalho da dupla Payne & Pereira de Almeida” (DP, 07/dez/52, 2ª Seção, p.3). Sobre os dois diretores, Alencar diz ainda que eles

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“se esquecem que dirigir é mais do que improvisar e pedir conselhos a técnicos como Oswald Haffenrichter que responde pelo trabalho da montagem da película.” (Idem, ibidem) A observação indica um conhecimento (mesmo que pejorativo) mais íntimo dos métodos de trabalho dos diretores do que poderia supor a mera leitura do material de divulgação da companhia. Daí nossa tendência em detectar nesse comentário o resultado de conversas do cronista com Cavalcanti e profissionais de sua equipe vindos de São Paulo. A crítica mais incisiva de Alencar à Vera Cruz vem em meados de 53, sob o pseudônimo Ralph, apresentando um balanço pouco favorável da companhia, intitulado “Filmes da Vera Cruz”: “A Vera Cruz procura impor-se na opinião do público e de alguns críticos menos esclarecidos, simplesmente pela boa qualidade técnica de suas películas ou por alguns outros detalhes que impressionem a visão desprevenida do leigo. De início, pretendemos também esclarecer que não somos contrários ao aprimoramento técnico de nosso cinema. Este é o resultado de uma indústria e quanto melhor estivermos aparelhados, tecnicamente, maior probabilidades teremos em triunfar não apenas comercial, mas artisticamente. A nosso ver, o maior erro da Vera Cruz é estar inteiramente desligada de uma realidade nacional, dos fatos, das histórias, dos tipos, das tradições que possam refletir nos seus filmes o caráter e a alma brasileira. Faltam aos filmes da Vera Cruz características próprias, acentuadamente nacionais. “(...) Apesar de sua grande importância, o som, a montagem, a fotografia e cenografia não fazem um grande filme. Este precisa de ambiente, valor humano, sinceridade e talento.” (JC, 04/jul/53, p.4) Mesmo na condição de grande entusiasta do neo-realismo italiano (movimento que propõe esquemas de produção menos rígidos, dispensando estúdios, requintes técnicos e grandes orçamentos), Alencar não coloca em questão a validade de um esquema industrial, capaz de, na sua opinião, fornecer o aparato técnico que viabiliza o triunfo artístico. O que dá bem a medida de quanto o projeto industrial encontra-se entranhado nas expectativas daqueles que refletem sobre cinema brasileiro. A partir dos anos vinte, quando se consolida o cinema americano produzido nos estúdios de Hollywood, esse passa a ser o parâmetro de comparação para o cinema nacional. E continua sendo durante pelo menos três décadas, como atestam os textos publicados em revistas como Cinearte 21 e A Scena Muda 22. A nova mentalidade de produção impulsionada pelo neo-realismo começa a ganhar repercussão na crônica cinematográfica brasileira a partir de 1951 com os textos de Alex Viany, entrando definitivamente na pauta das discussões após o colapso da Vera Cruz 23, em meados da década.

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Cf. GOMES, Paulo Emílio Salles. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1974. 22 Cf. BENDER, Flora Christina. A Scena Muda. Tese de doutoramento, USP, 1979. 23 Cf. GALVÃO, Maria Rita. O Desenvolvimento das ideias sobre cinema independente. In: Trinta anos de cinema paulista. Cadernos da Cinemateca, nº.4, 1980.

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Para Alencar, em 1953, a questão não se coloca. O humanismo defendido pelo cronista se dá em bases solidamente fincadas nos recursos técnicos. Pelo menos no que diz respeito ao cinema brasileiro. Por mais que admire a forma cinematográfica simples e menos rebuscada do neo-realismo (JC, 13/fev/52, p.4), ao tratar do cinema nacional Alencar não dispensa o que considera ser os benefícios da indústria. Mesmo na época do lançamento do primeiro filme de Viany, Agulha no Palheiro (direção de Alex Viany, 1953), onde ele procura trabalhar elementos da escola neo-realista, Alencar insiste na necessidade de indústria, enxergando as “falhas” do filme como “reflexos da própria atuação do cinema brasileiro” (JC, 09/maio/54, p.4). Curiosamente, o cronista conclui que o filme “segue perfeitamente as diretrizes que traçaríamos para o cinema brasileiro”, quando algumas linhas atrás afirmara: “Apesar da imponência e excessos da Vera Cruz, dos êxitos de bilheteria das chanchadas da Atlântida, do filme colorido da Multifilmes, de O Cangaceiro e Sinhá Moça (o primeiro conseguindo exibição até mesmo nos Estados Unidos), o cinema nacional nunca se equilibrou como uma verdadeira indústria, solidamente edificada e amparada. Enquanto não for indústria, o cinema brasileiro sempre produzirá filmes débeis, prejudicados pela falta de técnica e de técnicos, de capital, de atores e cineastas experientes.” (Idem, ibidem) Voltando à crônica “Filmes da Vera Cruz”, em julho de 1953, é importante acrescentar que ela funciona também como uma espécie de balanço e conclusão de Alencar às suas críticas dirigidas a O Cangaceiro e à polêmica que o filme despertou entre cronistas da cidade, que colocam em questão a fidelidade do filme à história e realidade nordestinas. Para Alencar, O Cangaceiro é um “verdadeiro ultraje ao nordeste”, graças ao realizador Lima Barreto que “não se revela apenas um diretor apressado e cabotino, mas um cineasta destituído de sua indispensável bagagem cultural e sobretudo bom gosto”. Critica desde a escolha de locações no estado de São Paulo até os “gaúchos que se fantasiaram de cangaceiro e cantaram seus diálogos no mais puro sotaque sulista”. Marisa Prado ganha o título de “esfinge”: “imóvel e insensível durante todo o filme” (DP, 10/maio/53, 2ª Seção, p.3). Destacando os piores momentos do filme, Alencar cita a cena da onça (“inteiramente deslocada”); a cena do índio falando tupi e entregando o colar à “esfinge”; a sequência do encontro entre cangaceiros e a volante (compara a atuação de Barreto, como líder da volante, aos arroubos dramáticos de uma Sarah Bernardt); e as cenas de amor entre Marisa e Ruschel (“das piores que temos visto em cinema”). Conclui afirmando que falta em O Cangaceiro a “riqueza de observações, de detalhes, de respeito à vida e aos costumes, à terra, que realmente emolduram e dão valor às verdadeiras criações artísticas” (idem, ibidem). No Jornal do Commercio, Ralph (Alencar) dedica duas crônicas pouco amistosas ao filme. Na primeira delas, ele relembra cenas de sua infância no sertão de Alagoas, quando viu as cabeças de Lampião e Maria Bonita. A experiência do cronista, que testemunhou de perto momentos da história do cangaço, justifica sua indignação e serve como uma espécie de aval para as críticas e restrições que colocará a seguir. Afinal, ninguém melhor do que ele, que presenciou fatos do cangaço, para afirmar sobre o filme: “De cangaço, apenas o nome. Pura fantasia”. Na opinião de Ralph, o que “salvou” Lima Barreto foram os ótimos técnicos da equipe (JC, 12/maio/53, p.4).

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Na segunda parte da resenha, Ralph qualifica a cenografia e os ambientes interiores do filme como “de um mau gosto e falta de lógica gritantes” e não admite o descuido com a fidelidade espaço-temporal: o filme não teve locações no sertão, a cenografia é equivocada, algumas cenas são ridículas e dispensáveis. Depois de destacar o “grande conteúdo plástico da película, com várias composições belas”, Ralph conclui: “Sem refletir (excetuando as canções) os costumes e a vida brasileira, poderá demonstrar, no estrangeiro o progresso e o desenvolvimento técnico atingido pelo cinema nacional até agora. O pitoresco assinalado pela maioria dos críticos presentes ao Festival de Cannes fica por conta da ignorância existente em torno do nosso país.” (JC, 15/maio/53, p.4) Alencar vincula o valor cinematográfico à fidelidade do registro e da recriação histórica, ou seja, à capacidade do filme de refletir “os costumes e a vida brasileira”. É contrapondo o filme a elementos que lhe são exteriores que seus valores artísticos podem ser julgados. Aqui novamente coloca-se como deve ser o cinema. A recepção a O Cangaceiro é um outro momento onde se discute algumas ideias já colocadas no capítulo anterior o humanismo, o realismo, o formalismo -, eixos importantes sobre os quais cada cronista elabora e revela sua concepção de cinema. E, como na polêmica entre cinema americano e cinema europeu, Alencar e Duarte Neto divergem frontalmente na apreciação do filme de Barreto. Na primeira vez que escreve sobre O Cangaceiro, Duarte avisa que não vai discutir o filme, mas acaba por dedicar a ele metade da crônica. Duarte não vê muita importância nas inverossimilhanças apontadas no filme: “Esta mania de autenticidade que está invadindo o cinema levará por certo aos exageros mais imprevistos, pois, para os palpiteiros da crônica, segundo constatei, somente um cangaceiro legítimo seria capaz de fazer um cangaceiro de ficção (...) Da mesma forma exigiríamos que Hamlet falasse como na Dinamarca; Édipo, por um inglês, também perderia o sabor; onde iríamos parar?” (FM/V, 13/maio/53, p.6) Ao que parece, o grande temor de Duarte é que a resposta à sua pergunta “onde iríamos parar?” seja simplesmente: neo-realismo. Em outra crônica, ele volta a discordar das críticas “ridículas” à não autenticidade do filme. Segundo Duarte, nunca ninguém se perguntou se Gary Cooper falava realmente como um xerife em Matar ou Morrer ou se James Cagney usava as gíria dos gângsteres em Fúria Sanguinária” (FM/V, 15/maio/53, p.6). Mas “aqui, no entanto, em relação a O Cangaceiro, todas essas coisas são esmiuçadas, como se realmente constituíssem perigos à realização de uma obra cinematográfica. “Admito, embora não ache justo, que se façam restrições à paisagem ou à cor local (o neo-realismo criou esses absurdos de autenticidade ambiente).” (Idem, ibidem)

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Alguns cronistas lamentam a “falta de ambiente” do filme (Jomard em FM/V, 12/maio/53, p.6), mas saúdam “o alto nível técnico e artístico da realização” e chegam até a considerá-lo uma obra “tipicamente brasileira” (Juvenal Félix em JC, 10/maio/53, 2ª Seção, p.6) ou apontá-lo como “a melhor coisa que já foi produzida em nossos estúdios” (Mauro em FM/M, 13/maio/53, p.11). Colocando o filme “vários pontos acima da grande maioria das produções auriverdes” (JP, 12/maio/53, p.4), Agostini justifica a “falta de ambiente” de O Cangaceiro: “Se Lima Barreto tentasse no seu filme entrar em detalhes profundos sobre o cangaço, o levaria para um ponto perigoso e seria capaz de torná-lo monótono, erudito e anticinematográfico. O assunto é sério e não pode ser tratado assim pela sétima arte. Por isso, Lima Barreto escreveu uma história em que o cangaço entra de modo superficial e devemos aceitá-la da maneira como está. (...) O Cangaceiro, tecnicamente, é uma realização perfeita e que coloca o nosso cinema em plano destacado no cenário internacional da cinematografia.” (Idem, ibidem) Mas ao comentar Sinhá Moça, Agostini modifica um pouco seus critérios, afirmando que foi “por esse sentido de fidelidade absoluto à História” que o filme “se impôs” a O Cangaceiro (JP, 10/out/53, p.4). Os cronistas escrevem parágrafos e parágrafos sobre O Cangaceiro e o público se confunde. Essa é a opinião de Renata Cardoso, que não concorda com a atitude de “colunistas desorientados que se limitam a tecer críticas sobre a onça, o índio, a vegetação, o sotaque dos atores, as vestimentas dos cangaceiros, etc; como se fazer cinema fosse o fruto de demorados estudos antropológicos, sociológicolinguísticos ou topográficos. Esquecem esses (ou não sabem) que o cinema tem uma linguagem própria; não é literatura, nem balé; é cinema. Não importa, dentro da linguagem universal da arte cinematográfica, que os atores de O Cangaceiro tenham sotaque sulista; como não importa, a nós outros, que um filme americano, rodado na Itália, seja falado em inglês. O que se deve observar é o tratamento dado à película: o cenário, a escolha de ângulos, a fotografia, a iluminação, a interpretação dos atores, e uma porção de outras coisas indispensáveis à confecção do bom filme.” (DP, 15/maio/53, p.6) Renata Cardoso parece concordar com o colega Agostini quanto a eximir o cinema da obrigação de oferecer abordagens “profundas” de temas “sérios”. O valor do filme não provém da maior ou menor fidelidade ao expor o tema que aborda, mas da sua habilidade no trabalho com a linguagem cinematográfica, que é universal e, portanto, alheia às exigências de “ambientação”. Cronista de assuntos gerais, Gilberto Osório também contribui na discussão em torno de O Cangaceiro. Não sem antes se dirigir a certos críticos “especialistas”, os “iniciados” capazes de apreciar aspectos diversos do filme, mas que quanto mais se apuram nos conceitos estéticos, mais se afastam da reação comum ante o espetáculo. Mas como o filme

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“foi trazido para as vizinhanças do sertão e do cangaço, para o meio de gente que conhece de sobra uma coisa e outra, não pode deixar de parecer infiel e artificioso. “Afinal de contas, se o importante, na realização cinematográfica, é essa espécie de abstração arbitrária, que não tem que dar contas ao meio, nem dos costumes, nem da linguagem, nem dos tipos que a câmera enquadra, então que não se adotem denominações localistas, regionais, perfeitamente identificáveis, como tema ou assunto. “(...) Se de somenos são coisas que tais, então por que se deu tal nome ao filme? Por que se confeccionaram tão caprichosamente aqueles chapéus característicos, exclusivos, que são, do bandoleiro nordestino? Se se queria tal chapéu queria-se o cangaceiro. E o cangaceiro não se divorcia do meio físico e cultural que o engendrou. Ser tão concreto numa parte e, ao mesmo tempo, tão abstrato noutra, não é estilo que se possa definir. E isso de ser concreto ou abstrato - convém lembrar - é um dos problemas mais importantes para o cinema como arte.” (FM/V, 18/maio/53, p.4) Novamente, manifesta-se a preocupação em estabelecer, em identificar os elementos artísticos do cinema. A diferença em relação às discussões abordadas no capítulo anterior é que desta vez trata-se de um filme brasileiro a ocupar o centro dos debates. Mesmo que esses extrapolem para terrenos mais genéricos (ser concreto ou abstrato, por exemplo), são perceptíveis nos textos as hesitações e questionamentos diante da ideia de Brasil e, mais especificamente no caso, de Nordeste, construída e devolvida para o público em forma de produção artística. Em uma de suas crônicas sobre o filme de Barreto, Duarte reitera: “Não adianta, portanto, ver O Cangaceiro com os olhos de nordestino, desde que, no cinema, a única coisa de realmente universal é a sua linguagem.” (FM/V, 20/maio/53, p.6) Duarte defende não só um cinema universal, liberto da fidelidade espaçotemporal, mas também um olhar igualmente desenraizado, sem compromissos com nada além da linguagem cinematográfica. Discordando das posições assumidas por Duarte, Ariano Suassuna deixa momentaneamente de lado os livros e a literatura, que comenta em sua coluna, e vem a campo para expor sua opinião sobre o filme, sob um ponto de vista “estético geral”, já que ignora os “fundamentos próprios” do cinema (FM/V, 26/maio/53, p.6). Na primeira parte do artigo, Suassuna ainda não aborda diretamente o filme, mas posiciona-se quanto à verdade na obra de arte: “De minha parte, não acredito nesse divórcio total entre a verdade artística e a verdade real, desde que aquela é necessariamente inferior a esta e dela depende, em seu caráter de recriação - aquilo que Aristóteles chamava imitação. Penso que a verdade real alimenta continuamente a verdade artística como elemento básico indispensável e quanto maior for tal comércio e maior o gênio do artista, mais fecunda será sua atividade e mais iluminação trará para a compreensão do mistério da existência.” (FM/V, 21/maio/53, p.6) Refletindo sobre O Cangaceiro, Suassuna observa:

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“Ora, num tema como o que Lima Barreto escolheu, a verdade paisagística, de linguagem, de caracteres é um dos elementos primaciais de verdade e de beleza artísticas. (...) E se esse elemento inicial é falseado de entrada, passa a constituir um entrave à realização e ao poder de comunicar.” (FM/V, 26/maio/53, p.6) Suassuna critica os diálogos de Rachel de Queiroz - pela organização da frase - e a inflexão dos atores. Na sua opinião, esses defeitos teriam sido superados caso Barreto tivesse filmado no sertão, e não optado por paisagens paulistas. Duarte volta à carga, numa crônica voltada especialmente para a expressão “abstração arbitrária” utilizada por Gilberto Osório. “(...) A abstração de Lima Barreto, aliás, somente foi arbitrária em relação àqueles elementos que secundam o cinema. A forma, no que se refere ao rigor da montagem e a continuidade, nada tem de arbitrária, o que equivale dizer que não houve arbitrariedade, pois somente essa espécie de arbitrariedade é imprópria para o cinema, que aceito como abstrato. O sr. Cavalcanti, por exemplo, fiel à paisagem e aos costumes paulistas, fez de Simão, o Caolho um mau filme. O Cangaceiro, pelo contrário, apesar das suas infidelidades, logrou ser o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Por que?” (FM/V, 22/maio/53, p.6) Fiel defensor da importância vital da montagem e da continuidade, Duarte volta a reafirmar suas posições. Encerrando sua última crônica sobre o filme, ele faz o “balanço” das discussões em torno de O Cangaceiro, e, a propósito de um filme americano em cartaz (O Amor Nasceu em Paris, direção de Mervyn LeRoy, 1952, estrelando Kathryn Grayson), conclui com ironia: “Acho que o Recife anda precisado dos musicais da Metro. O cinema sério é bom, mas às vezes enche, como tudo o que é sério, inclusive as crônicas sérias. Ao diabo o cinema sério! Goodbye, miss Grayson! E volte logo.” (Idem, ibidem) Mas quem voltou foi Cavalcanti. Depois de Simão, o Caolho (exibido em janeiro de 53), o cineasta filma no Recife O Canto do Mar, com a proposta de levar para as telas a realidade nordestina, os costumes, problemas e tradições da região. Em outras palavras, buscar a autenticidade e a fidelidade ao “ambiente”.

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CAPÍTULO 4 O CANTO DO MAR: ALBERTO CAVALCANTI NO RECIFE

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Depois de se desligar da função de produtor geral da Vera Cruz, no início de 1951, o cineasta Alberto Cavalcanti engaja-se na elaboração do projeto do Instituto Nacional de Cinema (INC), produz por encomenda do governo o documentário Volta Redonda, dirige para a Maristela a comédia de costumes Simão, o Caolho e em março de 1952 integra-se à diretoria da recém-criada produtora paulista Kino Filmes. O primeiro projeto da nova companhia é O Canto do Mar, uma adaptação do filme En Rade (1927), dirigido por Cavalcanti na França, inspirado por sua vez no romance Le Départ du Valdivia, de Philippe Hériat. No lugar do porto francês, entram como cenário as praias de Pernambuco, local escolhido para as filmagens. O projeto de filmar O Canto do Mar não é novidade. Tampouco o é a ideia de ambientá-lo no litoral pernambucano. Ainda na Vera Cruz, Cavalcanti já anunciava O Canto do Mar entre as películas a serem lançadas “proximamente” (JC, 13/ago/50, 2ª Seção, p.6). Alguns meses depois de deixar a companhia, Cavalcanti visita o Recife para, segundo o cronista L., preparar a filmagem de Menino de Engenho e a refilmagem de En Rade, que se chamará O Cântico do Mar [sic] (DP, 27/abr/51, p.6). O nordeste não é terra estranha ao cineasta. De pai alagoano e mãe pernambucana, ele descende de duas das mais “aristocráticas” famílias da região: os Cavalcanti e os Rego Rangel. Na sua rápida visita ao Recife, no início de maio de 1951, Cavalcanti dá palestra no Cine Clube do Recife, inaugura o Cine Acadêmico da Faculdade de Direito (DP, 13/maio/51, 2ª Seção, p.4) e assiste em sessão especial a alguns filmes pernambucanos: Retribuição (direção de Gentil Roiz, 1925), dois documentários mostrando o Recife de 1924, e outros dois documentários realizados em 1950 por Firmo Neto sobre esquistossomose e bouba que “causaram boa impressão ao sr. Alberto Cavalcanti” (JC, 05/maio/51, p.2). Em agosto de 1952, Cavalcanti está de volta ao Recife, ganhando foto e entrevista na primeira página do Diário da Noite, com a manchete: “Canto do Mar, um filme pernambucano”. Na entrevista, o cineasta fala sobre o filme: “A minha vinda a Pernambuco prende-se ao projeto que tenho de rodar, aqui, o meu próximo filme, O Canto do Mar. O tema desta película será um de um antigo filme meu, realizado na França, En Rade, mas com uma profunda modificação na sua estrutura. É meu desejo aproveitar o mais possível os temas regionais. Porque, como você sabe, é através do regional que melhor atingiremos o universal. Naturalmente que com uma boa fatura técnica. A ação deste meu próximo filme está situada no nordeste, captando a vida e os verdadeiros costumes desta região. Para a feitura deste filme, conto com a colaboração do teatrólogo Hermilo Borba Filho que escreverá os diálogos. Quero aproveitar os valores da terra, principalmente o Teatro de Estudante e o Teatro de Amadores. Se possível, o elenco será todo daqui mesmo.” (DN, 20/ago/52, p.1) Cavalcanti também é matéria de primeira página na Folha da Manhã (Edição Vespertina), com seu Conto do Mar [sic], um “filme sobre motivos pernambucanos”, que “terá 47 dias, na filmagem, e contará com artistas exclusivamente da terra”. De acordo com a reportagem: “O filme abrangerá tudo que diz respeito à vida nordestina, principalmente do setor marítimo, no que se relaciona com os serviços do importante porto desta

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capital, com seus costumes e meios de atividades, empregados cotidianamente.” (FM/V, 20/ago/52, pp. 1 e 5) “Embora não necessite de apoio financeiro” - o equipamento e os técnicos virão da Kino Filmes -, Cavalcanti procura o governador Agamenon Magalhães para pedir facilidades de filmagem, hospedagem e localização do pessoal técnico e da aparelhagem. Graças ao auxílio do governador do estado - que “emprestou todo apoio à iniciativa” (idem, ibidem) -, do Secretário de Segurança e da Diretoria de Documentação e Cultura (DDC), “as pretensões de Cavalcanti se transformaram em realidade e seu filme terá início em setembro próximo” (DP, 24/ago/52, 2ª Seção, p.3). A reação da crônica cinematográfica ao projeto anunciado por Cavalcanti não demora e o delineamento das correntes pró e contra o cineasta já se faz notar desde o início. O entusiasmo, a desconfiança ou o franco descrédito em relação a O Canto do Mar são produto de fatores vários que vão desde acordos e desacordos diante dos valores cinematográficos de Cavalcanti à postura descrente ou simpática ao cinema brasileiro em geral e a uma possível produção pernambucana em particular, passando por desentendimentos pessoais entre os cronistas - anteriores à chegada do diretor - e ainda a escolha deste ou daquele para integrar a equipe do filme. Em reportagem sobre a estreia de Canto, Alexandrino Rocha relembra os primeiros tempos de Cavalcanti na cidade: “No começo, isto é, quando o sr. Alberto Cavalcanti chegou ao Recife, houve nervosismo por parte de alguns ex-futuros artistas de cinema e muitos fricotes por parte de certos cronistas especializados. “(...) E o resultado de toda adulação foi a torrente de uísque descida sobre a cidade. Uísque e fuxicada... “Passado o primeiro mês, todas as posições estavam solidificadas: um grupo mais firme do que nunca ao lado do homem; outro grupo com receio de se aproximar do homem; uns três que não tomaram conhecimento da presença do homem; e uma grande maioria desgostosa porque não fora escolhida para trabalhar ao lado do homem.” (FM/V, 08/out/53, p.4) A homossexualidade de Cavalcanti também desempenha papel fundamental no julgamento ao qual o cineasta, suas ideias e seu projeto são submetidos ao chegar no Recife. À boca pequena, não faltam piadas levando em conta o fato de Cavalcanti alojar-se durante as filmagens na Escola de Aprendizes de Marinheiro ou boatos em torno de supostas brigas entre os profissionais da equipe, cada qual atribuindo-se o privilégio de ser o par oficial do cineasta. Insinuada algumas vezes, mas jamais mencionada explicitamente na imprensa, a preferência sexual de Cavalcanti é, entretanto, um dado sempre presente, como dá a entender a mesma reportagem de Alexandrino, ao comentar a passagem do cineasta no Recife: “Muita história pitoresca, muito incidente delicioso e inúmeros casos escabrosos passaram-se à luz das gambiarras, tendo o diretor do celuloide como pivô e os seus ajudantes como consequências...” (Idem, ibidem) Sem abordar, pelo menos de forma direta, a homossexualidade de Cavalcanti, a imprensa dedica-se a avaliar as probabilidades de sucesso da nova investida do cineasta.

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Escrevendo sobre “Cavalcanti e o cinema nacional”, Duarte Neto aponta a responsabilidade do cineasta - “homem providencial e infalível” -, pois todas as esperanças estão ligadas ao seu nome. Sob o ponto de vista do cronista, a realização de Canto vale como um desafio: “Queremos ver Cavalcanti aqui mesmo, sem técnicos, sem laboratórios, sem meios, aumentando o prestígio adquirido no exterior. Não mais um inglês, como em Nas Garras da Fatalidade e Na Solidão da Noite, mas explorando temas brasileiros, auxiliado por gente brasileira, integrado na nossa paisagem. Será que consegue?” (DN, 27/ago/52, p.3) Segundo Duarte, Cavalcanti “errou” na Vera Cruz: “os filmes em que tomou parte não lhe fizeram justiça”. Mas o cronista não pára por aí, encadeando outras restrições à atuação e às ideias do cineasta: vê no INC uma tendência a virar cabide de empregos ou órgão de censura; critica a “preocupação, talvez exagerada, pelo valor das histórias”, que pode comprometer a linguagem cinematográfica; e teme as “intenções sociais” expressas pelo cineasta, capazes de desaguar em um “novo monstrengo neorealista”. Depois de tantas referências consideradas desfavoráveis, Duarte muda o tom, concluindo: “Devemos ser ambiciosos nos nossos inícios; as deficiências técnicas do cinema nacional não devem justificar as nossas imprudências artísticas. Confiamos em Alberto Cavalcanti para ver o cinema brasileiro nascendo de cima. Será criminoso qualquer apoio que lhe for negado, mas por enquanto somente. Aguardemos os seus próximos filmes.” (Idem, ibidem) Nesse texto de ambiguidade quase maliciosa, Duarte ao mesmo tempo elogia e critica, exalta e faz reservas, formalmente depositando confiança no nome de Cavalcanti e, secretamente, aguardando o desastre. Numa postura semelhante, Duarte fala ao programa “Cinelândia”: “A primeira impressão que a gente tem do cinema nacional é que até Chaplin falharia se fizesse cinema no Brasil. Não obstante, tenho esperanças na atuação de Alberto Cavalcanti.” (DN, 29/ago/52, p.3) As declarações de Duarte dão bem a medida do quadro geral das expectativas que cercam Canto e seu realizador, onde não há meio termo: Cavalcanti simplesmente fará o cinema brasileiro “nascer de cima” ou irá engendrar outro “monstrengo” qualquer. E não é só o cinema brasileiro que está em jogo. Em editorial, o Diário da Noite saúda a chegada de Cavalcanti, que com sua presença “traz novas esperanças e abre novas perspectivas” para a produção cinematográfica em Pernambuco (DN, 25/ago/52, p.3). O cronista Ralph também segue o mesmo caminho: o filme “será importante não somente para o cinema nacional como para Pernambuco” (JC, 20/ago/52, p.4). Uma das manifestações mais entusiasmadas parte do cronista Luiz Vieira: “Seria uma pena que Pernambuco sofresse a humilhação de recusar a oportunidade que se lhe oferece, com a presença do diretor Alberto Cavalcanti, no Recife.” (DN, 28/ago/52, p.8)

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Para Vieira, com os títulos de Cavalcanti e levando em conta as credenciais de Pernambuco como “pioneiro da cinematografia nacional”, “não correríamos o menor perigo”. Ele destaca o sucesso e prestígio do cineasta na França e Inglaterra aos quais “poderia ser acrescentado um filme de ambiente pernambucano - talvez o do nosso cais do Porto, tão tipicamente nosso - no seu O Canto do Mar, que seria bem possivelmente a realização de Cavalcanti que melhor nos desse a medida de suas reais possibilidades, para assinalar esta fase em que tão destacadamente vem projetando o nome do Brasil nos domínios do cinema mundial. “Não vemos nada de impossível nisso acontecer (...) Nem, por longe, cometeríamos a injustiça de uma comparação com outras possibilidades de filmagem em Pernambuco, acenadas por cavaleiros andantes que palmilharam estas plagas com a sua triste figura.” (Idem, ibidem) Acenando com projetos irrealizados - e, não raro, reputadamente oportunistas -, os cavaleiros de “triste figura” assombram a memória de profissionais como Vieira, mas não chegam a comprometer a reputação de Cavalcanti, de cuja seriedade, ao que parece, ninguém duvida. Mesmo assim, resta o tabu. Renata Cardoso lembra: “Diversos técnicos têm vindo a Pernambuco, precedidos de muita publicidade, assumindo compromissos para com o público no sentido de produzir filmes de longa-metragem, tendo como cenário a terra pernambucana. À exceção de Castro Alves, cujos dirigentes cumpriram a promessa, todos falharam.” (FM/V, 22/ago/52, pp. 1 e 5) A seguir, a cronista enumera: o ator Raul Roulien filmaria cenas de Asas do Brasil; um cineasta francês faria A Dama do Mar; Arnaldo Estrela, vindo do Rio, fugiu levando o dinheiro dos “acionistas” do filme. O comentário de Renata vem inserido na entrevista que realiza com o ator Barreto Júnior, apresentado como “o primeiro diretor de filmes feitos no Brasil”, que há trinta anos fazia “o primeiro filme nacional, de classe, com enredo, intitulado Retribuição 24. A entrevista tem direito à manchete sensacionalista na primeira página: “Nem Orson Welles, o louco, faria um filme em 47 dias”. Tudo porque, apesar de acreditar nos bons propósitos de Cavalcanti, Barreto Júnior se diz indignado com o tempo de filmagem divulgado nos jornais (idem, ibidem). A lembrança dos cavaleiros de “triste figura” e seus projetos irrealizados certamente influencia o tom de incerteza e descrença com o qual Renata Cardoso escreve seu comentário sobre a passagem de Cavalcanti: “Alberto Cavalcanti, considerado o maior cineasta brasileiro, viajou para o Recife, deu entrevistas, anunciou pretender filmar O Canto do Mar nesta cidade e pelas redondezas, etc. Arrumou novamente as malas, rumando de volta ao Rio, 24

Barreto Júnior atuou como galã, e não como diretor, em Retribuição, um dos primeiros filmes de enredo do Ciclo do Recife, dirigido por Gentil Roiz em 1923-1925. Cf. BERNARDET, Lucila Ribeiro. O Cinema pernambucano de 1922 a 1931: primeira abordagem. Biblioteca ECA/USP, 1970.

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onde reunirá os elementos necessários para as filmagens. Voltará?...” (FM/V, 16/set/52, p.5) O “tabu” que cerca a produção de filmes de enredo em Pernambuco e, por extensão, no Brasil, dá o tom no texto do cronista Paulo Fernando Craveiro dirigido a Cavalcanti. Um texto que, não por acaso, assemelha-se às declarações de Duarte Neto, por desejar um cordial boa sorte ao cineasta, mas acreditando, no fundo, no fracasso do empreendimento. Craveiro escreve: “Esperam com os corações à toda máquina, uma realização cinematográfica em Pernambuco, nada mais honroso para nós, esquecidos e miseravelmente dotados de uma cinematografia (?) que transparece a sua quase inexistência.” (FM/V, 28/ago/52, p.5) “O mais importante dos elementos em atividade no cinema nacional”, Cavalcanti despertou simpatia por ter escolhido o Recife para “a produção de um filme brasileiro, um filme sério”: “E é por esta razão, cineasta Alberto Cavalcanti, que temo pela sua sorte nestas paragens nordestinas, como diretor cinemático (...) Antes de tudo existe uma má vontade coletiva contra o cinema brasileiro (...) Incontáveis foram os realizadores fracassados no empreendimento de produzir películas sonoras. “(...) Ao mesmo tempo que receio pela sua sorte na realização de Canto do Mar, confio na sua capacidade diretorial, esperando, juntamente com todos os pernambucanos, a queda desse tabu pernicioso. “(...) não desacredito absolutamente num provável celuloide realizado seriamente, servindo o mesmo exemplo para o nosso caso; apesar de nunca ter havido uma película apresentável no norte, concebo que algum dia se fará alguma coisa menos medíocre”. (Idem, ibidem) Levando adiante a questão, Craveiro promove uma “Cine-Enquete”, entre setembro de 1952 e janeiro de 1953, período de produção e início das filmagens de Canto. Profissionais locais, na maior parte jornalistas, respondem aos itens: . “Um dos seus diretores prediletos?” . “Cite um bom intérprete” . “Um grande filme” . “Uma película terrivelmente ruim” . “Acredita que se possa realizar um celuloide apresentável em Pernambuco?” . “Seu nome?” As respostas à questão principal - a produção de cinema em Pernambuco - não deixam dúvidas. A maioria esmagadora responde NÃO, alguns até acrescentando três sinais de exclamação para enfatizar ainda mais a negativa. O único a não se posicionar sobre o assunto é Alencar: “prefiro não responder” (FM/V, 30/set/52, p. 6). Como não poderia deixar de ser, a “Cine-Enquete” de Craveiro alcança a devida repercussão na crônica local. E, entre outros aspectos, serve para estabelecer até que ponto Canto é visto como uma produção pernambucana, como alardeava, por exemplo, a manchete do Diário da Noite (“Canto do Mar, um filme pernambucano”). Assinando a coluna “Cinelândia”, André Gustavo Carneiro Leão escreve sobre o filme que Cavalcanti pretende realizar no Recife:

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“será um retrato poético da vida de Pernambuco. Um pedaço de nossa terra, um retrato vivo e artístico de nossa gente. Caso o filme se realize, e devemos uma eterna gratidão a este abnegado homem de cinema.” (DN, 07/out/52, p.4) Apesar de ser “um pedaço de nossa terra”, o filme de Cavalcanti não é encarado por Leão como uma produção pernambucana. Ao comentar em seguida a enquete de Craveiro, ele distingue entre “fazer um filme em Pernambuco” (é o caso de Cavalcanti), que acredita ser possível, e “Pernambuco fazer um filme”, cuja viabilidade duvida. E explica por que: “Que existam cineastas, capital e estúdios pernambucanos isto sim é que é problemático. Bastaríamos citar as dificuldades que o próprio Alberto Cavalcanti tem encontrado para conseguir alguma ajuda para a realização de seu filme. Existe uma descrença geral, uma ideia generalizada que o cinema não merece especiais atenções. Isto é simplesmente lamentável, a começar pela própria enquete.” (Idem, ibidem) Craveiro não deixa as críticas passarem em branco. Segundo ele, à pergunta sobre a produção em Pernambuco, “subentende-se rapidamente e logicamente: ‘produzir um filme em terras pernambucanas com nosso material técnico e humano’” (FM/V, 09/out/52, p.6). De qualquer maneira, é evidente que a enquete surge no rastro do projeto anunciado por Cavalcanti e sobre ele projeta seus resultados. Se, “logicamente”, a enquete parece não remeter diretamente a Canto - a menos que Cavalcanti e a Kino Filmes sejam considerados material técnico e humano “nosso” -, na prática ela acaba por acentuar um certo clima adverso, ou no mínimo cético, em torno do filme, através da própria formulação da pergunta e da publicação de tantas respostas negativas. Tanto é assim que, quando Craveiro identifica de onde vêm as críticas à enquete, ele vai direto ao grupo “pró” Cavalcanti: “Os ilustres cidadãos partidários do pequeno e unido bloco dos que acreditam ou fingem acreditar no valor de O Canto do Mar não gostaram e sobretudo lamentaram a criação da nossa ‘enquete’.” (Idem, ibidem) Veterano da crônica, L. consegue manter alguma neutralidade, aproveitando a ocasião para insistir em questões que estão sempre presentes nas suas considerações sobre cinema brasileiro e pernambucano. Ele comenta a enquete e expõe seu ponto de vista nos seguinte termos: “A maioria das pessoas que têm sido ouvidas pelo cronista de “Ronda Cinematográfica” [nome da coluna de Craveiro] sobre se consideram possível a produção de filmes de longa-metragem em Pernambuco, respondem com um não rotundo e definitivo. Gostaria que o inquérito fosse mais amplo: e que cada depoente indicasse o porquê de sua descrença. “Para mim faltam-nos vocações e dinheiro. E não se alegue com o exemplo de Cavalcanti. Concluído o seu filme (ao qual Alencar está prestando valiosa cooperação), o cineasta patrício irá embora - e continuaremos sem produzir longas-metragens. Se tivéssemos aqui quem entendesse de cinema, o caminho estaria meio andado. Agora, pensar em rodar um filme com improvisados

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técnicos, com diretores tirados do bolso e atrizes pedidas por empréstimo ao rádio é que resultaria num esforço não somente inútil (tendo em vista as consequências imediatas de agravamento na desmoralização que é a sombra constante da nossa famigerada produção cinematográfica) [sic].” (DP, 23/out/52, p.6) O temor da “desmoralização” explica o alívio demonstrado por Craveiro diante dos boatos de que Cavalcanti iria transferir as locações de Canto para o Rio Grande do Norte, devido a “algumas dificuldades” (JC, 03/out/52, p.4). Escreve Craveiro: “Sem querer desmerecer a capacidade direcional de Alberto Cavalcanti - nome e personalidade que nos são muito simpáticos - não acreditamos na realização de um celuloide apresentável em Pernambuco, e menos no Rio Grande do Norte. Percebe-se, portanto, que a atitude do condutor de Simão, o Caolho não foi de toda maléfica para nós desta terceira cidade do Brasil. Se vier constrangimento, esses procederão de outro estado; o nosso permanecerá virgem, puro, quase divino, alheio a atual fase cinematográfica brasileira, contagiada pela sordidez.” (FM/V, 06/out/52, p.7) Quando são esclarecidos os boatos sobre o local das filmagens, Craveiro lamenta que Canto: “por uma dessas coisas somente acontecidas de cem em cem anos, será mesmo rodado neste Estado. A condescendência do povo pernambucano é ilimitada...” (FM/V, 27/nov/52, p.6) Três dias antes de sua resposta às críticas de Leão, Craveiro assume, sem maiores constrangimentos, que é de fato o filme de Cavalcanti que está em questão na pergunta colocada pela enquete, contradizendo a explicação “lógica” que daria pouco depois, especificando que deveria se tratar de uma produção “com nosso material técnico e humano”. No mês seguinte, na falta de bons filmes para comentar, Craveiro responde à sua própria enquete: “Sobretudo, não creio no cinema brasileiro. Em relação a O Canto do Mar, creio somente haver o interesse comercial, mascarado ingenuamente como espetáculo cinematográfico.” (FM/V, 24/nov/52, p.6) Se para Craveiro a “desmoralização” relaciona-se à “sordidez” do atual cinema brasileiro, para L. ela possui um referente bem mais específico, chamado Coelho Sai - o único filme sonoro de enredo produzido em Pernambuco entre o Ciclo do Recife e O Canto do Mar (cf. ANEXO). Lançado em novembro de 1942, o filme recebeu críticas ferozes de L., revoltado com a improvisação e o oportunismo que na sua opinião guiaram a feitura da obra. A história do cinema em Pernambuco, no entanto, não se presta apenas a exemplos considerados desmoralizantes. Em contraposição ao repudiado Coelho Sai, se sobressai o orgulho cinematográfico do estado, o Ciclo do Recife. Um movimento que, nas palavras do cronista Luiz Vieira, confere a Pernambuco as credenciais de “pioneiro da cinematografia nacional” (DN, 28/ago/52, p.8).

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A expectativa quanto ao filme de Cavalcanti tem como baliza, como parâmetro, estes dois momentos: O Canto do Mar será um sucesso, fazendo jus ao pioneirismo cinematográfico de Pernambuco (o Ciclo do Recife) ou será mais uma prova de que é impossível fazer um cinema sonoro “apresentável” na região (Coelho Sai é exemplo de improvisação e má qualidade artística). Enquanto a imprensa tece considerações em torno de Canto, Cavalcanti leva adiante a produção. No final de agosto de 1952, ele retorna a São Paulo, “depois de cinco dias de intensivos trabalhos e entendimentos para a realização do seu próximo filme”. Dois nomes da equipe já estão escolhidos: Hermilo Borba Filho escreverá os diálogos e José de Sousa Alencar será assistente de produção (outro jornal fala em assistente de direção, FM/V, 01/set/52, p.5). Cavalcanti planeja voltar na segunda quinzena de setembro, e logo em seguida, no início de outubro, começar as filmagens (DN, 28/ago/52, p.8). No mês seguinte, como previsto, e contrariando a insinuação de Renata Cardoso (“Voltará?...”), Cavalcanti está de volta. A coluna “Cinelândia” registra que ele vem trabalhando “ativamente na realização do seu roteiro técnico”, apesar do projeto ser “coisa que muitos pessimistas consideram como impraticável” (DN, 26/set/52, p.8). Em princípio de outubro, começa a chegar a equipe: o fotógrafo Cyril Arapoff, o cenógrafo Ricardo Sievers, o maquiador Jorge Pisani e o diretor de produção Osvaldo Katalian (DN, 07/out/52, p.4). Para compor a música do filme, Cavalcanti convida Guerra Peixe, cujo trabalho em Terra é Sempre Terra Cavalcanti considera “a melhor partitura do cinema brasileiro” (FM/M, 23/set/52, p.11). A crônica especializada segue os passos de Cavalcanti. L. escreve sobre os preparativos para a filmagem de Canto, cujo “roteiro técnico” já está concluído e as locações, escolhidas. Cavalcanti e os técnicos aprovaram “as características locais, sobretudo a luz e o ambiente, como ideais para a filmagem (...) A própria topografia da cidade se presta maravilhosamente para a tomada de exteriores.” (DN, 14/out/52, p.6) Contando com a colaboração do Instituto Joaquim Nabuco, do Patrimônio Histórico e da Diretoria de Documentação e Cultura, o cineasta “tem percorrido alguns locais de representações populares para o estudo e aproveitamento destes motivos regionais em seu filme”. Na lista dos atores já escolhidos para o elenco estão: Margarida Cardoso, Alfredo Oliveira, Cacilda Lanuza, Glauce Bandeira, Miriam Nunes e Antônio Martinelli. Cavalcanti é o assunto do momento: “Existe grande interesse e expectativa na cidade em torno da filmagem, que deverá começar no próximo dia 20, estando Cavalcanti aguardando a chegada do resto da equipe composta de quase vinte elementos, para início da filmagem. Os jornais e emissoras locais têm dedicado expressivas entrevistas e irradiações aos trabalhos de Cavalcanti e sua equipe.” (Idem, ibidem) Nos suplementos dominicais, as páginas dedicadas a cinema publicam regularmente materiais de divulgação de Canto, desde fotos dos atores e das locações até pequenas biografias dos principais técnicos da equipe, além de inúmeras informações sobre a carreira de Cavalcanti. Cada etapa da produção ganha publicidade e tudo serve para reforçar as qualidades e a seriedade do filme. Ao lado do desenho de um dos cenários, por exemplo, ficamos sabendo que o cenógrafo Ricardo Sievers

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“dedica-se, atualmente, aos desenhos da produção, num estudo detalhado da arquitetura popular nordestina”. Enquanto isso, Cavalcanti conclui o roteiro técnico e “tem se dedicado a filmar alguns exteriores, enquanto se dedica ainda a estudar alguns aspectos do folclore nordestino. Procurando expressar em seu filme toda riqueza folclórica de Pernambuco, fazendo um trabalho puramente regional, Cavalcanti pretende continuar com sua orientação de lutar e sobretudo de realizar filmes que possam expressar realmente a alma e a poesia brasileira.” (DP, 26/out/52, 2ª Seção, p.3) Na divulgação dos “serviços preparatórios” de Canto, o apoio oficial é citado insistentemente: “Com a cooperação do dr. Airton de Carvalho, engenheiro-chefe do Patrimônio Histórico do Estado de Pernambuco, o alojamento para complemento da equipe está sendo preparado em Olinda, esperando-se a chegada desses técnicos dentro de poucos dias, quando será iniciada a filmagem. “(...) Organizados pelo Departamento de Documentação e Cultura, estão sendo preparados um Bumba-meu-boi e um Maracatu, que servirão de fundo a duas importantes cenas do filme. Dançarinos de frevo estão sendo escolhidos para tomar parte numa terceira sequência. E o Instituto Joaquim Nabuco, por sua vez, forneceu a documentação sobre o Xangô, uma das mais importantes atrações folclóricas do filme. “Enquanto concluía a confecção do vestuário, já desenhado, Cavalcanti seguiu para a zona sertaneja do Estado, num avião cedido à equipe pelo secretário de Agricultura, dr. Gomes Maranhão, cujo interesse pelo filme tem sido dos mais animadores. “(...) O Arcebispo do Recife facilitou ao cineasta brasileiro a escolha de ambientes e esculturas de estilo barroco, que têm no filme um importante papel.” (DP, 09/nov/52, p.2) O release relata também os ensaios de Cavalcanti com o elenco e as discussões em mesa redonda, “hábito extra-rotina no mundo cinematográfico”. O cineasta “mostrou-se plenamente satisfeito com a conduta e talento” dos atores. Ainda segundo o texto, “apesar da filmagem oficial não ter sido iniciada, há três dias a câmera funcionou na tomada de exteriores” (idem, ibidem). Cavalcanti concretiza seu desejo inicial, exposto na primeira entrevista ao Diário da Noite, de formar o elenco de Canto exclusivamente com profissionais pernambucanos. Do teatro, vêm atores já conhecidos como Margarida Cardoso e Alfredo de Oliveira; do rádio, são escolhidas as “radioatrizes” Cacilda Lanuza, Miriam Nunes e Aurora Duarte (pseudônimo de Diva Mota). Mulher do cinegrafista Valter Mota e ligada ao grupo de cineamadores, Aurora participou de dezoito filmes amadores antes de fazer o teste para Canto 25. Numa das reportagens sobre o filme, ela conta seu primeiro encontro com Cavalcanti, que a acolheu “com fino cavalheirismo, afável e gentil”. Depois de elogiar os “companheiros

Depoimento da atriz ao programa “Projeto Memória”, da TV Universitária do Recife, com produção e apresentação de Luís Maranhão Filho. 25

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de trabalho”, ela assegura que Cavalcanti “ainda é o único cineasta capaz de redimir o cinema nacional” (DN, 14/jan/53, p.8). Enquanto os jornais publicam fotos do elenco, o papel do protagonista Raimundo permanece vago. Anuncia-se o início das filmagens para o dia 20 de outubro, ainda com o elenco incompleto. Mas, entre os atores escolhidos, alguns nomes já despertam reservas em Craveiro: “Esperamos emocionados, com o coração em disparada, que O Canto do Mar não seja um fracasso. Alguns intérpretes já estão comprometendo a realização...” (FM/V, 15/out/52, p.6) No final do mês, Cavalcanti está no sertão e a Folha da Manhã (Matutina) registra a dificuldade “para preenchimento da vaga de astro principal”. Os candidatos que já se apresentaram não fizeram jus “aos requisitos mínimos para o tipo desejado” (FM/M, 29/out/52, p.11). Em meados de novembro, a situação ainda não se define. “Comenta-se” que o poeta Felix de Athayde será o “provável intérprete principal masculino” do filme (FM/V, 17/nov/52, p.6), mas a notícia não se confirma. Finalmente, em dezembro, surgem as primeiras fotos de Rui Saraiva, o “astro principal” de Canto. A demora é compensada por empolgadas previsões: “grande descoberta de Cavalcanti”, Saraiva “será uma das maiores revelações do cinema nacional” (DP, 21/dez/52, 2ª Seção, p.3). Mas não é só de grandes fatos que se alimenta o interesse em torno de Canto. Episódios, anedotas e curiosidades à cerca das filmagens também povoam as crônicas e os materiais de divulgação. Um dos “colaboradores” do filme, Mauro se propõe a contar fatos que se passam nos bastidores e que por certo irão interessar aos “curiosos do Cinema” (FM/M, 28/jan/53, p.11). No entanto, publica apenas um “Diário de Filmagem”, narrando um incidente com o ator Alfredo de Oliveira. Pronto para filmar a cena do internamento no hospício, Cavalcanti chama atenção do intérprete: “Você é o ator mais relaxado do mundo! Onde estão as suas alpercatas para esta cena?”. Oliveira pára um vendedor de roletes de cana, dá 10 cruzeiros em troca de suas velhas alpercatas, e os trabalhos continuam (FM/M, 30/jan/53, p.11). Um texto de divulgação relata as filmagens em São José do Egito - cidade do interior do estado -, na Ilha de Itamaracá e na praia do Rio Doce, onde um velho morador, observando a cena da chegada do pau-de-arara, carregado de retirantes, observa que um filme com tanta miséria “só poderia ser obra de ‘propaganda comunista’” (DP, 21/dez/52, 2ª Seção, p.3). Comunista ou não, o filme vale-se, como vimos, das facilidades proporcionadas pelo governo do estado. Uma das “Notas de Filmagem” agradece à Marinha, e especialmente ao Almirante Cox, por interromper os trabalhos de demolição do Forte do Buraco, para que pudessem ser filmadas cenas de amor entre os personagens Aurora e Raimundo (DP, 29/mar/53, 2ª Seção, p.3). Também não faltou apoio para a realização da sequência do xangô. Cavalcanti “reproduziu nos armazéns do Instituto do Açúcar e do Álcool, exatamente como no original, a sala de um xangô existente na Campina do Barreto [bairro do Recife]. Em colaboração com o Instituto Joaquim Nabuco, conseguiu levar todo o pessoal do xangô para o local de filmagem e, durante dois dias, conseguiu filmar cenas inéditas deste culto popular.” (DP, 24/maio/53, 2ª Seção, p.3)

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Para as primeiras filmagens noturnas, na rua Vigário Tenório, o calçamento foi molhado pelo Corpo de Bombeiros. E, graças ao apoio da polícia, que isolou o quarteirão, foi possível filmar na rua de São José. É o que informa o release “O Canto do Mar em sua fase decisiva”, com fotos de Raimundo (Rui Saraiva) na igreja e abraçando o pai, e de um pescador em Rio Doce. A chegada de todo equipamento de som e iluminação permitiu rodar as cenas na Capela de São Francisco - num trabalho que durou 24 horas. Tudo isso porque, “adotando a técnica do semidocumentário, Cavalcanti tem filmado nas ruas e nos locais mais representativos do Recife”. Do centro da cidade, o cineasta e sua equipe seguem para a praia de Rio Doce, onde realizam as “cenas de interiores numa pequena bodega decorada especialmente para o filme” (DN, 14/mar/53, p.5). Menos formal que os textos de divulgação, o cronista Duarte Neto escreve sobre o dia em que avistou um “aglomerado” perto da Igreja do Rosário [centro do Recife]. Primeiro pensou que fosse convocação para a guerra da Coreia, depois que fosse um incêndio, e assim por diante. Até que entendeu se tratar das filmagens de Canto. Duarte conta o que viu: “O cineasta Cavalcanti, tal a sua simplicidade e displicente elegância, mais parecia um paisano em viagem de turismo, pois, dentro da algazarra que faziam os seus auxiliares, era quem menos falava, gesticulava, providenciava, se bem, reconhecidamente, fosse a turbina que movimentava todas aquelas peças inanimadas. “Provavelmente todo aquele fatigante trabalho daria, dentro do filme, uma cena de segundos. Um sentimento de amistosidade e de tolerância me aproximava do cineasta e desejei, intimamente, que O Canto do Mar o reabilitasse diante das nossas plateias. Com este pensamento deixei o local de filmagem.” (FM/V, 01/abr/53, p.6) Ao contrário dos textos de divulgação, Duarte retrata um Cavalcanti vulnerável, cercado de auxiliares “inanimados”. O cineasta brasileiro de renome internacional dá lugar ao profissional esforçado que merece se “reabilitar” diante do público. Talvez não do público exatamente, mas diante do próprio cronista. Porque quando Duarte fala em reabilitação é certo que tem em mente o seu desagrado em relação ao trabalho de Cavalcanti na Vera Cruz e aos filmes do diretor exibidos nos últimos meses no circuito comercial. Quando Simão, o Caolho estreia no Recife, Duarte escreve críticas pesadas às atividades de Cavalcanti no Brasil. De sua permanência na Vera Cruz saiu Caiçara e Terra é Sempre Terra, “dois filmes duvidosos que nada fizeram pela grandeza do nosso cinema”. Quanto ao INC, “ao que tudo indica, jamais será útil ao cinema brasileiro”. Em tom apocalíptico, Duarte acredita que, com Simão, Cavalcanti “não faz senão reforçar aquela crença desagradável de que o Brasil não é terra de cinema, que a nossa língua não se presta ao cinema, que não temos atores e nos falta tudo.” (DN, 17/jan/53, p.3) Duarte critica no filme os “diálogos inexpressivos”, a escolha dos “tipos” e principalmente a “descarada propaganda” a Getúlio, “a pretexto de crítica social”. E pergunta:

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“Que motivos temos nós, depois de semelhante amostra, para continuar acreditando nos bons propósitos do sr. Alberto Cavalcanti? (...) Não deixaremos passar impune as suas licenciosidades artísticas, da mesma maneira que saberemos aplaudir as suas boas obras.” (Idem, ibidem) Como acontece em outros textos, Duarte muda de tom ao falar de Canto, substituindo a reprovação por uma suposta conciliação. Ele afirma discordar das “campanhas derrotistas” em torno do filme, pois ainda admira o “brasileiro que brilhou na Europa”. No final, apela para que o filme não reedite o fracasso de Simão (idem, ibidem). A mesma atitude pode ser detectada no comentário a O Transgressor (For Them That Trespass, 1948), último filme da fase inglesa de Cavalcanti, que Duarte inclui “entre as boas apresentações desta temporada”. Enumera, entretanto, algumas restrições: “flagrantes atentados à continuidade” na primeira parte do filme; a cena, “digna das chanchadas”, das mulheres brigando no bar; e alguns movimentos de câmera “inúteis e inoportunos”, que ferem a “pureza da realização”. Volta a repetir que Canto será uma fita “decisiva para sua reputação no Brasil” e a tarefa não será das mais fáceis porque “aqui no Brasil, além dos laboratórios deficientes e da pobreza dos nossos estúdios, conta o sr. Cavalcanti, entre os seus assistentes, apenas com alguns rapazes inexperientes, cândidos e inexpressivos.” (FM/V, 10/abr/53, p.6) Chamando atenção para o fato de Cavalcanti sempre ter trabalhado com bons assistentes na Inglaterra, Duarte acrescenta: “Por isso mesmo, há quem afirme que as vitórias do sr. Cavalcanti, no exterior, são devidas, em grande parte, aos seus bons colaboradores. Cabe a ele, agora que está dirigindo O Canto do Mar, e quando mais alarmantes são as improvisações, provar a leviandade de semelhante afirmativa. Neste ponto, estou do seu lado.” (Idem, ibidem) A insinuação de que o sucesso de Cavalcanti sobreveio do alto nível profissional dos auxiliares com quem trabalhou na Inglaterra surge também no comentário de Craveiro a Simão: “Não se pode levar a sério, no plano cinemático, essa realização de Alberto Cavalcanti (...) Observa-se, entretanto, que Cavalcanti, ao contrário do sucedido em terras inglesas, não possui uma colaboração eficiente dos seus assistentes (...) Simão, o Caolho é uma palhaçada integral.” (FM/V, 15/jan/53, p.6) Antes mesmo da estreia de Simão no Recife, Craveiro já bombardeava o filme, prevendo seu fracasso no circuito local (FM/V, 12/jan/53, p.6). Ao comentar as “primeiras críticas desfavoráveis” que chegam “da metrópole”, ele escreve: “Uma película que deveria superar as medíocres realizações nacionais, lançando-se como incentivadora da futura redenção do cinema brasileiro, agora transferida para tempos distantes e muito além da presente geração de ‘cineastas’.” (FM/V, 10/nov/52, p.6)

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Quanto a O Transgressor, que merece alguns elogios de Duarte, Craveiro não vê nele qualquer qualidade: “película apática, inexpressiva e com profunda economia de bons momentos de cinema”; a direção é “fragilíssima”. Craveiro transcreve artigo de Topaze, da Última Hora. Abertamente hostil a Cavalcanti, Topaze lembra que, com O Cangaceiro, Lima Barreto provou ser “possível realizar uma obra notável como a sua, sem ter feito um aprendizado prévio na Grã-Bretanha”. Ela chega a definir Caiçara e Simão, o Caolho como “abomináveis choldras vomitativas, vergonhosas e reles”, onde o cineasta “deu tudo o que tinha, e que foi aquilo que vocês viram” 26. Craveiro conclui: “Que o novo celuloide do nosso experiente Cavalcanti seja sua redenção”. Substituída a “reabilitação” mencionada por Duarte pela “redenção”, fica claro que, de Canto, espera-se no mínimo a expurgação dos pecados de Cavalcanti (um estrangeiro no próprio país, a atuação desastrosa no Brasil) e a salvação do cinema brasileiro. Cavalcanti como o Salvador. Nada mais. A decepção causada por O Transgressor faz Agostini reconhecer que o filme “chegou às nossas telas em hora imprópria, justamente num instante em que todos nós esperamos, confiantemente, um grande Canto do Mar. O cartaz de Cavalcanti caiu, por isso. Mas não há de ser nada. Os gênios também são seres humanos...” (JP, 09/abr/53, p.4) Nessa produção inglesa, a “primeira falha terrível de Cavalcanti” é o “fraquíssimo” desempenho dos atores, e a segunda é a “frieza dos personagens”, que não convencem” - tudo colaborando para um filme “gélido” e “insosso” (idem, ibidem). Cavalcanti não se sai melhor na avaliação de Simão feita por Renata Cardoso, para quem a película, “cheia de deslizes e lugares-comuns”, “não foi levada a sério pelo seu diretor”. Na sua opinião, o “aborrecimento” despertado pelo filme “vem da falta de tato demonstrada pelo diretor, utilizando velharias como sejam: a repetição cômica; o abuso do diálogo; a caracterização mal cuidada dos tipos; 26

Em correspondência enviada em abril de 53 ao crítico Benedito J. Duarte, da revista Anhembi, Cavalcanti escreve sobre Topaze: “Aproveito uma nova parada desse encantado O Canto do Mar, ainda por falta de filme virgem, para dar notícias e um abraço, aproveitando a oportunidade para mandar-lhe três documentos para os seus arquivos: primeiro, é uma crítica muito estranha dessa mais estranha senhora Topaze, que parece ser a esposa do sr. Samuel Wainer. Esta senhora tem uma maneira sui generis de fazer crítica e uma verdadeira obsessão a meu respeito. Dizem os amigos do Rio que a campanha não é tão gratuita quanto parece, pois ela está pleiteando a presidência do Instituto Nacional de Cinema. ‘Oh! doux pays’! Que é que eu tenho a ver com O Cangaceiro para ter um bom terço desta crítica a meu respeito? (...) Como ainda não me acostumei com o fato de ser tão atacado sob pretexto do sucesso de O Cangaceiro transformado em “gato morto”, gostaria que você guardasse esses três documentos [o artigo de Topaze; uma entrevista com Lima Barreto publicada na revista Manchete, na qual, segundo Cavalcanti, Lima insulta sua equipe; e uma carta de desagravo escrita por um dos colaboradores de Cavalcanti]. Sei que Anhembi já fez o máximo a meu favor, acho mesmo melhor que nós façamos o possível para deixar morrer tão nojenta campanha.” In: DUARTE, B.J. Caçadores de imagens - Nas trilhas do cinema brasileiro. São Paulo, Massao Ohno - Roswitha Kempf, 1982.

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a representação novelesca em algumas cenas; e, principalmente, a infantilidade de querer fazer ‘blague’ política, pensando que isso agradaria, ou que fosse novidade.” (DP, 21/jan/53, p.6) Às vésperas da estreia de Canto, o cronista de assuntos gerais Altamiro Cunha espera do filme “a relevância de uma obra de arte”, à altura daquelas dirigidas em Londres por Cavalcanti, “embora em seu desfavor exista Simão, o Caolho, um filme de caráter comercial e medíocre, evidentemente de má impressão para a seriedade artística do autor (DN, 02/out/53, p.6). Assim como as críticas desfavoráveis recaem especialmente na direção, também as resenhas elogiosas dos filmes produzidos e/ou dirigidos por Cavalcanti destacam a habilidade do cineasta. Apesar de encontrar em Ângela “um cinema sem características, improvisado e confuso”, Ralph aponta as cenas do teatro e do sonho, filmadas pelo produtor Cavalcanti, como as melhores do filme (JC, 05/dez/52, p.4). Ao comentar Simão, “o melhor filme produzido no Brasil” em 1952, Juvenal Félix também vai procurar na direção suas maiores qualidades: “O principal valor da película reside na maneira com que o diretor procurou documentar, dando um toque deliciosamente brasileiro, a vida de uma família paulista durante vinte anos de existência.” (JC, 17/jan/53, 2ª Seção, p.6) Para Mauro, Simão é “tecnicamente e direcionalmente, uma das melhores coisas já saídas dos nossos estúdios” (FM/M, 14/jan/53, p.11). Alencar, por sua vez, atribui a “vitória” do filme “exclusivamente à habilidade e inteligência de um homem experimentado” (DP, 18/jan/53, 2ª Seção, p.3). E se existem defeitos, esses devem ser creditados não a Cavalcanti, mas ao cinema brasileiro, como explica Ralph: “Por várias razões, mais do que um filme de Cavalcanti, Simão, o Caolho é um filme nacional. Isto significa que ele ainda apresenta, sem resolvê-los alguns problemas próprios do cinema brasileiro e, atualmente, nem mesmo a experiência, o talento, o bom gosto, e boa vontade de Cavalcanti conseguiram saná-los. Em segundo lugar, porque, indo de encontro à grande maioria de nossas produções, reflete, de maneira honesta e estudada, aspectos reais e característicos do Brasil - costumes, crenças, humor, etc.” (JC, 16/jan/53, p.4) A mobilização em torno da figura de Cavalcanti que se forma a partir dos filmes exibidos no circuito comercial e de todo movimento que cerca Canto é sempre reforçada pela participação do cineasta em eventos promovidos na cidade ou pela publicação de textos seus na imprensa. Além dos artigos de Cavalcanti no Jornal do Commercio - sobre o cinema oficial (JC, 28/set/52, 2ª Seção, p.6), os italianos no cinema brasileiro (JC, 06 e 14/fev/53, p.4) e cineamadorismo no Brasil (JC, 26/abr/53, 2ª Seção, p.6) -, são várias as transcrições de depoimentos do cineasta e até a reprodução de trechos do seu livro Filme e Realidade e dos telegramas que recebeu parabenizando-o por Simão (JC, 30/out/52, p.4). Marcando presença no circuito local, Cavalcanti preside o júri do I Concurso Nordestino de Cinegrafistas Amadores; faz conferência na Faculdade de Direito, ao lado do fotógrafo Cyril Arapoff (DP, 19/out/52, 2ª Seção, p.3); apresenta uma das sessões de Simão, o Caolho, em cartaz no cinema São Luiz (FM/M, 13/jan/53, p.11); e promove a exibição de Filme e Realidade, uma “antologia cinematográfica compilada

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por Alberto Cavalcanti” (JC, 01/jan/53, p.8), que leva “algumas centenas de pessoas” ao salão de cinema da Rádio Clube (DN, 06/jan/53, p.3). Discursando antes da projeção de Filme e Realidade, Cavalcanti avalia a acolhida recifense: “há mais de três meses, a vanguarda da minha equipe está comigo em Pernambuco, lutando para a realização de nosso novo filme O Canto do Mar. Tem havido a respeito do nosso trabalho boa vontade e encorajamento de alguns, desconfiança ou indiferença de muitos e até, o que parece incrível, aberto antagonismo de uns poucos, destes que a gíria qualifica de ‘turminha do contra’, infelizmente inevitáveis no Brasil, como certos insetos daninhos: traças ou mosquitos.” (JC, 11/jan/53, 2ª Seção, p.6) Se por um lado a ‘turminha do contra’ jamais deixou de colocar em dúvida a capacidade de Cavalcanti e a viabilidade de Canto, por outro lado sempre houve reações entusiasmadas e, não raro, ufanistas - vindas dos cronistas da turma “pró” Cavalcanti ou veiculadas através dos textos de divulgação -, apostando todas a fichas do cinema brasileiro e pernambucano no espetacular sucesso de Canto. Diante das primeiras cenas, filmadas no sertão, e comprovada a “magnífica qualidade fílmica do copião chegado recentemente do Rio”, uma reportagem conclui que “O Canto do Mar será não somente um filme digno do nome de Cavalcanti mas honrará a cinematografia nacional.” (DN, 26/dez/52, p.4) Empolgado por definição, o material promocional vai mais além, falando até numa futura “indústria cinematográfica” no Recife que seria impulsionada por Cavalcanti: “Uma boa escola de técnicos pernambucanos poderá surgir do contato e da colaboração com o seu trabalho [de Cavalcanti], além da experiência e do estímulo que dará àqueles que trabalham, em modestos laboratórios, por uma indústria cinematográfica no Recife. Ademais O Canto do Mar mostrará ao Brasil não somente a beleza e a riqueza folclórica de Pernambuco, mas também as vantagens naturais da região para a realização de filmes.” (DP, 14/dez/52, 2ª Seção, p.3) O texto chama atenção para o “valor humano e social que a sequência do sertão emprestará ao filme. Não somente a beleza das planícies áridas foi captada pela sua câmera, mas toda a realidade do povo e dos costumes locais.” (Idem, ibidem) Embora nem sempre seja defendida a contribuição de Canto para o cinema pernambucano, o “valor humano e social” do filme é, com ligeiras variações, constantemente reiterado, seja nos textos de divulgação ou nas crônicas. Ao fazer o balanço do ano de 1952, Alencar conjuga esses dois tópicos quando prevê que Canto:

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“não será apenas um filme feito em Pernambuco, refletindo os nossos costumes e a alma de nossa gente. Será uma película que irá projetar Recife como um futuro campo para a realização de películas. O interesse despertado pela chegada do famoso cineasta é prova concreta da significação do seu trabalho.” (DP, 04/jan/53, 2ª Seção, p.3) Em meados de março de 1953, quando a equipe volta a filmar, trabalhando de madrugada até a noite, depois de esperar quase dois meses para a chegada de técnicos de som e aparelhos especiais, um texto não assinado (provavelmente release) divulga as informações acima, concluindo com grande expectativa: “Espera-se que O Canto do Mar surja como o melhor filme brasileiro até agora feito, a fim de que se afaste de vez o tabu que pesa sobre o cinema nacional.” (FM/V, 11/mar/53, p.6) A estreia na cidade em maio de O Cangaceiro, premiado em Cannes, opera uma ligeira alteração no eufórico discurso em torno de Canto. A euforia permanece, mas agora no sentido de igualar o feito de Lima Barreto. E se existe algum tabu para colocar por terra não diz mais respeito ao cinema brasileiro - premiado em festival internacional -, e sim à produção cinematográfica em Pernambuco. É este pensamento que detectamos numa das crônicas de Luiz Vieira sobre o sucesso em Cannes do filme de Barreto e a expectativa em relação a Canto: “É pensamento do diretor Alberto Cavalcanti levar a um certame internacional desses o seu O Canto do Mar. Esperemos que ele possa, igualmente, brilhar com esse filme pernambucano, cobrindo novamente de glórias a Sétima Arte nacional. Pernambuco, que foi o berço e a força do cinema brasileiro, no tempo do mudo, parece estar fadado a reafirmar o seu prestígio, com esse O Canto do Mar, que foi todo, de ponta a ponta, realizado entre nós. E temos a certeza de que a película de Cavalcanti vencerá, porque ela não foi aventura nem experiência, mas esforço sério de um diretor de reconhecida capacidade profissional, como o é, de fato, Alberto Cavalcanti.” (DN, 04/ago/53, p.4) Que Vieira precise lembrar a capacidade profissional de Cavalcanti, depois de um ano de intensa publicidade sobre Canto e seu realizador, dá a medida de quanto o sucesso do “cabotino” Barreto colocou em cheque o prestígio do “cineasta brasileiro de renome internacional”. Foi Barreto, e não Cavalcanti - como todos esperavam -, quem quebrou o “tabu” do cinema brasileiro. Explícita ou não, a comparação marca presença, para espanto do próprio Cavalcanti, que não entende qual o mecanismo que, sob a justificativa do sucesso de O Cangaceiro, transforma ele, Cavalcanti, em “gato morto” 27 . Em maio, Alencar transcreve artigo da revista Habitat, de São Paulo, sobre Alberto Cavalcanti e Canto, no qual afirma-se, em certo trecho, que o cineasta está realizando “praticamente sozinho” seu filme (DP, 17/maio/53, 2ª Seção, p.3). Mauro não deixa a ofensa passar em branco e escreve a crônica “Um reparo ainda em tempo”, corrigindo o que considera uma injustiça:

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Idem, ibidem.

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“Sua tenacidade [de Cavalcanti], seu esforço e sua incrível capacidade de trabalho, fizeram com que o filme fosse uma realidade e saísse como ele julgou que deveria ser. Agora entre isto e afirmar que ele está trabalhando sozinho vai uma injustiça muito grande. Será negar o valor insofismável dos seus colaboradores, dedicados e atentos às menores ordens emanadas da direção.” (FM/M, 23/maio/53, p.11) O “reparo” não deixa de ter seu lado pessoal, já que o próprio Mauro trabalhou na equipe do filme, inicialmente como contra-regra e depois como assistente, segundo ele. As filmagens de Canto terminam no dia 03 de junho de 1953. Numa recapitulação cronológica, destacaríamos os seguintes momentos: - meados de agosto/52: Cavalcanti está no Recife para preparar a filmagem do seu próximo filme, O Canto do Mar. Fica cinco dias na cidade - segunda quinzena de setembro/52: de volta ao Recife, Cavalcanti “trabalha ativamente na realização do seu roteiro técnico” (DN, 26/set/52, p.8) - início de outubro/52: chegada da “equipe de vanguarda” de Cavalcanti: Cyril Arapoff (fotógrafo), Ricardo Sievers (cenógrafo), Jorge Pisani (maquiador) e Osvaldo Katalian (anunciado como assistente de direção, mas creditado posteriormente como diretor de produção) (DN, 07/out/52, p.4 e DP, 14/out/52, p.6) - 20/out/52: início das “filmagens dos exteriores”, depois da onda de “boatos e inverdades”, segundo os quais Canto não seria mais filmado em Pernambuco, mas no Rio Grande do Norte (FM/V, 21/out/52, p.6). Concluído o “roteiro técnico”, Cavalcanti estuda “alguns aspectos do folclore nordestino” (DP, 26/out/52, 2ª Seção, p.3) - início de novembro/52: Cavalcanti ensaia com os atores e promove discussões em mesa-redonda (DP, 09/nov/52, p.2) - 17/nov/52: surge o nome do poeta Felix de Athayde como “provável intérprete principal masculino” de Canto (FM/V, 17/nov/52, p.6) - final de novembro/52: Cavalcanti está em São Paulo, “a fim de conseguir filmes virgens” (FM/V, 24/nov/52, p.6) - dezembro/52: início “oficial” da filmagem no dia 20. Concluída a sequência dos retirantes, filmada no sertão (DN, 26/dez/52, p.4). Escolha de Rui Saraiva para o papel de Raimundo (DP, 21/dez/52, 2ª Seção, p.3). Guerra Peixe grava a música do filme nos estúdios da Rádio Jornal do Commercio (JC, 28/dez/52, 2ª Seção, p.6) - final de dezembro/52: a equipe permanece “inativa por um certo tempo”, durante as festas de fim de ano. Neste intervalo, reorganiza-se o programa de filmagem do mês de janeiro (JC, 17/jan/53, 2ª Seção, p.6) - primeiras semanas de 1953: fase “bastante ativa” das filmagens, previstas para serem concluídas antes do carnaval. Renata Cardoso pergunta: “Será uma alegria ou um tom de tristeza no período festivo? Sejamos otimistas...” (FM/V, 10/jan/53, p.6) - fevereiro/53: Cavalcanti estuda um roteiro do contista José Carlos Cavalcanti Borges, baseado na comédia O Poço do Rei (FM/V, 09/fev/53, p.6) - início de março/53: Chega à cidade o montador José Cañizares (JC, 06/mar/53, p.4). Canto em sua “fase decisiva”; primeiras filmagens noturnas (DN, 14/mar/53, p.5). Cavalcanti e equipe voltam a filmar depois de esperar quase dois meses pela chegada de técnicos de som e aparelhos especiais (FM/V, 11/mar/53, p.6). Com a retomada dos trabalhos depois do carnaval, a previsão é concluir as filmagens em “fins de abril” (DP, 01/mar/53, 2ª Seção, p.3)

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- 31/mar/53: anuncia-se que, após Canto, Cavalcanti irá realizar um documentário sobre as danças pernambucanas, destinado a países estrangeiros. O roteiro é de Hermilo Borba Filho, e o patrocínio, da sra. Iolanda Penteado (FM/V, 31/mar/53, p.6) - abril/1953: Mauro informa: “continuam acelerados os trabalhos na realização de O Canto do Mar, que já entraram em sua fase final”; a data prevista para a estreia é junho (FM/M, 08/abr/53, p.11). Enquanto isso, Cavalcanti escreve ao crítico Benedito J. Duarte, aproveitando uma “nova” parada do “encantado” Canto, “ainda por falta de filme virgem” 28 - maio/53: Hermilo Borba Filho começa a escrever uma biografia de Cavalcanti (JC, 23/maio/53, p.4) - 03/jun/53: término das filmagens de Canto. Hermilo Borba Filho sugere à Prefeitura do Recife organizar com toda a pompa a solenidade de pré-estreia do filme (FM/V, 03/jun/53, p.6) Enquanto o Departamento de Documentação e Cultura expõe fotos da filmagem de Canto, os atores Cacilda Lanuza, José Tobias e Auriceia Araújo seguem para São Paulo para “concluir a parte sonora” do filme. Nessa fase, Cacilda é, de todo elenco, a que maior destaque ganha na imprensa, com fotos e notas. Tratada como a “revelação dramática” de Canto (DN, 31/jul/53, p.4), ela recebe elogios do escritor José Mauro de Vasconcelos (JC, 30/jul/53, p.4) e, quando em São Paulo, é “muito assediada por repórteres e fãs” (DN, 01/ago/53, p.4). Na trilha de O Cangaceiro, especula-se em quais festivais internacionais Canto tomará parte. Fala-se em Veneza, Cannes... Já em setembro, Cavalcanti explica que o filme não participou do Festival de Veneza porque não foi concluído a tempo para a inscrição, mas assegura que irá para Cannes (DN, 23/set/53, p.1). Depois de marcada para o dia 19 de setembro e adiada para o dia 25, a “préestreia mundial” do filme no Recife ganha data definitiva: dia 03 de outubro. A Prefeitura encarrega-se de organizar a “sessão de gala”, com toda a pompa desejada: “Para essa sessão, que se realizará à meia-noite do dia 3 de outubro, no cinema São Luiz, serão distribuídos convites especiais às figuras de projeção em nossos meios artísticos e às autoridades. Às 22 horas, no salão de honra do Grande Hotel, a Prefeitura oferecerá um coquetel aos artistas e diretores do filme e às autoridades.” (JC, 29/set/53, p.4) Todo o empenho da Prefeitura e sua “bela atitude” ao patrocinar a noite de estreia funcionou, segundo Ralph, como uma “troca de homenagens”: “O Recife, através de sua Prefeitura Municipal, homenageou o cineasta; este, em seu filme, fez uma verdadeira homenagem, um autêntico hino, ao Recife, a Pernambuco, à beleza de nossa gente, de nossa tradição e nossa paisagem.” (JC, 03/out/53, p.4) Em entrevista publicada na primeira página do Diário da Noite, Cavalcanti justifica a escolha do Recife para assistir à primeira exibição de Canto:

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Idem, ibidem.

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“É um gesto de agradecimento pela valiosa cooperação prestada pelo povo à realização deste filme.” (DN, 23/set/53, p.1) Enquanto Cavalcanti e a Prefeitura trocam gentilezas, a crônica local lança-se em previsões. Apesar de publicado no dia seguinte à estreia, um texto sem assinatura garante que Canto “virá relembrar a fase áurea do cinema pernambucano, durante a qual nos revelamos pioneiros da cinematografia no Brasil.” (FM/M, 04/out/53, p.11) Ao que tudo indica, Canto será também “mais uma afirmação das surpreendentes qualidades que vem revelando a cinematografia brasileira”, como vislumbra um Editorial do Diário da Noite, que não esquece de se referir à nova obra de Cavalcanti como um filme pernambucano, por ter sido inteiramente realizada aqui e falar dos costumes e tradições da região (DN, 24/set/53, p.3). No mesmo caminho regional, segue o cronista de assuntos gerais Altamiro Cunha, para quem Canto “deve merecer acolhida entre recifenses, por se tratar de um celuloide cheio de coisas nossas” (DN, 02/out/53, p.6). Comentando o otimismo do colega, Craveiro enxerga aí “uma esperança muito brasileira” de encontrar em Canto o Cavalcanti dos bons momentos (Inglaterra e França) (DN, 03/out/53, p.3). Alencar e Mauro, por seu lado, como colaboradores de Cavalcanti, fazem questão de exaltar antes de tudo sua tenacidade, cercando-o de uma aura heroica. Para Alencar (assinando Ralph), Canto “demonstra o quanto Cavalcanti dispensa ao cinema nacional, que ele procura ajudar com uma experiência invejável e uma atitude das mais certas. Inegavelmente já devemos a ele o atual desenvolvimento do nosso cinema. Quanto ao Canto é um fruto do sacrifício e da abnegação. Somente aqueles que trabalharam com Cavalcanti sabem o quanto ele sofreu e teve de renunciar para que pudesse terminar o filme.” (JC, 03/out/53, p.4) Retratando a realização de Canto quase como um martírio, essa crônica é publicada no dia da estreia. Em linhas gerais, não difere muito do que Mauro escreve por ocasião do término das filmagens. Recapitulando os “empecilhos” enfrentados por Cavalcanti e sua equipe - “empecilhos que teriam feito muita gente disposta desistir” -, Mauro reflete sobre a exibição de Canto, dentro de dois ou três meses, ao público: “Ninguém poderá vaticinar ou prever qual será a sua repercussão junto a um povo como o nosso, praticamente insensível ante às boas realizações cinematográficas. Porém, o que ficará indelevelmente marcado na consciência de todo brasileiro honesto é o traço do esforço colossal de Cavalcanti em vir criar, como conseguiu, uma nova mentalidade cinematográfica em nosso país. Mesmo que O Canto do Mar se transforme no mais completo fracasso junto ao grande público, o que é uma hipótese quase impossível, valeu em todos os sentidos o esforço de seu diretor em querer fazer cinema da mais honesta das formas, numa indústria onde só aventureiros tinham oportunidade.” (FM/M, 10/jun/53, p.11)

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“Sacrifício”, sofrimento, renúncia, “esforço colossal”: é como se, diante de tantos percalços e “tabus”, o fato do filme ter sido concluído já fosse a maior das vitórias. Não se vê mais a euforia dos primeiros tempos de filmagem. Às vésperas da estreia, no entanto, o que predomina é a movimentação em torno da “première mundial” de Canto, o grande acontecimento social da cidade. “Patrocinando” o evento, a Prefeitura tira proveito da situação. Dos 450 convites impressos, dez ficaram com Cavalcanti e o resto, “com exceção de mais uns poucos que foram dirigidos a quem realmente tinha direito, foi transformado em prenda eleitoral”, de acordo com o cronista Alexandrino Rocha, para quem “no mínimo, dois vereadores serão eleitos, por intermédio daqueles convites”. Ele conclui, mordaz: “Mais dois filmes desses e a campanha para a sucessão governamental estará assegurada” (FM/V, 08/out/53, p.4). Além da distribuição dos convites com fins políticos, a exigência do traje a rigor é outra reprovação que se levanta diante do caráter um tanto elitista do aguardado acontecimento social. O cronista de teatro Otávio Cavalcanti protesta contra o traje de gala, observando que não vai todo “enfarpelado” para o jornal à tarde e ficar assim até a hora do filme: “desse modo, somente os ricos ou os diretores de jornal poderão assistir a tal ‘première’ de O Canto do Mar” (FM/M, 6/set/53, p.6). O protesto surte efeito, aprovando-se o traje “passeio” para a sessão (FM/M, 29/set/53, p.11). O cronista “Zé do Ponto” é quem assina a coluna “Ronda Cinematográfica” dedicada aos contratempos e pormenores da estreia, que nos últimos dias transformou o Recife na “grande cidade do cinema”. Os problemas começaram já na chegada da “comitiva” de Cavalcanti, formada por ele, o montador José Cañizares e o escritor Hermilo Borba Filho. Além de não mandar “sequer um funcionário” receber o cineasta no aeroporto, o Departamento de Documentação e Cultura também esqueceu de fazer as reservas no Grande Hotel: “Cavalcanti ficou mais vermelho ainda, mas a verdade é que não deu jeito ao caso”. Enquanto Cañizares seguia para o Hotel América, Cavalcanti “ficou aguardando as negociações junto ao Governo Estadual para ser hospedado de qualquer maneira no Grande Hotel, pois ameaçava até de sustar a exibição do filme no Recife. Finalmente os aposentos reservados para o Governo do Estado foram cedidos ao cineasta patrício.” (FM/V, 05/out/53, p.4) Resolvida a questão, o DDC ainda reembolsou a Kino Filmes “de todas as despesas realizadas com a vinda da comitiva até nossa cidade e providenciou imediatamente a compra das passagens para toda a comitiva” (idem, ibidem). Enfim, tudo pronto para a pré-estreia: “Não resta a menor dúvida que a noite foi deslumbrante e inédita para o Recife. O sr. Governador, Prefeito, altas autoridades, secretários de Estado, deputados, vereadores e um grande número de famílias da nossa melhor sociedade. Muita gente a ponto de superlotar o melhor cinema da cidade. Muita gente boa de pé, inclusive todos os artistas do elenco e pessoal da comitiva... O Cavalcanti, por gentileza de um fã, conseguiu uma cadeirinha...” (Idem, ibidem) Antes da projeção do filme, falaram Hermilo, Cavalcanti (que apresentou o elenco) e Genivaldo Wanderley, a última descoberta de Cavalcanti. Para o cronista “Zé do Ponto”,

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“O filme é de primeira qualidade (...) o elenco pernambucano esteve à altura das responsabilidades. Parabéns ao Cavalcanti e a toda sua ‘turma’, extensivos ainda ao Senhor Prefeito da cidade, que, através do Departamento de Documentação e Cultura, deu à nossa cidade este verdadeiro presente régio, que foi a primeira exibição mundial de O Canto do Mar.” (Idem, ibidem) O “presente régio” veio acompanhado de um violento incidente que o cronista sequer menciona no seu relato. Momentos antes da pré-estreia de Canto, o deputado José Santana é assassinado na calçada do cinema São Luiz, quando chega para assistir ao filme. Motivo do crime: brigas políticas no clã dos Santana, natural da cidade de Flores, no interior do estado, que devido às violentas intrigas da família passa a ser conhecida como a “Coreia do sertão”. No discurso da noite da pré-estreia, Hermilo Borba Filho exalta a importância de Cavalcanti no cinema mundial. Considera Canto o primeiro filme brasileiro do cineasta, já que na Vera Cruz ele foi “apenas” produtor e Simão, o Caolho é “um filme comercial produzido em péssima situação”. Ao destacar as qualidades do filme, Hermilo faz referência indireta a O Cangaceiro, de Lima Barreto, além de vislumbrar grandiosos horizontes para Pernambuco: “é o primeiro filme brasileiro com características próprias e de repercussão internacional, por sua história, seus tipos e sua paisagem (...) No filme estão a dor, a alegria, a música, o folclore de uma das regiões mais humanas do Brasil, há bem pouco tempo impiedosamente assassinada com uma película pretensiosa. O Canto do Mar projeta Pernambuco no cenário mundial e esse é, sem dúvida, um grande favor prestado ao Estado e ao seu povo pelo cineasta Alberto Cavalcanti.” (FM/V, 06/out/53, p.4) “Zé do Ponto” volta a falar sobre Canto, mas desta vez a notícia não é das mais favoráveis: o sr. Césio Regueira Costa ameaçou impedir o lançamento do filme no Recife por não constar nos agradecimentos o nome do Departamento de Documentação e Cultura. Apesar de Cavalcanti haver mencionado no discurso da noite de estreia o apoio da Prefeitura, através do DDC, as autoridades não se conformam com a ausência nos créditos do filme (FM/V, 08/out/53, p.4). Outra nota de “Zé do Ponto” informa que Cavalcanti pretende voltar ao Recife, “talvez” para filmar Terras do Sem Fim, baseado no livro de Jorge Amado. A recepção de Canto na imprensa leva o cronista a perguntar: “Vocês não acham que o Cavalcanti é corajoso, depois do nascimento de tantos ‘críticos’ de cinema no Recife, após a exibição mundial de O Canto do Mar?” (Idem, ibidem) De fato, é surpreendente o número de resenhas de Canto publicadas na imprensa local. Entre cronistas cinematográficos, colaboradores e colunistas de outras áreas, quase vinte profissionais dividem o espaço dos cinco jornais diários para escrever suas opiniões sobre Canto, seu diretor, as filmagens e comentar as próprias críticas ao filme. Sem contar as pequenas declarações. Numa só reportagem do Diário da Noite, nada menos que cinco entrevistados criticam Canto: o sub-secretário (de que?) Luiz Teixeira, o folclorista Jayme Gryz, o vereador e jornalista Dias da Silva, o repórter Romildo Cavalcanti e o jornalista Telha de Freitas. Na primeira página, a manchete

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reproduz a declaração de Teixeira: “Canto do Mar foi o Canto do Cisne de Cavalcanti”. Tanto essa quanto as outras opiniões convergem para um só ponto: o filme não correspondeu à expectativa. E não se esperava pouco. Depois do “mistério absoluto” que cercou a filmagem, com os atores guardando segredo sobre o enredo, “já se contava com a consagração de todos os protagonistas” e todos estavam certos de que “o filme seria assombroso pois era propósito de Cavalcanti desbancar o diretor de O Cangaceiro” (DN, 09/out/53, p.1). Enquanto o repórter Romildo Cavalcanti diz nunca se ter deixado levar pela onda em torno do filme e Jayme Gryz classifica a parte folclórica como “infamérrima”, Dias da Silva não modera o vocabulário, definindo Canto como “uma droga, e muitas vezes inferior a Simão, o Caolho, outra droga produzida por Cavalcanti”. Telha de Freitas, por sua vez, aponta como único mérito do filme o fato de ter focalizado a gente, as paisagens e os costumes pernambucanos, mas isso não impede que ele concorde com a opinião de Teixeira destacada na manchete (idem, ibidem). Na maior parte das crônicas sobre Canto, o tom predominante é mesmo o de decepção. E quase todos reconhecem, como o cronista Luiz Felipe, que o motivo desse sentimento foi a expectativa “demasiadamente otimista” em relação ao filme. Esperavase assistir no São Luiz a uma “obra-prima do cinema mundial”, um filme que “finalmente nos encheria de razão para falarmos sem constrangimentos no ‘cinema brasileiro’”. Apesar de não isentar Cavalcanti da responsabilidade por um filme “tão desigual” (“ele estava no dever de nos dar uma coisa muito melhor”), Luiz Felipe também leva em consideração a precariedade do esquema de produção: “E aconteceu que contamos apenas com a capacidade direcional de Cavalcanti, com a sua experiência e os seus sucessos na Europa e, ingenuamente, não contamos com os fatores adversos que Cavalcanti enfrentou, desde uma história banal, diálogos inexpressivos (e, o que é pior, pretensiosamente literários) até atores medíocres e outras dificuldades de ordem puramente técnica. Pois cinema, antes de ser arte, é técnica; isto é, antes de ser puramente a capacidade e o talento de determinado indivíduo, é esforço não só intelectual como manual; é técnica.” (FM/V, 15/out/53, p.4) Depois de examinados esses aspectos, Luiz Felipe conclui: “havíamos superestimado a capacidade de Cavalcanti e subestimado as dificuldades de ordem técnica que ele encontrou” (idem, ibidem). Nesse e em vários outros textos, o nome de Cavalcanti sai comprometido da experiência de Canto. Ao comentar o filme “que começa no sertão e se perde na praia”, o jornalista Aderbal Jurema chega ao ponto de se referir às duas “tragédias terríveis” daquela noite de sábado: o filme de Cavalcanti e o crime que ocorreu em frente ao cinema, quando “esmigalharam” com um tiro a cabeça de um deputado (JC, 11/out/53, 2ª Seção, p.6). Carlos Frederico (pseudônimo de Zilde de Enock Maranhão) desaprova as críticas dirigidas pelos oradores da noite de estreia aos outros cineastas brasileiros, porque na sua opinião Cavalcanti não se mostrou superior a muitos deles com seu Canto, que é “apenas mais uma fita rodada no Brasil” e “nada tem de extraordinário”. Comentando o filme, Frederico distribui alguns elogios (à música, à fotografia, ao som e aos diálogos), mas ressente-se da “colcha de retalhos” que é a história e da “irritante” monotonia do filme. O cronista considera “deprimentes” os “enxertos” folclóricos, incapazes de dar “uma ideia exata da beleza e da riqueza do nosso folclore” (DN, 05/out/53, p.6).

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Frederico reconhece que Canto agradou como acontecimento social e não como filme. Com opinião semelhante, Altamiro Cunha nota que a plateia compareceu ao São Luiz “em busca de sensações mais diversionais que artísticas”. Insatisfeito com o filme, Altamiro admira, contudo, as “imagens de pureza cinemática, as cenas magistrais de documentário, como do maracatu, do xangô, do bumba-meu-boi, que vão impressionar no sul e no exterior” (DN, 06/out/53, p.3). Paulo Fernando Craveiro, por sua vez, não se deixa emocionar pelos registros documentais do filme, que encara como uma “sucessão de cartões postais”, ao mostrar as manifestações folclóricas, as praias, as igrejas, o sertão. Diante do desequilíbrio entre a “precariedade do argumento” e os “aspectos básicos do sentimento da terra”, o filme “perdeu-se na sua própria fragmentação”. Caso houvesse uma “sintetização”, Canto “não deveria ultrapassar os limites de um celuloide documental, de pequena metragem”. Na opinião de Craveiro, o diretor e o roteirista pouco fizeram para se comunicar com o público, criando uma narrativa sem começo, meio e fim, “profundamente desinteressante”. Ele aponta como maior defeito do filme a “falta de unidade”: “Essa desordenação é uma decorrência da integral fragilidade do enredo de José Mauro de Vasconcelos, além da inconsequente direção de Cavalcanti, reproduzindo um trabalho comprometedor dentro do estilo de Simão, o Caolho. O argumento de O Canto do Mar não possui urdidura dramática nem consegue, ao menos, transmitir uma história. Monótono e destituído de valores, primando sempre em conclusões apressadas e saídas pouco convincentes. A grande quantidade de sonhos demonstra a insuficiência do argumento, procurando um trespassamento do real para o irreal, onde, logicamente, seria fácil colher efeitos plásticos para a valorização formal e substancial.” (DN, 07/out/53, p.3) Craveiro relembra a filmagem no Recife - envolta num clima de “mistérios e enigmas” -, o alarde em torno do final dos trabalhos, e a “batalha dos convites” para a pré-estreia, concluindo: “o que nos resta da epopeia é a incapacidade direcional do cineasta Alberto Cavalcanti, no Brasil”. O motivo dessa incapacidade pode ser encontrado em outro trecho da crônica, no qual Craveiro menciona o sucesso de Cavalcanti, “devido aos seus méritos indiscutíveis”, na França e Inglaterra, onde “deveria possuir técnicos especializados para secundá-lo na produção de filmes”. No Brasil, o cineasta não demonstraria a mesma qualidade porque “aqui na pátria amada tudo tem sido feito à base do improviso” (idem, ibidem). Mais uma vez, Craveiro insinua a dependência de Cavalcanti em relação ao profissionalismo dos técnicos estrangeiros, que seriam os principais responsáveis pelo sucesso internacional do brasileiro. Visto como um fracasso, Canto também viria atestar a falta de competência dos profissionais brasileiros e pernambucanos envolvidos na realização do filme. Mais direta, dirigindo-se com maior ênfase ao contexto local, Renata Cardoso toma como principal alvo na avaliação de Canto seu “primaríssimo” material humano: “Estragaram tudo, prejudicando o cineasta sensivelmente. E esse prejuízo foi uma consequência da falta de valor do pessoal escolhido. A maioria foi composta de gente que possuía um único objetivo: aparecer. Aparecer, custe o que custasse. Até com o sacrifício do nosso melhor cineasta: Alberto Cavalcanti. A este eu felicito pelo grande filme que poderia ter dado e não deu, devido unicamente aos seus colaboradores.” (DP, 09/out/53, p.6)

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Segundo Renata, ela própria nunca deu muito crédito “a estas filmagens do sr. Alberto Cavalcanti” e jamais confiou “em toda aquela farrambamba”. Quanto ao filme, com exceção da fotografia, “tudo estava ruim”. Trata-se, enfim, de “uma autêntica chanchada. Dessas enormes” (idem, ibidem). Assinando Alexandrino Rocha, o cronista não se mostra mais simpático ao filme, a começar pelo título da crônica: “Cavalcanti, o ídolo caído”. Coloca-se como “uma das poucas pessoas que nunca acreditaram nesse celuloide”, entre outros motivos por causa dos atores escolhidos e do “cidadão encarregado de redigir os diálogos” [Hermilo Borba Filho]. Mesmo assim, garante, se dirigiu ao São Luiz “com o espírito completamente desarmado, disposto mesmo a escrever um longo artigo, caso o filme fosse bom”. Não foi o caso, na sua opinião. Abrindo exceção para a música e a fotografia, Alexandrino critica desde o desempenho dos atores até a maquiagem, condenando especialmente a presença de um narrador nas cenas iniciais, que reitera com palavras o que a imagem já mostra e contraria, assim, “todas as regras que regem a arte cinematográfica”, pois a narração “é uma força negativa dentro do cinema” (JC, 06/out/53, p.4). Enquanto Alexandrino se prometera escrever um longo artigo “caso o filme fosse bom”, Agostini dedica três extensas crônicas a Cavalcanti e Canto, mas para fazer severas críticas a ambos. Na primeira parte, Agostini recapitula (não sem algum exagero) as brigas e desavenças provocadas pelo filme, que “criou inimizades entre cronistas cinematográficos, dividindo a crônica local, que forjou intrigas e que foi como uma barreira, dividindo os meios culturais e artísticos da cidade. Positivamente, não houve no mundo, jamais, um filme que fosse realizado debaixo de tantos mistérios, acobertando tanta confusão, tanto ‘embroglio’, com os seus realizadores a julgarem-se seres infalíveis, não admitindo um conceito menos elogioso ou, tão somente, um pensamento de dúvida à cerca do sucesso artístico da obra (...) E assim nasceram inimizades, criaram-se casos, e o ambiente artístico recifense ficou em pé de guerra, dividido em dois grupos distintos. Mas, amigos, valeu a pena isso tudo? Houve razões suficientes para essas coisas que nos envergonham e são próprias de habitantes de uma província? Não houve.” (JP, 06/out/53, p.4) No dia seguinte, Agostini responde suas próprias perguntas. Todas essas brigas, segundo ele, foram inúteis na medida em que Canto “resultou um filme que não merecia, evidentemente, esse barulho todo” (JP, 07/out/53, p.4). Ficamos com a impressão que, caso o filme tivesse “correspondido às expectativas”, não haveria motivos para se envergonhar e tampouco a situação teria adquirido características provincianas. Anunciado como a “resposta definitiva” aos inimigos do cineasta e a mostra de que “Lima Barreto não passava mesmo de um mediocrezinho”, Canto não se revelou à altura da publicidade criada pelo grupo de Cavalcanti (que Agostini chama de DIP). O cronista vai além, observando que “o cinema brasileiro foi mais uma vez blefado pelo senhor Cavalcanti”. O que seria “a primeira fita realmente cavalcantiana” no Brasil se revelou pior do que Simão. Levando em conta o renome internacional do cineasta e seus fracassos brasileiros, Agostini chega a uma conclusão “melancólica”: “Cavalcanti, o diretor mais conhecido do cinema verde amarelo, entrou em decadência artística”. E,

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sendo assim, comparar Canto com O Cangaceiro é “impossível, e até injusto” (idem, ibidem). Na terceira e última parte da crônica, Agostini “condena” Cavalcanti pela fraca direção de atores e por relegar o argumento em favor do documentário (“isso só não é cinema”); “condena” Hermilo Borba Filho pelos diálogos monótonos e sem inspiração (“tal qual suas peças teatrais”); “condena” Guerra Peixe “porque em muitas oportunidades sua bela música sobrepuja em intensidade as próprias cenas para as quais servia de fundo musical”; “absolve” apenas Cyril Arapoff, cujo trabalho fotográfico é tão bom quanto o de Chick Fowle em O Cangaceiro. O cronista investe também contra o “excesso de zelo” de Cavalcanti ao explorar os costumes e danças típicas do nordeste, o que acabou por sacrificar a “unidade” do filme (JP, 08/out/53, p.4). Com a habitual desconfiança diante das causas sociais no cinema, Duarte Neto critica o enredo intercalado a toda hora por maracatus, xangôs, etc, ironizando: “O Canto do Mar tem, entretanto, uma intenção social. Não se sabe qual seja, mas o prólogo condena o flagelo da seca e isto parece agradar ao sr. Cavalcanti.” (FM/V, 08/out/53, p.4) Ao contrário da maioria dos textos sobre o filme, pretensamente sérios e minuciosos, Duarte adota um tom informal, como se a ocasião não merecesse tamanha importância e alarde. Tanto que um de seus comentários, dos mais coloquiais, sobre Canto é que Cavalcanti “dificilmente conseguirá outro filme tão desconjuntado e tão besta” (idem, ibidem). Duas das crônicas mais aguardadas, porém, não aparecem. Entusiasta e colaborador de Cavalcanti, Alencar/Ralph não escreve sobre o filme no qual trabalhou como assistente de direção. Seu único comentário a respeito vem entre parênteses na resenha de Sinhá Moça, “indiscutivelmente, o melhor filme nacional já realizado até agora, inclusive [comparado a] O Canto do Mar de Alberto Cavalcanti, apresentado em sessão especial sábado passado (não correspondendo à expectativa) e O Cangaceiro, de Lima Barreto.” (JC, 06/out/53, p.4) Lançado nas salas recifenses logo depois da pré-estreia de Canto, Sinhá Moça funciona inevitavelmente como termo de comparação, tomando o lugar de O Cangaceiro como exemplo do que o filme de Cavalcanti poderia ser e não foi. Apesar de ter apreciado Canto, exceto “certas monotonias”, o veterano jornalista Mário Melo aponta Sinhá Moça como “o melhor filme nacional até agora aparecido” (JC, 09/out/53, p.2). Sem ao menos ter assistido a Canto, Gilberto Osório de Andrade não hesita em escrever que a nova produção da Vera Cruz mereceria muito mais o “espetáculo de gala do que o desalentador e decepcionante filme do sr. Cavalcanti” (JC, 11/out/53, 2ª Seção, p.6). Depois das três crônicas lançando fogo cerrado sobre Canto e seu realizador, Agostini escreve: “Sinhá Moça restituiu-nos a esperança no cinema brasileiro, levemente toldada pela infeliz experiência de Cavalcanti em nossa terra. Um filme que não nos envergonha. E isso basta. Que fale, melhor do que nós, a estátua de bronze obtida pela fita no recente festival de Veneza.” (JP, 10/out/53, p.4)

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Uma nota na seção “Cinema” do Diário da Noite apresenta outra razão - que não a da “decadência artística” levantada por Agostini - para os insucessos de Cavalcanti em seu próprio país. Ele seria ainda um “desambientado” no Brasil. Mas a explicação fica invalidada “quando a gente vê um Sinhá Moça, dirigido por Tom Payne, um inglês trazido ao Brasil pelo próprio Cavalcanti” (DN, 07/out/53, p.3). Tantas e tão acirradas críticas a Cavalcanti o transformam numa figura dramática aos olhos de Jorge Abrantes, que, sem ter visto Canto, comenta a opinião dos colegas: “Alguns cronistas o têm criticado severamente, mas sem abandonar o tom de serenidade sem a qual toda crítica corre o risco de ser ou de parecer apaixonada. Outros, porém, tratam quase cruelmente o sr. Alberto Cavalcanti. Confesso que o drama desse cineasta ilustre que fez seu nome na Europa e o tem sacrificado no Brasil é para mim motivo de sincero pesar. Há qualquer equívoco, qualquer erro essencial teimosamente oculto em sua atuação. E se o seu trabalho merece crítica severa ele próprio merece respeito, pela sua obra e pelo renome que tem e que está comprometendo.” (DN, 09/out/53, p.3) Em seguida, Abrantes elogia Sinhá Moça: “esse nos satisfez plenamente” (idem, ibidem). A maneira como a frase está formulada (esse filme e não aquele de Cavalcanti) sugere comparação entre as duas obras, sem o cronista ter sequer assistido a Canto. Dessa forma, Abrantes engrossa ainda mais o coro dos “demolidores” do filme, como define L., em contraposição às raras “sensibilidades receptivas”. Procurando escapar do extremismo que detecta nas opiniões, onde não há meio termo, L. começa por chamar atenção para a “humanidade” do filme, “de uma força que excede o que antes de Cavalcanti emergira da cinematografia nacional” (DP, 07/out/53, p.6). Logo depois, entretanto, lista “aquelas restrições que também são nossas”, entre elas o diálogo digno das novelas radiofônicas; o “excesso de arbitrariedade” na inserção das cenas de folclore; e o desastroso desempenho de Rui Saraiva. Os outros atores estão “sóbrios: e é um milagre que se tenha obtido tanto de um grupo que pela primeira vez enfrentou os percalços de uma câmera” (idem, ibidem). Também procurando um meio termo, Fernando Menezes rebate críticas ao filme para em seguida enumerar seus “defeitos”. Aos que reclamam por Canto mostrar miséria do começo ao fim, Menezes lembra Ladrões de Bicicleta. Aos que acusam Cavalcanti de cair em erros primários, ele cita A Lei do Chicote (1952), uma “cretinice” dirigida por Lewis Milestone, que nem por isso deixou de ser um grande diretor. Continuando o procedimento de elogiar, mas nem tanto, Menezes argumenta: “O Canto do Mar deve ser encarado antes de mais nada como um documentário, e como tal não está ruim a película de Cavalcanti, nem comprometido o seu nome de cineasta, desde que o documentário é uma das formas mais puras de cinema.” (DP, 25/out/53, 2ª Seção, p.3) Mesmo assim, entre os três maiores defeitos do filme, figura “o mau entrosamento do documentário com a ficção”, ao lado da “falta de unidade” e do “folclore em demasia” (idem, ibidem). Com preocupações semelhantes, Cezário de Mello escreve:

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“Abusa Cavalcanti, talvez preocupado com a exatidão documentária, do folclórico da paisagem fisiográfica do Recife, de certos costumes coreográficos.” (FM/M, 11/out/53, 2ª Seção, p.1) Entusiasmado com a sequência do sonho de Raimundo, que considera “uma das coisas mais interessantes já vistas na cinematografia”, Cezário de Mello conclui: “Dentro da falta de aparelhagem técnica e com o material humano que teve à disposição, Cavalcanti realizou um notável trabalho cinematográfico.” (Idem, ibidem) As crônicas sobre Canto publicadas por Jomard Muniz de Britto, Antônio Paulo do R. Pereira e José do Rego Maciel Filho têm em comum a acentuada simpatia pelo novo trabalho de Cavalcanti, todas elas ressaltando a “honestidade” do filme e de seu realizador. Ao contrário de muitos colegas, Jomard enumera os aspectos que considera positivos do filme, e não seus defeitos. Ressalta desde a fusão inicial do mapa do estado para as rachaduras da terra até a direção “crua e vigorosa” de Cavalcanti, elogiando também a música, a fotografia e os diálogos (que “refletem com exatidão o linguajar da nossa gente”). O aspecto documental, do registro das manifestações do folclore regional, leva Jomard a observar: “Estamos, pois, diante de uma obra cinematográfica essencialmente honesta, bem diferente de outras que, ao retratar os nossos costumes, enveredam por caminhos falsos e pretensiosos.” (DP, 11/out/53, p.6) A tensão entre documentário e ficção no filme de Cavalcanti é abordada por José do Rego Maciel Filho sob o ponto de vista da produção comercial, das exigências do mercado. Ele lamenta que o cinema continue a ser uma “vítima da indústria”. As pesquisas realizadas por Cavalcanti quanto aos costumes e tradições iriam proporcionar “um documentário excepcional”, mas isso não pode acontecer porque, para chegar ao público, “seu filme teria de ter uma história, um drama” (DP, 18/out/53, p.6). Na segunda parte de sua crônica, José do Rego Maciel Filho refere-se a Canto como “uma película de grande valor. Um documento honesto, sincero e de inegável autenticidade”. À luz das críticas dirigidas a O Cangaceiro, ele chama atenção para as conquistas de Cavalcanti: “Mesmo reconhecendo um possível fracasso artístico, teríamos de louvar a atitude de Cavalcanti aventurando-se a vir fazer um filme no nordeste. Quando todos os diretores e produtores brasileiros se recusam a tal, temendo a dificuldade de transporte da maquinaria, de equipe técnica, de atores (o caso de Lima Barreto, filmando O Cangaceiro em São Paulo), Cavalcanti lutou contra os acionistas da companhia, defendeu o talento dos atores pernambucanos, ressaltou a beleza da paisagem e da luz do Recife e veio filmar aqui a despeito dos protestos e da má vontade. E fez um filme em Recife.” (DP, 20/out/53, p.6) Por tudo isso, Maciel Filho qualifica Canto como um filme “eminentemente pernambucano” (idem, ibidem). Numa abordagem semelhante, Antônio Paulo do R. Pereira lembra que Canto é a primeira realização do cinema falado em Pernambuco,

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pois desde 1931 não se filmava no estado (ele esquece ou prefere não mencionar Coelho Sai, de 1942). Apesar de não ser um filme “excepcional”, Canto “É apenas, e isso já é muito em se tratando de um filme nacional, uma realização honesta, uma tentativa plausível de aproveitamento e divulgação da terra brasileira.” (DP, 11/out/53, 2ª Seção, p.3) Na opinião de Pereira, se Cavalcanti tivesse solucionado a falta de “continuidade” entre o prólogo e o resto do filme, estabelecendo um paralelo entre as duas partes, “estaríamos diante de uma obra realmente digna do seu talento”. Ele elogia a “parte documentária propriamente dita”, especialmente a cena do frevo, “em que a câmera de Cavalcanti parece deixar-se dominar pelo ritmo excitante” da dança. Avaliando a contribuição de Cavalcanti, Pereira conclui: “Como vimos, O Canto do Mar não é apenas mais uma película brasileira medíocre, como afirmou um de nossos colunistas. É um filme brasileiro, sim, mas um filme que procura - e consegue - identificar-se como tal, e que será, talvez, a primeira página de um possível segundo volume da ‘História do Cinema Pernambucano’.” (DP, 11/out/53, 2ª Seção, p.6) Abrindo uma exceção em sua coluna de teatro, Isaac Gondim Filho tece elogios ao filme de Cavalcanti. A seu ver os recifenses são “os menos categorizados” para falar sobre Canto, porque têm “bastante arraigada” a “realidade geográfica” da cidade. Admira a “maneira habilíssima usada na apresentação dos nossos motivos regionais: o bumba-meu-boi, o maracatu, o frevo, o xangô”. Os “defeitos” existem, mas não chegam “sequer a empanar de leve os grandes méritos da realização (...) E tais defeitos apontáveis não deixam de ter o lado pessoal dos que fazem restrições.” (DP, 06/out/53, p.2) Para Gondim, Canto é “uma obra de arte superior, de alto conteúdo humano e poético, social e artístico”, na qual estão “perfeitamente dosados o que há de documentário regional e ficção realista”. Assim como Antônio Paulo do R. Pereira, Gondim toca no ponto das características nacionais do filme. Canto “é uma grande e valiosa contribuição ao cinema de nossa terra e, também e honrosamente para nós, à cinematografia mundial. Isto porque O Canto do Mar é um filme essencialmente nacional sem, entretanto, fazer concessões nacionalistas e perfeitamente dentro dos princípios mais modernos de arte e de cinema.” (Idem, ibidem) De São Paulo, Hermilo Borba Filho escreve sobre a exibição de Canto na cidade. Um pouco como Gondim, Hermilo não acredita que o recifense seja o mais indicado para julgar o filme de Cavalcanti. Ele acredita que “o sucesso aqui será muito maior do que no Recife (e no estrangeiro muito mais), cujos habitantes estão muito próximos de todas aquelas coisas de que fala o filme, sendo muito mais severo, por isso, o sentido crítico.” (FM/V, 14/out/53, p.4)

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Nova correspondência de Hermilo dá conta que em São Paulo houve “muito entusiasmo por parte do público em relação ao filme de Cavalcanti” e as opiniões estão “muito longe daquelas que foram ditas no Recife”. Enquanto filma Mulher de Verdade, Cavalcanti tem planos de realizar As Cartas, com argumento seu e de Isaac Gondim Filho (FM/V, 04/nov/53, p.4). Já Duarte Neto, em viagem pelo Rio de Janeiro, diz receber “notícias contraditórias” sobre a estreia em São Paulo: segundo Aurora Duarte, Canto foi bem recebido, opinião contrária às de Adolfo Celi, Fábio Carpi e Tônia Carreiro (FM/V, 10/nov/53, p.4). Enquanto isso, os jornais cariocas “estão cheios de propaganda” do filme, mas ainda não se sabe quando será exibido (FM/V, 06/nov/53, p.4). Os editoriais do Diário da Noite acompanham o desempenho de Canto em São Paulo e no Rio como uma espécie de bolsa de apostas. Apesar de mau recebido no Recife, o filme ainda pode se reabilitar, dependendo da acolhida dos críticos paulistas e cariocas. Ao transcrever trechos extremamente favoráveis ao filme dos cronistas Benedito Duarte (em entrevista para a Última Hora) e Cristina, acrescenta-se: “São opiniões. Mas as daqui, por mais respeitáveis que sejam, são também opiniões. E é possível que, no balanço geral delas, logre Cavalcanti uma média que esteja bem acima do nível zero a que reduziu seu filme a crítica recifense.” (DN, 09/nov/53, p.3) O editorial “Bolsa de cotações de um filme” reproduz trechos de artigo publicado na revista Manchete sobre a exibição de Canto no Recife, em São Paulo e, breve, no Rio: “O Canto do Mar foi recebido com severas críticas pelos assistentes e pela crítica local [do Recife] (...) A crítica paulista (que já viu o filme) discorda dos pernambucanos. Os cariocas desempatarão.” (DN, 20/nov/53, p.3) Recebendo notícias de Duarte Neto, do Rio, Craveiro informa que o público carioca “recebeu friamente a película de Alberto Cavalcanti”. De passagem, refere-se a Benedito Duarte e Cristina, a quem chama de “pseudocríticos” (DN, 23/nov/53, p.3). É o bastante para provocar um pequeno estremecimento com o editorialista do jornal, que se julgou erroneamente atingido. Com o título “Desempate”, pois segundo a Tribuna da Imprensa os críticos cariocas, em geral, consideraram Canto “péssimo”, o editorial prossegue: “Um crítico local (Cavalcanti declarou que em parte alguma do mundo viu uma terra tão profícua em entendidos do cinema como o Recife), abusando da generosidade com que lhe abre as colunas a direção do Diário da Noite, chamou de pseudocrítico o editorialista deste jornal, só porque registrou, num balanço, as opiniões surgidas no Sul a respeito do filme. Como agora fechamos este honesto balanço com déficit para Cavalcanti, é possível que o tal crítico nos tire das costas aquele prefixo. Mas pouco importa. Nem somos críticos, nem pseudocríticos. Somos simples noticiaristas e comentaristas desinteressados de assuntos vários. Uma ou outra daquelas classificações (...) cabe ao talentoso articulista cinematográfico”. (DN, 30/nov/53, p.3)

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Mesmo longe da cidade, Cavalcanti não deixa de ser pivô de rixas e farpas entre cronistas locais. De volta do Rio, Duarte Neto comenta com Alexandrino Rocha a exibição de Canto, que provocou um silêncio de morte entre os cronistas cariocas, mas eles não elogiaram nem “detrataram” o filme. Segundo Duarte, “É raro entre os cronistas do Sul falar-se mal duma produção nacional. As amizades, o conhecimento, o medo, tudo concorre para isso. Felizmente ainda existem no Recife uns dois ou três colunistas de cinema honestos. Todavia, já notamos uma influenciazinha da gente do Sul, nas crônicas de elogio, de uns dois sujeitos daqui.” (FM/M, 25/nov/53, p.11) Sem deixar o nome de Cavalcanti sair de pauta, Alexandrino encontra oportunidades para trazê-lo novamente à tona. Como durante a visita do ator Alberto Ruschel ao Recife, quando o cronista pergunta sua opinião sobre Canto: “Fraco. Gosto muito de Cavalcanti. Esperei curioso por esse celuloide, mas me decepcionei. Todavia, as opiniões estão divididas, lá pelo Sul. Estão elogiando muito as cenas que mostram o frevo, o bumba-meu-boi, o xangô.” (FM/M, 15/nov/53, p.11) Em outra ocasião, numa nota sobre Nadando em Dinheiro (direção de Abílio Pereira de Almeida e Carlos Thiré, 1952), Alexandrino não dispensa a provocação: “O filme é tão ruim que até pensei que fosse dirigido por Alberto Cavalcanti” (FM/M, 25/nov/53, p.11). Pela gratuidade, o comentário lembra aquele da atriz Cacilda Becker ao ter o ensaio da peça interrompido pela terceira vez por um espectador: “Deve ser o Cavalcanti!” 29. Como se vê, o cineasta não encontrou melhor sorte no Recife. É curioso perceber como, depois da “decepção” de Canto, os cronistas colocam Cavalcanti no papel de elemento desestabilizador da crônica local (o primeiro texto de Agostini sobre o filme é um bom exemplo dessa atitude). Como se antes da sua chegada todos trabalhassem em perfeito entendimento. Partindo o cineasta, os cronistas tratam de restaurar a suposta unidade anterior à sua chegada. Nos dois “balanços cinematográficos” do ano de 1953, tanto Duarte Neto quanto Ralph fazem questão de frisar a união da crônica. Entre outros fatos, Duarte menciona a realização, “no plano doméstico”, de O Canto do Mar e Simão, o Caolho, “do nosso estimado Cavalcanti”. Feliz por ver confirmadas suas previsões de que o neo-realismo italiano não atingiria a idade de cinco anos (ele não explica o que o levou a tal constatação), Duarte arremata: “os nossos críticos, aliás, compreendem tudo muito tarde, mas sempre chegam a um acordo” (FM/V, 26/dez/53, p.4). Numa rápida retrospectiva de 1953, Ralph cita Alberto Cavalcanti e Canto, “que muitos diziam ser irrealizável”, e define a noite da “avant-première” como “tumultuosa e memorável”. No final, vem a garantia de que “a crônica cinematográfica local continua eficiente e unida” (JC, 29/dez/53, p.4). Depois da polêmica em torno do neorealismo, das acusações mútuas provocadas pela crise do Cine Clube do Recife, dos desentendimentos acirrados com a realização de Canto, a expressão “continua unida” não deixa de carregar boa dose de ironia. 29

Depoimento de Alberto Cavalcanti In: GALVÃO, Maria Rita. Companhia cinematográfica Vera Cruz: a fábrica de sonhos. Tese de Doutoramento, FFLCH/USP.

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O assunto Canto, porém, não se encerra em 1953. Em fevereiro do ano seguinte, o Jornal do Commercio traz artigo do sociólogo francês Roger Bastide sobre Canto (com pequenas diferenças devido às diferentes traduções, trata-se do mesmo texto publicado pela revista Anhembi do mês anterior 30), no qual ele se propõe a “examinar esta nova obra-prima sob o aspecto informativo”. A propósito das cenas focalizando o homem do sertão, a paisagem local e as manifestações folclóricas, Bastide argumenta: “Espíritos superficiais poderiam ver em certas sequências do filme um como que preâmbulo destinado a introduzir um pouco de pitoresco para o espectador, sempre mais ou menos ávido de exotismo. Nada mais falso. Cavalcanti compreendeu magnificamente o que muitos brasileiros se recusam a compreender - que o carnaval, o candomblé ou mais exatamente o xangô fazem parte da alma coletiva.” (JC, 21/fev/54, 2ª Seção, p.1) Em março, acontece o lançamento do filme no circuito comercial. Antes mesmo da estreia, marcada para o dia 24, Ralph já sai em campo, protestando contra a exibição do filme no Parque, que, apesar de ser uma das cinco salas “lançadoras” da cidade, possui “péssimas instalações”. Enquanto chanchadas ficam mais de uma semana no São Luiz, “um filme do valor e da importância de O Canto do Mar é jogado num cinema daquelas condições”. O lançamento do filme no Parque revela desconsideração “pelo que se realiza na própria terra” e pelo trabalho dos atores pernambucanos que “pela primeira vez, tiveram oportunidade de brilhar no espaço luminoso e mágico da tela” (JC, 11/mar/54, p.4). L. encampa os protestos do colega, complementando: “não é favor; é justiça” (DP, 16/mar/54, p.6). O material publicitário do filme trata de aplacar os ânimos. “O espetáculo mais humano e realista já filmado pelo cinema brasileiro”, Canto terá pré-estreia no São Luiz, no dia 21, e será exibido no Parque, de 24 a 27, “quando será inaugurada a nova aparelhagem de som e projeção” (JC, 14/mar/54, 2ª Seção, p.6). Com Canto no circuito, finalmente Alencar escreve sobre o filme. Contradizendo seu único comentário na época da pré-estreia (sobre a superioridade de Sinhá Moça, o melhor filme já produzido no Brasil, em relação a Canto), Alencar não hesita em afirmar que o filme de Cavalcanti “é, sem equívoco, a mais importante película nacional realizada até agora. E também a mais bela”. Em seguida, explica porque só agora comenta o filme: “Depois de sua ‘première’ realizada em outubro de 1953 nada escrevi sobre o filme. Nem todas as películas se entregam facilmente à emoção e ao critério do espectador e sobretudo do crítico. Somente depois de vista uma segunda ou terceira vez revelam todas as facetas de sua grandeza e permitem uma completa visão de seu conjunto. Com Rashomon aconteceu assim, com O Canto do Mar também. Por esta razão é que durante sua primeira exibição segui apenas a onda (em grande parte histérica) que se ergueu contra o filme de Cavalcanti (...) aguardei sua normal apresentação ao público, quando mais necessário seria uma crítica imparcial e justa.” (DP, 28/mar/54, 2ª Seção, p.3) Para Alencar, o filme mostra que a realidade do nordeste não é só a do êxodo e dos sonhos desfeitos mas também a das expressões folclóricas como o bumba-meu-boi, 30

Anhembi, ano IV, no 38, vol. XIII, Janeiro de 1954.

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as cantilenas dos velórios e o maracatu. “Realizando seu filme como um pintor criaria um mural do nordeste, Cavalcanti teria de distribuir todos estes motivos e mais a paisagem realmente grandiosa”. Ainda buscando paralelos com outras artes, o cronista acredita que, com Canto, surge pela primeira vez no cinema “o Brasil que Portinari gravou em suas telas e que Graciliano Ramos descreveu em seus romances”. Influenciado pelos artigos do crítico Francisco Luiz de Almeida Salles sobre Canto 31, Alencar identifica no filme “a realidade transfigurada em poesia” (idem, ibidem). Em nota no final do texto, Alencar parece querer se antecipar a possíveis críticas, assegurando que “a razão de ter participado como assistente de direção da película não me torna suspeito para criticá-la honesta e sinceramente” (idem, ibidem). Assinando Ralph, o cronista percebe no filme um “retrato autêntico” do Recife, ao qual bastaria apenas acrescentar “um pouco de alegria e esperança que também existem”. Implícita no texto anterior, a influência das opiniões de Almeida Salles ganham destaque aqui, com Ralph preferindo não se prolongar nas considerações a Canto e optando por transcrever um pequeno trecho de uma das crônicas publicadas por Salles em O Estado de S. Paulo. A ênfase do texto de Ralph recai sobre a mudança na apreciação do filme: “Notamos que a reação dos espectadores recifenses diante da película tem sido inteiramente diversa do que foi após sua exibição especial, precedida de imensa publicidade e alvo da mais impiedosa campanha que uma realização artística possa merecer. Hoje o público constata que o filme não é tão ruim como disseram os críticos. Que é indiscutível a beleza pictórica da película; que existe ternura e poesia no drama simples e amargo daquela família decadente.” (JC, 26/mar/54, p.4) Na estreia em circuito, Canto não chega a despertar polêmica. Pelo contrário. Aos elogios de Alencar/Ralph vêm juntar-se os comentários favoráveis de Celso Marconi e Valdir Coelho. Defendendo a participação do Recife no desenvolvimento do cinema, “tanto mundial como na formação da indústria nacional”, Marconi cita Canto, “que embora indique o caminho ideal para o nosso cinema foi tão mal recebido que desanimará qualquer outra tentativa” (DP, 31/mar/54, p.6). Valdir Coelho, por sua vez, vê no filme um “realismo honesto” que deve ser tomado como exemplo: “Encontramos nesta realização de Cavalcanti um dos melhores filmes brasileiros, que pode servir de modelo para futuras realizações. Nosso cinema tem descambado para a apresentação de ambientes cosmopolitas ou de ridículas reconstituições (Nem Sansão Nem Dalila), quando seu verdadeiro caminho está na reprodução de ambientes regionais, desconhecidos lá fora. (...) Foi preciso que um diretor acusado por seus inimigos de ‘estrangeiro’ e ‘desambientado das realidades brasileiras’ viesse descobrir isso.” (DP, 26/mar/54, p.6) (grifos nossos) Algumas linhas antes, Coelho já havia justificado a inclusão de tantos aspectos regionais (“sem destruir o ritmo, a unidade”) como parte da tentativa do diretor de 31

In: SALLES, Francisco Luiz de Almeida. Cinema e verdade. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

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“mostrar ao mundo o drama do sertanejo nordestino e a vida dos pobres pescadores, reunindo o maior número possível dos seus usos e costumes” (idem, ibidem) (grifo nosso). O texto de Coelho exemplifica a nova atitude diante de Canto. Passado o calor da hora e aplacados os envolvimentos emocionais, a crônica volta-se para o filme de Cavalcanti com a mesma preocupação e expectativa que cercava os filmes brasileiros desde O Cangaceiro: o sucesso internacional. Para Coelho, o realismo e os aspectos regionais ganham importância maior na medida em que funcionam como passaporte para o mercado exterior. A participação de Canto no Festival de Cannes, portanto, não poderia passar em branco na imprensa local. Ainda mais quando se pode exibir a chancela de um dos maiores cineastas e poetas da época. A respeito do filme, o presidente do júri, Jean Cocteau, declara: “É um filme admirável, atrás do qual se vê um homem de grande valor no cinema mundial - Alberto Cavalcanti.” (JC, 03/abr/54, p.4) Alguns meses depois, uma nota registra a premiação de Canto no 8º Festival Cinematográfico Internacional de Karlovy Vary (no texto original, Karlbuy) na Tchecoslováquia. Ao lado dessa notícia vem a transcrição de trecho de uma reportagem publicada em O Estado de S. Paulo, assinada por Novais Teixeira. Escrevendo sobre “Cavalcanti e a Cinemateca Francesa”, o jornalista observa que “a gente da cinemateca de Paris adora Cavalcanti”. Acolheram bem Canto, chamando atenção para a “vocação especial de Cavalcanti para o documentário” (DP, 01/ago/54, 2ª Seção, p.4). No final de 1954, Cavalcanti volta ao Recife. Mas não se trata de novo projeto cinematográfico. Antes de deixar o Brasil, ele passa alguns dias na cidade, chegando no dia 6 de dezembro 32, para “rever amigos e descansar, antes de regressar a Europa, onde irá fixar-se, definitivamente”. Cavalcanti segue para a Áustria, onde tem contrato com a Wien Film para realizar alguns filmes. Enquanto seu livro Filme e Realidade aguarda lançamento pela livraria José Olympio, o jornal Última Hora publica (no dia 07/dez) o primeiro trecho das memórias do cineasta, que relata sua saída da Vera Cruz. Cavalcanti avisa que Canto acabou de obter prêmios do Centenário de São Paulo para produção (Cavalcanti), edição (Cañizares), atriz coadjuvante (Lanuza) e música (Guerra Peixe) (JC, 07/dez/54, p.4). Mesmo com a partida, planos de filmar no Brasil não deixam de existir. Uma nota de Ralph anuncia que Cavalcanti voltará depois ao país para dirigir, possivelmente, Capitães de Areia, de Jorge Amado (JC, 07/dez/54, p.6). Mais uma vez, no entanto, o tantas vezes divulgado projeto de adaptar a obra do escritor baiano não vai adiante. Além de eventuais comentários e referências a Canto, até o final da década de cinquenta são raras na imprensa recifense as notícias sobre as atividades de Cavalcanti na Europa. Em uma dessas ocasiões, Ralph transcreve trecho de uma crítica francesa favorável ao mais recente trabalho do cineasta, dirigindo nos estúdios vienenses a versão cinematográfica da peça de Bertolt Brecht “Herr Puntilla und Sein Knecht 32

As datas divergem. No final de novembro, Alencar publica crônica no Diário de Pernambuco (28/nov/54, 2ª Seção, p.4), ilustrada com foto dele ao lado de Cavalcanti no aeroporto, informando que o cineasta está no Recife e viaja para Europa no próximo dia 03 de dezembro. Provavelmente, esta data deve ser a correta, e não aquela publicada no Jornal do Commercio. A fotografia e o fato de Alencar conhecer Cavalcanti pessoalmente credenciam o cronista como a fonte de informação mais confiável.

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Matti”. No momento, Cavalcanti termina os preparativos para filmar, em Roma, La Prima Notte, com Martine Carol (JC, 08/maio/58, p.6). No final da década, um curioso comentário de Ralph dá conta das recentes preocupações de Cavalcanti. Antes de falar sobre o filme italiano No Limiar da Realidade (direção de Renato Castellani, 1956), ele cita um trecho da entrevista concedida pelo cineasta ao Diário da Noite, onde declara que “o neo-realismo italiano está morto e que o cinema parte agora para a conquista do relevo, única arma com a qual poderá lutar contra a concorrência da televisão” (JC, 25/fev/59, p.17). Cavalcanti só retornaria a Pernambuco no início dos anos 70. Chegaria mesmo a morar - por pouco tempo - na região, ora em Olinda ora no Engenho Gaipió, no interior do estado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Pesquisando a atuação da crônica cinematográfica recifense a partir de 1954 até o final da década, observamos mudanças significativas. Surgem novos cronistas como Celso Marconi, Augusto Boudoux e Boris Trindade. Mas apesar da renovação e da permanência de alguns profissionais (é o caso de José de Sousa Alencar, Juvenal Félix, Jomard Muniz de Britto e Ângelo de Agostini) já não encontramos o vigor e o entusiasmo da primeira metade da década. O espaço nos jornais dedicado aos assuntos cinematográficos permanece basicamente o mesmo; enquanto cada vez mais o colunismo social ganha terreno e os suplementos feminino e infantil firmam-se no gosto do público. Os textos sobre cinema, teatro, literatura e artes plásticas não conhecem o mesmo impulso e tampouco recebem destaque semelhante. O desejo cosmopolita do início da década, que reclamava uma produção cultural e um exercício crítico à altura do posto de “3ª urbe” do país, volta-se para si mesmo. A sociedade consome imagens do seu desempenho “mundano”, relegando a produção e o circuito cultural a acessórios. A trajetória do cronista José de Sousa Alencar ilustra exemplarmente essa transformação. A partir de 1957, aproximadamente, ele acrescenta às suas funções de cronista cinematográfico a responsabilidade pela coluna social do Jornal do Commercio, sob o pseudônimo “Alex”. Gradualmente, abandona o cinema para dedicar-se exclusivamente ao colunismo social, que exerce até hoje. Numa palestra no Clube Israelita, em 1958, Alencar comenta o gosto do público e a diferença de prestígio entre suas duas funções: “Atualmente, divido minhas atividades, em jornal, escrevendo sobre cinema e mundanismo, e tenho me decepcionado em ver que a maior parte dos que lêem jornal se interessam mais pelas futilidades do mundanismo do que pela beleza e força do cinema. O próprio colunista social tem mais ‘cartaz’, como se diz, mais prestígio perante o público que lê os jornais, do que o colunista de cinema. Intimamente isto me entristece pois dou muito mais importância ao cinema do que a outra espécie de jornalismo.” (JC, 23/jul/58, p.6) A sociedade se entretém com sua própria imagem. O cinema deixa de ser a maior diversão e encara a concorrência com a televisão, que chega ao Recife em 1957. É possível que a crônica cinematográfica ressinta-se de produções capazes de estimulála. Canto não inaugurou uma nova fase da cinematografia pernambucana nem projetou Recife como possível pólo cinematográfico. Os grandes estúdios do cinema paulista não escaparam à falência do modelo industrial. A chanchada não exibe o mesmo fôlego dos anos anteriores. No circuito local, a atividade cineclubista enfraquece, sendo incorporada ela também aos interesses “mundanos”: enquanto o Cine Clube do Recife tenta superar as crises constantes e os cineclubes universitários sobrevivem com maior ou menor força de atuação, os clubes sociais formam seus próprios clubes de cinema, promovendo sessões semanais. Nos anos 60, com o entusiasmo em torno do Cinema Novo, a crônica de cinema retoma o vigor, assim como o movimento cineclubista, através do Projeção 16, dirigido por Francisco Bandeira de Mello. A crônica especializada da primeira metade da década de cinquenta marca um momento importante da reflexão sobre cinema no Recife ao registrar o pensamento e as opiniões dos profissionais locais diante de questões contemporâneas à época, ou mesmo anteriores. O surgimento de cineclubes, no início dos anos 50, que intensificam a

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exibição de filmes não americanos, já favorecida no período pós-guerra, contribui para divulgar cinematografias diversas, ampliando o repertório da crônica. Por outro lado, as novas informações não impedem que o projeto sustentado pelos cronistas em relação ao cinema brasileiro esteja apoiado no modelo industrial americano, sem levar em conta o esquema de produção bem mais viável executado pelo neo-realismo italiano, por exemplo. O preconceito diante dos filmes nacionais, muitas vezes considerados vergonhosos e indignos, é um dos principais fatores que, não raro, impedem a crônica de abordar com clareza a produção nacional. Espera-se um filme com padrão internacional, de preferência com temática marcadamente nacional - o suficiente para garantir o aspecto brasileiro ou mesmo exótico e conquistar prêmios em festivais internacionais, mas não o bastante para revelar imagens indesejáveis do país. É esse contexto que conjuga desconfiança e uma expectativa desmedida que Alberto Cavalcanti encontra no Recife, na época das filmagens e da exibição de O Canto do Mar. Em relação ao cineasta, convivem turbulentamente atitudes céticas, muitas vezes agressivas, e apoios empolgados, que chegam a alcançar estágios megalomaníacos ao atribuir a Pernambuco, através de Cavalcanti e Canto, a condição de salvador do cinema brasileiro. Canto oferece à crônica cinematográfica recifense a oportunidade de exercitarse nas mesmas bases das crônicas de outras áreas culturais, ou seja, tomando como objeto de comentário uma produção local (ou, no mínimo, uma produção realizada na região). Quando em 1950 reclama-se que o Recife tem crítico de música, de teatro, mas não tem crítico de cinema (cf. INTRODUÇÃO), valeria a pena lembrar que, da mesma forma, na época existia uma produção musical e teatral, mas não cinematográfica. A proximidade dos cronistas de cinema com a experiência prática da realização de Canto (alguns até integram a equipe) levanta questões e intensifica as discussões sobre cinema. Mas ao mesmo tempo que permite um movimento de expansão, essa proximidade também provoca um retorno da crônica em direção a ela mesma. Nas várias crônicas publicadas por ocasião da pré-estreia de Canto (assinadas por “especializados” ou não), o que predomina por trás das apreciações do novo filme de Cavalcanti é a satisfação com o vigor demonstrado pela própria crônica. O fato de tantos jornalistas terem falado sobre o filme representa certamente uma vitória da crônica cinematográfica, que vê realizados seus propósitos de colocar o cinema como o assunto do dia, discutido “em cada esquina”, extrapolando o gueto das colunas especializadas e conquistando colaboradores de outras áreas. E se as crônicas não chegam às primeiras páginas dos suplementos culturais (com exceção do texto de Roger Bastide) - como as críticas literárias -, não deixam de ser uma prova eloquente da difusão do cinema e da “cultura cinematográfica” no meio intelectual, formador de opinião. No final de contas, a crônica quase se superpõe à importância de Canto. Numa rápida retrospectiva de 1953 elaborada por Ralph, ele lembra a noite “tumultuosa e memorável” da pré-estreia de Canto - filme que “muitos diziam ser irrealizável” - para, mais adiante, finalizar o texto com a frase categórica: “A crônica cinematográfica continua eficiente e unida” (JC, 29/dez/53, p.4). O desejo de valorizar a atuação do grupo, que nem mesmo o episódio Canto conseguiu desunir, contradiz a experiência mesma de Ralph, alvo e agente de tantas polêmicas e algumas inimizades. É, no mínimo, sintomático afirmar que continua unida uma crônica que exibe claramente seus “grupinhos” e tendências antagônicos. O que nos leva a pensar que a sedução da crônica por ela mesma supera eventuais divergências entre seus colaboradores.

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Sem alcançar o mesmo prestígio da crítica literária, a crônica cinematográfica se vale como elemento diferenciador - e até marca de originalidade - do grande número de jornalistas que dela tomam parte. É sobretudo pela quantidade, e não pelo estilo de abordagem ou pela força excepcional de suas ideias, que a crônica de cinema recifense da época se destaca entre as demais crônicas de cultura locais. E, na falta de uma produção cinematográfica regular na região, a própria crônica se coloca como atração num procedimento que inclui não só passagens sobre a retomada da crônica a partir de 1949 e sobre os vários cronistas em atividade mas que também propicia o surgimento de uma “cronista” (Renata Cardoso) especializada em comentar a atuação de seus colegas. A partir daí, podemos compreender melhor por que diversas vezes o interlocutor implícito (ou até explícito) de uma crônica seja outro (s) cronista (s), e não o público anônimo e indiferenciado. O material levantado nessa pesquisa traz à tona observações perspicazes, análises equivocadas, provocações pessoais, informações valiosas - num conjunto heterogêneo, quantitativamente abundante e qualitativamente irregular. Apresentamos aqui algumas abordagens, privilegiando sempre que possível a transcrição de textos, numa tentativa de fornecer um material amplo e informativo a futuros pesquisadores.

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ANEXO

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1. COELHO SAI Antes de Alberto Cavalcanti filmar O Canto do Mar em Pernambuco, o único filme sonoro “de enredo” realizado no estado é o musical Coelho Sai, uma produção da Meridional Filmes, lançada em novembro de 1942. Filmado em 35mm, com pouco mais de uma hora de duração, Coelho Sai apresenta um vasto desfile de números musicais, alinhavados por um tênue fio de história. Uma espécie de revista musical, exaltando “as belezas do Recife”. Infelizmente, consta que o negativo e todas as cópias do filme foram destruídos por incêndios 33. Os jornais da época não se preocupam em informar a ficha técnica do “filme pernambucano da Meridional Filmes”. Na única referência direta encontrada ao crédito de direção, surge o nome de Berguedof Elliot; em outro momento, elogia-se o trabalho de Newton Paiva, um dos proprietários da Meridional. Mas não ocuparia muito espaço relacionar os responsáveis pela parte técnica de Coelho, pois a lista se resume ao cinegrafista Firmo Neto. Ele filmou, revelou, montou, gravou, copiou, sincronizou - fez tudo sozinho. Ao lado de Paiva 34, Firmo viabilizou o projeto sugerido inicialmente por Ernani Seve. Depois de assistir a duas reportagens (um discurso do político Agamenon Magalhães e um festival das alunas do colégio Vera Cruz) filmadas pela Meridional com uma aparelhagem de som recém-adquirida, Seve propõe à produtora a realização de um longa-metragem sobre o carnaval, cujo roteiro ele mesmo escreveria. Aceita a proposta, Seve fica também encarregado de vender cotas de participação do filme, lançando mão de uma estratégia de merchandising para conseguir a contribuição de clientes em troca da inclusão de seus produtos em cena. Concluído por Berguedof Elliot, o roteiro passa antes por várias modificações, incorporando sugestões de clientes ou do próprio Seve, surgidas durante a negociação das cotas. Não se trata mais de um filme de carnaval. Pelo que se pode reconstituir através de depoimentos e dos textos publicados nos jornais, o enredo do filme segue aproximadamente assim: sentada num divã, lendo um livro, moça (Geninha Sá, do Teatro de Amadores de Pernambuco) pega no sono; o livro lhe cai das mãos; ela sonha com o avô (Elpídio Câmara), a quem confessa estar com saudades do Recife, e ele lhe promete um presente que vai acabar com sua tristeza; o avô coloca uma caixa em cima da mesa de centro, de onde saem dois atores (Carlos Brasil e Edgar Cardoso) que começam a conversar sobre coisas do Recife, introduzindo os números musicais. Com músicas de Nelson Ferreira, Capiba, Plácido de Sousa e outros compositores locais, Coelho Sai conta com um “elenco numeroso, no qual aparecem as figuras em maior evidência nos nossos círculos sociais e artísticos!” (JC, 04/nov/42, p.6). Dirce Gonçalves canta “Música, Divina Música”, de Nelson Ferreira; as alunas do Ginásio da Madalena apresentam-se na cobertura do Grande Hotel; Alvarenga e Bentinho, “a popularíssima ‘dupla milionária do riso’ em uma cena da ‘Festa do Rádio’”; apresentação do maracatu de dona Santa e do caboclinho Tabajaras - são

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As informações sobre Coelho Sai foram colhidas nos jornais da época do lançamento do filme e nos depoimentos concedidos pelo cineasta Firmo Neto a nós e aos programas “Queda de Braço” e “Projeto ‘Memória’”, ambos produzidos pela TV Universitária, de Recife. 34 No Dicionário de cineastas brasileiros, Luiz Felipe Miranda credita a direção de Coelho Sai a Newton Paiva.

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algumas das principais atrações do filme, do qual participam também a Orquestra da PRA 8, o Bando Acadêmico, Garotos da Lua, Jazz Melodius e Quarteto Black-Out. A princípio, é intenção de Firmo Neto e Newton Paiva sincronizar apenas algumas cenas, mas quando o projeto começa a ganhar corpo decidem sincronizar todo o filme. Para tanto, as condições técnicas eram das mais precárias. Firmo Neto conta que para evitar que o ruído da câmera prejudicasse a gravação, ele metia-se dentro de uma caixa com parede frontal de vidro, controlando o som através de fones de ouvido. Mas a dificuldade maior se mostrava na hora de sincronizar som e imagem. Sem ter acesso a moviola, Firmo se utilizou de um projetor, por onde fazia passar ao mesmo tempo o copião da imagem e do som ótico até encontrar a sincronia, realizando depois os cálculos para o ajuste final. Para ajudar nesse procedimento trabalhoso e detalhista, o músico Nelson Ferreira encarregava-se de checar se o som dos instrumentos correspondia ao que se via na imagem. Não faltou nem mesmo um “efeito especial”. Para filmar os atores saindo da caixa presenteada pelo avô, reproduziu-se em estúdio, em tamanho gigante, a mesa de centro onde se vê, além da caixa, um vaso de flores e um cinzeiro com cigarro. Um recurso que parece bastante semelhante ao utilizado por Humberto Mauro no curta Um Apólogo (1936), baseado em conto de Machado de Assis. A realização de Coelho toma nove meses - de fevereiro a novembro de 1942. Marcada para o dia 5 de novembro, a estreia é precedida de grande publicidade nos jornais, especialmente na Folha da Manhã (Vespertina) 35, que desde outubro publica chamadas, fotos e desenhos do filme. No Jornal do Commercio, um dos textos de divulgação do filme traz uma verdadeira declaração de princípios por parte da Meridional: “Coelho Sai é o primeiro filme falado produzido no Norte do Brasil. É uma obra que resultou do esforço e do idealismo de um punhado de rapazes que se bate pela existência de um cinema nosso, de um cinema pernambucano, como havia, aqui, anos atrás.” (JC, 01/nov/42, 2ª Seção, p.2) Antecipando-se às críticas, o texto trata de valorizar a nova produção, esboçando um pedido de desculpas para logo em seguida revelar expectativas das mais ambiciosas, num otimismo quase épico: “Certamente, essa tentativa não pode ser uma vitória, mas é um começo auspicioso e, com ela, demos os primeiros passos para uma nova época cinematográfica, em Pernambuco, pois que a Meridional promete novos trabalhos. “Não lhe faltarão, sem dúvida, o apoio e o incentivo do público, necessários ao prosseguimento dessa cruzada e, assim, não será exagero dizer-se que o cinema pernambucano, com Coelho Sai, começa nova vida.” (Idem, ibidem) O lançamento de Coelho Sai, em “vesperal e sarau”, acontece em alto estilo no cinema Art Palácio, o melhor da época, com a banda de música da Força Policial do Estado “abrilhantando” o evento (FM/V, 05/nov/42, p.2). No mesmo programa, é exibido O Gorila Matador, com Boris Karloff.

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O proprietário da Folha é Paulo Germano Magalhães, “padrinho” de Firmo Neto.

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A julgar pelos jornais, o público prestigia o “filme pernambucano da Meridional”, que após a semana de estreia segue o circuito dos cinemas de bairro. Na imprensa, as opiniões se dividem. Mário Melo garante que não será ingênuo ou hipócrita a ponto de considerar o filme uma “perfeição de arte” - chega mesmo a sugerir o corte de uma cena de “mau gosto” na qual aparecem cinco mascarados tocando realejo e, um a um, eles fogem sem serem pressentidos. Essa restrição, no entanto, não impede que Melo defenda o filme que, na sua opinião, será “a maior propaganda do Recife” porque “para desenvolvimento da ‘revista’, foram apanhadas as melhores cenas de nossa capital e apanhadas com tanta felicidade que às vezes ficamos em apuros para identificar o trecho conhecido ou nos falta a dúvida sobre sua existência.” (JC, 07/nov/42, p.2) Outro grande mérito do filme, para Melo, é ter superado as limitações de um meio “repleto de dificuldades, recursos exíguos, inveja e despeito em cada esquina, prazer de atirar areia grossa, nas entrosagens.” (Idem, ibidem) Relatando as palmas entusiasmadas do público no final da sessão, Melo confessa ter sido a primeira vez que viu um filme ser aplaudido no Recife. No mesmo dia, o cronista L. destila sua indignação contra o filme, que aliás nem considera enquanto tal: “Dizem que este filme (?) custou muito esforço, muito dinheiro e muita canseira. Para que, finalmente, se de Coelho Sai nada resulta - nem arte, nem lucro, nem cinema? “Que é um esforço não há dúvida, mas desde quando esforço, por si só, já fez obra de arte? e desde quando o esforço é credencial de bondade?” (DP, 07/nov/42, p.5) L. questiona a capacidade dos realizadores, encarando-os como “maus ensaiadores de teatro, maus locutores de rádio e até maus compositores de frevos”. Ele se recusa a aplaudir Coelho Sai - numa atitude oposta à do público -, porque isso equivaleria a “apoiar a curteza mental, incentivar a incapacidade, bater palmas à incompetência” (idem, ibidem). A Meridional não perde a oportunidade de tirar proveito das críticas de L., ao mesmo tempo em que tenta desmoralizar suas opiniões, sem respaldo no gosto popular. A estratégia adotada pela empresa é a de publicar no Diário um apelo para que o “cronista cinematográfico (?)” prossiga na sua “campanha demolidora” contra Coelho Sai, já que depois de sua crônica a bilheteria do filme aumentou em mais de 50%, como comprova uma declaração anexa do exibidor (por coincidência, os dias de maior frequência são sábado e domingo, quando tradicionalmente as salas de cinema recebem mais espectadores). Diante do “animador resultado”, a Meridional até cogita reservar para L. uma parte do orçamento de propaganda, para que ele continue na sua “campanha derrotista” (DP, 10/nov/42, p.2).

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Duas semanas depois, L. volta à carga, se recusando ao elogio mesmo sabendo que o ataque poderia equivaler a “aceitar o pagamento com que tão ruidosamente nos acenava”. O cronista justifica sua atitude, alinhando outras críticas ao filme: “atacando o filme, o que estamos fazendo é obra de justiça. Se deu boas casas, é porque todo mundo quis ver o ‘fenômeno’. O mesmo público que foi ver Coelho Sai há anos atrás foi ver a santa do Coqueiro, o burro Canário e o bode de duas cabeças. Não há gente que sai de casa para ver o cronista W. dançar valsinhas no Santa Isabel? “Depois é preciso notar que as ‘boas fotografias’ que o senhor M.M. [Mário Melo] encontrou no filme, foram tiradas pelo cinegrafista Stamato, para o DIP, e, por camaradagem, cedidas algumas cópias à Meridional, que as encaixou no seu ‘fenômeno’.” (DP, 26/nov/42, p.2) Depois das primeiras críticas de L., Mário Melo sai novamente em defesa de Coelho Sai (na crônica “Desvalorização da louça de casa”), criticando por tabela aqueles que “para ser agradáveis às empresas cinematográficas, ou aos agentes de filmes, costumam elogiar coisas incríveis que trazem o rótulo estrangeiro, ou mesmo filmes nacionais, provenientes do sul, inferiores ao Coelho Sai.” (JC, 12/nov/42, p.2) Melo lamenta que um jornal tão responsável quanto o Diário de Pernambuco se atire “contra uma tentativa promissora, tão só por ser pernambucana” (idem, ibidem). A repercussão de Coelho Sai na imprensa, porém, não se restringe às colunas de L. e Melo, apesar dos dois assumirem os principais pólos da questão. Conciliador, Luiz Lima prefere ver em Coelho antes de tudo uma oportunidade que “serviu para acordar o senso crítico da nossa gente e dos cronistas, abrindo a enferrujada válvula da discussão.” (JC, 22/nov/42, 2ª Seção, p.2) Entre o “pessimismo” de L. e a “condescendência” de Melo, Lima diz ficar no meio termo, elogiando a coragem, o esforço e o desejo de acertar dos realizadores de Coelho, mas sem deixar de apontar os defeitos, observando que “muita coisa, no filme, pode ser eliminada, a bem do humor da plateia” (idem, ibidem). Para o cronista A., que assina a coluna “Telas e Palcos” no Commercio, o que deveria ser eliminado é o próprio filme, ao qual se refere como uma coelhada indigesta no cardápio cinematográfico da semana, um desperdício de celuloide (JC, 15/nov/42, p.2). À virulência irônica de A., contrapõem-se os elogios compreensivos e encorajadores de G., da Folha (Vespertina), para quem, apesar das falhas, a película pernambucana “se apresenta em plano muitas vezes superior a inúmeras outras mandadas do sul do país para o norte sempre generoso...” (FM/V, 06/nov/42, p.4). Entre palavras de incentivo e louvor ao trabalho da Meridional e de Newton Paiva, G. define Coelho Sai: “não é um drama, nem revista, nem comédia. É uma sequência de ‘cortinas’, digamos, nas quais aparecem muitas coisas do Recife com as suas belezas

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características e inconfundíveis misturando-se com a tradição dos hábitos e costumes da gente do norte.” (Idem, ibidem) Falando sobre Coelho Sai, este parágrafo guarda curiosas semelhanças com mais de um comentário dirigido a O Canto do Mar. Uma década depois do “filme pernambucano da Meridional”, os cronistas se deparam com outra visão das belezas do Recife e suas tradições populares. A propósito, Coelho Sai tirou seu nome de uma música de carnaval composta por Nelson Ferreira, mas que, segundo consta, nunca conquistou grande popularidade.

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2. TRANSCRIÇÕES DIÁRIO DA NOITE: “CINEMA NACIONAL” Luiz Vieira “Não somos dos que acreditam, como coisa líquida e certa, por enquanto, no cinema nacional. Mas, forçoso é reconhecer que há uma intensa atividade dentro dos nossos estúdios, denunciando uma epidemia de trabalho como antes nunca houve trabalho persistente e mais ou menos cadenciado e organizado. Não devemos nem podemos fazer prognósticos a respeito dessa febre de cinema que ora domina o âmbito dos nossos cineastas, antigos ou novos, de casa ou de fora, organizados em produtoras ou livre atiradores. Pelo menos, em número, aumenta consideravelmente a nossa produção, como aumenta, também, em número os profissionais que, sobretudo da Itália, correm para cá, atraídos pela miragem de uma futura Canaã cinematográfica, no Brasil. “Tudo indica, assim, que somente vantagens advirão, para nós, desse enriquecimento de valores e dessa incomum atividade dos nossos estúdios, que já registram alguns êxitos artísticos marcantes, revelando o aparecimento de melhores e mais sólidas possibilidades para o nosso filme. “Assim, parece que estamos trilhando novos caminhos e, por certo, novos métodos, utilizados e aprendidos, possibilitando um nível de produção mais consentâneo com a nossa cultura, livrando-nos daquele primarismo de realização que, durante tanto tempo, enxovalhou os nossos celuloides. E devemos assinalar que, realmente, embora ainda muito rudimentares, técnica e artisticamente, os trabalhos saídos dos nossos estúdios já vestem outra roupagem e alguns deles podem se apresentar, condignamente, ao público mais categorizado. “Que isto não seja, porém, um mero reflexo da inflação cinematográfica decorrente da nova Portaria, que obriga os cinemas nacionais a exibirem 8 em vez de, apenas, um filme [nacional] por ano 36. O fato é dos mais significativos e nunca será em vão proclamá-lo, chamando para ele a atenção dos fãs. “Fazemos votos, ao contrário, para que esse aprimoramento de formas não seja coisa passageira, nem decorra da onda inflacionária, mas, uma realidade concreta e permanente, capaz de garantir melhores dias para o filme brasileiro e que a todos nós cumpre aplaudir e prestigiar, na medida do possível. Que, afinal, possa nascer desse surto de trabalho o cinema nacional, redimido de todos os seus pecados.” (DN, 14/ago/52, p.4) “AMADORES CINEMATOGRÁFICOS” Editorial “O amadorismo artístico não se limita no Recife ao meio teatral nem somente aí se revela animador e brilhante. Na cinematografia também. Há entre nós um pequeno, mas expressivo, grupo de cineamadores, reunidos na Associação dos Cinegrafistas Amadores (ACA), cujas atividades bem intensas se refletem nas colunas de seu órgão oficial, Cine-Filme. Um dos principais animadores desses movimentos é o sr. Armando Laroche, industrial de produtos químicos que voltou a sua curiosidade e a sua O cronista se confunde. O chamado “8x1” não obriga a exibição de oito filmes brasileiros por ano, mas estabelece a proporção de um filme brasileiro para oito filmes estrangeiros exibidos. 36

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capacidade de técnico para os lados da cinematografia, tendo se deixado empolgar por essa sedutora arte, e de tal modo se enfronhado nela que se tornou uma espécie de orientador solícito de seus companheiros de hobby. E todos vivem fazendo, sem que o resto da cidade o saiba, seus filmes sobre os mais diversos e interessantes assuntos, principalmente da classe dos documentários. Os cineamadores do Recife mantém intercâmbio com os seus colegas do mundo inteiro. Esse intercâmbio, aliás, é prejudicado por um grande obstáculo: a barreira alfandegária. O seu ideal é que o filme não comercial seja isento do pagamento de direitos alfandegários, como é de justiça, dada a sua natureza não utilitária. Assim, os cinegrafistas de diversos países poderão conhecer-se mutuamente através de suas produções e melhorá-las graças a esse cotejo. “A ACA vai promover o 1º Concurso Nordestino de Cinegrafistas Amadores. Mas sobre isto falaremos noutra hora.” (DN, 23/ago/52, p.3) “UMA AVENTURA NA ÁFRICA” Duarte Neto “Quando me disseram ter sido impresso em cores o filme de John Huston, Uma Aventura na África, confesso que não gostei da ideia. John Huston, incorruptível, que se havia recusado a dirigir um filme ‘demiliano’ e opunha sérios obstáculos ao comercialismo, caíra finalmente no domínio das concessões. Ora, por que essa transformação? Por que tanta amabilidade para com o público? Essas amargas reflexões, que eu sei agora descabidas, depois de ver o filme, ameaçaram durante algum tempo profanar umas das minhas maiores admirações do cinema. Não que John Huston tenha descoberto um novo processo, uma nova química, capazes de utilizar as cores como elemento positivo no cinema. As cores, não obstante um sem número de experiências no sentido de aproveitá-las como elemento funcional, sempre estiveram e permanecem no plano do supérfluo. Arrisco, no entanto, encontrar uma explicação para o caso presente: a África, multicolorida - o rio, os animais, a floresta, o valor permanente da paisagem, descaracterizada, talvez, pelo uso simples e convencional do preto e branco. Teria sido John Huston seduzido pela paisagem, mas isto lhe daria, também, autenticidade, outro valor a que se tem apegado com intransigente energia. “Sim: há nos filmes de John Huston, até mesmo nos seus detalhes, uma superior preocupação pela verdade. Tudo neles é autêntico: os seus gângsteres, os seus vaqueiros, as suas heroínas, os seus cenários, até mesmo os objetos que lhe servem de ‘décor’. Procura John Huston, sem dúvida, uma realização plena do cinema, onde sejam preservados não somente os seus valores essenciais mas também o que é secundário, marginal, e pode ser relegado sem prejuízos sensíveis. Dentro desse critério, que eu acredito seja a grande preocupação do cineasta, surge um filme maiúsculo, verdadeira obra-prima de cinema: Resgate de Sangue, onde, me parece, realizou o máximo das suas ambições. “Ignoro se Resgate de Sangue foi o seu último filme, mas, de qualquer modo, penso tenha encerrado um capítulo da sua carreira. Em Uma Aventura na África, pelo menos, se amolda a uma nova face, insuspeitada, escolhendo para seu uso uma história, para muitos inverossímil, cujo tratamento conduzia os seus personagens, deliberada e fatalmente, às alegres venturas de um ‘happy end’. Onde o John Huston de O Tesouro de Sierra Madre? Onde o John Huston de O Segredo das Joias? Verdade é que, pela própria escolha do assunto e também pelo tratamento, John Huston já não era o mesmo.

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A autenticidade, porém, continuava presente sob um novo aspecto, não obstante a história e uma série de coisas mirabolantes que sucedem no seu transcurso. “Um cineasta, assim como um pintor ou qualquer outro artista, não perde em autenticidade por deformar. Longe de mim o propósito de cultivar paradoxos, mas, observando Uma Aventura na África, encontro nas suas deformações, nas suas suaves mentiras, uma verdade latente, disfarçada embora por um tom leve de bem-humorada ironia. John Huston, talvez, não pretendesse levar a sério tão louca aventura, temendo o banal, o simplório, a inconsistência de tantas outras realizações, onde o heroísmo tolo e convencional de certos personagens fazem a fortuna e a glória passageira de seus intérpretes. Preferiu, antes, a aquele clima carregado das aventuras do gênero, com muito maior poder e maiores repercussões, um tratamento novo, ameno, por vezes incerimonioso e moleque. O importante na sua realização seria a trama amorosa e todos os outros incidentes - o barco descendo pelas corredeiras, as sanguessugas, a passagem pelo forte, as chuvas, os mosquitos, o afundamento do ‘African Queen’ e do ‘Luize’ -, apenas meios auxiliares. “Desses incidentes, John Huston apenas retiraria para os seus personagens e o seu drama amoroso uma impressionante verdade psicológica. “Uma história como Uma Aventura na África facilitaria ao mesmo tempo a solução de problemas importantíssimos. Claro que, com argumentação tão continuidade [sic]. Robert Wise, em Punhos de Campeão, já havia demonstrado a superioridade dos argumentos simples sobre os dramas intrincados e de difícil exposição. Isto sem recorrer à continuidade absoluta, anticinematográfica por excelência, - preocupação ociosa de alguns cineastas desejosos de originalidade. Ora, dispondo de uma história cujo desenvolvimento consistiria em fazer dois personagens, num barco, descer através de um rio, teria John Huston de início todas as facilidades e favores de uma narrativa direta. Não havia que desviar a atenção da plateia no espaço, mas apenas mantê-la viva no tempo. Pontuar a narrativa por meio de incidentes e pontuar os incidentes através de cortes precisos e de uma boa montagem: eis o principal problema a ser resolvido por John Huston. Serviriam os incidentes para manter a tensão e preparariam também o desfecho amoroso. De tudo isto soube John Huston tirar o melhor partido, resultando daí um filme realmente agradável e preciso em todos os seus aspectos.” (DN, 31/jan/53, p.3) “SOBRE O CANGACEIRO” Jorge Abrantes “Dizem que o senhor Lima Barreto, diretor de O Cangaceiro pretende filmar outro grande assunto brasileiro, aparentado com aquele pelo condicionamento geográfico e pelo tom epopeico: Os Sertões, de Euclides da Cunha. “Pois, então, que o sr. Lima Barreto tenha o elementar cuidado de vir fazer esse filme no ambiente próprio e autêntico, servindo-se de pessoas que falem a legítima linguagem sertaneja. Na verdade, se há restrições que um simples leigo (não me refiro aos técnicos, que catam defeitos inexistentes para os olhos desarmados do espectador comum) possa e deva fazer a esse filme a tantos títulos notável que é O Cangaceiro, dizem respeito a aqueles aspectos. Chego a considerar uma traição e, pior ainda, um desprezo pelo nordeste, os realizadores de um filme desse porte, sobre um assunto nosso ‘par droit de naissance’, meterem nele uma paisagem falsamente nordestina (apenas com perfis de cactos ornamentais ao canto das cenas, como peninha para atrapalhar) e personagens, alguns deles excelentes, como o ‘capitão Galdino Ferreira’,

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fisionomicamente tão parecido com Virgolino Ferreira ‘Lampeão’, falando a linguagem do asfalto carioca, puxada nos rr e nos ll. É claro que essas diversidades passam despercebidas aos estrangeiros, como nos passaria, num filme norte-americano sobre a Guerra da Secessão, a diferença de fala entre nortistas e sulistas. Mas num trabalho da seriedade e do valor de O Cangaceiro isso é insuportável e soa tão falso como aquele índio que irrompe grotescamente no filme. Não aceito a desculpa dada generosamente por Altamiro Cunha de que o artista é livre na exploração do tema, porque Lima Barreto renunciou deliberadamente a essa liberdade, limitando o seu tema, senão no tempo, mas no espaço, porque tratou de ‘cangaceiros’ e cangaceiros só os houve no Nordeste. “Temos, porém, que repartir a responsabilidade por esse lamentável lapso com Rachel de Queiroz. Não se explica, senão pelo conceito de que ‘o uso do cachimbo (no caso o exercício literário) faz a boca torta’, que a escritora cearense tenha deixado passar no diálogo tanta expressão artificial, de maneira que o que há nele de autêntico se transforma em elemento caricatural, pelo contraste com o tom geral da fala dos personagens. Assim, numa cantiga onde se fala em ‘sôdade’ (aliás, não dizemos ‘sôdade’; [dizemos] ‘sódade’ ou ‘sardade’), ouvem-se coisas como ‘glória’, com todas as letras, quando o sertanejo - deve sabê-lo a sra. Rachel de Queiroz - diz ‘gulora’. Não fosse a música notável, não fosse o som perfeito, seria talvez preferível simplesmente ‘ver’ esse filme de tanta beleza plástica. Ou seja, vê-lo mudo.” (DN, 15/maio/53, p.3)

DIÁRIO DE PERNAMBUCO: “JORNAIS” L. “A questão de saber se em Pernambuco já podemos criar a indústria dos filmes de enredo, de longa-metragem, é ociosa. Assim o pensamos - e o temos dito e repetido de maneira até cansativa. É inútil querer argumentar em contrário com as exceções, ou pernambucano (época que do tempo heroico do cinema deverá ficar sempre ligada ao nome de Jota Soares) ou de eras mais recentes. Aitaré da Praia e as películas suas contemporâneas constituíram apenas uma bela demonstração de audácia e loucura. Depois daqueles belos dias se alguém pensou em rodar um longa-metragem foi com o propósito imediatista de ganhar dinheiro, embora para isso devesse produzir uma abominação do tipo ‘coelho sai’? “Parece-nos que devíamos refazer o caminho - começando pelos jornais cinematográficos. A produção desses jornais poderia contar com o apoio do governo, mas não a ponto de se converter numa arma de propaganda administrativa ou política. Em primeiro lugar a empresa teria de editá-los regularmente, a razão de, no mínimo, dois por mês. Esse ‘jornal da última quinzena’ incluiria um ato público, uma solenidade cívica, a inauguração de um serviço estadual, ou municipal ou autárquico. Mas sua finalidade principal seria mostrar os principais fatos dos últimos dias. Os nossos bailes, os jogos de futebol, a temporada dos Snipès do Flotilha 211 (ainda outro dia perdeu-se o ensejo de gravar em filme o magnífico certame interestadual promovido ali, na enseada de Venda Grande), o almoço do Clube Português aos sábados, do Rotary às quartas, do Caxangá às quartas, o embarque e o desembarque de pessoas ilustres no Guararapes, vaquejadas, flagrantes praieiros durante o verão (inclusive o concurso de papagaios, da DDC), os grandes prêmios e clássicos do Jóquei Clube, tanta coisa que valeria a pena

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recolher com regularidade para exibir nos cinemas locais. Depois dos jornais, o ‘short’, o educativo, o documentário. E de filme de enredo, nada - durante muito tempo!” (DP, 10/fev/52, p.6) “PROGRESSO (II)” Valdir Coelho “Em nota de ontem, referimo-nos ao progresso material por que passam atualmente distribuidores de filmes em 16mm. Hoje, abordaremos um aspecto que nos parece mais importante, qual seja a melhoria na qualidade dos filmes escolhidos - o interesse dos exibidores pelo ‘bom cinema’. “São inúmeros, especialmente colégios, os que procuram o Serviço de Cinema da LOC, solicitando indicações sobre a qualidade não só moral mas técnica e estética das películas a apresentar. E, fato interessante, o filme típico de ‘far-west’ vem sendo relegado a plano secundário, até mesmo pelos exibidores do interior, onde ele constituía o ‘forte’ nas rendas. Isto porque eles apresentam sempre temas banais e, muitas vezes, absurdos, afirmou-nos o diretor de um educandário. “Os colégios não se preocupam com o lucro que a exibição lhes trará, porque não o procuram, mas sim com o seu efeito sobre os educandos. Isto é importante e acentua a modificação na mentalidade dos nossos educadores que, seguindo a recomendação dos Papa Pio XI na Encíclica da ‘Vigilanti Cura’, passam a considerar o Cinema como auxiliar da Educação. “Outro fato que demonstra o interesse em encarar o cinema como fator educativo consiste nos pedidos que temos recebido para realizar cine-fóruns nos educandários. “Como todos sabem, o Cine-Forum é uma prática já vitoriosa na Bélgica e na França. Consiste em fazer, antes da exibição, uma ligeira apresentação da película. Após a sessão, o monitor estimula e dirige o debate com os presentes sobre os aspectos técnico, moral e educativo do filme. Essa prática contribui para que, na massa dos espectadores, o Cinema com C maiúsculo passe a ser considerado, olhado com respeito e estudado. “Pois bem, realizou-se recentemente no Colégio N.S. do Carmo um cine-forum com a apresentação da película de Walt Disney A Canção do Sul. Os trabalhos foram dirigidos pela srta. Marilda Vasconcelos, do Círculo de Estudos Cinematográficos, com resultados plenamente satisfatórios. E esta já é a segunda sessão do cine-forum a realizar-se no Recife. Acontecimentos como este renovam a nossa convicção de que, num futuro próximo, a educação dos espectadores será um fato consumado.” (DP, 26/out/52, p.6) “ADAPTAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS (Considerações em torno de Um Lugar ao Sol)” André Gustavo Carneiro Leão “O problema da adaptação, no cinema, tem sido objeto de longas e intermináveis discussões. Alguns pretendem que a obra literária ou teatral, ao ser transposta para a tela, deve conservar todo o seu conteúdo como numa verdadeira tradução. Outros opinam que o filme apenas deve guardar o espírito da obra de onde é tirado, podendo ser alterada na dimensão, na continuidade e até mesmo na criação de novos motivos ou personagens. Existe ainda um outro grupo que condena inteiramente

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qualquer espécie de adaptação, achando que o argumento deve ser escrito especialmente para o cinema. “As diferenças correntes apresentam a seu favor exemplos numerosos de filmes que justificam seus pontos de vista, surgindo daí novas discussões em torno da concepção que se faz de cinema - de um cinema puro, restrito unicamente à sucessão das imagens, ou de um cinema, digamos, antipurista, mais elástico, menos hermético. Na realidade, observa-se na produção cinematográfica dos últimos dez anos uma evolução no sentido de adaptação de obras tiradas do patrimônio literário e teatral. Esta tendência que em nada vem prejudicar a literatura ou o cinema é bem significativa e tem conseguido abrir novos horizontes no campo sempre vasto da cinematografia. Entretanto acredito que esta adaptação tem de ser feita de tal modo que o filme guarde, além das personagens e da ação, o diálogo, e principalmente o sentido que o autor quis imprimir à sua obra, captando a atmosfera dentro de um clima próprio ao espírito dessa obra. “Um Lugar ao Sol presta-se bem às considerações feitas acima. Baseado no romance de Theodore Dreiser e na peça de Patrick Keany sob o mesmo assunto, é um exemplo eloquente de uma má adaptação. Já Eisenstein pretendera, quando de sua viagem à América, levar à tela o livro de Dreiser. Achando o assunto uma magnífica exposição do modo de vida americano e da sociedade capitalista, organizou um cenário - o único aprovado por Dreiser - onde o principal objeto era o problema social. Recusado pelos chefes da Paramount, recebeu como explicação a resposta de que ‘era preferível uma simples história de amor e morte entre dois jovens’. E foi Sternberg juntamente com S. Hoffenstein quem redigiu uma nova adaptação que satisfazia às exigências da censura e da Paramount, firmando o pivô da história na questão sexual. “Já em Um Lugar ao Sol, os adaptadores Michael Wilson e Harry Brown (Oscar de cenário em 51) afastaram-se de ambas, idealizando o enredo, modificando a personalidade dos personagens e escolhendo por ‘leit-motiv’ uma história de amor. “Considerado, portanto, quanto à adaptação, Um Lugar ao Sol é uma transposição falsa, inconsistente, uma deturpação do pensamento do autor e da obra em si. No entanto, se nos abstrairmos do romance de Dreiser, apreciarmos o filme como original, temos que modificar nosso julgamento. “O maior mérito da película reside na parte direcional. George Stevens sempre foi um diretor honesto, cuidadoso. Sem nunca ter tido uma grande oportunidade, valorizou com sua técnica os diferentes assuntos que lhe foram entregues e dentro de sua obra vamos encontrar filmes apreciáveis como Gunga Din, E a Vida Continua, A Vida de um Sonho. Não podemos responsabilizá-lo pela alteração sofrida pelo cenário de Um Lugar ao Sol. Ele aproveitou a chance apresentada, sem discutir o script recebido. “Com uma narrativa simples e elegante, original em muitos detalhes, apresenta um trabalho quase perfeito. Utilizando com habilidade a fusão, dá ao filme uma continuidade bem própria ao clima que necessitava. Usando com propriedade o ‘closeup’, nos proporciona uma das mais impressionantes cenas de amor que já tivemos oportunidade de assistir. Aos menores detalhes, cria soluções particulares, auxiliado pela boa música de Franz Waxman. A cena do primeiro encontro amoroso de George e Alice é um prodígio de unidade, um exemplo de como se deve empregar todos os recursos da cinematografia: movimento, som, música e a ação da imagem. O quarto pouco iluminado, sob uma música sensual, o casal na obscuridade, sussurros, enquanto a câmera, num magnífico movimento, se aproxima de um detalhe, o rádio apresentando não somente as emoções dos personagens, como um belo modo de expressar tempo e

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ação. Magnífica também a longa sequência do lago, onde a dramaticidade é apenas perturbada pelo excesso de música. Na parte interpretativa, devemos salientar a performance de Montgomery Clift. A figura de George, que o script não indica ser um ambicioso, um revoltado e um ingênuo está bem vivida por ele, principalmente na indecisão que fica desde que surge a ideia do crime. Elizabeth Taylor é um encanto, e não precisaria ser mais nada. Quanto a Shelley Winters, discordo dos elogios feitos à sua interpretação. Seu trabalho é apenas discreto, talvez em consequência do plano a que foi relegada no conjunto. Mais apreciável é Raymond Burr no papel de promotor. “Como adaptação do livro de Dreiser, o filme é fraco. Como história original é das melhores produções americanas e um dos mais belos filmes de amor aparecidos ultimamente.” (DP, 31/maio/53, 2ª Seção, p.3) “ORFEU” José de Sousa Alencar “Orfeu, como Cristo Proibido de Malaparte, é um filme que reflete seu autor. Não podemos separar esta película francesa da personalidade do poeta Jean Cocteau. O certo é que muitos não gostaram de Orfeu. Alguns porque não compreenderam inteiramente a película; outros porque consideram o cineasta um mistificador. Aos primeiros darei razão, a mesma razão que merece um eventual frequentador de museu diante de um quadro de Portinari ou Van Gogh. Aos outros diria que todo artista, em parte, é um mistificador. Uns mais, outros menos. Cocteau está no primeiro caso. Mesmo assim é um grande artista. Admiro-o, e eis uma das razões por que gostei do filme. Gosto dos poemas, das peças, dos desenhos, dos filmes de Cocteau. Com esta disposição é que fui para o cinema, é que consegui compreender sua intenção, participar um pouco do seu sonho. “Orfeu é uma aventura intelectual. Cocteau, um refinado literato, procura trazer para o mundo atual, sendo fiel à angústia e ao pensamento dos nossos dias, uma lenda grega de grande beleza e significação. Usou a legenda de Orfeu para pôr em prática um de seus temas favoritos - o conflito do poeta entre o mundo real e o irreal. Mas Cocteau não foi muito fiel ao pensamento helênico, ou melhor, à grandeza da lenda em que se baseava seu filme. Este, para mim, é o defeito da película. O mito de Orfeu oferece margem para um desenvolvimento mais grandioso, mais dramático e mais emotivo. Cocteau poderia fazê-lo assim, não sabemos a razão por que procedeu deste modo. Evidentemente tinha suas razões. Afinal, como o próprio Cocteau confessa, o filme é um sonho: um sonho no qual entra muita coisa de pessoal, de autobiográfico, quando citaríamos muito especialmente as metáforas irradiadas pelo rádio, transmitindo as mensagens da Morte, e que recordam a posição de Cocteau como poeta vanguardista. “Se o filme se ressente de um valor universal mais permanente, de um impacto dramático mais de acordo com a grandeza da lenda, é indispensável reconhecer que Orfeu é uma belíssima realização cinematográfica. Se A Bela e a Fera apresenta um inesquecível desenvolvimento de uma lenda da mitologia francesa, Orfeu é, sobretudo, um trabalho de câmera, o ápice da evolução cinematográfica de Cocteau. Como cinema, é uma das mais fascinantes películas apresentadas nestes últimos tempos. Cada composição, cada cena, é um detalhe artístico, um elemento estético de primeira ordem. A beleza de suas imagens obriga um retorno ao cinema. A linguagem cinematográfica de Cocteau é surpreendente, bastando citar apenas a sequência inicial até o momento em que Cégeste é atropelado, um primor de ritmo, de montagem e coordenação. Outros

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detalhes são ainda inteligentes e de grande valor, inclusive a maneira como Cocteau contrasta o tempo do mundo real com o irreal. Quando Orfeu vai ao Inferno à procura de Eurídice, o relógio começa a bater seis horas, um carteiro tenta depositar uma carta na caixa do correio. Toda a sequência do Inferno durou apenas uma fração de segundo. Quando Orfeu retorna, o relógio continua a bater seis horas; o carteiro deixa cair a carta. “A composição da cena mereceu também especial atenção do cineasta, contando para isto com a habilidosa iluminação de Nicholas Hayer. Focos de luz que iluminam apenas o rosto do personagem ou dão especial destaque para compor a atmosfera irreal da cena. Na sequência em que a Morte vem para levar Eurídice, Maria Cesares usa um mesmo traje em duas cores - preto e branco, alternando as cores em cada tomada. Este detalhe, aparentemente insignificante, auxiliou grandemente a composição e beleza das cenas. Inúmeros detalhes como este poderíamos anotar durante todo o filme, o que demonstra a meticulosidade, o talento e a inteligência do realizador. O décor, também desenhado por Cocteau, é original e ousado. O ‘quartel-general’ do Inferno é uma velha casa esburacada e suja; suas ruas são diluídas e em ruínas, o que torna mais sugestiva a passagem de Orfeu pela ‘zona neutra’ quando se dirigia para os domínios da morte. Para melhor efeito concorreu também a magnífica partitura de Georges Auriel, bela e funcional em todo o desenrolar do filme, inesquecível no batuque que acompanha a sequência em que Orfeu, em sua casa, é atacado e morto pelas Bacantes, representadas por um grupo de boêmios de Saint-Germain-des-Prés. Quanto aos intérpretes, Maria Cesares é a grande figura da película. Sua performance como a Morte é soberba.” (DP, 17/ago/52, 2ª Seção, p.3)

FOLHA DA MANHÃ (MATUTINA): “CARNAVAL ATLÂNTIDA” Mauro “Já é uma praxe no cinema nacional o show cinematográfico cujo objetivo único é a apresentação de músicas carnavalescas. Isto vem acontecendo ano após ano, sendo que o nível artístico, muito embora extremamente lento, vem aumentando em cada produção. No ano passado, realizado pela Flama, uma das mais caçulas entre as companhias cinematográficas nacionais, tive oportunidade de assistir ao filme Tudo Azul, uma cinta carnavalesca, mas que já apresentava algo de palpável no que tocava ao cuidado em sua realização. A Atlântida, que se intitula a si mesmo de campeã dos filmes de Carnaval, como não podia deixar de ser, tratou de apresentar para o tríduo de 53 a sua superprodução, etc, etc. Para isso, como se não bastassem os canastrões da casa, resolveu importar ruindades também de fora e eis que se apresentaram dois expoentes máximos da canastrice no gênero revista: a decadente e enrugada Cuquita Carballo e o liquidificador humano que é Maria Antonieta Pons. Ambas oriundas de algum país de língua espanhola, que até hoje ninguém conseguiu localizar em nenhum Atlas. Juntaram-na o bloco [da] terra, à frente Eliana, Cyl Farney e mais uma meia dúzia. Para que a mistura não ficasse asquerosa, juntaram o talento de um Oscarito, sempre mal dirigido e fazendo o que quer, e a originalidade de um Grande Otelo. Botaram na direção José Carlos Burle, que continua do mesmo jeito. Demonstrando em todos os seus filmes a influência do que o cinema americano tem de pior. No meio de um bocado de asneira, salva-se a concepção de dois ou três números musicais, um bom trabalho de Carlos Manga. Isto e as orquestrações de Lírio Panicalli, um grande valor,

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que continua ainda à espera de uma oportunidade em nossa indústria fílmica. O resto é má direção, falsidade de tipos e caracteres, ruindade no corte, na montagem, etc.” (FM/M, 11/mar/53, p.11)

FOLHA DA MANHÃ (VESPERTINA): “DUAS GRANDES REALIZAÇÕES” Juvenal Félix “Terminada a Semana do Filme Francês urge um pequeno comentário sobre os filmes apresentados. Algumas pessoas, infelizmente [sic] em número reduzido, deixaram-se impressionar mais por alguns fatores insignificantes e que nada tem a ver com a verdadeira significação do acontecimento domingo encerrado. Numa cidade como Recife, onde os filmes franceses, os bons filmes franceses temos de acrescentar, são relegados a um imperdoável descuido cometido pelos exibidores, uma realização que favoreça ao espectador a possibilidade de assistir, de maneira confortável ou não, com ou sem legenda, a algumas películas significativas deve sempre ser bem recebida. Mesmo que alguns filmes ofereçam ao espectador apenas as suas imagens, o ponto realmente importante em cinema. É o caso de A Besta Humana e L’Eternel Retour. O primeiro, considerado como um dos mais importantes clássicos do cinema, foi dirigido por Jean Renoir. Se todo o seu desenrolar não necessita nem exige um perfeito conhecimento da língua francesa, os trinta minutos finais dispensam quase que de maneira integral este detalhe. As imagens narram, perfeitamente, o conflito último existente no coração dos personagens, suas intenções e suas ações. O eterno triângulo que conduz quase sempre ao adultério, e que tantas vezes foi explorado pelo teatro e pelo cinema, recebeu um tratamento de qualquer modo surpreendente do diretor Jean Renoir. Seus trens, na marcha intensa, na perspectiva dos seus caminhos, na travessia dos seus túneis, seguem paralelos, em ritmo e em ação, como também em significado ao drama humano. Sendo assim, a atmosfera e a intensidade da película estão definidas. “Outro filme importante da cinematografia de Méliès foi Pecado Original (‘Les Parents Terribles’). Muitos disseram: é teatro filmado. Muito bem, o próprio Jean Cocteau, que dirigiu o filme, não nega este detalhe ao escrever que apenas pretendia apresentar sua peça teatral vista sob vários ângulos e também ao iniciar o filme com as três pancadas clássicas e a subida da cortina que identificam o início de um espetáculo teatral. Seu trabalho, porém, merece os mais sinceros e calorosos elogios por ter filmado, de maneira integral, uma peça de teatro, favorecendo ritmo e continuidade cinematográficos à realização o que significa uma surpreendente habilidade em usar a linguagem cinematográfica. Onde a maioria dos mais abalizados cineastas têm fracassado lamentavelmente, Cocteau, ao mesmo tempo um homem de teatro e um homem de cinema, venceu gloriosamente. Acreditamos que somente algumas pessoas incapazes de distinguir alguns valores artísticos e cinematográficos, poderiam taxar Pecado Original como uma película bastante medíocre. A verdade é que este filme de Cocteau tem tanta importância, como trabalho artístico e de inteligência feito sob a expressão da sétima arte, como Henrique V, de Laurence Olivier, e Meu Amigo, Aurélia e Eu, de Claude Autant-Lara... Todos estes filmes são filmagens de peças teatrais. Todos eles iniciam suas filmagens partindo da ribalta de um teatro, vencendo a limitação do teatro e passando para o mundo fabulosamente rico em possibilidades que é o cinema. Facilita também um dos mais apurados, sólidos, valiosos estudos da personalidade de personagens fictícios. Senão, devemos analisar: quando o teatro

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poderia favorecer uma aproximação visual da fisionomia de Jean Marais e Yvonne de Bray em Pecado Original, na cena em que o filho confessa o seu amor por uma pequena? No teatro, somente a entonação da voz descreveria a emoção dos personagens. No cinema, num fabuloso ‘close-up’ dos dois artistas, toda a angústia de um amor incestuoso está presente, irreverentemente exposta à observação do espectador. Por este detalhe o cinema demonstra a sua grande superioridade. Por este detalhe podemos deduzir e demonstrar o que foi Les Parents Terribles, um filme que iniciou a Semana do Filme Francês de maneira realmente expressiva. Outros filmes merecem uma especial atenção e pretendemos voltar ao assunto, analisando-o, em data próxima.” (FM/V, 11/set/52, p.5) “CRÔNICA EM TRÊS TEMPOS Renata Cardoso “Um dia desses (tenho a impressão de que ela só fez aquilo para que se registrasse o fato), uma coleguinha, não encontrando a coluna do Mauro na ‘folhinha’ matutina, correu a olhar os pequenos anúncios alfabéticos. Diante da minha estranheza ela explicou: ‘é que as crônicas desse rapaz estão sofrendo tal desgaste que seria possível encontrá-las perdidas lá nos anúncios de terrenos e automóveis’. “Confesso que sorri com a pilhéria, mas Deus me livre do Mauro saber do incidente. Com o gênio que ele tem... puxa vida! (Quando eu digo ‘gênio’ estou me referindo ao temperamento). *** “Os cronistas diários (o Paulo Fernando, o Ralph (?), o Agostini, o Mauro mesmo, o ‘L’) passaram maus momentos. Criticar filmes como A Princesa e o Pirata, O Homem do Planeta X, Bruxaria, Os Três Garcias, Flor de Sangue e outros espécimes não é mesmo de amargar? A gente sente que o pessoal quer trabalhar. Mas as películas não deixam. E ainda dizem que nós, os bissextos (Eu, o Duarte, o Alexandrino, o ‘Gato Félix’ [Juvenal Félix] e o ‘Andrezinho Coração de Leão’ [André Gustavo Carneiro Leão]) somos os infelizes! Pois, sim, bastam cinco linhas para a gente dizer tudo desses celuloides que andam por aí. Sorte é a do Aparício, que é zarolho, não pode enxergar os filmes. O importante é que as colunas não fiquem abertas, pois os entendidos andam por aí mesmo de braços com Cavalcanti e a sua trupe... *** “Mas vocês já viram como estão empregando atualmente a expressão ‘roteiro técnico’? Qualquer coisa que se quer fazer hoje em dia tem que ser precedida do ‘roteiro técnico’. A mania começou com a ‘fusão’. Tudo na crítica de cinema era ‘fusão’, tempos atrás. “Depois apareceu o ‘flash-back’. Raro era o filme em que o cronista especializado não descobria um ‘flash-back’. Todavia, também essa escola foi superada, dando lugar a uma nova era: a era do ‘roteiro técnico’. Um amiguinho, que vive ligado aos meus coleguinhas da crônica cinematográfica, revelou-me que já existe gente que antes de criticar o filme traça o ‘roteiro técnico’ do artigo. Imaginem! Breve teremos um desses ‘astros’ da nossa cinematografia fazendo palestras nos gabinetes portugueses ou nas associações francesas sobre a influência do ‘roteiro técnico’ e o cinema mundial. Eu acabo acreditando que esse tal de ‘roteiro técnico’ tem papel de destaque na confecção da bomba atômica. Deve ser algo mais importante do que o urânio. Sim, meus amiguinhos, eu também entendo de física nuclear. E para terminar

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um recadinho ao sr. José Alencar de Sousa (o nome está trocado para evitar o eco: terminar com Alencar): pelo amor de Deus, quando o sr. vai acabar com essa mania de filme europeu? Psicanalise-se, amigo. Sim, porque eu também entendo muito da ciência do Freud. Aquele tal de Em Qualquer Lugar da Europa, que eu tive a desdita de assistir com o meu noivo, deixou-me com alergia.” (FM/V, 28/out/52, p.7) “ÀS BATATAS, SENHORES!...” Paulo Fernando Craveiro “Baseado num conto de Hoffmann, intitulado ‘Sorte no Jogo’, Ângela, da Vera Cruz, é uma das películas mais intoleráveis projetadas nos nossos cinemas. Além de sua insuficiência técnica, a direção de Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida, devido à sua fragilidade, provoca um detrimento integral na composição. Falho em ritmo, sem coordenação, inexpontâneo, sem valores artísticos, o filme realizado em São Bernardo do Campo se constitui em verdadeiro recorde de mediocridade. Começando pelo trabalho direcional dos srs. Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida, que se integrariam melhor como cultivadores de batatas, percebe-se uma ausência completa de conhecimentos cinematográficos os mais primários, como sejam continuidade e noção dos seus postulados teóricos a exposição clara da narrativa. “Confesso que não pude chegar ao término do celuloide, em consequência da capacidade de enervar o espectador que a fita tem sem nenhuma economia. Resultado: não sei até que ponto chegou o descaramento dos seus realizadores. Nem prognóstico: é ilimitado. “Eis a ficha técnica de Ângela para o conhecimento nominal dos cidadãos superabundantes (há exceções) em destemor cinemático (para a exposição de Ângela é preciso muita coragem). Artistas principais: Eliane Lage, muito ruim; Alberto Ruschel, péssimo; Mário Sérgio, mulatinho inconsequente; Inezita Barroso, infame; Abílio Pereira de Almeida, inconvincente; Ruth de Souza, sem oportunidades. Produção e direção de Abílio Pereira de Almeida e Tom Payne. Roteiro feito com a colaboração de Nelly Dutra Ruschel. Iluminação e fotografia de Bob Huke e Chick Fowle. Cenografia de Pierino Massenzi. Som de Eric Rasmussen. Música de Francisco Mignone. “Esse filme exibido no cinema Parque, devido às péssimas qualidades que encerra, servirá como documento de uma época onde os homens comuns se preocupavam com uma arte, embora os campos e as plantações fossem um convite permanente à sua exploração.” (FM/V, 06/dez/52, p.4) “COLUNA DO LEITOR” Jomard Muniz de Britto “Embora um pouco tardiamente, pensei em relatar minhas impressões sobre a sessão Cine-Forum, que foi realizada em 24 de janeiro no Cine Clube Vigilanti Cura do Recife. “Na Bélgica, Argentina, França e em outros países onde se realizam sessões deste gênero [elas] são revestidas de grande êxito. Aqui, embora o sucesso não fosse dos maiores, houve felizmente um apoio da maioria dos sócios e membros do Círculo de Estudos Cinematográficos. Iniciou-se a sessão com a apresentação do filme Desencanto feita pelo autor desta crônica e por Celso Marconi Lins, da qual

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transcrevemos as seguintes linhas: ‘Sessão Cine-Forum é uma realização para incentivar o gosto do público pelo bom cinema. É um debate do próprio público, sob a nossa orientação, sobre os pontos positivos e negativos do filme em questão. Escolhemos Desencanto por tratar-se de um filme muito elogiado em todo mundo por suas qualidades técnicas, artísticas e morais’. O crítico C.A. Lejeune referindo-se a este filme, assim se expressou: ‘Eu duvido que tenhamos jamais feito um melhor filme que o magnífico Brief Encounter, um pequeno celuloide que nos trouxe boas opiniões de todo mundo e que é considerado como uma imagem ‘perfeitamente cristã’’. “Em seguida, foram dados alguns esclarecimentos sobre os assuntos que seriam debatidos, e, logo após, foi exibido o filme. Depois da exibição (20:45) foram travados os debates que obedeceram à seguinte ordem: tema, julgamento do tema, cenário, fotografia, ritmo visual, ritmo musical, interpretação e mensagem. “Finalizando, quero acrescentar algumas sugestões, a fim de que a próxima sessão, que será realizada brevemente, alcance maior êxito: “a) - participação da crítica especializada e de diretores de colégios para que tomem conhecimento desta realização que para nós é uma novidade. “b) - a apresentação deverá ser feita por um crítico da capital, escolhido pelos membros do C.E.C.. “c) - um membro do C.E.C. ficará anotando um resumo dos debates, para depois lê-lo. “d) - a sessão deverá ter início às 19:30, pois assim facilitará mais aos sócios que residem em bairros distantes.” (FM/V, 02/mar/53, p.6) “UMA RUA CHAMADA PECADO” José Laurênio de Melo “O último filme de Elia Kazan exibido no Recife, Uma Rua Chamada Pecado anunciava-se como a única coisa capaz de redimir de um quase fracasso total a passada semana cinematográfica. Grandes vedetas, um dramaturgo ultimamente muito comentado nas rodas literárias do mundo inteiro e o próprio nome do diretor, faziam de Uma Rua Chamada Pecado uma fita importante. Em sua propaganda estava implícita uma condenação aos prováveis murmuradores, que ficam eternamente em guarda contra os anúncios de recomendação. A condenação podia ser traduzida mais ou menos do seguinte modo: quem não gostar é burro. Uma vez visto o filme, temos, porém, vontade de exaltar o senso das proporções que possuem as alimárias. O filme, quero dizer, a peça filmada, é terrivelmente bochornosa. Para começar, a peça de Tennessee Williams não compensa a servidão do cinema ao teatro. Vamos lá que se deixem de lado ideias ortodoxas em torno de cinema quando se trata de transpor para a tela uma obra como ‘Hamlet’. Admite-se e aplaude-se, ‘Hamlet’ justificaria, até, que se gastassem milhares de pés de celuloide para filmá-la no palco, tal como é representada dentro das naturais limitações do teatro. Convenhamos que Uma Rua Chamada Pecado não merece o sacrifício de um cineasta como Kazan. Do ponto de vista puramente teatral, a obra de Tennessee Williams é mera embromação, filmagem, sem nenhuma profundeza. Blanche Dubois é uma Marguerite Gauthier, mais nublada, apenas, e, naturalmente por amor ao realismo moderno, dada ao desbragamento alcoólico. No fundo, uma e outra não passam de bonecos de açúcar. O cinema só fez acentuar a inconsistência do original. As sequências iniciais do filme, por sinal, dão uma saudade danada do Kazan que, aproveitando as ruas de New Orleans, dirigiu um dos mais belos filmes que tenho visto nesses últimos anos: Pânico nas Ruas, que ainda merecerá de minha parte um

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panegírico. Por agora, vai apenas este registro, um pouco ‘de escada abaixo’, como diria Camilo.” (FM/V, 11/mar/53, p.11)

JORNAL DO COMMERCIO: “ATO DE VIOLÊNCIA (Act of Violence)” Ralph “Ato de Violência vem às telas do Recife exclusivamente em virtude de um pedido e do meu pedido [sic] junto ao sr. Júlio Campanha para que incluísse esta película da Metro na programação dos seus cinemas. E chega-nos com quase três anos de atraso, exibida apenas no Moderno durante três dias, com uma cópia em condições não muito boas. Mesmo assim merece e deve ser vista por todo aquele que se interesse pelo bom cinema, pois se trata de uma das melhores películas realizadas pela cinematografia americana nos últimos anos. Como quase todos os bons filmes americanos feitos ultimamente, Ato de Violência possui a feição do semidocumentário, que não deixa de ser um movimento análogo ao neo-realismo italiano. Os cineastas abandonando os estúdios para filmar a maior parte de suas películas nas ruas das grandes cidades, ou quaisquer locais reais que ofereçam boa plástica ou favoreçam o realismo e a narrativa do filme. Ato de Violência obedece a este processo. Realizado por Fred Zinnemann, que nos apresentou há pouco tempo o bem construído Teresa, o filme possui uma ótima linguagem cinematográfica, ao par de uma história interessante e que prende inteiramente a atenção do espectador. Durante a guerra, um oficial americano é culpado pelo massacre de dez de seus companheiros, num campo de concentração nazista. Um homem escapa, porém. Mutilado, vem à procura do delator para fazer justiça com suas próprias mãos. Com um argumento destes, Zinnemann extraiu o maior suspense possível. Desde as cenas iniciais, quando os letreiros são transferidos para o final da película, podemos observar o poder descritivo de sua imagem. A pressa, o desejo de vingança expresso nos olhos e na atitude de um homem. A originalidade de apresentação, a economia ao apresentar suas cenas, a intensidade do ritmo, a atmosfera impressionante do claro escuro das suas composições. Todo o filme revela a precisão como Zinnemann emprega estes valores que acabei de citar. Por sua vez, o emprego do som é magistral. Somente nas séries de Val Lewton tinha visto o som ser empregado de maneira tão correta e funcional como neste filme em exibição no Moderno. Duas sequências, então, são extraordinárias. A primeira quando Van Heflin, em fuga, atravessa um longo túnel. A analogia com a sua traição é inevitável. E a chacina de seus companheiros é lembrada não por imagens, mas por vozes que se fazem ouvir - alemães que ordenam, sua própria voz que suplica, tudo num crescendo cada vez mais forte. A segunda sequência encerra a película. Numa estação deserta, o drama dos dois homens se decide. A voz do vento é impressionante naquele instante de expectativa e terror. Outros momentos de bom cinema poderão ser apreciados neste filme. Van Heflin e Robert Ryan têm os principais desempenhos, à frente de um elenco impecavelmente bem conduzido. Janet Leigh, Mary Astor, Phyllis Thaxter e Berry Kroeger constituem um ‘supporting cast’ dos melhores vistos ultimamente. Excelentes a fotografia e partitura musical.” (JC, 30/abr/52, p.4)

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JORNAL PEQUENO: “O HOMEM DOS PAPAGAIOS” Ângelo de Agostini “Se cinema serve, em parte, para fazer afugentar a tristeza dos corações humanos, então O Homem dos Papagaios é uma grande obra cinematográfica. Desgraçadamente, porém, tanto para seus realizadores como para os próprios espectadores, cinema não é apenas isso, exigindo muito maior dose de honestidade artística do que uma mera função de fazer rir. Certo: recomendamos esta fita da Multifilmes para desopilar o fígado da população recifense, para afugentar a dor e a desesperança das almas de todos nós, para, enfim, fazer crer-nos por alguns minutos que a felicidade custa tão pouco e é tão fácil achá-la. Por estes motivos, muito naturais e importantes, sem dúvida, podemos aceitar O Homem dos Papagaios. O que não poderíamos fazer seria recomendá-lo como uma verdadeira obra de cinema, digna, efetivamente, deste nome, porque, por mais boa vontade que tivéssemos, jamais poderíamos taxá-lo como um grande filme ou, pelo menos, razoável. A fita é fraca, amigos, não podemos negar. E é bom que se fale assim claramente, desde que acreditamos que os entusiastas do cinema nacional não desejam vê-lo progredir às custas de mentiras e de elogios falsos. Só a sinceridade e a honestidade constroem, muito embora o filme prove e convença o espectador que, neste mundo, só há lugar para atos desonestos, tramoias, patifarias, vigarismos. Preferimos, todavia, neste caso do cinema brasileiro, continuarmos sinceros nas nossas referências sobre suas produções, analisando-as desapaixonadamente, indo de encontro, assim, ao que defende a película (defende ou exalta, que é a mesma coisa). O filme nos lembra uma chanchada daquelas que a Atlântida sabe produzir tão bem e custa-nos crer que uma nova companhia como a Multifilmes, logo no início de suas atividades, realize uma fita tão medíocre e tão nula de fatores positivos cinematográficos como esta O Homem dos Papagaios. Procópio Ferreira domina o filme, por completo. Aliás, o filme é ele, vale por ele; Helio Souto, dos demais, é o que está melhor. O restante, muito ruim. Enfim, como cinema não recomendamos esta realização verde e amarela, nem como justificativa de se prestigiar o nosso cinema. Desse modo, esta forma de prestígio resulta contraproducente. Apenas, quem quiser rir em algumas oportunidades e quem não desejar muita coisa de cinema encontrará em O Homem dos Papagaios uma obra engraçada. Nada mais, o que é pena.” (JP, 04/set/53, p.4)

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3.CRÔNICAS SOBRE O CANTO DO MAR PUBLICADAS DEPOIS DA PRÉESTREIA (OUTUBRO DE 53) E NO LANÇAMENTO (MARÇO DE 54) Por ordem cronológica: CARLOS FREDERICO: “Como acontecimento social, o lançamento de O Canto do Mar confirmou as expectativas. Como filme, deixa muito a desejar. “Apresentado como sendo uma notável realização do cineasta Cavalcanti, não convence no seu conjunto. Ao assisti-lo o espectador fica com a impressão de ter visto não uma história bem contada e bem concatenada, e sim uma verdadeira colcha de retalhos. Os quadros, muitas vezes, não são ligados com a sutileza que era de se esperar de um homem de cinema com a fama do sr. Alberto Cavalcanti. Tem boa fotografia, o som está bem, os diálogos escritos com acerto e elevação. O filme, apesar disso, é de uma monotonia um tanto irritante. O magnífico material de que Cavalcanti dispunha não foi aproveitado a capricho. Já o fundo musical, é magnífico. “Confesso que não entendi o ‘chamado drama dos sertanejos’, que com um simples banho de mar parecem ter suas aflições aplacadas. Como não entendi, também, a intenção do argumento. Somente no Sul existem vida farta, beleza, facilidade para tudo. O filme a toda hora nos diz isso. Quando foi passado nos cinemas do interior será uma propaganda a mais para justificar o canto da sereia dos agentes encarregados de transportar para São Paulo, Paraná e Goiás os nossos pobres matutos, crentes de que naqueles estados o paraíso terrestre foi instalado. Se não foi essa a intenção, uma cena de desilusão deveria nele figurar. Até nossas danças e folguedos populares não foram bem tratados. São deprimentes para nós os enxertos feitos - a título de que? O ‘passo’ está mal executado. O ‘Bumba-meu-boi’ e o ‘Maracatu’, da forma como estão figurando, não podem dar aos que nada conhecem dos nossos costumes uma ideia exata da beleza e da riqueza do nosso folclore. Uma pena. “E para completar, não gostei das críticas dos oradores feitas aos outros cineastas brasileiros, que vêm trabalhando em benefício do cinema brasileiro. E não gostei porque Cavalcanti, em O Canto do Mar, não se mostrou superior a muitos deles. O seu filme é, apenas, mais uma fita rodada no Brasil. Nada tem de extraordinário.” (DN, 05/out/53, p.6) ALTAMIRO CUNHA: “Penso que O Canto do Mar não correspondeu bem à expectativa formada ao seu redor pela maioria do público que afluiu ao São Luiz, em busca de sensações mais diversionais que artísticas. Como também deixou uma insatisfação aos que esperavam desse filme o rótulo em maiúscula do mais perfeito do cinema brasileiro, pela assinatura Cavalcanti, seu realizador, sem dúvida (por mais que muita gente não creia) um nome glorificado na cinematografia mundial. Quem percorreu as páginas da Histoire du Cinéma, de Maurice Bardeche e Robert Brusillach (a mais autorizada no gênero) encontrará na página 391 grandes elogios ao cineasta não anotado como brasileiro e sim como francês, quando abandonou a França para fazer cinema na Inglaterra, então em vanguarda nos filmes documentários, considerada a tentativa mais curiosa do cinema inglês. Chegando a Londres criou um estilo e um ritmo pessoais e assim apareceu um dos louvores ao seu trabalho: ‘...Et, pour expliquer leurs théories, ils trouverent l’aide d’un metteur en scène français, eloigné des studios de son pays, bien qu’il eût été l’un des plus intelligents animateurs de l’art muet et l’auteur d’En rade ‘. Na França, era tido como grande cineasta e En Rade foi anotado na Histoire du Cinéma

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como uma das obras mais comoventes do cinema francês. Em O Canto do Mar cometeu Cavalcanti o erro de querer adaptar a novela de Philippe Hériat, verdadeiro poema à glória das viagens, no seu clima de evasão, na cor local do nosso Nordeste com o drama dos retirantes que encontram vida diversa perto de um mar hostil a tantos sentimentos disparatados. Cavalcanti deveria ter composto o celuloide sem lembrança de En Rade. Seria melhor ter escolhido um tema original, embora o mar fosse a advertência poética, com as jangadas e os coqueiros enamorados dos ventos. Errou em querer dar um ângulo novo ao seu filme famoso. Contudo, relevem-se imagens de pureza cinemática, as cenas magistrais de documentário, como do maracatu, do xangô, do bumba-meu-boi, que vão impressionar no sul e no exterior. No resto, ausência de continuidade no processo já ‘demodé’ de Joseph Sternberg, no dissolver as sequências, diálogos monótonos e literatura arquejante, do senhor José Mauro Vasconcelos, responsável pelo argumento do filme.” (DN, 06/out/53, p.6) ÂNGELO DE AGOSTINI (crônica em três partes): “Afinal saiu O Canto do Mar, este filme realizado no nosso estado que criou inimizades entre cronistas cinematográficos, dividindo a crônica local, que forjou intrigas e que foi como uma barreira, dividindo os meios culturais e artísticos da cidade. Positivamente, não houve no mundo, jamais, um filme que fosse realizado debaixo de tantos mistérios, acobertando tanta confusão, tanto embroglio, com os seus realizadores a julgarem-se seres infalíveis, não admitindo um conceito menos elogioso ou, tão somente, um pensamento de dúvida à cerca do sucesso artístico da obra. Quem acompanhou o trabalho de O Canto do Mar, mesmo de longe, como nós, que jamais saímos da nossa responsabilidade de críticos cinematográficos, nem nunca olvidamos dos nossos deveres para que, tão somente, devemos explicação dos nossos atos, que é este público amigo que lê ou ouve os nossos comentários, pôde sentir a verdadeira ‘cortina de ferro’ formada em torno da feitura de O Canto do Mar. Contudo, ainda se admite que assim precedessem os seus diretores, aqueles encarregados da sua feitura. Todavia, o que nunca compreendemos, o que jamais nos pareceu gesto digno de quem tem, de fato, talento, e sabe prová-lo no momento exato, sem precisar de um verdadeiro DIP que foi, sem dúvida, o maior artista e o maior colaborador da obra de Cavalcanti, resultou no convencimento de alguns que trabalharam com Cavalcanti, com a sensibilidade à flor da pele, não aguentando que se dissesse, junto deles, que não se acreditava no filme da Kino. “Fechavam-se os rostos, enrubesciam-se as faces e os ‘gênios’, incapazes de falhas e defeitos e somente possuidores de talento e virtudes, não mais falavam com os atrevidos, os ousados, os que tinham a petulância de duvidar do sucesso do filme. ‘É de Cavalcanti, ora, ora, então nem se discuta. De olhos fechados poderemos até assistir a fita...’ E assim nasceram inimizades, criaram-se casos, e o ambiente artístico recifense ficou em pé de guerra, dividido em dois grupos distintos. “Mas, amigos, valeu a pena isso tudo? Houve razões suficientes para essas coisas que nos envergonham e são próprias de habitantes de uma província? Não houve. A luta resultou inútil, a batalha não teve razão de ser e tudo não passou, afinal, de uma briga inglória, própria de crianças ingênuas. E por que?” “Simplesmente porque O Canto do Mar resultou um filme que não merecia, evidentemente, esse barulho todo. Foi um cartaz maldado pelos litigantes, ou melhor, por uma parte deles, desde que a outra conseguiu com a luta o objetivo visado:

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publicidade para o filme. Evidentemente, senhores, o cinema brasileiro foi mais uma vez blefado pelo senhor Cavalcanti. Positivamente, agora não pode existir desculpas para mais este fracasso do renomado cineasta nascido no Brasil. Das primeiras vezes, a desculpa foi de que a direção não fora de Cavalcanti, apenas ele havia produzido os filmes. Da outra, a desculpa foi que se realizara um filme com intuitos comerciais (Simão, o Caolho). “Esperou-se, pacientemente, com esta magnanimidade característica do brasileiro, por mais uma obra. A generosidade foi grande e a boa vontade, maior. Chegou, afinal, a fita que, segundo o DIP, seria na verdade a primeira fita realmente cavalcantiana, aquela em que ele pôde se locomover com inteira liberdade, sem grilhões e sem barreiras. Seria a demonstração cabal da capacidade do diretor, ainda não posta à vista no Brasil. Seria a resposta definitiva aos seus inimigos e a mostra de que Lima Barreto não passava mesmo de um mediocrezinho... “E o que vimos? Um filme pior do que Simão, o Caolho, sem continuidade, com os personagens dançando soltos na história, terrivelmente mal dialogada, personagens que nunca convencem, pior, secos, apáticos, sem alma, despersonalizados, que não nos transmitem coisa alguma, figuras fantasmagóricas, mutiladas, de cabeça para baixo, sem beleza, que se movimentam lentamente, obedecendo às vontades alheias, personagens, afinal, que não impressionam, que passam despercebidas, horrivelmente fixados na linha central dos seus caracteres. Um vácuo imenso, uma sucessão de coisas tremendamente mal elaboradas, com erros primários de cinema. O Canto do Mar, um filme que não diz nada. Que não tem intensidade dramática alguma, que não nos transmite nenhuma sensação, gélido, morto, estático. Custa-nos crer que Cavalcanti tenha realizado uma obra dessas e de não ter observado a fragilidade clamorosa da história e da confusão formada pelos personagens, evidentemente sem sentido, sem coração, sem estarem definidos. E se dissemos que custa-nos crer é porque se trata de um elemento citado por antologias cinematográficas, um homem de conceito no ambiente cinematográfico mundial. “E por essas falhas, e por essas decepções que Cavalcanti vem dando sucessivamente, temos que chegar a uma conclusão que é uma tentativa de explicação para seus fracassos no cinema brasileiro, conclusão melancólica a que nunca desejaríamos chegar: Cavalcanti, o diretor mais conhecido do cinema verde amarelo, entrou em decadência artística. Esta nos parece a única explicação plausível para essas quedas. Impossível, e até injusto, comparar-se O Canto do Mar com O Cangaceiro. À parte todas as falhas da obra de Lima Barreto, o filme teve uma história exata a contar, seguiu uma estrada, não importa que tortuosa em algumas ocasiões, foi um filme de montagem muito boa, de continuidade, com instantes de bom cinema, que prenderam a atenção do público.” “Vagou indiferentemente, como canoas soltas no oceano, para lá e para cá, sem chegar a uma conclusão, indeciso, como quem anda à procura de um rumo, certo ou errado, mas que possa chegar ao fim. Por outro lado, houve um excesso de Cavalcanti [em] fazer um filme folclórico, um grave defeito. A intenção resultou infeliz de explorar ao máximo os costumes tradicionais do nordeste e suas danças típicas como frevo, maracatu, bumba-meu-boi e o xangô. Resultado: a história do filme, o argumento da obra, ficou, às vezes, seriamente prejudicado pelo excesso de zelo em Cavalcanti filmar essas danças e festas. Sequências demasiadamente longas de bumba-meu-boi e maracatu e, o que é pior, com pouco sentido funcional. Sequências, afinal, perfeitamente dispensáveis e que, acreditamos, só foram colocadas no celuloide como

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um ponto de curiosidade visual para os públicos do sul e do exterior. Mas que a unidade do filme resultou sacrificada com isso, não tenhamos dúvida. Quiséramos poder dizer de O Canto do Mar boas coisas. Todavia, os seus defeitos são tão evidentes, tão puros, cristalinos e diáfanos, que não é possível a boa vontade derrotar o espírito de justiça que deve presidir aos julgamentos. E se fôssemos, de fato, juízes não teríamos dúvida em condenar Cavalcanti porque não soube colocar os personagens no subconsciente de cada espectador, como elementos que falam e ouvem, como criaturas que sentem, como entes humanos. Ainda, porque quis fazer da fita um documentário de danças e costumes típicos do nordeste (isso só não é cinema), desprezando e relegando a um plano inferior a contextura do argumento. Condenaríamos Guerra Peixe porque em muitas oportunidades, sua bela música sobrepuja em intensidade as próprias cenas para as quais servia de fundo musical. Não condenaríamos os atores porque seus fracos desempenhos deveram-se a Cavalcanti que não criou tipos convincentes, mas condenaríamos, com rigidez, o senhor Hermilo Borba Filho, autor dos diálogos, mal feitos, monótonos, sem inspiração (tal qual suas peças teatrais). Da montagem nem é bom se falar: uma lástima. Somente absolveríamos o fotógrafo Cyril Arapoff, o único que conseguiu se salvar, oferecendo-nos um brilhante trabalho fotográfico, tão bom como o de Chick Fowle em O Cangaceiro. A ele, o único que não se atolou na lama da mediocridade, as nossas sinceras felicitações. A dublagem, outro grave defeito. Há duas cenas que qualquer leigo pode observar a não concordância das palavras ouvidas com o movimento dos lábios dos intérpretes. Uma, quando Alfredo de Oliveira canta ao violão, com a voz de Luiz Bandeira, e a outra numa cena de ‘close-up’ de Rui Saraiva. Fora outras, que talvez nos tenham escapado. Em suma, eis O Canto do Mar. Filme de ritmo lento e desinteressante (e acreditamos que poucas vezes uma fita tenha despertado tanta atenção dos espectadores, justamente por ser feita aqui no estado) não fez jus, ainda, ao conceito de Alberto Cavalcanti. O que lamentamos, pesarosamente. Enfim, o grosso do público julgará melhor do que nós esta fita tão discutida e que acobertou no Recife artístico um período de lutas, de inimizades, de guerras e de incompreensões. Luta sem valia, guerra sem triunfo, batalha sem prêmios.” (JP, 06, 07 e 08/out/53, p.4) ISAAC GONDIM FILHO: “Excepcionalmente, trataremos hoje de uma realização cinematográfica: O Canto do Mar, de Alberto Cavalcanti, para a Kino Filmes, apresentação em estreia mundial, sábado último, no Cinema São Luiz, sob o patrocínio da Prefeitura Municipal do Recife, através do Departamento de Documentação e Cultura. “Cremos que nós todos, recifenses, somos e seremos os menos categorizados para dar a nossa opinião sobre essa película, opinião no sentido total de cinema, pois conhecendo a nossa cidade e seus arredores suficientemente bem, nos seus menores recantos temos muito arraigada em nós a realidade geográfica disto que nos é bastante familiar. E o difícil para nós será anular em nosso entendimento esta realidade geográfica a fim de aceitar a própria realidade do filme, sem quebras emocionais dentro da [palavra ilegível no microfilme] geral. Isto, entretanto, não tira ao filme a sua [ilegível] continuidade, progressão esta intrínseca à história e às situações do entrecho. De mais a mais, tais liberdades geográficas, buscando nossos recantos mais fotogênicos e mais fotográficos valorizam a parte visual do filme, dando-lhe maiores efeitos plásticos. “A linha emocional de O Canto do Mar é levada sobriamente, o que nos parece perfeitamente bem enquadrado dentro dos modernos conceitos de arte. Isto, todavia,

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não impede que tenha grandes momentos dramáticos, poéticos. Aliás, ressaltamos a maneira habilíssima usada na apresentação dos nossos motivos regionais: o bumbameu-boi, o maracatu, o frevo, o xangô. “Naturalmente, olhos profundamente críticos hão de descobrir senões técnicos ou artísticos no filme. Existem, mas de qualquer maneira não chegam sequer a empanar de leve os grandes méritos da realização. Não os [ilegível] de realização. E tais defeitos apontáveis não deixam de ter o lado pessoal dos que fazem as restrições. Não os consideramos ponderáveis pelo lado cinematográfico, puro e absoluto, por isso devemos deixá-los de lado. De mais a mais, as qualidades positivas são tão fortes e meritórias que tudo o mais fica reduzido a um plano não mencionável. “Pormenorizando parcelas da realização, temos a apontar a magnífica fotografia de Arapoff, a belíssima música de Guerra Peixe, e os muito precisos e verdadeiros diálogos de Hermilo Borba Filho. São fatores muito bem aproveitados e perfeitamente bem enquadrados no todo, o que o leva a valorizá-lo. “Quanto aos intérpretes, cremos que estiveram numa linha bastante alta sobretudo em se tratando de estreantes no cinema. Margarida Cardoso, numa personificação de muito bom estilo, deu-nos no cinema uma interpretação equivalente às grandes que tem feito no palco. Alfredo de Oliveira, também muito bom, num papel bastante cinematográfico, igualmente reafirmando na tela as suas qualidades de ator de teatro. O restante do elenco, equilibrado, alguns dos intérpretes com grandes momentos. Em um dos menores papeis, Miria Nunes marcou um grande êxito pessoal. “O Canto do Mar é sobretudo, em nosso entender, uma obra de arte superior, de alto conteúdo humano e poético, social e artístico. Neste filme estão perfeitamente dosados o que há de documentário regional e ficção realista. Com a realização de O Canto do Mar, Alberto Cavalcanti, como sabemos, lutando com inúmeros contratempos e obstáculos, conseguiu mostrar-se no nosso país o mesmo grande diretor de cinema que já conhecíamos através do seu renome universal. A sua obra em questão é uma grande e valiosa contribuição ao cinema de nossa terra e, também e honrosamente para nós, à cinematografia mundial. Isto porque O Canto do Mar é um filme essencialmente nacional sem, entretanto, fazer concessões nacionalistas e perfeitamente dentro dos princípios mais modernos de arte e de cinema.” (DP, 06/out/53, p.2) PAULO FERNANDO CRAVEIRO: “Pernambuco, este estado cheio de tão belas e puras tradições, serviu de cenário para um filme dirigido por Alberto Cavalcanti. O Canto do Mar imergiu nos seus maracatus, percorreu xangôs e apresentou o frevo. Fotografou nossas praias. Mostrou as igrejas ‘grávidas de ouro’. E também a miséria do povo sertanejo, a terra seca e suas paisagens mais tristes. Focalizou tudo isso como numa sucessão de cartões postais que a gente manda para uma pessoa muito distante daqui com uma dedicatória mais ou menos assim: ‘Aí vão os costumes populares e a terra pernambucana’. Nada mais. “O Canto do Mar, a nova versão de En Rade, que Cavalcanti realizou em França no ano de 1926, apenas possui o mérito de ter pesquisado os nossos rituais e festas do povo. É um pequeno estudo sociológico sobre Pernambuco. Um documentário razoavelmente expressivo onde Cavalcanti procurou equilibrar a precariedade do argumento com aspectos básicos do sentimento da terra. Entretanto, foi inábil para contrabalancear os elementos sociológicos com os do cenário. O resultado é que, havendo essa carência de ordenação cinematográfica, a produção da Kino Filmes perdeu-se na sua própria fragmentação. Resume-se, exclusivamente, às sequências dos

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hábitos nordestinos. E havendo uma sintetização, observei que O Canto do Mar não deveria ultrapassar os limites de um celuloide documental, de pequena metragem. Não existe conjunto no filme. Dificilmente haverá outro filme com tamanha falta de unidade. Esse é o maior defeito do filme. As sequências não estão devidamente integradas num princípio de homogeneidade. São fatores dispersos, absolutamente desencontrados e que não convergem para um ponto comum. Esta desordenação é uma decorrência da integral fragilidade do enredo de José Mauro de Vasconcelos, além da inconsequente direção de Cavalcanti, reproduzindo um trabalho comprometedor dentro do estilo de Simão, o Caolho. O argumento de O Canto do Mar não possui urdidura dramática nem consegue, ao menos, transmitir uma história. Monótono e destituído de valores, primando sempre em conclusões apressadas e saídas pouco convincentes. A grande quantidade de sonhos demonstra a insuficiência do argumento, procurando um trespassamento do real para o irreal, onde, logicamente, seria fácil colher efeitos plásticos para a valorização formal e substancial. “O Canto do Mar é um imenso sonho, quase um pesadelo. Todo o filme transcorre friamente sem elevações emocionais e num padrão vagamente desconsolado de frustração. Alberto Cavalcanti e José Mauro de Vasconcelos, como se tivessem realizado um pacto, nada fizeram para comunicar-se com o público, levando até ele uma narrativa com princípio, meio e fim, que provocasse um imediatismo de ideias para o alcance do itinerário e comportamento dos personagens. Tudo é profundamente desinteressante. Também não percebi a atmosfera de conflitos introspectivos para a concretização final de um drama - classificação esta fornecida pelo próprio diretor de Na Solidão da Noite. As situações estão delineadas com falsidade e, por vezes, incoerentemente, resvalam para a fuga da simplicidade, caindo verticalmente em fórmulas bem aproximadas da exageração. “Quanto à parte técnica, posso dizer que a continuidade de O Canto do Mar ao invés de sofrer influências da dinâmica, conforme seria adequado, obteve a colaboração espontânea da inércia, submetendo-se às suas leis e causando maior detrimento na estrutura da fita. Cyril Arapoff, diretor de fotografia, merece saliência dentre os demais compositores da película. Apesar de não dotar os efeitos fotográficos de grande plasticidade, Arapoff realizou um trabalho eficiente, só prejudicado em algumas cenas de captação em ângulos de primeiro plano quando a imagem torna-se parcialmente defeituosa e transformada. Boa a sonorização. O serviço de laboratório de dublagem, realizado em São Paulo, inexato. “Guerra Peixe, um estudioso em matéria de músicas folclóricas, compôs belas partituras baseadas em motivos pernambucanos, sendo, ainda, feliz na confecção de outro elemento acessório: a música funcional. “Entre os cortes, existem dois de grande eficácia: o primeiro quando, depois da apresentação do mapa de Pernambuco, surge a terra rachada pelo sol abrasador e o segundo na passagem repentina do sertão para a praia. Lamentável tornou-se a admissão de um narrador pífio como confirmador da imagem. E mais ainda: saturando os espectadores de uma literatura que ficaria melhor acomodada entre os que se reúnem perto dos escritores adormecidos nas prateleiras da livraria Mozart. “Dirigindo os atores - um grupo formado por principiantes e veteranos Cavalcanti foi quase sempre indulgente. Todos os seus intentos mais simples para conseguir maior expressividade interpretativa não foram compreendidos. “O Canto do Mar, exibido em estreia mundial aqui no Recife, confirmou as más atuações de Alberto Cavalcanti, no Brasil. Em França ou Inglaterra, onde ele conseguiu, devido aos seus méritos indiscutíveis, projetar seu nome universalmente, tornando-se

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antológico pelos seus documentários, deveria possuir técnicos especializados para secundá-lo na produção de filmes. Aqui na pátria amada tudo tem sido feito à base do improviso. “Que Alberto Cavalcanti, agora, verifique o existente de impossível no Brasil, nas circunstâncias de absoluta falta de colaboração e receba minha modesta, sensata e eterna admiração pelo grande e outro Cavalcanti que, na Inglaterra ou à sombra da torre Eiffel, era símbolo muito brasileiro de cinematografia. “Com a produção de O Canto do Mar, Cavalcanti não conseguiu se recuperar dos seus insucessos anteriores, como sejam Caiçara e Simão, o Caolho. Na película baseada em crônicas de Galeão Coutinho, o diretor de O Transgressor, como atenuante para a ruindade da película, alegou tratar-se de um empreendimento notadamente comercializado e onde foram sacrificados os princípios fundamentais do cinema em favor da economia do diretor e da empresa realizadora. Em Caiçara foi apenas o produtor. Transportou-se, depois, para Pernambuco, a fim de redimir-se. O principal estado do norte surgia como se fosse um oásis no deserto (o lugar-comum aqui é indispensável). Imaginou com uma clarividência equívoca que poderia realizar um filme aproveitando os costumes mais pitorescos da região, introduzindo, como fonte novelesca, uma história de classe rasteira por ele mesmo idealizada e cenarizada por José M. de Vasconcelos, tendo, ainda, como fator negativo, os diálogos pouco recomendáveis do teatrólogo Hermilo Borba Filho. Lançou-se em seguida a O Canto do Mar com uma auto-suficiência ‘limabarreteana’, não admitindo o pensamento livre daqueles que não acreditavam no celuloide em preparação. “As filmagens tiveram início com mistérios e enigmas tão cultivados que ficariam bem melhor num conto de Allan Poe. O segredo de O Canto do Mar assumiu quase a importância da fórmula da bomba atômica ou de um foguete interplanetário. O tempo foi se esgueirando entre os dias e os meses até que o silêncio foi cortado como uma espécie de segunda independência do Brasil. Estavam terminados os trabalhos de cinegrafia da película de Cavalcanti. Tudo silenciou novamente, pairando um ar de neutralidade no Recife. O Canto do Mar encontrava-se em fase preparatória nos laboratórios da Kino Filmes em São Paulo. Finalmente, quando a fita estava definitivamente concluída, foi anunciada. Seria apresentada em pré-estreia no Recife. Como decorrência desse fato, Pernambuco conheceu mais uma batalha; uma rememoração das lutas dos nossos ancestrais Matias de Albuquerque e Henrique Dias contra as invasões holandesas: a batalha dos convites na qual destacou-se a prepotência da Diretoria de Documentação e Cultura, relegando a plano inferior aqueles que, por uma questão de justiça, não deveriam ter sido omitidos nas listas de distribuição. Mas, afinal, tudo está terminado. Cessou o rufar dos tambores e os clarins emudeceram. O que resta da epopeia é a incapacidade direcional do cineasta Alberto Cavalcanti, no Brasil.” (DN, 07/out/53, p.3) L.: “Não há meio termo nas opiniões sobre O Canto do Mar. Para uns, foi a segunda tragédia do São Luiz, sendo a outra a morte do deputado sertanejo; ou que a bala que matou o deputado Santana, pegou casualmente o representante petebista, dirigida que fora, não contra ele, e sim contra Cavalcanti. Para outros, trata-se de uma obra-prima; das tais que o sujeito, depois de fazê-la, vai dormir nos braços da posteridade.

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“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A humanidade do filme é de uma força que excede o que antes de Cavalcanti emergira da cinematografia nacional. O drama do filme não tem largos sopros de tragédia. É, antes, um instante de amargura, uma fixação de dores humildes, um flagrante quase fotográfico e universal de destinos frustrados, colhido quase no underground dessa humanidade que a miséria colocou nos primeiros degraus da vida em sociedade. “O que falta ao filme é aquela censura rígida que se tinha direito de esperar do antológico Cavalcanti. Ele transigiu com mais de um auxiliar, num trabalho que, por ser de equipe, não atenua o exclusivo de sua responsabilidade direcional. E como se trata de um trabalho que está encontrando mais demolidores que sensibilidades receptivas, enfileiramos, aqui, aquelas restrições que também fazemos nossas. Há, por exemplo, o diálogo: só a espaços ele escapa ao ranço de uma literatura que melhor ficaria se ajustada à congênita e irremediável debilidade de certas novelas radiofônicas. Dificilmente se evita um arrepio a certas tiradas repolhudas colocadas à base dos personagens e declamadas com ênfase, sonegando os previstos efeitos às melhores passagens. Talvez com o intuito de enriquecer o filme documentariamente, nele se entremearam cenas de frevo (ao decorrer de um sonho, sem ligação e sem concatenação), de bumba-meu-boi e de xangô com um excesso de arbitrariedade que nenhuma justificativa ou defesa poderá receber. O mesmo ocorre com aquelas sequências que um trabalho de supervisão bem conduzida sacrificaria em favor da unidade e das probabilidades argumentais. É o caso da morte do garoto: poderia ter ficado na comunicação que a irmã leva ao irmão na praia. O que vem depois desafia o realismo do cenário e AGRIDE, pelo ridículo, a sensibilidade mais coriácea: o velório, a carta enviada aos céus, com o caixão fúnebre servindo de caixa postal, o declamatório materno, tudo constitui uma ilha de mau gosto que desajusta o inteiriço da peça como obra de cinema. Também a abertura de O Canto do Mar tem um ranço de má literatura, com aquelas estiradas desnecessárias à compreensão do drama da seca. No desempenho, não há boa vontade que salve de condenação o juvenil Saraiva, cujo tipo é excelente, que tem uma presença cinematográfica corretíssima - enquanto atua nas cenas silenciosas. Mas quando fala, naquela sua fala mole, tão pobre de inflexões, o desastre sobrevém, sem remissão e sem salvação. Os demais são sóbrios: e é um milagre que se tenha obtido tanto de um grupo que pela primeira vez enfrentou os percalços de uma câmera.” (DP, 07/out/53, p.6) DUARTE NETO: “Era grande e animadora a expectativa em torno de O Canto do Mar. Durante uma semana não se falava em outra coisa no Recife. Cartazes. Faixas. Convites impressos com luxo e bom gosto. E, finalmente, o filme começa a rodar; o São Luiz superlotado, pessoas em pé, sentadas pelos degraus do balcão; estava vitorioso o cineasta Alberto Cavalcanti. “Aparecem as primeiras cenas do alto sertão. A seca. Os esqueletos de animais. Vem o narrador. Não era necessário o narrador, mas o sr. Cavalcanti, caprichosamente, achou o contrário; e provocou os primeiros bocejos na plateia. E a paisagem muda bruscamente para o litoral. Uma povoação de beira de praia. Pescadores. Estamos assistindo a uma interessante reportagem sobre motivos pernambucanos. “Mas o enredo começa a desenvolver-se. Sim, o enredo; o filme tem que ter um enredo, - e uma fanfarra logo se desata num agitado frevo de carnaval. Por que e pra

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que? Pra nada. Se o sr. Cavalcanti, porém, queria um frevo de carnaval, por que contrariar o sr. Cavalcanti? “Acompanhemos a história. Ouçamos este diálogo de amor. Entremos um pouco no bar de Joazeiro para tomar uma pinga. O sr. Cavalcanti parece que agora vai mesmo narrar uma história. Sim, lá vai ele. Mas como narrar uma história se o maracatu de dona Santa já apontou na esquina? ‘Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da central? Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na Praça à frente do seu cordão’. “O sr. Cavalcanti está conseguindo algo que se me afigurava impossível: realizar um filme pior do que Simão, o Caolho. ‘E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço, convidando-o? Era a rapariga do momento, devia tê-la seguido... Ah, negro, não deixes a alegria morrer...’ “Viva o Bumba-meu-boi! Viva o Cavalo Marinho!... Eu tinha vontade de dançar um... posso? - ‘You are crazy, Amy! Ainda resta o xangô para as bandas de Água Fria; e lá é que iremos curar o resto desse ‘spleen’ danado. “Mas não seria melhor desistir de tudo? A madrugada está alta, o rio está dormindo; e de agora em diante parece que não vai mais haver dança. ‘Tudo acabado, tudo tristeza, caramba!’ “Eis a tragédia do nosso sertão. --“O Canto do Mar tem, entretanto, uma intenção social. Não se sabe qual seja, mas o prólogo condena o flagelo da seca e isto parece agradar ao sr. Cavalcanti. Tudo está dito no prólogo, não importa que o filme não tenha seguimento, continuidade, lógica, dramaticidade, sentido de qualquer espécie. E tanta é a frieza e a dispersividade que a gente chega a desconfiar se se trata realmente de um filme do sr. Cavalcanti. É como se o sr. Cavalcanti, antes tão vivo e tão meticuloso estivesse, na velhice, querendo zombar de nós. Na verdade, dificilmente ele conseguirá outro filme tão desconjuntado e tão besta. Mas tão besta mesmo que a gente chega a pensar em falência. Ou caduquice. Ou, ainda, - puxa, como foi ruim o tal sr. Cavalcanti.” (FM/V, 08/out/53, p.4) RENATA CARDOSO: “Eu nunca dei muito crédito a estas filmagens do sr. Alberto Cavalcanti. Achava gozado o entusiasmo da turminha que o acompanhava; sorria com as entrevistas que eles davam: escrevi mesmo diversos artigos sobre o filme O Canto do Mar. Procurava movimentar a história, fazer sensação, mas na realidade jamais confiei em toda aquela farrambamba. E o tempo foi passando. E eu raciocinava: ‘Não é possível que o filme saia do jeito que eu estou pensando; Cavalcanti é um homem culto, compenetrado da sua posição de diretor de cinema, famoso em todo o mundo pelos seus belos trabalhos rodados na França e na Inglaterra... Não, O Canto do Mar talvez dê certo. Aguardemos...’ Esse era o meu lado bom, pacato. O outro, vociferava: ‘Cavalcanti aqui está sem ambiente, tudo concorre para o seu fracasso; não há cooperação por parte de ninguém, e o material humano é primaríssimo; fazer cinema no Brasil é ainda uma aventura. Em todo caso, aguardemos’. “E o tempo foi passando... passando, até que surgiu aqui no Recife Simão, o Caolho. Uma lástima. E lá veio entre serpentinas, maracatus, frevos, xangôs, bumbameu-boi, a segunda tristeza: O Canto do Mar. O meu pessimismo era exato. Não se podia levar a sério esse filme. Com exceção da fotografia tudo estava ruim: diálogos dignos de serem assinados pelo autor de ‘O Direito de Nascer’; argumento

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confusíssimo; película truncada, sem homogeneidade; atores péssimos; enfim uma autêntica chanchada. Dessas enormes. Pobre Cavalcanti! É quem mais vai sofrer quando esse celuloide for visto pelo resto dos brasileiros. E é quem menos culpa tem. Sua boa intenção está à vista. “Estragaram tudo, prejudicando o cineasta sensivelmente. E esse prejuízo foi uma consequência da falta de valor do pessoal escolhido. A maioria foi composta de gente que possuía um único objetivo: aparecer. Aparecer, custasse o que custasse. Até com o sacrifício do nosso melhor cineasta: Alberto Cavalcanti. A este eu felicito pelo grande filme que poderia ter dado e não deu, devido unicamente aos seus colaboradores!” (DP, 09/out/53, p.6) JOMARD MUNIZ DE BRITTO: “Essa segunda realização de Alberto Cavalcanti no Brasil foi apresentada, sábado último, em pré-estreia mundial, no cinema São Luiz. Em torno desta produção da Kino Filmes, inteiramente rodada em Pernambuco, havia grande expectativa. Entretanto, Cavalcanti, cujo nome figura em todas as antologias cinematográficas, bem merecia a nossa confiança, respeito e admiração. “Na ‘avant-garde’ do cinema francês e na Inglaterra, realizou várias películas, algumas delas de valor indiscutível. Aqui no Brasil, Cavalcanti foi o produtor de Caiçara, Terra é Sempre Terra, e, também, dirigiu Simão, o Caolho, uma comédia despretensiosa. Veio a Pernambuco no ano passado, com uma equipe de técnicos experimentados, estudar as possibilidades desta realização. Trabalhou arduamente, auxiliado por alguns jovens competentes, resultando disto uma película que, apesar de não ser perfeita como unidade cinematográfica, pois a continuidade falha em algumas cenas e a interpretação de certos atores é medíocre, merece ser apreciado sob vários aspectos. O Canto do Mar é a refilmagem de En Rade, película dirigida por Cavalcanti na França. “Desde a sequência inicial, quando a câmera focaliza, ‘em close-up’, o mapa do estado de Pernambuco, e temos uma hábil fusão com um pedaço de terra rachada pelo sol ardente, o filme assume uma realidade espantosa. O êxodo, drama eterno de todos os nordestinos, Cavalcanti cantou-o magistralmente. Enfim, como documentário de um costume de um povo e do seu folclore: bumba-meu-boi, xangô, frevo, maracatu, etc, a película é extremamente valiosa. Estamos, pois, diante de uma obra cinematográfica essencialmente honesta, bem diferente de outras que, ao retratar os nossos costumes, enveredam por caminhos falsos e pretensiosos. “A direção de Cavalcanti, crua e vigorosa, soube tirar o máximo de todos os atores; alguns revelando-se verdadeiros talentos artísticos, como Margarida Cardoso (Maria), Cacilda Lanuza (Ponina), Alberto Oliveira (Zé Luiz) e Antônio Martinelli (Joazeiro). Guerra Peixe compôs o roteiro musical que é bonito e, ao mesmo tempo, funciona; e Cyril Arapoff foi o responsável pelo trabalho fotográfico, digno de especial menção. Os diálogos inteligentemente escritos por Hermilo Borba Filho refletem com exatidão o linguajar da nossa gente. “Pela originalidade e valor do tema - o drama de um jovem que rodeado pela miséria, pois a sua mãe era uma humilde lavadeira, o seu pai um louco e, vendo sua irmã entregar-se à prostituição, sonha com o sul - e pelo tratamento cinematográfico recebido, O Canto do Mar projetar-se-á na cinematografia mundial. A Cavalcanti nossos parabéns e votos de que nunca mais abandone a sua terra continuando a filmar

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no Brasil, explorando os nossos costumes, honestamente, como o fez em O Canto do Mar.” (DP, 11/out/53, p.6 - transcrição de texto lido no programa de rádio “Epopeia do Cinema”, apresentado por Jota Soares) ANTÔNIO PAULO DO R. PEREIRA: “O cinema sonoro encarregou-se de escrever a última página da História da Cinematografia Pernambucana. “Com efeito, desde 1931 que não se filma em Pernambuco, tendo sido várias as tentativas nesse sentido. Agora, após 22 anos, Pernambuco veio a servir de palco para a realização de O Canto do Mar, produção da Kino Filmes exibida em ‘première’ mundial no cinema São Luiz. “O Canto do Mar, versão brasileira de En Rade - dirigida por Cavalcanti na França - não é evidentemente um filme excepcional. É apenas, e isso já é muito em se tratando de um filme nacional, uma realização honesta, uma tentativa aplausível de aproveitamento e divulgação da terra brasileira. Alberto Cavalcanti, um mestre do documentário na acertada opinião de um crítico recifense, procura neste filme transportar para a tela a história de uma família nordestina, aproveitando tanto quanto possível as paisagens e os costumes nordestinos, pretendendo assim fundir o documentário com a ficção. Sua narrativa, entretanto, não consegue traduzir sua intenção, principalmente no prólogo do filme, quando procura apresentar o problema dos retirantes nordestinos em face da seca, para logo após iniciar a história a que me referi anteriormente, ligando-a ao prólogo apenas por um personagem sem grande importância. “Divide-se assim o filme em duas porções distintas que, se julgadas isoladamente, apresentam uma boa feição cinematográfica (a primeira principalmente, embora prejudicada pela presença de um narrador), mas consideradas como partes de um todo comprometem seriamente a estrutura do filme, pela fragmentação do entrecho, ou melhor, pela quebra de sua continuidade. Tivesse Cavalcanti estabelecido um paralelo entre as duas partes e estaríamos diante de uma obra realmente digna do seu talento. “A má sincronização do som com os lábios dos atores, aliás comum em filmes nacionais, constitui uma outra falha na realização de Cavalcanti. Contrabalançando, porém, essas imperfeições, facilmente pode-se apontar um bom número de qualidades: “a) A Fotografia - Cyril Arapoff, de nacionalidade russa, captou com muita felicidade a triste e ao mesmo tempo bela paisagem nordestina, sem contudo prejudicar o ritmo das imagens - como aconteceu em O Cangaceiro. “b) A parte documentária propriamente dita, habilmente aproveitada por Cavalcanti. Note-se a sequência do frevo, em que a câmera de Cavalcanti parece deixar-se dominar pelo ritmo excitante do mesmo. “c) A conduta geral dos atores, sobressaindo-se Cacilda Lanuza, Margarida Cardoso e Alfredo de Oliveira, em ordem decrescente, os melhores do elenco. Referência especial merece Miria Nunes, por viver com muita graça e perfeição a personagem Finoca. Os demais, à exceção de Alberto Villar, não comprometem. “d) A música composta por Guerra Peixe, bela e quase sempre funcional. “Essas as qualidades mais perceptíveis de O Canto do Mar. “Como vimos, O Canto do Mar não é apenas mais uma película brasileira medíocre, como afirmou um de nossos colunistas. É um filme brasileiro, sim, mas um

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filme que procura - e consegue - identificar-se como tal, e que será, talvez, a primeira página de um possível segundo volume da ‘História do Cinema Pernambucano’.” (DP, 11/out/53, 2ª Seção, p.3) MÁRIO MELO: “Estamos com dois filmes nacionais dignos de registro: O Canto do Mar e Sinhá Moça; o primeiro apresentado a número restrito de pessoas, o segundo em franca exploração comercial. Vi-os ambos. Há de comum, na filmação, necessidade de atender ao público menos perspicaz e daí algum apelo à fantasia. Ambos terão defeitos apresentáveis, porém ambos são bons, sendo o segundo melhor que o primeiro, podendo mesmo dizer-se que é o melhor filme nacional até agora aparecido. Depois da invenção do que intitulam ‘imprensa especializada’ - jornalistas com exclusividade para tratar de desportos, ou de cinema, ou de teatro, ou de música, para o que abusam alguns do vocabulário estrangeiro, em desprezo completo ao vernáculo - é até perigoso para os que não fazem parte das panelinhas, nem pretendem exibir erudição bestialógica, entrar na seara deles. Confesso que não sei o que, em cinematografia, é ‘close-up’ de que tanto falam os ‘especializados’ e por isso ignoro se qualquer dos dois filmes tem defeito de ‘close-up’ ou de ‘close-down’. Fato é que, em geral, me agradaram, perdoando certas monotonias em O Canto do Mar e o desfecho que não tem mais a chamada ‘chave de ouro’ dos sonetos de meu tempo. Em verdade, o zabumbamento que precedeu a exibição de O Canto do Mar foi excessivo para ele. Também não merecia a depreciação dada pela Prefeitura, com aquela enxurrada de letras minúsculas num convite bem impresso.” [Prossegue comentando Sinhá Moça] (JC, 11/out/53, 2ª Seção, p.6) GILBERTO OSÓRIO DE ANDRADE: “Não assisti à exibição de O Canto do Mar, em espetáculo de gala, sábado último, no São Luiz. Mas as notícias que tenho de quantos viram o filme somam uma quase unânime decepção. Nada obstante, a película fora anunciada com especial relevo. Não é por dá cá aquela palha que se realiza uma sessão cinematográfica à meia-noite, com vistosos convites distribuídos entre os intelectuais e as autoridades. A mise-enscène da exibição deixava presumir algo de precioso. De resto, não era para menos, sabendo-se que o diretor da filmagem, ‘double’ de produtor, era o celebrado cineasta Alberto Cavalcanti, nome que os entendidos pronunciam com religioso respeito. “Não assisti, porém, a O Canto do Mar. Em compensação fui ao mesmo São Luiz ver a exibição, em cartaz da semana, de Sinhá Moça. E mesmo sem ser esta uma obra-prima propriamente dita, quero crer que teria merecido muito mais o espetáculo de gala do que o desalentador e decepcionante filme do sr. Cavalcanti. [Comenta Sinhá Moça] “Repito que não vi O Canto do Mar. Mas tenho assistido a muito cinema nacional comumente mau e muitas vezes péssimo, sem ter encontrado ainda coisa que se compare a Sinhá Moça.” (JC, 11/out/53, 2ª Seção, p.6) ADERBAL JUREMA: “Esta é uma crônica de várias histórias, parecida com o argumento de O Canto do Mar, que começa no sertão e se perde na praia, sem uma sequência definida e precisa. Dentro do cinema São Luiz, quase meia-noite, todo mundo esperando o início do filme de Cavalcanti. Lá fora, a tragédia vinda do sertão e às margens do plácido e

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tranquilo Capibaribe. A plateia fica com uma fisionomia que lembra um ponto de interrogação. Mas Cavalcanti sobe ao palco e apresenta os artistas. Palmas para eles. Depois de ligeiros ‘speaches’, o filme. Paisagem desoladora de terra queimada e homens que fogem da seca. Excesso de gente preta que não existe assim no sertão das secas. “Depois o litoral, o caminhão, o chofer tomando banho de mar para admiração dos flagelados. E o filme continua a rodar, com altos e baixos tremendos. Gravação muito boa, fotografias ótimas, mas interpretação pouco [mais que] sofrível. Guardaroupa muito novo para gente pobre como a do filme. Os artistas falando como estivessem com um ponto à vista, ordenando de vez em quando: agora fale! “O Recife tem destas coisas surpreendentes. A noite de sábado foi marcada por duas tragédias terríveis. Uma, lá fora, na calçada do cinema, onde tombou um deputado estadual com a cabeça esmigalhada por uma bala misteriosa. A outra, foi a exibição do filme O Canto do Mar. Ambas, quase na mesma hora e com uma semelhança de motivos telúricos que nos dá o que pensar. O filme começa no sertão e se espapaça na praia, no litoral. A outra tragédia, dizem os jornais, também teve origem no sertão e terminou em pleno coração do Recife, cidade-praia.” (JC, 11/out/53, 2ª Seção, p.6) LUIZ FELIPE: “Creio que grande parte dessa profunda decepção que provamos todos os espectadores de O Canto do Mar, se deve ao fato de que a nossa expectativa era demasiadamente otimista em relação à nova película de Alberto Cavalcanti. Todos nós que nos dirigimos aquela noite de sábado até o São Luiz (desde os beneficiados pela política do DDC até os ‘sem convites’ que de uma maneira ou de outra conseguiram penetrar no cinema; e este foi o caso aqui do cronista), estávamos crentes de que afinal chegara a hora de enchermos a boca para falarmos sem constrangimentos e sem medos no cinema brasileiro. É que O Cangaceiro, embora nos tenha animado, não nos convencera ainda. E para Cavalcanti, o experiente Cavalcanti de trinta anos no cinema europeu e de várias citações nas mais autorizadas histórias de cinema, o Cavalcanti de Na Solidão da Noite, voltavam-se as nossas melhores esperanças. E aconteceu que contamos apenas com a capacidade direcional de Cavalcanti, com a sua experiência e os seus sucessos na Europa e, ingenuamente, não contamos com os fatores adversos que Cavalcanti enfrentou, desde uma história banal, diálogos inexpressivos (e, o que é pior, pretensiosamente literários) até atores medíocres e outras dificuldades de ordem puramente técnica. Pois cinema, antes de ser arte, é técnica; isto é, antes de ser puramente a capacidade e o talento de determinado indivíduo, é esforço não só intelectual, como manual; é técnica. (É aquele aspecto de artesanato que tem o cinema, que agrada tanto a Cocteau, por exemplo). Isto é: na situação psicológica com que a maioria dos espectadores dirigiu-se naquela noite de sábado ao São Luiz, contara-se apenas o talento e a experiência de Cavalcanti, abstraindo-se dificuldades enormes de outra ordem que o realizador da Kino Filmes tivera que enfrentar, aqui mesmo em Pernambuco. “Daí a decepção de todos, um sentimento generalizado de frustração sentido por todos. E o que se viu foi um filme onde, ao lado de poucos aspectos positivos, alinhouse muita coisa ruim. Não se pretenda desculpar Alberto Cavalcanti; ele teve, na verdade, a responsabilidade de um filme tão desigual; ele estava no dever de nos dar uma coisa muito melhor. Mas a verdade é que todos os que se dirigiram ao São Luiz iam certos de ver uma obra-prima do cinema mundial; o filme que finalmente nos

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encheria de razão para falarmos sem constrangimentos no ‘cinema brasileiro’. Havíamos superestimado a capacidade de Cavalcanti e subestimado as dificuldades de ordem técnica que ele encontrou. Foi apenas isso.” (FM/V, 15/out/53, p.4) JOSÉ DO REGO MACIEL FILHO (crônica em duas partes): “Inúmeras crônicas surgiram após a exibição de O Canto do Mar, reação natural se considerarmos a propaganda feita e a expectativa existente em torno do filme de Alberto Cavalcanti. Entretanto, se alguns trabalhos se restringiram apenas à análise das boas ou más qualidades da película, outros se destacaram pela agressividade, pelo caráter pessoal como abordaram a realização cinematográfica. Nem tanto nem tão pouco. “O Canto do Mar deixa margem para grandes discussões, sobre a estética e sobre a própria história do cinema. Se analisarmos o que foi o início do cinema veremos que o primeiro filme exibido foi um documentário, um filme baseado num fato real, autêntico - a chegada de um trem a uma estação parisiense. O filme era de Lumière. Somente depois é que se tentaria o filme de enredo, o filme de ficção. Até hoje o cinema se debate entre estes dois aspectos, e muitos consideram como a tarefa mais difícil da cinematografia, saber conciliar os dois. “Muitos consideram o documentário como a forma mais pura de cinema. Na Europa ele é plenamente aceito e existem cinemas especializados em exibi-los. No Brasil, raramente podemos admirar um bom documentário. Neste gênero, Cavalcanti conseguiu sua maior glória, sendo um dos responsáveis pela escola de documentaristas inglesa. Depois da morte de Robert Flaherty (o maior documentarista de cinema e um cineasta tão importante quanto Chaplin, na opinião de alguns), o autor de O Canto do Mar assumiu o posto deixado pelo autor de Tabu. Na Inglaterra, Cavalcanti dividia seu tempo entre dirigir apenas documentário, ou exclusivamente ficção. No Brasil, procurou conciliar os dois gêneros, como produtor em Caiçara e como diretor-produtor em O Canto do Mar. Este seu pecado. “O tempo que Cavalcanti passou no Recife, estudando os seus costumes e tradições, além de sua realidade social, poderia ter proporcionado a realização de um documentário excepcional. Mas o cinema continua a ser, ainda, uma vítima da indústria. O seu filme teria de ter uma história, um drama, para que pudesse ser entregue para quem paga e vai ao cinema. A história mais simples e que melhor ilustrava uma das principais facetas do nordeste era a história simples de En Rade, um filme silencioso que ele realizara na França. Era um drama de evasão, a história de um jovem ambicioso que desejava partir e tentar a vida numa cidade distante. Em síntese, o êxodo. Este fenômeno que tão bem define o nordeste. “O filme se inicia com um prólogo sugestivo e solene quando o cineasta acompanha um grupo de emigrantes sertanejos, desde o solo rachado do sertão até o mar, quando ‘simbolicamente’ o cineasta descreve o encontro entre aqueles homens sedentos e infelizes com o mar, com o horizonte desconhecido que eles pretendiam conquistar. Neste ponto o diretor poderia ter se decidido pelo drama de um daqueles sertanejos, sua luta na cidade desconhecida e ingrata. Prefere, porém, descrever a história do jovem filho de um pescador, identificado com os sertanejos pelo desejo que tinha de fugir, de encontrar novas oportunidades esquecendo a miséria em que vivia. Nestes dois aspectos aparentemente isolados concentraram-se as mais severas críticas, ressaltando a falta de unidade resultante.

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“Falta de unidade comprometida mais ainda pela maneira como Cavalcanti encaixou cenas de bumba-meu-boi, xangô, frevo e maracatu. Evidentemente não encontramos justificativa para a inclusão de tantos motivos regionais, mas não achamos que os mesmos possam prejudicar o filme [trecho ilegível]. “A falta de unidade, de intensidade dramática e desprezo à realidade topográfica foram apontadas como os principais defeitos do filme. Ao primeiro, diríamos não ser possível exigirmos de um documentário (ou semidocumentário como é O Canto do Mar) a mesma unidade de um filme puramente de ficção. A história [ilegível] sumamente simples, sem qualquer espécie de arroubo melodramático. Todos os grandes semidocumentários possuem história simples: Tabu, História da Louisiana de Flaherty, O Rio Sagrado de Renoir. Finalmente teríamos a realidade topográfica, detalhe jamais respeitado pelo cinema. Se o personagem de O Canto do Mar inicia seu passeio no cais do Recife, surge nas proximidades da Tacaruna e vai terminá-lo numa praia [ilegível] obedece apenas a uma convenção plenamente aceita pelo cinema. Para os que não conhecem Recife, a ilusão é perfeita. “Todavia, O Canto não é um filme perfeito, e mesmo tratando-se de um documentário o diretor poderia ter cuidado mais de sua unidade, da estrutura geral da película. Falhas de dublagem, maior controle de alguns atores e mesmo alguns problemas do argumento que poderiam ter sido resolvidos de maneira mais convincente e mesmo mais poética. A passagem de navio devia ter sido rasgada pelo rapaz numa demonstração simbólica de sua frustração, de sua renúncia e outros pequenos deslizes [ilegível]. Porém, como está, O Canto do Mar é uma película de grande valor. Um documento honesto, sincero e de inegável autenticidade. “Lamentamos apenas que a sua exibição tenha sido coroada por uma série de ataques e raras críticas. Mesmo reconhecendo um possível fracasso artístico, teríamos de louvar a atitude de Cavalcanti aventurando-se a vir fazer um filme no nordeste. Quando todos os diretores e produtores brasileiros se recusam a tal, temendo a dificuldade de transporte da maquinaria, de equipe técnica, de atores (o caso de Lima Barreto, filmando O Cangaceiro em São Paulo), Cavalcanti lutou contra os acionistas da companhia, defendeu o talento dos atores pernambucanos, ressaltou a beleza da paisagem e da luz do Recife e veio filmar aqui a despeito dos protestos e da má vontade. E fez um filme em Recife. “Se outros méritos não tivesse teria o de retratar aspectos de nossa gente, de nossa tradição, dos nossos monumentos, do nosso folclore. Acima de tudo, O Canto do Mar é um filme eminentemente pernambucano e ao seu realizador enviamos o nosso abraço de felicitações e agradecimento.” (DP, 18 e 20/out/53, p.6) FERNANDO MENEZES: “O público recifense não recebeu com simpatia a película do cineasta Alberto Cavalcanti. É bem verdade que O Canto do Mar não satisfaz à expectativa, porém há um que de exagero nas restrições feitas ao filme, chegando às vezes a atingir as raias do absurdo. Tenho ouvido comentários de certas pessoas que não se contentam em criticar, mas escurecem a competência de Cavalcanti. Todos nós sabemos o quanto Cavalcanti é conhecido na Europa, grande centro de cinema internacional. Citado nas grandes enciclopédias de cinema, e em livros de autores dos mais entendidos na Sétima Arte. Sadoul, Paul Rotha, Lo Duca e tantos outros. As restrições feitas são as mais variadas possíveis. Alguns afirmam que o filme perde grande parte de seu valor ao apresentar miséria do início ao fim. A acusação é sem dúvida infantil, de vez que não tem

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nenhuma consistência. Para arrasá-la é bastante citar os exemplos de Ladrões de Bicicleta e O Preço de uma Vida, verdadeiras obras de cinema, que no entanto tem o argumento girando em torno de miséria social. Alguns afirmam ainda que um cineasta como Cavalcanti não poderia ter caído em erros tão primários, outro argumento sem nenhum valor. Que diremos, então, de Milestone, o grande diretor de Sem Novidades no Front, que há bem pouco tempo nos deu aquela cretinice intitulada A Lei do Chicote. Deixou de ser Milestone um grande diretor por ter errado? Achamos que não. Cavalcanti errou em O Canto do Mar, e vamos criticá-lo pelos seus erros, mas vamos apontar também as virtudes da película. O Canto do Mar deve ser encarado antes de mais nada como um documentário, e como tal não está ruim a película de Cavalcanti, nem comprometido o seu nome de cineasta, desde que o documentário é uma das formas mais puras de cinema. Podemos sem nenhum esforço nomear os três grandes defeitos, que ao nosso ver são os pontos vulneráveis do filme: a falta de unidade; o folclore usado em demasia, chegando às vezes a causar certa confusão; e o mau entrosamento do documentário com a ficção. Da mesma forma que citamos as deficiências podemos citar as virtudes. Em primeiro lugar, a magnífica fotografia de Arapoff, verdadeiras lições de angulações e de beleza plástica, a música de Guerra Peixe, bonita e inteiramente de acordo com o tema abordado, e outros momentos em que notamos a mão firme de um diretor competente. Neste caso citaríamos: toda a sequência do sonho de Raimundo, as cenas iniciais quando a câmera de Cavalcanti mostra a terra ressequida pelo sol num ‘close-up’ que empresta maior realidade à cena, e finalmente o êxodo, com os retirantes montados num ‘pau-de-arara’, sob um céu azul sem nuvens. Desviando a câmera de um grupo de urubus, mostramos o mar imenso e um bando de gaivotas. Bela e poética fusão. Quanto aos intérpretes, devemos salientar o bom nível alcançado por um grupo de estreantes, exceção feita, entretanto, a Rui Saraiva e Alberto Villar. Especial destaque merecem as atuações de Margarida Cardoso, Cacilda Lanuza e Miria Nunes.” (DP, 25/out/53, 2ª Seção, p.3) (OBS.: não transcrevemos o artigo de Roger Bastide sobre Canto - JC, 21/fev/54, 2ª Seção, p.1 - por não se tratar de um cronista local e pelo texto ter sido publicado no mês anterior na revista Anhembi - ano IV, nº 38, vol. XIII, Janeiro de 1954) VALDIR COELHO: “Estando afastado do Recife quando da pré-estreia mundial de O Canto do Mar não pude dar minha opinião a respeito. Aproveitei a sua exibição no São Luiz para assisti-lo. “Vi, então, confirmado o que afirmei em comentário publicado nesta seção a 22 de outubro do ano passado. O filme não é a obra-prima que se esperava. Entretanto, não deixa de ter valor. Aliás, posso mesmo inclui-lo entre os melhores filmes brasileiros já produzidos. Podemos colocá-lo lado a lado com Sinhá Moça, que considero a nossa melhor realização. “A direção hábil de Cavalcanti conseguiu realizar o milagre de incluir tantos aspectos regionais numa só película, sem destruir o ritmo, a unidade. O diretor tentou mostrar ao mundo o drama do sertanejo nordestino e a vida dos pobres pescadores, reunindo o maior número possível de seus usos e costumes. Lá estão o frevo, o bumbameu-boi, o maracatu e até o xangô. À primeira vista, poderia parecer que este acúmulo de acontecimentos viesse perturbar o bom ritmo da narrativa cinematográfica. Entretanto, quem assistiu à película verificará que tal não aconteceu.

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“A começar pelo prólogo, ficamos impressionados com a ótima fotografia de Cyril Arapoff, que constitui talvez o maior valor do filme. Podemos comparar, se não pela ótima qualidade, pelo menos no estilo, com a fotografia de A Pérola. Não encontramos no decorrer do filme nenhuma cena que o desmerecesse. Outro grande valor do filme está na música de Guerra Peixe. Bastante funcional, ajuda realmente a imagem não a substituindo nem antecipando os acontecimentos. “Já não podemos dizer o mesmo da interpretação. Margarida Cardoso, Cacilda Lanuza, Alfredo Oliveira e Miria Nunes, em ordem decrescente de valor, foram os atores mais eficientes. Os demais, inteiramente deslocados. É lamentável que não tenha sido escolhido um ator mais expressivo do que Rui Saraiva para o papel de Raimundo. Basta lembrar que a sua melhor cena é a final, quando ele chora, escondendo o rosto entre as mãos. O efeito dramático não parte de sua interpretação, mas da própria narrativa, ajudada pelo fundo musical. “Entretanto, o defeito mais grave decorreu de causa dificilmente removível - a impossibilidade de gravar as vozes dos próprios intérpretes. Foi a dublagem que estragou a película. Mais uma vez aparece Rui Saraiva como um dos que mais prejudicaram o filme. A voz não corresponde de modo algum à expressão nem ao movimento dos lábios. Aliás, este defeito foi muito comum no decorrer de todo o filme. E é lamentável que tal tenha ocorrido nesta película que apresenta tão bons aspectos técnicos como os apontados mais acima. “O cenário de José Mauro de Vasconcelos [que] teve os diálogos a cargo de Hermilo Borba Filho em linhas gerais satisfaz. Entretanto, estranhamos ouvir na voz de humildes lavadeiras tanta delicadeza e atenção. É pouco comum ouvirmos um ‘obrigado’ entre o povo simples. É um pequeno detalhe que choca o espectador mais acostumado com o nosso ambiente. “Se o filme de Cavalcanti foi muito valorizado pela esplêndida fotografia de Arapoff e música de Guerra Peixe, é o tema que o faz sobressair entre a maioria dos filmes nacionais. E não poderia ter sido melhor tratado. Em mãos de outro realizador, menos consciencioso, o filme teria descambado para a apresentação de detalhes escabrosos que o vulgo pensa ser ‘realismo’, quando não passa de falta de imaginação e senso artístico. Isso não se deu em O Canto do Mar. O tema é realista no verdadeiro sentido do termo, mas um realismo honesto, digno de seu autor e de um público que ame realmente o Cinema. “A história se prestava, como afirmei, para apresentação de cenas que viriam atrair certo público ávido de detalhes pouco decentes. Porém mais uma vez a direção hábil do realizador evitou tal deslize. A sedução de Ponina, a visita à casa da meretriz, são mostradas discretamente. O Canto do Mar é, como disse um crítico do Rio, ‘uma obra honestamente realista’ capaz de interessar a qualquer adulto. “Encontramos nesta realização de Cavalcanti um dos melhores filmes brasileiros, que pode servir de modelo para futuras realizações. Nosso cinema tem descambado para a apresentação de ambientes cosmopolitas ou de ridículas reconstituições (Nem Sansão Nem Dalila), quando seu verdadeiro caminho está na reprodução de ambientes regionais, desconhecidos lá fora. “Temos muitos elementos dignos de figurarem numa película e que dariam ótimos argumentos. Foi preciso que um diretor, acusado por seus inimigos de ‘estrangeiro’ e ‘desambientado das realidades brasileiras’ viesse descobrir isto. Cavalcanti abriu o caminho. E o fez de maneira magistral. O Canto do Mar vem se colocar ao lado de Sinhá Moça, figurando como as melhores realizações brasileiras.

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“Houve defeitos, não há dúvida. Mas partiram da falta de instalação adequada e de elementos habituados a enfrentar o cinema. Por melhores que estes fossem, dificilmente poderiam ter dado mais. Todos aqueles que estudam e observam um pouco as coisas da sétima arte sabem que são raríssimos os ‘astros’ e ‘estrelas’ que surgem como tais, logo na sua primeira aparição na tela. “Para quem não viu O Canto do Mar, aqui fica nossa indicação. - Não o percam.” (DP, 26/mar/54, p.6) RALPH: “Finalmente O Canto do Mar foi exibido para o público do Recife. Notamos que a reação dos espectadores diante da película tem sido inteiramente diversa do que foi após sua exibição especial, precedida de intensa publicidade e alvo da mais impiedosa campanha que uma realização artística possa merecer. Hoje o público constata que o filme não é tão ruim quanto disseram os críticos. Que é indiscutível a beleza pictórica da película; que existe ternura e poesia no drama simples e amargo daquela família decadente e que apesar da miséria (como se a miséria não pudesse ser motivo de criações artísticas, quando Ladrões de Bicicleta é exemplo clássico) Cavalcanti retratou o Recife o filme comove. Não admiramos o Recife dos arranha-céus cansativos, mas o Recife do cais tristonho e das barcaças elegantes, do bumba-meu-boi, das capelas, do maracatu e do frevo, dos xangôs de Água Fria. Estes são os detalhes que poderão constituir um retrato autêntico do Recife, se, ao lado do pessimismo e da amargura do tema de O Canto do Mar, acrescentarmos um pouco de alegria e esperança que também existem. “Entretanto, não pretendemos criticar a película, senão transcrever um pequeno trecho de crônica publicada por Almeida Salles em O Estado de S. Paulo. Ei-lo: “‘O Canto do Mar de Cavalcanti não pode ser considerada uma obra realista. O seu sentido é poético, transfigurando em todos os momentos a realidade e inserindo-a num contexto lírico que lhe dá unidade e significação (...)’” 37 (JC, 26/mar/54, p.4) JOSÉ DE SOUSA ALENCAR: “O Canto do Mar é, sem equívoco, a mais importante película nacional realizada até agora. E também a mais bela. Depois de sua ‘première’ realizada em outubro de 1953 nada escrevi sobre o filme. Nem todas as películas se entregam facilmente à emoção e ao critério do espectador e sobretudo ao crítico. Somente depois de vista uma segunda ou terceira vez revelam todas as facetas de sua grandeza e permitem uma completa visão de seu conjunto. Com Rashomon aconteceu assim. O Canto do Mar também. Por esta razão é que durante sua primeira exibição segui apenas a onda (em grande parte histérica) que se ergueu contra o filme de Cavalcanti. Sem oportunidade para voltar ao cinema e revê-la (sem os atropelos e a notícia de assassinatos e confusões) aguardei sua normal apresentação ao público, quando mais necessário seria uma crítica imparcial e justa. “Quando afirmei acima que O Canto do Mar era a mais importante película, visava o valor humano e social do tema, tratado com a máxima honestidade pelo diretor. É o sonho do homem que visa emigrar para outras terras onde terá maiores 37

A crônica de Almeida Salles pode ser encontrada, na íntegra, no livro Cinema e verdade. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

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oportunidades de viver e ser feliz. Um sonho antigo que se atesta em cada época e lugar. No caso do filme de Cavalcanti ele se fixa no êxodo do nordestino que abandona a terra calcinada e trilha o caminho do mar. Todo o prólogo apresenta solenemente o êxodo coletivo. E os sertanejos partem. Depois Cavalcanti se fixa no drama individual de um adolescente. O desejo é o mesmo. “Fugindo do sertão ardente ou do mocambo pobre, o homem visa a sua felicidade própria. Apenas Raimundo, o jovem do filme, permanece em seu mocambo, desiludido e só. Ele é uma imagem poética na qual toda realidade se concentra e transfigura. “Mas o nordeste não é só a realidade do êxodo e dos sonhos desfeitos. O nordeste, ou melhor, o Recife vive no primitivismo bucólico do bumba-meu-boi, no exotismo do maracatu, na alegre nostalgia do frevo, no misticismo do xangô, nas cantilenas dos velórios, em todas essas expressões folclóricas tão simples e ingênuas. Realizando seu filme como um pintor criaria um mural do nordeste, Cavalcanti teria de distribuir todos estes motivos, e mais a paisagem realmente grandiosa do cais, das praias e das igrejas, das ruas velhas e dos sobrados, dos crepúsculos e dos coqueiros oscilantes. Todo o nordeste vive, num misto de realidade e poesia neste grande quadro que é O Canto do Mar. Não foi apenas o desejo de exibir assuntos folclóricos. O filme não é um mero episódio, é um todo. É a realidade transfigurada em poesia. Para isto temos os sonhos e as evocações, nos quais Cavalcanti se esmerou. Quem poderia esquecer aquele início realmente maravilhoso do sonho de Raimundo, ou as evocações de Maria e Zé Luiz? “As imagens surgem como por encanto... barcaças que mais parecem cisnes flutuando, praias e coqueiros, e o mar. Temos aí a razão de afirmar que O Canto do Mar é também a película mais bela. Nela encontramos o Brasil pintado em suas cores mais sugestivas, sinceras e honestas. Pela primeira vez surge no cinema o Brasil que Portinari gravou em suas telas e que Graciliano Ramos descreveu em seus romances. “Se descêssemos a detalhes encontraríamos no filme outros valores. A bela fotografia de Ciryl Arapoff, captando todas as nuances e luminosidades de nossa paisagem. A esplêndida partitura musical de Guerra Peixe, inspirada não somente nas canções e frevos, mas na própria pontuação que se torna funcional pela primeira vez num filme brasileiro. Quanto aos intérpretes, quem poderia deixar de elogiar Margarida Cardoso, Cacilda Lanuza, Aurora Duarte, Alfredo Oliveira e os outros também surpreendidos pela primeira vez pelas exigências dramáticas? “Há muito tempo Cavalcanti planejava realizar O Canto do Mar aqui no Recife. Soube fazê-lo, apesar das descrenças e das críticas impensadas, das dificuldades imensas. E aí está o filme. Belo, poético, real, digno do seu valor, e sobretudo digno do Brasil e particularmente de Pernambuco que, com raras exceções, não soube compreendê-lo. “NOTA - Esta crônica é também uma resposta às inúmeras cartas que recebi solicitando uma apreciação sobre o filme de Cavalcanti. A razão de ter participado como assistente de direção da película não me torna suspeito para criticá-la honesta e sinceramente.” (DP, 28/mar/54, 2ª Seção, p.3)

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