A Crônica de Nuremberg e o antijudaísmo em xilogravuras no final do século XV

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTÓRIA

Vinícius de Freitas Morais DRE: 112041380

A Crônica de Nuremberg e o antijudaísmo em xilogravuras no final do século XV

Rio de Janeiro 2016

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Vinícius de Freitas Morais

A CRÔNICA DE NUREMBERG E O ANTIJUDAÍSMO EM XILOGRAVURAS NO FINAL DO SÉCULO XV

Monografia apresentada ao Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de bacharel em História.

Orientadora: Drª Maria Beatriz de Mello e Souza.

Rio de Janeiro 2016

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Vinícius de Freitas Morais

A CRÔNICA DE NUREMBERG E O ANTIJUDAÍSMO EM XILOGRAVURAS NO FINAL DO SÉCULO XV

Rio de Janeiro,_____ de ___________________ de 2016.

____________________________________________ (Profª Drª Maria Beatriz de Mello e Souza, IH / UFRJ)

___________________________________________ (Profª Drª Tamara Quírico, ART/UERJ)

____________________________________________ (Profº Drº Francisco José Gomes da Silva, IH/UFRJ)

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FICHA CATALOGRÁFICA

Morais, Vinícius de Freitas. A Crônica de Nuremberg e o antijudaísmo em xilogravuras no final do século XV / Vinícius de Freitas Morais. Rio de Janeiro: UFRJ/ Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História – IH, 2016. 83 f.: il. Orientadora: Maria Beatriz de Mello e Souza Monografia (Bacharelado de História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Instituto de História – IH, 2016. Bibliografia: f. 70-73. 1.Libelo de sangue. 2. Crime ritual. 3. Profanação da hóstia. 4. Xilogravura. I. Souza, Maria Beatriz de Mello. Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Instituto de História – IH. A Crônica de Nuremberg e o antijudaísmo em xilogravuras no final do século XV.

v RESUMO

MORAIS, Vinícius de Freitas. A Crônica de Nuremberg e o antijudaísmo em xilogravuras no final do século XV. Rio de Janeiro, 2016. (Monografia para a obtenção do grau de bacharel) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. O livro A Crônica de Nuremberg é, certamente, um grande exemplo de um incunábulo ilustrado do fim do século XV. Esta obra foi realizada pelo ciclo humanista desta cidade. Hartmann Schedel foi um intelectual da região que foi o principal responsável por organizar as fontes primarias para a escrita da crônica. O objetivo central desta monografia é demonstrar como a imprensa em tipo-móvel tornou-se um outro modo para a difusão do antijudaísmo no Ocidente Medieval, ao lado das pregações das ordens menores. Como exemplo central deste trabalho, analisaremos três xilogravuras desta grande incunábulo. Essas três ilustrações, que representam o preconceito contra os judeus, são: O Martírio de Guilherme de Norwich (1144), de Simão de Trento (1475) e a profanação da hóstia em Sternberg (1492). Embora, estes eventos tenham ocorrido em diferentes locais e períodos, eles serão analisados por uma questão comum, a qual, os une: a sugestão de um estereótipo de ameaça atribuído aos judeus. PALAVRAS-CHAVES: Libelo de sangue. Crime ritual. Profanação da hóstia. Xilogravura.

vi ABSTRACT

MORAIS, Vinícius de Freitas. The Nuremberg Chronicle and the anti-judaism in woodcuts from the end of fifteenth century. Rio de Janeiro, 2016. (Monografia para a obtenção do grau de bacharel) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. The book The Nuremberg Chronicle is a major example of an illustrated book from the end of the fifteenth century. This chronicle has been made by a group of humanists who lived in Nuremberg. Hartmann Schedel was an intellectual of the region, which was the main responsible to organize the sources to the writing of The Nuremberg Chronicle. The main objective of this monography is demonstrating how the printing press has become another way for the diffusion of anti-judaism on the medieval West besides the franciscan preaching. As the main example of this work, we will analyze three woodcuts from this big illustrated book. These three illustrations, which represent the prejudice against jews, have the following themes: the Martyrdom of William of Norwich (1144), of Simon of Trent (1475) and the host desecration of Sternberg (1492). Although these events have happened at differents places and centuries, they will be analyzed by a common characteristic between them: the suggestion of a stereotype of threat attributed by the christians against the jews. KEY-WORDS: Blood libel. Ritual Murder. Host desecration. Woodcut.

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SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES....................................................................................................viii

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1

1 DE TESTEMUNHAS DA FÉ A ASSASSINOS DE CRIANÇAS: AS LENDAS DO CRIME RITUAL DO LIBELO DE SANGUE E DA PROFANAÇÃO DA HÓSTIA NO OCIDENTE MEDIEVAL...........................................................................................................5 1.1 O CRIME RITUAL E O LIBELO DE SANGUE NO OCIDENTE MEDIEVAL (SÉCULOS XII AO XV).......................................................................................................5 1.2 A PROFANAÇÃO DA HÓSTIA: O CORPO DE CRISTO VIOLADO............................15 1.3 A PREGAÇÃO FRANCISCANA E O ANTIJUDAÍSMO NA BAIXA IDADE MÉDIA..18

2 A TÉCNICA DA XILOGRAVURA E AS SUAS FUNÇÕES NO SÉCULO XV.............................................................................................................................................26 2.1 A TÉCNICA DA XILOGRAVURA E O INCUNÁBULO ILUSTRADO........................26 2.2 A MUTIPLICAÇÃO DO SAGRADO, A DEVOÇÃO PRIVADA E AS XILOGRAVURAS NO FINAL DO SÉCULO XV...................................................................................................32 2.3 O PAPEL DAS XILOGRAVURAS COMO DIFUSORAS DO ANTIJUDAÍSMO..........37

3 A CRÔNICA DE NUREMBERG E O ANTIJUDAÍSMO NO FINAL DO SÉCULO XV.............................................................................................................................................43 3.1 A CRÔNICA DE NUREMBERG E AS SUAS XILOGRAVURAS....................................43 3.2 AS XILOGRAVURAS DA CRÔNICA DE NUREMBERG E O ANTIJUDAÍSMO..........51 3.2.1 O MARTÍRIO DE GUILHERME DE NORWICH.......................................................52 3.2.2 O MARTÍRIO DE SIMÃO DE TRENTO.....................................................................58 3.2.3 A PROFANAÇÃO DA HÓSTIA E A CONDENAÇÃO DOS JUDEUS À FOGUEIRA.. ...................................................................................................................................................64

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................69

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................70

viii FONTES....................................................................................................................................70 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................70

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. São Sebastião entre os três arqueiros, 1470 – 1475. Londres, Museu Britânico....................................................................................................................................29 Figura 2. O Monograma de Cristo, 1470 – 1475. Londres, Museu Britânico..........................29

Figura 3. São Jerônimo remove um espinho da pata do leão, 1430. Viena, Albertina. ...................................................................................................................................................31

Figura 4. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff A Quarta figura, a Queda do Homem. Schatzbehalter,

1491.

Washington,

Biblioteca

do

Congresso

Americano.................................................................................................................................31 Figura

5.

Israhel

van

Meckenem,

Imago

Pietatis,

ca.

1480,

Albertina,

Viena.........................................................................................................................................34 Figura 6. Imago Pietatis. c. 1380. Roma, Basilica di Santa Croce in Gerusalemme..............34 Figura 7. Petrus Christus, O retrato de uma mulher. ca.1455. Washington, National Gallery of Art.............................................................................................................................................36

Figura 8. Petrus Christus, O retrato de uma mulher. ca.1455. (Detalhe) Washington, National Gallery of Art............................................................................................................................36

Figura 9. A Profanação da hóstia em Passau ca.1478. Munique, Biblioteca Estatal da Baviera. ...................................................................................................................................................38

ix Figura 10. Judensau ca.1230. Brandenburg an der Havel, Capitel de coluna da Catedral Brandenburg..............................................................................................................................40

Figura 11. Judensau. ca. 1470. Munique, Kupferstichkabinet................................................40

Figura 12. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. A vista da cidade de Nuremberg A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f. 99v. – 100r...........................................................................................................................................48

Figura 13. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. A Queda de Adão e Eva. A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f. 7r..................................................49

Figura 14. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. O Juízo Final A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f. 262r...................................................................50

Figura 15. O Martírio de Guilherme de Norwich, c.1500-1510. Loddon, Inglaterra. Coro alto da Igreja da Santa Trindade.......................................................................................................53

Figura 16. O Triunfo de Guilherme de Norwich, c.1490. Eye, Inglaterra. Coro alto da Igreja de São Pedro e São Paulo...............................................................................................................53

Figura 17. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. Guilherme, uma criança. A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f. 201v..............................................55

Figura 18. O Martírio de Simão de Trento. c.1475-1477. Munique, Biblioteca Estatal da Baviera......................................................................................................................................59

Figura 19. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. O Martírio de Simão de Trento A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f.254v..........................................60

Figura 20. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. A condenação dos judeus à fogueira. A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f.257v............................66

1 INTRODUÇÃO

O antijudaismo encontrou na imprensa de tipo móvel e na técnica de xilogravura mais um meio para a sua difusão no final do século XV. As atribuições de ações hostis dos judeus contra os cristãos estão presentes em diversas gravuras e livros ilustrados deste período. Um exemplo destas publicações é a Crônica de Nuremberg ou Liber Chronicarum em latim. Autores como Stephan Füssel1, Elisabeth Rücker2 e Adrian Wilson3 relacionam a realização da Liber Chronicarum, um grande incunábulo que possui 1809 ilustrações, com a criação de uma imagem ideal da cidade de Nuremberg, promovida pelo grupo humanista da cidade com o financiamento das elites locais. O antijudaismo, presente em alguns trechos do livro em questão, está relacionado com algumas lendas que se difundiram no Ocidente medieval, a partir dos séculos XII e XIII e obtiveram seu ápice nos séculos XIV e XV. Estas narrativas, contra à comunidade hebraica, eram difundidas não só pela escrita, mas também pela oralidade, como é o caso dos sermões das ordens menores. Dentre essas lendas e histórias com fundo moralizante, estão mencionadas nesta crônica: a profanação da hóstia e o crime ritual. Vale lembrar, como aponta Miri Rubin4, que essas histórias eram vistas como verídicas tanto por parte dos clérigos como pelos leigos, embora estas acusações fossem ditas como não comprovados por papas como Inocêncio III. Esta culpabilização foi uma justificativa para as diversas violências contra os judeus e assim quebrava-se a política de tolerância a estes últimos, proposta por Agostinho de Hipona5. As condenações dos judeus ao fogo, no Sacro Império Romano Germânico, também são mencionadas no Liber Chronicarum e estão relacionadas a mais um exemplo da hostilidade entre cristãos e judeus ao longo do final da Idade Média. O quadro do antijudaismo europeu é crescente, desde o século XII, e chega ao seu ápice no século XV. Demonstrar a utilização da imprensa de tipo móvel como um meio de

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FÜSSEL, Stephan. The book of chronicles. Colônia: Taschen, 2013. p.8 RÜCKER, Elisabeth. Hartmann Schedels Weltchronik. München, Prestel-Verlag, 1988. p.20 3 WILSON, Adrian. The making of the Nuremberg Chronicle. Amsterdam: Nico Israel, 1976 4 RUBIN, Miri. Gentile Tales: the narrative assault on late medieval jews. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1999. p. 40-44 5 Apesar de Agostinho de Hipona propor uma tolerância aos judeus, a expectativa de uma conversão deste grupo ao cristianismo é explicita na sua obra. Desta forma Agostinho defendia a tolerância mas enfatizava a culpa judaica pela Crucificação de Cristo. “O espirito de graça e misericordia, se arrependerão de terem insultado Cristo na sua Paixão, quando o virem ver na sua majestade.” In: AGOSTINHO DE HIPONA, A Cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p.2117 Ver: FELDMAN, Sergio. Judeus na Antiguidade Tardia: a construção da alteridade sob Agostinho. Vitória: Dimensões, vol. 25, 2010, p. 131-147. 2

2 reforço a um estereotipo negativo dos judeus, acentuando-se desta forma uma marginalização involuntária a este grupo, assim como sugere Christine Magin6, é o objetivo central desta monografia. Neste estudo privilegiarei a análise do livro escrito e compilado por Hartmann Schedel e tomarei a seguinte questão como parâmetro: De qual forma a Crônica de Nuremberg efetivou um reforço do estereótipo do judeu como ameaça persistente para os cristãos? Outros exemplos de fontes primárias visuais também serão utilizados para se realizar um método comparativo de análise iconográfica. É importante ressaltar que todas as fontes visuais e escritas utilizadas nesta monografia foram produzidas por cristãos. Vale mencionar as diferenças entre os conceitos de antijudaísmo e o de antissemitismo. Dominique Iogna-Prat7, na esteira de Hannah Arendt, diferencia o preconceito contra os judeus anterior ao século XVIII. Somente com o discurso de raças, surgido no período do iluminismo, o preconceito contra esta minoria foi baseado em questões raciais e desta forma se laicizou 8. Diferentemente da perseguição que ocorria contra esse grupo baseada em questões religiosas, como veremos ao longo desta monografia, ao longo dos séculos XII e XV. Os judeus, cada vez mais a partir do século XII, foram vistos por um estereótipo de ameaça pelos cristãos, um perigo tanto para a integridade social como para os dogmas e os sacramentos estabelecidos pela Igreja. Dominique Iogna-Prat postula que o antissemitismo é centrado em motivos raciais e o antijudaísmo em razões religiosas9. Desta forma preferiu-se o termo antijudaísmo para nomear, ao longo deste trabalho, essa aversão crescente desde o século XII no Ocidente medieval. Como aponta Hanna Zaremska, o século XIII teria sido um marco para o desenvolvimento do que chama de “sociedade repressiva”. Os poderes secular e clerical teriam se fortalecido e postulado de melhor maneira os mecanismos de perseguição aos grupos que esta autora denomina como os marginais da Idade Média10. Não só a repressão física direta feita aos judeus, leprosos, heréticos; mas também a uniformização destes grupos feita pelos cristãos, a partir de estereótipos, foi fundamental para que a fobia contra os mesmos fosse efetivada e disseminada. A partir de arquétipos sugeria-se o judeu como uma figura ímpia capaz de diversos atos contra os cristãos e justamente a junção destas concepções que se sugere o ódio justificado e a perseguição como garantia de segurança para o pleno funcionamento social. 6

MAGIN, Christine; EISERMANN, Falk. Two anti-jewish broadsides from the late fifteenth century. In: PARSHALL, Peter (Org). The woodcut in the fifteenth Century. Washington: National Gallery of Art, 2009. p.193 7 IOGNA-PRAT, Dominique. Ordonner et exclure: Cluny et la société chrétienne face à l’hérésie, au judaïsme et à l’islam (1000-1150) Paris : Champs Flammarion, 1998. p. 320-323 8 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.17-18 9 IOGNA-PRAT, Dominique. Op. Cit. p. 320 10 ZAREMSKA, Hanna. Marginaux. In: LE GOFF Jacques ; SCHMITT Jean-Claude. (Orgs.) Dictionnaire raisonné de l’Occident médiéval. Paris : Fayard 1999 p. 640

3 Há dois tipos de marginalização11: a voluntária, feita pelos que adotam um voto de pobreza ou tornam-se eremitas e a involuntária que cabe aos judeus, hereges e leprosos. O marginal, como aponta Zaremska, não participa das normas sociais em vigor e por esta razão é excluído da dinâmica da sociedade12. Vale lembrar que não havia direitos humanos na Idade Média, estes grupos não possuíam a garantia de uma integridade física ou uma certeza de estabilidade em algum local. No caso dos judeus, como veremos, a expulsão forçada pontual, desde do século XII até o XV, ocorre em diversas regiões do continente europeu justificadas por supostos crimes dos quais esses últimos eram acusados como principais articuladores e planejadores. No capítulo I analisarei como as acusações de crime ritual, libelo de sangue e profanação da hóstia se contextualizavam no Ocidente medieval a partir do século XII até o XV. Desta forma analisarei dois casos de crime ritual em especifico, que estão presentes na Crônica de Nuremberg a saber: os que envolvem Guilherme de Norwich (1144) e Simão de Trento (1475). Ao que diz respeito à profanação da hóstia, abordarei primeiramente como este sacramento ganhou uma importância considerável para os cristãos a partir do IV Concílio de Latrão (1215). Apontarei como estas acusações do roubo e sacrilégio contra ao signo do Corpo de Deus passaram a ser feitas contra os judeus já no final do século XIII. Por fim, demonstrarei como os sermões das ordens franciscanas, ao exemplo da pregação dos frades Bernardino de Siena e Bernardino da Feltre, se constituíam como um reforço do antijudaísmo contra as comunidades hebraicas na Baixa Idade Média. Já no capítulo II, caracterizarei como a técnica da xilogravura se desenvolveu na Europa ao longo do século XV. Demonstrarei como o oficio de gravador se constituía no âmbito urbano. Posteriormente, apontarei como a técnica de xilogravura se uniu à invenção da imprensa de tipo-móvel para, a partir da década de 1470, começar-se a produzir os incunábulos ilustrados, como a Crônica de Nuremberg (1493), objeto principal deste estudo. Seguirei, no segundo tópico, para demonstrar brevemente algumas das possíveis funções da xilogravura neste período em questão. Por último analisarei dois exemplos distintos de xilogravuras de folha única para elucidar como o antijudaísmo se propagou no Ocidente por meio deste suporte. No último capítulo, ocorrerá a análise das três xilogravuras presentes na Crônica de Nuremberg referentes ao Martírio de Guilherme de Norwich (1144), de Simão de Trento (1475)

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Dois tipos assim como aponta a autora Hanna Zeremska. A marginalização involuntária ocorre a partir da desclassificação dos sujeitos unidos, geralmente, por se encontrarem às margens das normas sociais. Ver: ZAREMSKA, Hanna. Op. cit. p. 639 12 Ibidem.

4 e a condenação dos judeus à fogueira feita graças ao caso de profanação da hóstia em Sternberg (1492). Estas gravuras estão presentes respectivamente nos fólios CCI versus, CCLIV versus e CCLVII versus. No primeiro tópico deste capítulo, farei brevemente uma contextualização da confecção e do planejamento da Crônica de Nuremberg. Por último, analisarei as três cenas das xilogravuras anteriormente citadas por uma comparação entre o texto que faz referência a estes três eventos e as cenas representadas nas ilustrações. Devo lembrar que não se busca demonstrar como essas gravuras poderiam ser um suposto espelho da narração escrita na crônica, também se nota, neste tópico, o cuidado com as especificidades da gravura e do texto.

5 CAPÍTULO 1: DE TESTEMUNHAS DA FÉ A ASSASSINOS DE CRIANÇAS: AS LENDAS DO CRIME RITUAL, DO LIBELO DE SANGUE E DA PROFANAÇÃO DA HÓSTIA NO OCIDENTE MEDIEVAL

Neste primeiro capítulo, busca-se caracterizar como as lendas contra os judeus, que surgiram entre os séculos XII e XII, acentuaram não só o estereótipo como também um processo de marginalização involuntária deste grupo. A partir das acusações de crime ritual, libelo de sangue e profanação da hóstia buscava-se, como será apontado ao longo deste capítulo, traçar um perfil homogeneizante para os judeus e sugerir que as suas ações colocavam em risco toda a sociedade cristã. Anteriormente ao advento da imprensa, a difusão destes relatos, por exemplo, ocorria por sermões proferidos pelo baixo clero. A contextualização de como se formou um enredo específico que permitia a identificação destes supostos crimes será apontada ao longo destes próximos três tópicos. Uma padronização destas narrativas tornava possível não só identificá-las como um grupo, mas também aumentar progressivamente a fobia contra os judeus e criar a expectativa de uma nova ocorrência destes casos. A maioria destas acusações contra as comunidades hebraicas ocorriam em um período específico do calendário litúrgico: entre o Domingo de Ramos e a Páscoa. Sugeria-se desta forma, durante a Semana Santa, um aumento de tensão entre cristãos e judeus a partir do século XII.

1.1 O CRIME RITUAL E O LIBELO DE SANGUE NO OCIDENTE MEDIEVAL (SÉCULOS XII AO XV) As acusações de crimes rituais, libelos de sangue e profanações da hóstia teriam surgido, no Ocidente medieval, nos séculos XII e XIII. O principal culpado, nessas narrativas, era o judeu. Os cristãos, a partir deste período, passaram a postular as prerrogativas do ordenamento para a sua sociedade e com esta ordenação veio, na mesma medida, a exclusão e a perseguição. Estas três lendas em questão, vistas como verídicas por parte da população, eram mais uma justificativa ao crescente antijudaísmo no continente europeu. Na Baixa Idade Média, o clero encontraria formas de institucionalizar esta perseguição aos excluídos como, por exemplo, a pregação das Ordens mendicantes que reforçava o estereótipo de ameaça atribuído aos judeus. O ódio a este grupo foi difundido por diversas formas e alguns historiadores concordam que esta aversão teria crescido a partir do ano mil até atingir seu ápice no século XV. A reforma gregoriana postulou uma maior divisão entre clérigos e leigos e se configurou como uma tentativa de diminuir a influência do poder secular sobre as decisões da Igreja. Este

6 movimento que objetivava a moralização do clero veio em conjunto com uma tentativa de afirmação do poder clerical. Como aponta Iogna-Prat, os anos entre 1049 e 1122 foram primordiais na construção da instituição eclesial e caracterizaram-se como um período importante para que o Ocidente medieval definisse seus excluídos e postulasse mecanismos de perseguição, como a Inquisição e as Cruzadas, contra os que eram considerados como infiéis e ameaçadores da fé13. Uma sociedade persecutória, como denomina o historiador inglês R.I. Moore14, estabeleceu-se graças ao desenvolvimento da teologia dogmática, da sistematização da lei canônica e do crescente número de regras inferidas à vida cristã. Desta forma poderia definirse, de melhor maneira, o que era ortodoxo e o que estava fora dos interesses da afirmação do poder da Igreja. Ordenar e excluir se tornava as duas faces de uma mesma dinâmica15, já que a medida que se buscava, era organizar a sociedade cristã; para esta ordenação se fazia necessário lutar contra às ameaças que se encontravam em seu interior e exterior. Os clérigos teriam instaurado um duplo movimento de dilatatio, ou seja, a luta contra os inimigos exteriores e purgatio, a purificação e a luta interior16. A luta contra os infiéis toma uma nova dimensão com as duas primeiras cruzadas (1096 – 1099; 1146 – 1149). Ainda no século XI, os judeus começaram a serem perseguidos como os difamadores de Cristo e os blasfemadores da Cruz; tendo como exemplo a perseguição ocorrida em Roma em 102017. Este último grupo passou a ser alvo de ataques, a partir de uma constante afirmação nas missas do período da Quaresma e principalmente do dia de Páscoa, que associava os antepassados dos judeus com os culpados pela Crucificação de Jesus. Esta repetição enfatizada da culpa pela morte de Jesus somada à uma perseguição guiada pela purificação motivou a morte e a expulsão desta minoria em algumas regiões do Ocidente nesse período; como é o caso do reino francês em 1182, o rei Felipe II Augusto compactua com a expulsão dos judeus das regiões sob o seu governo. A partir dos estereótipos como praticantes do mal e causadores da ira divina, começouse a traçar a demonização dos excluídos como: os hereges, os sarracenos e os judeus. Esta postura cristã é exemplificada pelo livro Contra Petrobrusianos, Aduersus Judaeos, Contra

IOGNA-PRAT, Dominique. Ordonner et exclure: Cluny et la société chrétienne face à l’hérésie, au judaïsme et à l’Islam (1100-1150) Paris : Champs Flammarion, 2000 p.31 14 BLOCKMANS, Win; HOPPENBROUWERS, Peter. Introdução à Europa Medieval: 300 – 1550. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2012. p. 236 – 237. 15 BASCHET Jérôme. La civilisation féodale: de l’an mil à la colonisation de l’Amérique. Paris : Champs Flammarion, 2006. p.301 16 IOGNA-PRAT, Dominique. Op. cit. p.32 17 Ibidem. 13

7 sectam Sarracenorum18. Esta obra teológica, escrita pelo abade cluniacense Pedro o Venerável, é um exemplo de como através da delimitação de grupos não pertencentes à Eclésia; sugeria-se a purificação da cristandade por meio da alteridade. A partir do parâmetro do cristão retido na fé definia-se os hereges e os infiéis para que então se efetivasse a perseguição e a expulsão de forma eficaz. Somada a estas perseguições e expulsões compulsórias, começaram a surgir algumas lendas. Estas narrativas buscavam atribuir um estereótipo aos judeus e relaciona-los à possibilidade de uma ameaça, por esta razão sugeria-se de modo gradativo a vigilância deste grupo. O IV Concílio de Latrão (1215), estabeleceu que os judeus carregassem um símbolo distintivo em suas roupas assim como estipulou lugares específicos para a sua moradia, embora ainda se tivesse mantido a política da tolerância assim como era defendida por Agostinho de Hipona desde a Antiguidade Tardia. Este grupo passou a ser acusado como praticante de crime ritual, de libelo de sangue e da profanação da hóstia e essas acusações sugeriam um ódio ou medo justificado contra os judeus. A partir do medo da emergência de um outro caso parecido baseado em uma sequência de fatos já ocorrida, esperava-se, como aponta Hsia, uma nova ocorrência destas lendas e essa expectativa foi reforçada, nos séculos posteriores, por meio dos sermões dos franciscanos e dos dominicanos19. Esta pregação ocorria principalmente no período da Quaresma e sugeria um aumento da tensão entre os cristãos e os judeus. A partir de meados do século XII, ocorreria um infanticídio na cidade de Norwich no ano de 1144 que seria o marco inicial para a acusação de assassinatos de crianças cristãs feitos em rituais orquestrados por judeus. O primeiro caso de crime ritual20, no Ocidente medieval, foi a morte do menino de doze anos conhecido como Guilherme de Norwich21. O crime ritual estava basicamente relacionado à acusação de tortura de crianças, masculinas em sua maioria22, seguidas de morte cometida por judeus. Já o libelo de sangue, acusação que surgiria no século XIII, se relacionava à prática, após o martírio da criança, de acordo com as narrativas, de retirar-se o sangue do corpo das

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IOGNA-PRAT, Dominique. Op. cit. p.32 HSIA, Po-Chia R. The myth of ritual murder. New Haven: Yale University press, 1988. p.45 20 Crime ritual em inglês ritual murder, em italiano omicidio rituale. Este termo foi traduzido para o poruguês pelo professor associado na UFES de História Medieval, Sergio Alberto Feldman. Ver: FELDMAN, Sergio: Desumanizando o judeu medieval: sangue e pecado. In:CAMPOS, A. P.; VIANNA, K. S. S; MOTTA, K. S. da; LAGO, R. D. (Org.). Memórias, traumas e rupturas. Vitória: LHPL/UFES, 2013, p. 1-15. 21 Em inglês comumente conhecido como William of Norwich 22 Há um caso da garota órfã que supostamente teria sido vendida aos judeus por uma mulher anciã. A menina foi morta e seu assassinato atribuído a um crime ritual. Este caso ocorreu na cidade de Forcheim em 1266. Ver: HSIA, HSIA, Po-Chia R. Op. Cit. p.55 19

8 pequenas vítimas por um orifício para então o líquido ser recolhido com uma jarra. A utilidade do sangue poderia beneficiar a preparação dos pães ázimos ou a cura de doenças que eram associadas aos judeus, devido aos seus pecados relacionados à usura ou ao descrédito na Virgem Maria e em Jesus Cristo. As origens dessas acusações são desconhecidas23. Alguns historiadores, como Israel Jacob Yuval24, relacionam o martírio judaico da primeira cruzada com a acusação de crime ritual das décadas posteriores. Como aponta Nachman Falbel, uma mensagem genérica que haveria caído do céu no Santo Sepulcro afirmava a necessidade da conversão de todos os judeus25. A pregação de monges anônimos sobre este ocorrido encontrou eco nas multidões e nos cruzados26. No ataque contra as comunidades judaicas ashekinazi, como foi o caso da cidade de Rouen, onde os judeus foram trancados na igreja local e tiveram de escolher entre a conversão ao cristianismo ou a morte27. O Kidush HaShem se configurava como uma forma de evitar-se as transgressões religiosas individuais. O auto-sacrifício, no qual as pessoas não só se matavam, mas também tiravam a vida de entes queridos e inclusive dos seus filhos, foi a forma encontrada pelos judeus de não terem que se converter de forma humilhante e assim não quebrar as suas crenças28. A autoimolação e o sacrifício coletivo praticados pelos judeus nestes casos extremos, como aponta Sergio Alberto Feldman, possuíam um significado forte para os cristãos que participavam das cruzadas. Este ato extremo vindo dos judeus poderia ter sido um fator para as acusações posteriores de morte de crianças cristãs feitas pelas mãos deste grupo. Se eles não poupavam nem os seus filhos para a afirmação de suas crenças, como não seriam capazes de matar as crianças de outrem em prol do próprio benefício? Com esta pergunta, como aponta Israel Yuval, criou-se uma possibilidade da conexão entre o assassinato de crianças cristãs e a afirmação dos ritos feitos pelos judeus:

Os que foram sacrificados neste contexto estavam sendo imolados como mártires da fé e seriam redimidos na era messiânica que se aproximava. Alguns autores acreditam que esta atitude tem intima relação com a acusação de crime ritual, que se iniciará em meados do século seguinte

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ROSE, E. M. The Murder of William of Norwich: the origins of the blood libel in medieval Europe New York: University of Oxford Press, 2015. p.1 24 YUVAL, Israel Jacob. Two nations in your womb: perceptions of Jews and Christians in late antiquity and the middle Ages. London; Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 2006. p.164 25 O Autor menciona que a mensagem em si é desconhecida pela historiografia apenas a existência desta pregação sobre esta mensagem é apontada por Nachman Fabel. 26 FABEL, Nachman. Kidush HaShem: crônicas hebraicas sobre as cruzadas. São Paulo: Edusp, 2001. p.47 27 Ibidem. p.48 28 Ibidem. p.20

9 (YUVAL, 2006). As razões seriam entre outras: os judeus não se apiedavam de suas próprias crianças e as sacrificavam; os judeus não temiam se imolar em prol de suas crenças29.

A partir desta concepção de martírio judeu coletivo em nome da fé, houve uma inversão feita pelos cristãos, na qual, as crianças cristãs indefesas estariam propensas a caírem nas mãos dos judeus. Este sangue infantil derramado injustamente seria defendido por parte dos leigos e do clero como um martírio digno de culto. A devoção popular, assim como denomina Vauchez, era sensível à efusão de sangue e à morte vertida injustamente30. Os cultos às crianças martirizadas pelos judeus estariam relacionados à essas crenças populares acerca do martírio. Estas últimas por estarem baseadas no derrame de sangue inocente se diferenciavam da concepção proposta pelo alto clero que defendia o martírio como uma morte voluntária em nome da fé. Vale lembrar, como aponta Hsia, o papado não santificou nenhuma destas crianças e nem confirmou a veracidade dos crimes rituais. Contudo, esses relatos acerca desses rituais obtiveram uma relevância considerável em setores do baixo clero que foi o grande responsável pela difusão dessas narrativas desde do século XII31. A repercussão da morte de Guilherme de Norwich só teria alcançado níveis consideráveis para a região ao redor de Norwich cinco anos após o assassinato. Esta difusão do caso ocorreu graças ao monge beneditino Thomas de Monmouth que reuniu notas para o seu livro Vita et passio Sancti Willelmi Martyris Norwicensis que foi concluído apenas vinte anos mais tarde32. Ao longo do texto, Monmouth relaciona a culpa da morte do menino aos judeus da cidade, nomeia o assassinato como martírio e narra os milagres atribuídos ao corpo de Guilherme. De acordo com a narrativa do monge Thomas de Monmouth, este garoto de doze anos teria sido persuadido a sair de casa por uma promessa de trabalho na casa do arquidiácono de Norwich. No entanto, ele teria sido levado à moradia de um eminente judeu onde teria permanecido por alguns dias para então ser submetido a todas as torturas que Cristo sofreu e finalmente ser assassinado. Após a violação do corpo, os judeus teriam amarrado uma corda em seu pescoço e Guilherme já morto foi levado à floresta para ser estendido em uma arvore33.

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FELDMAN, Sergio: Da Santificação do nome divino ao libelo de sangue: interações entre judeus e cristãos no período das cruzadas. João Pessoa: Graphos, v. 15, 2013. p.12 30 VAUCHEZ, André. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge. Rome : École française de Rome, 2014. p.178 31 HSIA, Po-Chia R. Op.cit. p.3 32 ROSE, E. M. Op. cit. p.2 33 Ibidem. p.2

10 A analogia entre o crime ritual e a crucificação de Cristo pode ser notada em alguns pontos na narrativa desse beneditino. O menino Guilherme não teria sido só morto injustamente, mas também submetido a todas as dores de Cristo como: a coroação de espinhos e o derramamento de sangue inocente. A exposição do corpo da criança, amarrado em uma árvore da floresta próxima à cidade, simularia novamente a Crucificação que já havia ocorrido anteriormente na casa de um dos judeus. Esta sucessão de fatos justificariam o seu martírio, o seu posterior triunfo no céu e a confirmação dos milagres por intermédio de seus restos mortais:

E então o glorioso menino e mártir de Cristo, Guilherme, morrendo neste mundo pela desgraça da morte do nosso Senhor, foi coroado com o sangue do glorioso martírio e atingiu o reino da eterna gloria, vivo para a eternidade. Sua alma é exaltada e está cheia de alegria no paraíso entre os ilustres santos hospedeiros; e seu corpo trabalha as maravilhas gloriosamente na Terra pela onipotência da graça divina 34.

Esta comparação entre o martírio de Guilherme e a Crucificação de Cristo sugeria uma ligação entre o tempo bíblico e o presente, além de reforçar a ideia do povo judeu como culpado pela morte de Jesus35. Vale lembrar que esta morte ocorreu em um período específico do calendário litúrgico cristão: Guilherme teria sido sequestrado na segunda-feira após o Domingo de Ramos e morto na Páscoa:

Como na segunda-feira após o Domingo de Ramos amanheceu (20 de março de 1144), que aquele detestável mensageiro dos judeus começou a executar a tarefa que eles lhe tinham ordenado, e ele finalmente achou o garoto chamado Guilherme após procura-lo com o maior cuidado. Uma vez que ele pegou o garoto com palavras mentirosas, uma vez capturado, ele o enganou com falsas promessas. Ele fingiu ser o cozinheiro de Guilherme, o arquediácono de Norwich e que ele desejava tê-lo para trabalhar em conjunto na cozinha 36.

Tradução nossa do trecho: “And so the glorious boy and martyr of Christ, William, dying this world the disgrace of the death of the Lord, was crowned with the blood of glorious martyrdom and achieved the kingdom of the eternal glory, alive for eternity. His soul is exalted joyfully in heaven among the illustrious host of saints; and his body works wonders gloriously on earth by the omnipotence of divine mercy.” Ver: MONMOUTH, Thomas of. The Life and Passion of William of Norwich. Edição traduzida do latim para o inglês por Miri Rubin. London: Penguim Books, 2014. p.18 35 RUBIN, Miri. Introduction: history and historiography. In: MONMOUTH Thomas of. The Life and Passion of William of Norwich. Edição traduzida para o inglês por Miri Rubin, London: Penguin Classic, 2014. p.9 36 “Tradução nossa do trecho: “As Monday after the Palm Sunday dawned (20 th march 1144), that detestable messenger of the Jews set out to execute the task they had enjoined upon him, and he finally found the boy William after searching for him with the greatest care. Once found, he caught the boy with lying snares of words; once caught, he deceived him with false promises. He pretended indeed to be the cook of William, Archdeacon of Norwich, and that he wished to have him to work with him in the kitchen.” Ver: MONMOUTH, Thomas of. Op. cit. p.14 34

11 Como afirma Po-Chia Hsia, as acusações de crime ritual começaram a se difundir na Europa continental já no final do século XII com o caso de Ricardo de Paris e atingiu seu ápice nos séculos XV e XVI.37 André Vauchez cita doze casos de crianças consideradas como mártires dos judeus e seus respectivos anos de morte; desde do caso de Norwich no século XII até o final do século XV a saber: Guilherme de Norwich (1144), Ricardo de Paris (1179), Herbert de Huntingdon (1180), Dominique de Val (1250), Hugo de Lincoln (1255), Werner de Oberwesel (1287), Rodolfo de Berna (1294), Conrad de Weissensee (1303), Luis de Ravensburg (1429), André de Rinn (1462), Simão de Trento (1475) e Lorenzino Sossio (1485)38. O ponto em comum em todos esses casos, como defende Vauchez, é a associação da morte não merecida com a ideia de martírio que motivava a posterior comoção popular local a estas vítimas não reconhecidas como santas pela cúria papal39. Hsia demonstra que, a partir do século XIV, o discurso sobre o crime ritual seja oral ou escrito, torna-se uma forma de Imitatio Christi quando ocorre uma padronização acerca do seu enredo40. Com o passar das décadas, a uniformização das narrativas de crimes rituais faz referência à data em que estes ocorriam, aos seus praticantes, à presença do derramamento de sangue para a preparação do matzo e, por fim, ao corte da genitália da vítima. Desta forma, a partir de casos identificáveis, os relatos de acusações passadas com apenas algumas alterações ou acréscimos, tornavam-se uma fonte que propiciava o medo para os cristãos. Esta aflição estava relacionada a expectativa de infanticídios futuros feitos pelos judeus41. A oposição entre judeus assassinos e cristãos vítimas, o rito diabólico e a interseção divina pelos corpos destes pequenos mártires era a parte principal destas narrativas tomadas como verídicas por parte da população cristã e possuíam, como afirma Rubin, um viés moralizante42. O célebre caso do crime ritual ocorrido em Trento no final do século XV já foi tema de diversos estudos, a partir da década de 1960, após a anulação do culto ao beato Simão de Trento. Nenhum libelo de sangue ou crime ritual foi tema de diversas gravuras, afrescos e esculturas como o que ocorreu em Trento em 1475. No domingo de Páscoa celebrado em 26 de março de 1475, após alguns dias de seu desaparecimento, o corpo do garoto conhecido como Simão Unferdorben foi encontrado na adega da casa do empregador Samuel, originário de uma

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HSIA, Po-Chia R. The myth of ritual murder New Haven: Yale University press, 1988. p.3 VAUCHEZ, André Op. Cit. p.176 - 177 39 Ibidem. p.178 40 HSIA, Po-Chia R. Op. Cit. p.30 41 Ibidem. p.29 42 Ver Cap II In: RUBIN, Miri. Gentile tales: the narrative of assault on late medieval jews Op. cit. 38

12 proeminente família judia. Rapidamente, a morte da criança foi atribuída à sua família que foi associada ao libelo de sangue precedente à morte do menino43. O corpo de Simão foi levado ao altar da Igreja na qual havia sido batizado e lá ficou exposto aos fiéis. O culto a esse garoto de dois anos e meio, assassinado supostamente por uma família integrante da pequena comunidade hebraica da região de Trento, obteve provas materiais, muitas das quais forjadas pelas ações do bispo da cidade, Johannes Hinderbach. Estes indícios tinham por objetivo provar não só a santidade do menino supostamente martirizado, tendo em vista a sua posterior canonização, mas também a inequidade dos judeus. O caso do assassinato do Beatus Simonis foi logo disseminado por várias cidades da península itálica e ao norte dos Alpes. Nos três meses seguidos ao ocorrido, foram atribuídos ao beato 128 milagres, registrados em dois volumes de um Liber Miraculorum44. Embora o culto a Simão de Trento houvesse sido proibido inicialmente por meio de um edito em 10 de outubro de 1475 feito pelo papa Sisto IV45, as imagens e os textos relacionados ao assassinato do novo menino mártir não pararam de circular tanto ao sul como ao norte dos Alpes. Após três anos, o bispo de Roma volta atrás em sua decisão e valida o tribunal contra a comunidade judaica em Trento. A devoção ao menino mártir, desta forma, deixa de ser proibida. Contudo, só em 1588, o papa Sisto V oficializaria o culto e o título de beato a Simão. Autoras como Christine Magin46 relacionam a rápida difusão do culto a Simão de Tento que logo após a sua morte foi considerado como beato e mártir, às gravuras que representavam visualmente o seu martírio ou outras cenas referentes à sua morte e tortura. Como exemplos destas gravuras, as mais celebres foram o ciclo de doze xilogravuras que representam a história de Simão, desde seu rapto até a queima dos judeus, presente no pequeno livro Geschichte des zu Trient ermordeten Christenkindes. Este conjunto de xilogravuras foi impresso na cidade de Trento em 1475, meses após a morte de Simão e como defende Lorenzo Donati47, foi o primeiro livro impresso nesta cidade. Outro exemplo de xilogravura relacionada ao martírio de Simão de Trento é a que está presente no folio 254 da Crônica de Nuremberg e será analisada posteriormente no terceiro capítulo desta monografia.

43

AREFORD, David S. The Viewer and the Printed Image in Late Medieval Europe. Surrey: Ashgate Publishing, 2010. p.165. 44 TREUE, Wolfgang. Der trienter Judenprozess. Hahn Ausgabe, 1996. p.231. 45 AREFORD, David. The viewer and the printed Image in late medieval Europe. Op. cit. p.107 46 MAGIN, Christine. EISERMANN, Falk. Two anti-jewish broadsides from the late fifteenth century. In: PARSHALL, Peter (Org). The woodcut in the fifteenth Century. Washington: National Gallery of Art, 2009. p.191 47 Ver: DONATI, Lamberto. L’inizio della stampa a Trento ed il Beato Simone.

13 Entretanto a rápida popularização do ocorrido na cidade de Trento em março de 1475 não agradou ao Papa Sisto IV, como mencionado anteriormente. O bispo de Roma fez uma proibição, redigida em cartas destinadas a todos os príncipes da península itálica, na qual condenava o uso do termo beatus para denominar o menino Simão, a defesa de sua santidade e a acusação dos judeus pelo seu assassinato. Em seguida Pietro Mocenigo, o doge de Veneza do período, como resposta fez um édito que vetava a circulação, a realização e a venda de imagens relacionadas a Simão e qualquer fato relacionado ao seu martírio48. Como argumenta Areford, o doge Mocenigo ao mencionar as imagens no édito de proibição, reconhece o poder das imagens não só como um meio difusor de um culto, mas também para inspirar e persuadir diferentes esferas sociais e políticas. A proliferação de uma iconografia em gravuras impressas eram, portanto, uma forma de divulgação que poderia levar a diversos caminhos provavelmente temidos tanto pelo papa como pelo o doge de Veneza49. Para se compreender este tema iconográfico é preciso citar o exame do corpo feito pelo físico Giovanni Mattia Tiberno, amigo do bispo de Trento. Esta carta, que menciona esta autopsia, foi publicada em forma de um livreto no mesmo ano intitulado Relatio de Simone puero tridentino50. Como afirma Arefold, este texto escrito por Tiberno se tornou um dos maiores argumentos de autoridade para o parecer de morte, precedida de tortura e ritual, cometida pela família de Samuel de Nuremberg. Neste exame, Giovanni notou vários machucados no corpo de Simão. As feridas, o assassinato pelos judeus e a sujeição do corpo de uma criança a um ritual confirmavam não só o seu martírio, mas também um medo e uma aversão justificada a comunidade judaica local. Com a rápida disseminação do ocorrido pelo Sacro-Império Romano Germânico, as imagens que representavam Simão se aproximavam às do ciclo da Paixão de Cristo51. Vários parâmetros eram tomados para comparar esse relato do ocorrido em Trento com a narrativa bíblica, dentre estes: a morte realizada por infiéis, o sofrimento e as dores da tortura que resultaram as feridas, tanto pelo corpo de Cristo como no de Simão. Não apenas a narrativa escrita sobre essa acusação de crime ritual obteve parâmetros para uma analogia à Crucificação de Cristo, mas também nas xilogravuras que representavam esse assassinato em questão. O ciclo iconográfico acerca da narrativa da Paixão de Cristo, como defende Hans Belting, anteriormente ao Trecento, era mais próximo ao texto canônico e tinha como principal 48

AREFORD, David. The viewer and the printed Image in late medieval Europe. Op. cit. . p.165 Ibidem. p.167 50 Há um exemplar deste pequeno e raro livro na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em excelente estado. Contudo não há identificação de quem tenha sido o doador. Referência na base: Z2,2,17 F 51 AREFORD, DAVID S. Op. Cit. p.169 49

14 objetivo a rememoração dos Evangelhos. Já no século XIV, a partir de Meditationes vitae Christi, as representações da Paixão se estenderam para além do discurso bíblico e passaram a ter a comoção dos fiéis como uma de suas funções52. Como exemplos dessa mudança, Belting cita os afrescos feitos por Giotto presentes na Cappella degli Scrovegni. O viés apelativo das imagens do tema em questão pode ser notado por elementos como: ênfase nas feridas de Cristo, na cena da Crucificação e da coroação de espinhos. No que diz respeito às representações de Simão, pode-se observar duas principais semelhanças com elementos da iconografia do tema da Paixão de Cristo. Dentre elas, a primeira diz respeito à posição do corpo de Simão para o seu martírio que se assemelha à Crucificação de Cristo. A segunda faz jus às feridas de Cristo muito presentes e enfatizadas nas imagens da Paixão do século XV pelos artistas53. Vale lembrar, como aponta Caroline Bynum, a devoção a Jesus estava diretamente ligada ao seu sofrimento e à demonstração exacerbada do seu sangue no momento de sua Crucificação54. A resistência da cúria papal em santificar as crianças supostamente vítimas dos judeus se justifica pelo fato dessas mortes se pautarem numa concepção de martírio diferente daquela defendida comumente pelo alto clero. O historiador Peter Brown aponta que a ideia de martírio, para o cristianismo desde a antiguidade tardia, estaria relacionada a um ato consciente e voluntário de sacrifício vindo do fiel em testemunho da fé. Os mártires eram os mortos especiais que, de acordo com Agostinho de Hipona, faziam parte da Membra Christi55. Mais importante do que a morte do mártir, era justamente o seu posterior triunfo no céu o que era o principal alicerce para a justificação do culto à esta categoria de santos. Contudo, ao que diz respeito ao caso do Simão de Trento ou do Guilherme de Norwich, esses infanticídios não se configurariam como um martírio. Tendo em vista que no caso de Simão, o menino não teria possibilidade de tomar conhecimento do testemunho e do sacrifício que deveria assumir o seu sofrimento, no momento da sua morte, em prol da fé cristã. Já a morte de Guilherme não se configuraria como um sacrifício voluntário pela fé. O título de mártir atribuído a Simão pelo bispo Johannes Hinderbach e a Guilherme pelo beneditino Thomas de Monmouth demonstra uma apropriação de uma concepção de martírio, que como afirma Vauchez, se diferenciava daquela proposta desde Agostinho na antiguidade tardia.

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BELTING, HANS. Das Bild und sein Publikum im Mittelalter: Form und Funktion früher Bildtafeln der Passion. Berlin: Gebr. Mann Verlag, 1981. 53 AREFORD, DAVID S. Op. cit. p.189 54 Ver: Introdução BYNUM, Caroline. Wonderful blood: theology and practice in Late Medieval Germany and beyond. Philadelphia: Pennsylvania UP, 2007. 55 BROWN, Peter. The Cult of the Saints. Chicago: University of Chicago Press, 1981. p.72

15 A partir do século XIV um enredo já pré-estabelecido seria esperado para essas acusações, o corpo de uma criança morto encontrado no período final da Quaresma era um indício que comprovaria a ocorrência de mais um caso de crime ritual e libelo de sangue. A prerrogativa de Imitatio Christi ao suposto sacrifício destas crianças se relacionava ao derramamento de sangue inocente feito pelo povo culpado pela crucificação de Jesus Cristo. À medida que mais casos eram relatados acerca desses assassinatos, seja por sermões ou por textos, ocorria um aumento da tensão entre cristãos e judeus e colocava em xeque a política de tolerância aos judeus estabelecida desde da antiguidade tardia no Ocidente. Para além dessas narrativas sobre o sacrifício de crianças cristãs, os judeus também foram alvo das acusações de profanação da Hóstia, um sacramento que ganhou grande importância no rito cristão a partir do século XIII.

1.2 A PROFANAÇÃO DA HÓSTIA: O CORPO DE CRISTO VIOLADO

A reorganização da doutrina eucarística, a partir do século XI, como afirma Baschet, é um indício da reorganização espacial da Cristandade56. Durante a Antiguidade Tardia e a Alta Idade Média, a eucaristia era celebrada com o objetivo de memorizar as palavras de Cristo aos seus apóstolos. O pão e o vinho eram apenas símbolos do corpo, do sangue de Deus e serviam para comemorar o seu sacrifício. Contudo a confirmação da transubstanciação da hóstia durante o rito cristão oficializada pelo IV concílio de Latrão (1215) deu destaque a este sacramento e assim tornou-se a parte mais importante da missa. Para Agostinho de Hipona, a eucaristia possuía uma função simbólica, Cristo estaria presente nesse sacramento apenas como signo do corpo divino57. Contudo, no século XI a eucaristia ganha um novo significado, com a proposta do clérigo Berengário de Tours escrita em um dos seus textos de 1059. Em um destes documentos, sugere-se que a hóstia não era apenas um símbolo pois, de acordo com o argumento de Tours, o pão e o vinho consagrado durante a missa, eram o verdadeiro corpo e sangue de Deus58. Desta forma, a eucaristia deixava de ser um ato consagrador da memória dos cristãos e passava a ser a portadora da real presença divina.

BASCHET Jérôme. La civilisation féodale: de l’an mil à la colonisation de l’Amérique. Paris : Champs Flammarion, 2006. p.506 57 Ibidem. p.506 58 Ibidem. p.507 56

16 A doutrina da transubstanciação foi apresentada pela primeira vez pelo teólogo Roberto Pullus por volta de 1140. A partir dos gestos consagrados pelos sacerdotes durante a missa, o pão e o vinho se transformavam no corpo e sangue de Cristo embora a aparência de ambos continuasse a mesma59. No século posterior, Tomás de Aquino, na contramão, sugere que a presença física de Cristo não se realiza de maneira material e sim pelo meio espiritual e invisível. Contudo, o IV concílio de Latrão (1215) oficializou a doutrina da transubstanciação da hóstia, o que sugeriu, como aponta Baschet, um maior controle do monopólio da intermediação do sagrado pelo clero. Caberia aos sacerdotes através dos gestos para a consagração da eucaristia, transformar um simples pedação de pão e uma porção de vinho no verdadeiro corpo e sangue de Cristo. O monopólio da articulação gestual do clero no momento da transubstanciação reforçava a sua importância na sociedade cristã. Além de reafirmar o papel do clero como intermediador entre a Terra e o Céu, a eucaristia, como defende Baschet, tornava sagrado o local onde a transubstanciação ocorria, graças à presença divina que se encontrava na Hóstia60. O sacramento eucarístico igualmente se configurava como um rito comunitário e tornava visível a todos os cristãos presentes o próprio sacrifício do Senhor. A partir do século XIII, esta consagração passou a ocorrer em todas as paroquias do Ocidente e manifestava-se desta forma através desse ritual comum a todos os cristãos, uma união da cristandade61. Neste período foram estabelecidas festas relacionadas a este sacramento como a de Corpus Christi oficializada pelo papa Urbano IV em 1264. Durante esta festividade, como aponta Baschet, o Corpo de Cristo era exposto em um ostensório aos fiéis saiam em procissão pela cidade62. Estas comemorações ganharam grande importância posteriormente no século XIV e além de confirmarem a importância da hóstia passou a se caracterizar como um período de tensão entre os cristãos e os infiéis. A sacralidade era atribuída à força e à fragilidade intrínseca à eucaristia e desta forma havia um medo cristão da violação deste signo que carregava a real presença do corpo de Deus. À medida que a transumância se tornou essencial para o rito cristão a partir do século XIII, no mesmo período, as acusações de profanação da hóstia começaram a ser relatadas63. Embora o sacramento da eucaristia tivesse como principal objetivo a real presença de Deus na

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BASCHET Jérôme. Op. Cit. p.508 Ibidem. p.515 61 Ibidem. p.516 62 Ibidem. p.510 63 RUBIN, Miri. Gentile Tales: the narrative assault on late medieval jews. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1999. p. 40-44 60

17 hóstia e relembrar aos cristãos o triunfo de Cristo diante da morte, o seu corpo manifestava sacralidade pela oposição entre vulnerabilidade e poder. Desta forma, a hóstia sempre triunfaria apesar de estar suscetível a possíveis profanações, estando a sua vitória relacionada à justiça dos fiéis cristãos e à derrota dos incrédulos64. O alvo principal destas acusações eram os judeus65. O IV Concílio de Latrão, além de postular a doutrina da transubstanciação como um dogma, também estabeleceu medidas para limitar as esferas de contato entre os cristãos e judeus como por exemplo: a proibição do casamento entre os dois grupos. Vale também lembrar que a presença Judia nas ruas, durante a Semana Santa, também foi proibida, o que demonstra um certo receio de possíveis profanações da eucaristia ou um medo da quebra de crucifixos66. Nesse concílio não se traçou uma conexão estrita entre os judeus e a exposição da hóstia, mas o princípio da separação entre esses últimos e as representações de Cristo se tornaram evidentes durante o século XIII. Ao passo que a eucaristia ganhava mais importância para o rito cristão, aumentava-se também, na mesma medida, o medo do roubo e de destruição deste signo, que possuía a presença de Deus. O possível furto feito por infiéis, hereges e principalmente pelos judeus deveria ser o centro das atenções do clero e dos fiéis no período crítico do final da Quaresma. Uma das primeiras acusações de profanção da hostia foi feita em 1290, na cidade de Paris e está mencionada no livro Chronicon ecclesiae sancti Dyonisii67. A narrativa se baseia numa mulher cristã que haveria vendido uma hostia que obteve por intermédio de um padre para um judeu na Semana Santa. Este homem, após várias tentativas de quebrar a hostia utilizando martelo e pregos, não consegiu desintegrar o signo do corpo divino e apenas viu o milagre o qual fez o sangue escorrer do pedaço de pão que possuia a real presença de Cristo. Uma outra mulher após tomar conhecimento do milagre relata o ocorrido para o bispo da cidade. O desfecho é a a morte do judeu, a punição da mulher má, a glorificação da relatora e a construção de uma capela no lugar do suposto crime. Em julho de 1295, o papa Bonifacio VIII manda uma carta ao bispo de Paris Raynier Flaming permitindo a construção desta igreja68. Como aponta Miri Rubin, na maioria das narrativas da profanação da hóstia, uma mulher consegue a eucaristia para os judeus, uma outra mulher decreta o abuso e então um

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HSIA, Po-Chia R. Trent 1475: stories of a ritual murder trial. New Haven: Yale university press, 1992. p.4 RUBIN, Miri. Op.cit. p. 40 66 Ibidem. p. 29 67 Ibidem. p. 40 68 Ibidem. p. 41 - 44 65

18 padre faz o intermédio para o retorno e o tratamento apropriado para a hóstia milagrosa 69. Há uma oposição de vícios e virtudes sugerida por estas histórias. A mulher que compra o sacramento de um padre; ambos visam ao lucro pessoal por meio da venda do sacramento aos infiéis e desta forma esses personagens são associados ao vício da usura, defeito associado geralmente aos judeus. No caminho oposto há, a mulher que relata a profanação e o milagre da hóstia e o padre que investiga o caso, dá o tratamento adequado ao sacramento e pune os cristãos e judeus culpados; estes últimos bem-aventurados são associados à virtude da coragem e são ditos como exemplos a serem seguidos70. Outros casos de profanação da hóstia foram relatados posteriormente no Ocidente medieval e assim como as acusações de crime ritual e libelo de sangue, ocorreram no período da Semana Santa. Todos esses relatos antijudaícos proporcionavam um aumento da fobia cristã direcionada aos judeus enquanto aumentava, na mesma medida, a importância atribuída à Eucaristia, já que em todo caso de acusação de profanação de hóstia ocorria um milagre como desfecho do caso. Este milagre em oposição ao sacrilégio cometido pelos judeus pode ser interpretado, aponta Miri Rubin, como um triunfo da cristandade e dos seus símbolos sagrados sobre os seus inimigos e os infiéis71. A disseminação destas acusações, atribuídas aos judeus, analisadas brevemente nestes últimos dois tópicos teve na pregação das ordens menores um importante meio de propagação. Os franciscanos e dominicanos através dos seus sermões obtiveram um importante papel não só na perseguição às heresias, nas mudanças da espiritualidade e da religiosidade leiga mas também na demonização e incitação ao ódio cristão contra os judeus72. Bernardino de Siena é um célebre exemplo de autor destes sermões antijudaícos, durante o século XV, na península itálica.

1.3 A PREGAÇÃO FRANCISCANA E O ANTIJUDAÍSMO NA BAIXA IDADE MÉDIA

Além da ênfase nos sacramentos, os clérigos, a partir do século XIII, atribuíram grande importância à pregação em línguas vernáculas. Como defende André Vauchez, ocorreram no Ocidente, mudanças na espiritualidade cristã: as práticas religiosas são cada vez menos privilégio do clero e os leigos, neste período, desejam participar de uma forma ativa na sua

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RUBIN, Miri. Op. Cit. p.73 Ibidem. p.79 71 Ibidem. p.79 72 COHEN, Jeremy. The friars and the jews. Ithaca: Cornell University Press, 1982. p. 226 70

19 salvação por meio da introspecção e da auto-reflexão73. A Igreja na tentativa de afirmação de seu poder reagiu a estes movimentos, liderados por leigos ou clérigos, para incorpora-los em suas estruturas como foi o caso dos franciscanos. As ordens mendicantes surgiram a partir do movimento proposto por um leigo chamado Francisco de Assis, filho de um comerciante na cidade de Úmbria74 que haveria negado as suas riquezas e a sua rotina secular para viver de acordo com os parâmetros propostos por Jesus Cristo nos Evangelhos. Ao desistir de ser comerciante, Francisco adota uma vida de privações, de asceticismo e sobretudo se propõe à pregação da palavra a outros leigos. Esta doutrina obteve seguidores de vários segmentos sociais e rapidamente foi assimilada pela Igreja nesse contexto de formação de diferentes religiosidades e de uma vontade leiga de maior participação em assuntos religiosos que anteriormente caberiam apenas aos clérigos como o entendimento da palavra sagrada e as ações que permitiriam a salvação. Vale lembrar que a Igreja detinha, neste período, não só o monopólio da interpretação das sagradas escrituras e dos sacramentos, como também da pregação e da intermediação entre o plano celeste e terrestre. O movimento franciscano que teve seu estatuto reconhecido pelo papa Inocêncio III em 1209, apenas obteve este reconhecimento graças à obediência dos frades menores prestada às ordens da cúria papal. Desta forma, o movimento franciscano, obteve uma grande repercussão social e política graças à conciliação dos interesses dos clérigos e dos leigos. Ao associar a possibilidade de uma atuação maior dentro da Igreja sem recorrer à solução monástica de fuga ao mundo, os franciscanos obtiveram um importante papel na mudança posterior de hábitos religiosos no Ocidente medieval. A formação das ordens mendicantes é associada com o crescimento das cidades durante a Idade Média central e o locus dos frades posicionado nos burgos. Contudo, como aponta Michel Mollat, os mendicantes não se estabeleceram logo inicialmente nas cidades e sim nas periferias das mesmas para então posteriormente ocupar os centros urbanos75. Dentro das zonas urbanas, os frades encontraram o local mais propício para desenvolver as suas atividades como a pregação do evangelho e o ideal de pobreza. Sua ocupação nos centros das cidades não foi alvo de conflitos com os cristãos citadinos já que estes últimos viam nos frades uma resposta para suas inquietações morais ou vontade de viver mais de acordo com a palavra de Jesus Cristo. Diferentemente das ordens monásticas, os franciscanos vivam em um convento e não um mosteiro. Georges Duby ressalta esta diferença de denominação do lugar em que vivem os

73

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade da Idade Média Ocidental. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. p.87 BLOCKMANS, Win; HOPPENBROUWERS, Peter. Op. Cit. p. 223. 75 MOLLAT, Michel. Les pauvres au Moyen Âge. Paris : Éditions Complexe, 2006. p.152 74

20 integrantes das Ordens menores76. O primeiro termo “mosteiro” se relacionaria a uma vida fechada em um local específico, com a ideia de enclausuramento intrínseca a este espaço. Já o “convento” faz referência à noção de um abrigo do qual os frades podem sair eventualmente para cumprir suas tarefas diárias nas cidades como as pregações e depois, ao final do dia, retornar para sua moradia. A Igreja postulou a pregação como instrumento eficaz para expor os artigos da fé, combater as heresias e incitar os fiéis a se confessarem77. O papa Inocêncio III (1198 – 1216) estimulou a pregação das ordens menores na luta contra a heresia cátara. Os sermões reuniam grandes multidões na Baixa Idade Média e a ênfase em temas da escatologia cristã, da salvação individual e da demonização de minorias causavam um fervor considerável aos leigos. Dentre os diversos exemplos de frades que encorajavam o antijudaísmo em suas pregações durante o século XIII e XIV, Jeremy Cohen cita alguns como: Berthold de Regensburg, Giordano de Rivalto e Matfre Ermengaud78. O franciscano Bernardino de Siena, durante o século XV, foi um importante pregador e circulava por várias cidades da península itálica atraindo grandes multidões como espectadoras de seus sermões79. Como aponta Franco Mornando, os objetivos principais da sua pregação eram: a evangelização, a instrução moral e espiritual e a exortação penitencial. Seus discursos possuíam uma grande carga de experiência em narrar histórias e se pautavam no entretenimento teatral80. A sua pregação prometia um manto de proteção contra o mal, ensinamentos para se fugir do Inferno e uma preocupação excessiva de evitar o Diabo. Sua fala enfatizava a necessidade dos fieis cristãos de estarem sempre atentos em relação as suas atitudes, a vida era basicamente, na sugestão de Bernardino de Siena, uma escolha constante entre o bem e o mal, a salvação e a danação: Oh! Quantos presentes aqui hoje que dirão: “Eu não sabia o que eu estava realmente fazendo. Eu pensava que estava realizando o bem ao invés do mal” E então, lembrando-se deste sermão, eles dirão para si mesmos: “Ah! Agora está claro em minha mente o que eu fiz.” [...] E agora quando você firmar um contrato, será o primeiro a pensar e dizer para si: “ Agora o

76

DUBY, Georges. Le temps des Cathédrales. Paris : Gallimard, 1975. p.174 BEAULIEU, Marrie-Anne Polo de. Prédication in : LE GOFF Jacques ; SCHMITT Jean-Claude. (Orgs.) Dictionnaire raisonné de l’Occident médiéval. Paris : Fayard 1999 p. 910 78 COHEN, Jeremy. Op. cit. p. 226 - 244 79 MORMANDO, Franco. The preacher’s demons: Bernardino of Siena and the social underworld of early Renaissance Italy. Chicago: The University of Chicago Press, 1999. p.1 80 Ibidem. 77

21 que o frade Bernardino disse? Ele falou tanto e tanto: isto é o mal e não deve ser feito; isto é o bem; isso é o que eu vou escolher81.

Além de motivar a atenção de muitos leigos por conselhos fervorosos sobre como proceder para obter-se a salvação individual, identificar as ações ruins. Bernardino de Siena sugeriu de modo enfático a identificação e a perseguição de minorias como hereges, judeus, sodomitas e leprosos82. Um exemplo desta incitação da fobia contra os judeus é a lista na qual, esse franciscano postula, proibições às relações entre os cristãos e os judeus:

- É uma sina mortal comer e beber com judeus. - É uma sina mortal procurar ajuda a um doutor judeu. - Os Cristãos não estão permitidos a tomar banho na companhia de judeus. - Os judeus não podem construir novas sinagogas, nem a aumentar as antigas. - Os judeus devem estar sob vigilância durante a Semana Santa “ Deixe-os murmurar sobre a Paixão de Cristo” - Os judeus devem vestir algum sinal ou distintivo que os identifique como judeus. - Dinheiro, em qualquer caso, não deve ser aceitado por usurários judeus por tais serviços obstétricos, pois este dinheiro na verdade pertencente ao outro83.”

Algumas destas proibições não são novidades, como apontado anteriormente, o IV Concílio de Latrão (1215) postulou a vigilância dos judeus na Semana Santa e o uso de distintivos para identificação deste último grupo. Os sermões deste frade, ao exemplo da última proibição citada, condenavam a usura praticada por alguns dos judeus, proibiam os cristãos de pegarem empréstimos com um usurário judeu e sugeriam esta minoria como a responsável por um enriquecimento indevido. Esta concentração de renda poderia acarretar no empobrecimento dos cristãos e abalar a qualidade de vida nas cidades. Em um de seus sermões, Bernardino enfatiza como o empréstimo de dinheiro sob juros é uma blasfémia a Deus e um mal a todos:

Tradução nossa do trecho: “Oh! How many will there be here today who will say: “I didn’t know what I was really doing. I thought I was doing good and instead I was doing evil.” And then, remembering this sermon, they will say to themselves: “Oh! Now my mind is clear about what I have to do”…And when you go to draw up a contract, you will first do some thinking and say to yourself: “Now what did friar Bernardino say? He said such and such: this is evil and mustn’t be done; this is good; this is what I’m going to choose.” Apud MORMANDO, Franco. Op.cit. p.3 82 PERINI, Valentina. Il Simonino: geografia di un culto. Trento: Società di studi trentini di scienze storiche, 2012 p.87 83 Tradução nossa do trecho: “It is a mortal sin to eat or drink with Jews. It is a mortal sin to seek help from a Jewish doctor. Christians are not allowed to bathe in the company of Jews. Jews may not construct new synagogues, nor enlarge old ones. Jews must be under curfew during Holy Week “lest they murmur about the Passion of Christ”. Jews must wear some sign or badge identifying them as Jews. Money, in any case, must not be accepted from usurious Jews for such obstetric services, because this money in reality belongs to another.” Apud MORMANDO, Franco. Op.cit. p.170 81

22 E esta concentração de riquezas na mão de poucos é perigosa para a saúde da cidade, isto é ainda mais perigoso quando esta riqueza e dinheiro está concentrado e mantido na mão dos judeus. Neste caso, o natural calor da cidade – por aquele que a riqueza representa – não está voltando para o coração para dar assistência ao invés disso se apressa para um abcesso numa hemorragia mortal, desde então todos os judeus, especialmente aqueles que são usurários, são os arqui-inimigos de todos os cristãos84.

Não só se faz presente um aviso para a possível tomada das riquezas dos cristãos pelos judeus. A associação entre o sangue e a morte, presente neste último trecho de um sermão, como aponta Franco Mormando, evoca um parâmetro dos judeus não só como sugadores de dinheiro, mas também de sangue o que faz uma relação indireta com as acusações de crime ritual85. Além dos sermões que condenavam a usura, o pregador Bernardino de Siena foi o responsável pelo aumento da tensão entre os cristãos e os judeus durante a Semana Santa; não só motivado pelo vício da avareza mas também pela possível blasfêmia contra o sagrado nome de Jesus Cristo, quebra de crucifixos e profanações da hóstia perto do domingo de Pascoa. Os judeus, portanto, eram sempre uma possível ameaça à sociedade cristã e o cuidado, frente aos perigos postos por estes inimigos da “verdadeira” fé, deveria ser dobrado neste período litúrgico. No trecho a seguir, sugere-se que os judeus não devam aparecer em público durante a Semana Santa e no domingo de Páscoa. Esta proibição se pauta, como aponta Bernardino de Siena, nas várias restrições que caberiam aos cristãos afim de se relembrar o sofrimento de Cristo antes da sua Crucificação e que não eram feitas pela comunidade judaica em geral:

Eles não devem aparecer em público em todos os dias da lamentação e no domingo de Páscoa; pois alguns deles nestes dias, como nós já ouvimos, não se envergonham de desfilar com ornamentados vestidos e não possuem medo de afrontar os cristãos que estão presenciando o memorial da mais sagrada Paixão e mostrando sinais de aflição. O que nos é mais estritamente proibido, no entanto, é aquilo que eles se atrevem, de qualquer maneira, em fazer escárnio da Redenção. Nós ordenamos os príncipes seculares a restringir com punições condignas aqueles os quais se atrevam a fazer, a fim de que eles não se atrevam a blasfemar

Tradução nossa do trecho: “And this concentration of wealth in the hands of the few is dangerous to the health of the city, it is even more dangerous when this wealth and money is concentrated and gathered into the hands of the Jews. For in that case, the natural warmth of the city – for that its wealth represents – is not flowing back to the hearth to give it assistance but instead rushes to an abscess in a deadly hemorrhage, since all Jews, especially those who are moneylenders, are the chief enemies of all Christians.”Apud MORMANDO, Franco. Op.cit. p.189 85 Ibidem. 84

23 de qualquer forma aquele que foi crucificado por nós desde então nós não devemos ignorar os insultos contra Ele que se maculou por nossos erros86.

Apesar de Bernardino de Siena não ter feito uma menção direta às acusações de crime ritual e de libelo de sangue, como aponta Franco Mornando, seus sermões e suas proposições foram vitais para o aumento do antijudaísmo no século XV na península itálica87. Sua pregação reforçou, como demonstrado, estereótipos dos judeus como sanguessugas de riquezas matérias, avarentos, blasfemadores da fé cristã em potencial e um perigo para a comemoração da Páscoa. Desta maneira tanto Franco Mormando como Jeremy Cohen concordam como as palavras deste franciscano foram um importante fator para a motivação para que outros frades também proferissem discursos contra os judeus. O caso de Simão de Trento ocorreria por volta de trinta anos após a morte desse pregador igualmente motivado pela pregação desta ordem menor. Um franciscano posterior, conhecido pelas suas pregações contra os judeus, foi Bernardino da Feltre. Seus sermões mencionavam sobre a necessidade do cuidado dos cristãos com o consumo de sangue feito pelos judeus e da possibilidade da ocorrência de crimes rituais no final do período da Quaresma88. A historiadora Valentina Perini afirma que os sermões proferidos por Feltre foram responsáveis pela associação do infanticídio ocorrido em Trento em 1475 com o libelo de sangue que teria como resultado o culto ao beato Simão89. O frade Bernardino da Feltre em conjunto com o bispo Johannes Hinderbach foram os principais responsáveis pela apologia do culto ao mártir Simão de Trento. Este pregador haveria escrito em 1494 o seguinte trecho presente no segundo capítulo do “Libro delli comandamenti di Dio del Testamento vecchio et nuovo et sacri canoni”:

Ainda na Itália em mais lugares encontramos tais milagres e atos dos pérfidos judeus contra os cristãos na província de Santo Antonio. [...] um corpo de um santo menino o qual foi morto pelos pérfidos judeus e em tal modo. [...] Os anos se passaram do mesmo modo na cidade de Trento onde se encontra o corpo do beato Simão com muitos milagres, martirizado pelos pérfidos judeus90 Tradução nossa do trecho: “They shall not appear in public at all days of lamentation and on Passion Sunday; because some of them on such days, as we have heard, do not blush to parade in very ornate dress and are not afraid to mock Christians who are presenting a memorial of the most sacred passion and are displaying signs of grief. What we most strictly forbid, however, is that they dare any way break out in derision of the Redeemer. We order secular princes to restrain with condign punishment those who do so presume, lest they dare to blaspheme in any way him who was crucified for us since we ought not to ignore insults against him who blotted out our wrongdoings.” Apud MORMANDO, Franco. Op.cit. p.175 87 MORMANDO, Franco. Op.cit. p.178 88 PERINI, Valentina. Op. cit. p.89 89 Ibidem. 90 Tradução nossa do trecho: “anchora in Italia in piú luoghi troviamo tali miracoli et operazoni di perfidi giudei contra cristiani et maxime in nella provincia di sancto Antonio. [...] uno corpo di un santo fanciullo elquale fu morto dalli predecti giudei et in tale modo. Alli proximi et anni passati similmente in nella città di Trento sta il 86

24

Neste último trecho, há uma referência direta ao caso do assassinato ao menino Simão, neste trecho Bernardino da Feltre menciona como o corpo deste pequeno garoto dito mártir realiza milagres para os seus devotos não só na península itálica mas também em outras regiões. O franciscano não deixa de mencionar os acusados pelo crime “os pérfidos judeus”, neste trecho não há identificação de quais pessoas foram responsabilizadas pelo crime. Esta generalização sugere, portanto, um reforço da ideia dos judeus como assassinos de criança em potencial. Vale lembrar que esta oposição, entre o milagre intercedido pelo corpo do beato e o sacrifício feito em prol das crenças judias, sugere o triunfo; não só de Simão de Trento como beato no céu, mas também da cristandade sobre essa minoria vista como ameaça latente91. Como se pode constatar ao longo deste capítulo, o antijudaísmo aumentou consideravelmente a partir do século XI até atingir o seu ápice no século XV. As lendas que se tornavam as acusações contra os judeus se difundiram por sermões das ordens menores. Esta pregação ajudou na uniformização do enredo desses relatos e narrativas sobre as crianças supostamente vítimas dos judeus. As razões para um possível início dessas acusações teria sido o Kidush Hashem, sacrifício judeu coletivo feito em situações adversas. Por uma diferente concepção de martírio, como daquela aceita majoritariamente pelo alto clero, passou-se associar a morte dessas crianças como uma justificativa para estas últimas serem cultuadas como mártires. E ainda, diferentemente no caso de Simão de Trento, no qual a promoção do culto se deu por diversas ações do bispo local Johannes Hinderbach, nota-se que a devoção a este grupo de crianças supostamente sacrificadas poderia ir além das classes populares. Igualmente surgiram as acusações de profanação da hóstia que reforçavam o estereótipo dos judeus como ameaça à fé cristã. À medida que a hóstia ganhou uma importância considerável para a missa, surgiu no mesmo período uma preocupação dos cristãos de proteger este sagrado sacramento da presença de grupos minoritários ditos como incrédulos como foi o caso das comunidades judaicas. A partir destas duas lendas, associava-se os judeus a profanadores da hóstia, assassinos de crianças e sobretudo relembrava-se como os antepassados deste povo foram os responsáveis pela Crucificação de Cristo. Se os sermões foram uma importante forma de divulgação de informações durante a Idade Média, os textos e as gravuras impressas também ganharam um patamar equivalente como difusoras de ideias e desta forma sugeriram mudanças na religiosidade e na

corpo del beato Simone con molti miracholi, martyrizado da epsi perfidi giudei.” Apud PERINI, Valentina. Op. Cit. p.90 91 HSIA, Po-Chia R. Op.cit. p.35

25 espiritualidade leiga. A criação da imprensa em tipo móvel, em Mogúncia por Johannes Gutenberg, proporcionou um novo meio de difusão de conhecimento e informações pelo Ocidente Medieval. A técnica da xilogravura e do papel trazidos do Oriente para a Europa proporcionou uma maior difusão de livros e gravuras impressas graças à redução dos custos para a sua produção. A gravura em suporte de madeira mudou os hábitos dos leigos, a partir de meados do século XV, tornava possível para que as pessoas das classes menos favorecidas possuíssem imagens dos santos, os quais elas eram devotas. Os leigos desta forma obtiveram maior acesso às imagens de temas cristãos já que agora eles poderiam compra-las em feiras e mercados a preços razoáveis se comparados aos dos manuscritos. A xilogravura, no final do século XV, tinha como uma das suas funções ser uma substituta para artefatos e relíquias sagradas e se constituía como objeto de devoção privada ou pública92. As xilogravuras e os textos impressos permitiram também uma maior difusão do antijudaísmo como foi o exemplo da propagação dos casos do culto ao beato Simão de Trento e da acusação de profanação da hóstia na cidade de Passau em 1470.

92

WOOD, Christopher. Forgery, Replica, Fiction: temporalities of German Renaissance art. Chicago: University of Chicago Press. p.222

26

CAPÍTULO 2 A TÉCNICA DA XILOGRAVURA E AS SUAS FUNÇÕES NO SÉCULO XV

A técnica da xilogravura foi trazida para o Ocidente no final do século XIV. A reprodução de ilustrações permitiu uma certa difusão de imagens de temas cristãos já a partir do início século XV. Somada à invenção da imprensa em tipo móvel, a partir da década de 1460, tornou-se possível uma produção em média escala dos incunábulos ilustrados de grande, médio e pequeno porte. As gravuras e os textos impressos sobre papel permitiram uma maior mobilidade de informações pela Europa ocidental, este suporte mudou certos hábitos da população de várias camadas sociais. O menor custo, para a manufatura destes livros e gravuras, tornou possível a compra destes objetos às classes menos favorecidas. Se inicialmente o ofício de gravador era semelhante ao de artesão, como aponta Peter Parshall, veremos como estas oficinas tornaram-se ateliers e progressivamente a técnica utilizada, para a confecção dos moldes de madeiras destinados à impressão das xilogravuras, complexificou-se. Desta forma, cerca de um terço dos livros impressos no final do século XV é ilustrado, o que demonstra uma relativa importância deste tipo de incunábulo para este período em questão. Ao longo deste capítulo busca-se demonstrar o desenvolvimento da técnica da xilogravura, as suas possíveis funções no Ocidente medieval e por fim o seu papel na difusão do antijudaísmo.

2.1 A TÉCNICA DA XILOGRAVURA E O INCUNÁBULO ILUSTRADO

A imprensa em tipo móvel, criada na década de 1450 por Johannes Gutenberg, permitiu, como aponta a historiadora Elisabeth Eisenstein, uma revolução na transmissão do conhecimento e da informação no Ocidente medieval93. Mencionar a mudança dos livros manuscritos para impressos no século XV é um amplo tema de discussão para os especialistas. Eisenstein menciona os entraves para a mudança do scriptorium para as oficinas de impressão94. O empecilho principal era o dispêndio inicial necessário para a compra dos instrumentos e dos objetos utilizados para a técnica de Gutenberg. Havia, também, um certo receio na possível 93

EISENSTEIN, Elisabeth. The Printing Press Revolution in Early Modern Europe. New York: Cambridge University Press, 2005 p.3 94 Ibidem p.10

27 baixa rentabilidade. Contudo o investimento alto inicial não foi um limitante significativo para a criação cada vez maior dessas oficinas por toda a Europa. Para além das questões econômicas, havia também a tradição do ofício de copista. Vale lembrar que desde do século XII, os copistas já não trabalhavam em quartos separados, nos quais, cada um fazia a cópia de um texto inteiro. A cópia dos livros já havia deixado de ser exclusivamente uma forma de penitência ou de meditação realizada pelos monges. O sistema de pecia vigente por três séculos antes da imprensa de tipo móvel pode ser interpretado como a necessidade crescente do Ocidente por livros. Nesta técnica de cópia de livros manuscritos, cada copista ficava responsável por reproduzir uma parte do texto, diferente da anterior na qual um monge redigia o códice inteiro. A divisão da reprodução do texto entre os copistas demonstra não só o aumento da demanda de livros, mas também uma certa preocupação com a padronização dos manuscritos. Eisenstein relaciona esta mudança do sistema de cópias com dois fatores: o surgimento das universidades e o aumento de uma população urbana alfabetizada. Embora boa parte da população leiga desconhecesse o latim, as canções de gesta, os poemas e as crônicas redigidas em línguas vernáculas se tornavam mais comuns, se compararmos ao período anterior ao século XII. A conversão dos textos manuscritos para os impressos não foi instantânea mesmo que a invenção de Gutenberg houvesse diminuído os custos de uma encadernação e a nova técnica tivesse sido popularizada pela Europa Ocidental rapidamente. Ao passo que ocorria a mudança de livros manuscritos para os impressos, havia então a resistência de clérigos como o Nicolau de Cusa, este último defendia a difusão de informação que a nova técnica trazia, contudo condenava a crescente prática de tradução de obras para as línguas vernáculas e o lucro dos donos das oficinas de imprensa gerados pela crescente demanda de livros95. Anterior à invenção de tipos móveis de Gutenberg, foi a técnica da xilogravura trazida do Oriente para o Ocidente em fins do século XIV. A confecção de impressões feitas a partir da pressão de um suporte de madeira contra o papel ou tecido já era feita na China, a partir do século VIII, na dinastia Tang96. Assim como o papel já havia sido inventado na mesma localidade no ano 105 DC. Estas técnicas teriam sido difundidas pela Ásia até chegar ao Oriente Médio por volta do século X e sido levadas posteriormente ao Ocidente medieval entre os

95

ROSS, Elizabeth. Picturing Experience in the Early Printed Book. Pennsylvania, Penn State University Press, 2014. p.21 96 BELL, Julian. Mirror of the World: A New History of Art. London: Thames & Hudson, 2007. p.107

28 séculos XII e XIII para as penínsulas ibérica e itálica97. A construção de moinhos para a produção de papeis se espalhou pela Europa, a partir do século XIII, e chegou na Alemanha por volta da década de 139098. Já a técnica da confecção de xilogravuras, como aponta Stephan Füssel, provavelmente foi levada ao Ocidente pelos mongóis durante a expansão de seu império no mesmo período99. A origem etimológica desta técnica possui origem grega “xilon”, madeira e, “graphos”, escrito, ou seja, “escrito em madeira”. Para obter a impressão destas gravuras em papel, cobria-se a superfície do bloco com tinta de impressão, feita de óleo e fuligem e apertavase este bloco contra o papel. Como estes blocos de madeiras eram relativamente frágeis, a reprodução das séries de gravuras ocorreria até o desgaste destes moldes. A partir desta técnica simples e de baixo custo em conjunto com o baixo preço do papel100, as gravuras feitas em suporte de madeira passaram a difundir-se de uma maneira relevante na Europa. Os blocos de madeira passaram a ser utilizados para imprimir gravuras sobre papel, a partir do final do século XIV no Ocidente, e pela sua relativa simplicidade na técnica, em menos de duas gerações, esta prática tornou-se comum pelo continente europeu101. Apesar da xilografia já ser produzida na Europa antes de 1400102 e ser utilizada para as estampas dos jogos de cartas e para a representação visual de alguns santos103, somente quando esta técnica se uniu à invenção dos tipos móveis de Johannes Gutenberg, de 1461, foi possível a reprodução dos primeiros textos ilustrados em média escala, dentro das limitações das casas de impressão desse período. As figuras 1 e 2 demonstram um exemplo dos mais antigos blocos de madeira existentes até os dias atuais. Este molde, que possui frente e verso, foi feito aproximadamente na década de 1470. O seu verso é referente à cena de São Sebastião entre os três arqueiros e a parte da frente do molde ao Monograma de Cristo. Por serem relativamente frágeis poucos destes blocos sobreviveram até o nosso século; este em questão encontra-se no acervo do Museu Britânico104.

97

FÜSSEL, Stephan. Johannes Gutenberg. Hamburg: Rowohlt Taschenbuch Verlag, 1999. p.10 - 11 Ibidem. 99 Ibidem. p.12 - 13 100 Ibidem. p.10 101 LANDAU David; PARSHALL, Peter. The renaissance print: ca. 1470 – 1550. New Haven : Yale University Press, 1994. p.1 102 BELL, Julian. Op. Cit. p. 185. 103 PARSHAL Peter; SCHOCH, Rainer. Origins of European Printmaking. New Haven: Yale University Press, 2005. p.39 104 PARSHAL Peter; SCHOCH, Rainer. Op. cit. p.70 - 71 98

29

Figura 1. São Sebastião entre três arqueiros. ca. 1470 – 1475, Londres, Museu Britânico.

Figura 2. Monograma do Cristo. ca.1470 – 1475 Londres, Museu Britânico.

A realização destes moldes era relativamente simples. Com a utilização de uma faca, retirava-se de um pedaço de madeira daquilo que não deveria aparecer com tinta na estampa. Já o que daria contorno às formas das figuras, por meio das linhas escuras, ficava saliente pelas finas arestas presentes nesses blocos105. O planejamento e a manufatura dessas xilogravuras requeria algumas ferramentas similares aos dos marceneiros, ferreiros e escultores 106. Os gravadores, neste período de meados do século XV, possuíam um ofício similar ao artesão para a sociedade. Muitas vezes estes artesões anônimos, como aponta Peter Parshall, faziam parte das guildas de carpinteiros ou de ferreiros107. Os primeiros estágios das impressões para as xilogravuras serviriam basicamente, a partir da afirmação de Peter Parshall, à criação de imagens devocionais; especialmente de

105

GOMBRICH, E. H. The Story of Art. London: Phaidon Press, 1995. p.282 LANDAU David; PARSHALL, Peter. Op. cit. p.7 107 Ibidem. p. 8 - 9 106

30 Cristo, da Virgem Maria e dos santos108. Além destas pequenas oficinas independentes destinadas à cunhagem destas gravuras, os conventos também possuíram, inicialmente, um importante papel como realizadores destas ilustrações sobre papel. Estas imagens manufaturadas por gravadores eram destinadas principalmente para a comunidade local e o menor custo para a sua aquisição, sugeriu uma acentuação da devoção privada a partir de meados do século XV109. Pequenas séries de estampas eram impressas em um conjunto de blocos de madeiras durante o século XV e foram sendo substituídas gradativamente pela imprensa em tipo móvel. Esse conjunto de gravuras reunidas como um livro, a partir de blocos de madeira, são chamadas de block-books (livros em bloco). Paul Needham aponta que estes livros foram vistos ocasionalmente pela historiografia como prenúncios ao incunábulo ilustrado que era feito a partir da junção da técnica tipográfica criada por Johannes de Gutenberg e da xilogravura já existente110. A década de 1470, como aponta Peter Parshall, foi um marco para a produção de livros impressos e a junção da técnica de Johannes com a da xilogravura111. Durantes estes anos, os impressores começaram a utilizar com mais ênfase as ilustrações vindas dos blocos de madeira em conjunto com os textos. Esta combinação é perceptível na Germânia, onde os primeiros passos para a produção destes incunábulos ilustrados foram dados na cidade de Bamberg112. Outras regiões do Sacro Império Romano Germânico como a Francônia também se destacaram na manufatura de gravuras. Nuremberg, cidade deste entorno, era um importante centro para a impressão de incunábulos com xilogravuras. Um aprimoramento da técnica para a realização dos traços dos moldes de madeira também pode ser notado no final do século XV. A consequente migração da manufatura de gravuras das oficinas dos conventos para os ateliês de mestres especializados nessa técnica, secularizou e refinou este ofício113. O design e a técnica para a realização destes blocos destinados às gravuras, passaram a ser mais valorizados socialmente. Desta forma, para a sua confecção, passou-se a empregar as técnicas vindas da península itálica como o ponto de fuga, proposto por Filippo Brunelleschi, que tornava mais evidente ao observador, a noção de profundidade. 108

LANDAU David; PARSHALL, Peter. Op. cit. p.2 PARSHAL Peter; SCHOCH, Rainer. Op. cit. p.51 110 NEEDHAM, Paul. Prints in the early printing shops in: PARSHALL, Peter; (Org). The Woodcut in fifteenth century Europe. New Haven: Yale University Press, 2009. p.45 111 LANDAU David; PARSHALL, Peter. Op. cit. p.5 112 NEEDHAM, Paul. Op. cit. p.55 113 LANDAU David; PARSHALL, Peter. Op. cit. p.35 109

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Figura 3. São Jerônimo remove um espinho Figura 4. A quarta figura, A Queda do Homem da pata do leão. ca.1430, Viena, Albertina.

Schatzbehalter, 1491. Washington, Biblioteca do Congresso Nacional.

Na figura 3, uma xilogravura feita ainda na década de 1430, nota-se que não há uma clara preocupação com a profundidade da cena, esta última é apenas sugerida pelas árvores ao fundo em menor tamanho em relação aos personagens principais. São Jerônimo, ao centro da cena, vestido de vermelho, retira o espinho da pata do leão. Os traços que definem as suas formas são elementares e basicamente retos. Já na ilustração, ao lado direito, (figura 4) intitulada “a quarta figura” em alemão “Die vierd figur”, feita por Michael Wolgemut e Wilhelm Pleydenwurff em 1491, nota-se uma ideia de distância mais definida. Ao fundo encontra-se Eva sendo criada pela costela de Adão enquanto Deus está levemente inclinado olhando para ambos. Já ao canto esquerdo da gravura, o casal come o fruto proibido e a serpente está entrelaçada na árvore. O cuidado com a curva dos corpos e com a proporção dos membros é maior nesta última ilustração se comparada à de São Jerônimo, entretanto os muros que cercam o Jardim do Éden encontram-se desproporcionais ao tamanho dos personagens.

32 As contribuições de Martin Schongauer, Andrea Mantegna e Van Meckenem, como aponta Peter Pashall, foram importantes para este refinamento das xilogravuras 114. A combinação de técnicas e das teorias sobre o espaço na figura, estudos sobre a anatomia dos corpos humanos e dos animais foi fundamental para uma gradativa complexificação da realização dos moldes de madeira. Gravadores como Albrecht Dürer, Albrecht Altdorfer e Lucas van Leyden seriam os exemplos, do que muitas vezes historiadores da arte como Erwin Panofsky, denominaram como o auge da gravura que teria ocorrido posteriormente no século XVI. Estima-se que um terço dos livros impressos entre os meados e o final do século XV são ilustrados. Além dos temas religiosos, estes livros ilustrados poderiam possuir como tema a História universal da humanidade que é o caso da célebre Crônica de Nuremberg ou Liber Chronicarum impressa na cidade de Nuremberg em 1493, na oficina coordenada por Anton Koebeger. Suas 1809 ilustrações foram feitas no atelier dos gravadores Michael Wolgemut e Wilhelm Pleydenwurff, algumas destas figuras serão analisadas no próximo capítulo. As xilogravuras e os incunábulos ilustrados inegavelmente proporcionaram mudanças nos hábitos religiosos do Ocidente medieval. Graças ao preço mais acessível, as classes menos abastadas poderiam adquirir estas ilustrações que representavam santos e relíquias e usa-las em âmbito privado.

2.2 A MUTIPLICAÇÃO DO SAGRADO, A DEVOÇÃO PRIVADA E AS XILOGRAVURAS NO FINAL DO SÉCULO XV.

As funções da iconografia medieval já foram amplamente discutidas pela historiografia.

Para além da “bíblia dos iletrados”, como propôs Émile Mâle, as imagens

medievais não são apenas ilustrações dos textos e nem se limitam à função de catequese dos analfabetos. Embora as xilogravuras, com seu aspecto de reprodução, tenham mudado os hábitos religiosos dos leigos e ampliado o acesso às ilustrações de temas cristãos às classes menos abastadas, é necessário se atentar para as possíveis continuidades da atribuição de sentidos e de funções a este especifico suporte, no caso, as gravuras.

114

LANDAU David; PARSHALL, Peter. Op. cit. p.5

33 Hans Belting115 e Jean-Claude Schmitt defendem a importância da utilização do termo Imago (imagem) para uma mais precisa interpretação das imagens medievais. Torna-se assim uma maneira de evitar termos anacrônicos como “arte”, “obra de arte” e “artista” antes do século XVI. Para Hans Belting é possível distinguir uma idade medieval da arte e uma idade da arte. Deste modo, a imagem deste período é marcada, muitas vezes, por seus usos rituais e religiosos. A imagem remete aos objetos figurados, às imagens mentais (imaginatio) e também ao próprio homem, que, diz a Bíblia, ter sido feito à imagem e semelhança de Deus116. Como aponta Jean-Claude Schmitt, as imagens medievais detinham uma especificidade. Para além das funções estéticas, devemos nos atentar para a sua função de presentificação do plano celeste para o terrestre. A imago possibilitava aos fiéis cristãos, pela meditação e pelo transitus, a transcendência do material para o espiritual e desta forma tornava o invisível, tangível117. A presentificação do plano imaterial poderia ser efetivada sob “as aparências do antropomorfo e do familiar, o invisível no visível, Deus no homem, o ausente no presente, o passado ou o futuro no atual. Ela reitera assim, à sua maneira, a identidade, a matéria e o corpo àquilo que é transcendente e inaccessível118”. O conceito de “imagem-objeto” pode ser utilizado para a análise das funções específicas das xilogravuras. Embora ao fim da Idade Média a dimensionalidade do objeto mude de três dimensões para duas graças à técnica de pintura sob tela e de reprodução como as gravuras, não se deve esquecer, assim como salienta Baschet, a característica desses últimos como imagem-objeto, os locais onde eram postos ou utilizados e as suas funções para a devoção privada ou pública119. David Areford afirma que os historiadores sempre estiveram interessados na ideia das xilogravuras como reproduções de outros suportes, especialmente de esculturas e pinturas120. Contudo devemos nos atentar para o diferente significado da noção de reprodução existente no século XV. As xilogravuras, como aponta este último autor, poderiam ter como uma de suas funções principais a multiplicação do sagrado121. Permitia-se, através destas ilustrações, muito mais do que uma representação visual de um afresco, de uma tela pintada à óleo ou de uma 115

BELTING, Hans. Semelhança e Presença: a história da imagem antes da era da arte. Rio de Janeiro: Ars Urbe, 2010. 116 Gênesis 1,26 117 SCHMITT, Jean-Claude. Imagens. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Vol 1. São Paulo. EDUSC. p. 595. 118 Ibidem. 119 BASCHET, Jérôme. L’iconographie médiévale. Paris: Éditions Gallimard, 2008. p. 35 120 AREFORD, David. The viewer and the printed image in late medieval Europe. Farnham: Ashgate Publishing, 2010. p.10 121 AREFORD, David. Mutiplying the Sacred: the fifteenth-Century woodcut as reproduction, surrogate, simulation. PARSHALL, Peter; (Org). The Woodcut in fifteenth century Europe. Op. cit. p.121

34 escultura; estas gravuras reproduzidas em série permitiam, como defende Areford, replicar e literalmente multiplicar o poder milagroso de uma imagem122. Além de sugerir, como função, a presentificação de um santo, as xilogravuras serviam como uma espécie de ligação com um tempo ou um local particular e ainda poderiam manifestar a experiência de milagres aos devotos. Esta conexão direta entre a gravura e um outro objeto sagrado ou não, pode parecer inusitada à sociedade contemporânea123. Para além da autenticidade dos detalhes, as inscrições, a escala; características similares à reprodução atual; as estratégias visuais que exploram as combinações entre o texto e a figura faziam-se necessárias para o convencimento do observador. A referência mencionava o objeto material ou local, ao qual, a xilogravura estava relacionada e desta forma colocava como uma cópia verdadeira dotada de uma ligação direta ao que representava. Sugeria-se, desta forma, uma extensão do poder pela xilogravura através da prerrogativa de Imago contrafacta. David Landau e Peter Parshall apontam que estas primeiras figuras impressas faziam perpetuar o valor de culto de outra imagem124. Um exemplo é a figu-

Figura 5. Israhel van Meckenem, Imago Pietatis, Figura 6. Imago Pietatis c. 1380. Roma, 1480. Viena, Albertina. 122

Basilica di Santa Croce in Gerusalemme.

AREFORD, David. The viewer and the printed image in late medieval Europe. Op. cit. p.14 AREFORD, David. Mutiplying the Sacred: the fifteenth-Century woodcut as reproduction, surrogate, simulation. Op. cit. p.121 124 LANDAU David; PARSHALL, Peter. Op. cit. p.58 123

35 ra 5, uma xilogravura que reproduzia um ícone de um mosaico presente na península itálica. Este ícone (figura 6), feito aproximadamente no final do século XIV, era venerado como a verdadeira imagem feita a partir da visão de São Gregório e teria motivado a peregrinação de diversos fiéis para a Basílica da Santa Cruz em Jerusalém situada em Roma125. A gravura feita por Israhel van Meckenem carrega uma inscrição em latim na sua base, a qual, diz “Hec imago contrefacta est ad instar et similitudem...” (Esta imagem é contrafeita à maneira e semelhança de...). Esta afirmação, como defende David Areford, seria uma tentativa do convencimento do observador feita pelo gravador de que sua gravura era uma cópia semelhante e interligada ao ícone presente em Roma. Quem não pudesse ir a esta cidade ver essa relíquia, estaria como uma cópia que expandia o poder desse objeto milagroso126. Vale lembrar, como aponta Hans Belting, que a réplica era testemunho do original127 e de alguma forma despertava nos fieis as mesmas expectativas do original. Acreditava-se que de alguma forma havia uma conexão entre a réplica e o original criando o que este último autor chama de “uma contradição inerente” intrínseca à cópia neste período que apesar de não ser um original pressupõe um128. A reprodução trazia não só a expansão do poder dos ícones ou das relíquias milagrosas, mas também reforçava a autenticidade do objeto reproduzido. A ideia de réplica foi anterior à técnica de xilogravuras e poderia ser feita pelo mesmo suporte da obra original, contudo é importante observar como as gravuras, como exemplo da figura 5, pretendiam ser semelhantes nas características e no poder em relação ao que copiavam. Contudo, as xilogravuras não eram apenas a cópia de um outro objeto, possuíam um valor devocional independente de outras imagens. Essa técnica de reprodução teria permitido, como apontado anteriormente, uma maior facilidade para adquirir-se imagens devocionais a um custo relativamente baixo. As gravuras começaram a ser penduradas em paredes e portas ou carregadas como objeto pessoal utilizado para orações em ambientes privados tanto pelo o proprietário como pelos membros da casa129. No quadro pintado por Petrus Christus (figura 7), na década de 1450, encontra-se, no centro da cena, uma mulher ajoelhada vestida com um vistoso vestido vermelho com as mãos juntas em gesto de oração. Ela está diante de um livro de horas aberto em prie-dieu de madeira.

125

LANDAU David; PARSHALL, Peter. Op. cit. p.58 AREFORD, David. Mutiplying the Sacred: the fifteenth-Century woodcut as reproduction, surrogate, simulation. Op. cit. p.121 127 BELTING, Hans. Op. Cit. p.555 128 Ibidem. 129 SCHOCH, Rainer. A Century of Nuremberg Printmaking. MONTEBELLO, Phillippe de; BOTT, Gerhard. Gothic and Renaissance Art in Nuremberg: 1300-1550. New York: Metropolitan Museum of Art, Nuremberg: Germanisches Nationamuseum, Munich: Prestel Verlag, 1986. p. 95. 126

36 Ao canto esquerdo, um pouco acima do centro da pintura, encontra-se uma xilogravura fixa à parede. David Areford apresenta esta gravura como uma representação da santa Elisabete da

Figura 7. Petrus Christus, Retrato de uma mulher. Figura 8. Petrus Christus, Retrato de uma mulher ca.1455. Washington, National Gallery of Art.

ca.1455.(detalhe) Washington, National Gallery of Art.

Hungria identificável a partir de suas três coroas, uma carregada na cabeça e as outras nas duas mãos (figura 8)130. Esta pintura é uma entre algumas feitas neste período que demonstram como as xilogravuras estariam presentes nos lares de várias classes na Europa Ocidental do século XV. O posicionamento das gravuras na parede das casas pode sugerir uma de suas funções relacionadas à devoção leiga, estas ilustrações poderiam se constituir como objetos para o uso privado assim como demostrado pelo quadro e, desta forma, são indícios de uma acentuação da oração individual feita fora das igrejas para a obtenção de milagres ou da interseção divina. Para além das funções devocionais, as gravuras se constituíram como uma forma de difusão do antijudaísmo e algumas ilustrações da Crônica de Nuremberg se caracterizam como exemplo desta disseminação de atributos negativos relacionados aos judeus por meio da 130

AREFORD, David. Mutiplying the Sacred: the fifteenth-Century woodcut as reproduction, surrogate, simulation. Op. cit. p.119

37 imprensa em tipo móvel. As xilogravuras avulsas e os incunábulos ilustrados tornaram possível a circulação de estereótipos já anteriormente relacionados aos judeus; proferidos por sermões das ordens mendicantes como exemplificado no capítulo anterior. A facilidade da circulação destas gravuras em papel, leves e de baixo custo tornou possível que os relatos dos casos, nos quais os judeus eram culpados por crimes graves, circulassem mais facilmente e assim se afirmava o status deste grupo como possível ameaça aos cristãos.

2.3 O PAPEL DAS XILOGRAVURAS COMO DIFUSORAS DO ANTIJUDAÍSMO

Vários casos de acusações de atos contra os cristãos, feitos supostamente pelos judeus, foram temas das xilogravuras no final do século XV. As acusações de crime ritual, profanação da hóstia foram representadas em ilustrações de folha avulsa ou em incunábulos ilustrados. Os estereótipos deste grupo, também eram sugeridos por temas com judensau (porca judia), que foram representados visualmente nas gravuras deste período. As punições, reservadas à comunidade judaica, também estavam presentes em cenas, dentre estas havia: a condenação dos judeus à fogueira, o enforcamento e decapitação131. Estas penas muitas vezes eram a resposta do poder secular ou clerical aos crimes e às afrontas contra os cristãos. Como aponta Christine Magin, as publicações que reforçavam o antijudaísmo aumentaram consideravelmente a partir da década de 1470. Este aumento estaria relacionado a uma maior demanda destas publicações devido ao aumento das acusações contra os judeus neste mesmo período132. A maioria destes impressos em folha única são de autoria anônima, com algumas exceções e uma delas é A Crônica de Nuremberg133. O célebre caso de profanação da hóstia ocorrido na cidade de Passau na região da atual Baviera teve como meio difusor, deste acontecimento, uma xilogravura (figura 9). Esta figura representa a história no seguinte eixo cronológico: o roubo da hóstia, a profanação na sinagoga, a ocorrência do milagre, a descoberta do crime, a captura e a morte dos judeus e, por fim, a veneração do sacramento milagroso.

131

HSIA, Po-Chia R. The myth of ritual muder: jews and magic in reformation Germany. New Haven: Yale University Press, 1988. p.50 132 MAGIN, Christine; EISERMANN, Falk. Op. cit. p.192 133 Ibidem p.193

38

Figura 9. Profanação da hóstia em Passau. ca.1478. Munique, Biblioteca Estatal da Baviera.

Este ciclo é intitulado Ein grawsamilich geschicht geschehen zu Passaw von den Juden als hernach volget. (Uma inusitada história que aconteceu em Passau e como os judeus, por esta razão, foram perseguidos.134). O caso de Passau teria ocorrido, como aponta Hsia, no ano de 1477, contudo só um ano mais tarde o cristão Christoph Eisengreishamer teria sido preso pelo roubo das hóstias e a sua posterior venda a dois judeus da cidade, um deles chamado Süttel de Regensburg135. Um ponto diferente neste caso é o sangue que jorrou da hóstia teria se fundido à eucaristia e se tornado por algum momento em um menino136.

134

Tradução nossa. HSIA, Po-Chia R. Op. cit. p.50 136 Ibidem. p.51 135

39 No primeiro quadrado, nota-se Christoph Eisengreishamer roubando as hóstias do altar de uma igreja enquanto desvia o olhar da imagem da Virgem Maria que se encontra no altar. Na próxima cena encontramos este cristão vendendo a hóstia a dois judeus, o judeu à direita da cena carrega um saco em suas mãos, provavelmente o pagamento pelo roubo. Já na terceira cena há a presença de quatro homens e estes estão carregando o sacramento em segredo em uma caixa para a sinagoga. Na quarta parte deste ciclo, é o momento de tensão da narrativa, a hóstia é profanada com a ajuda de uma faca e este signo imediatamente sangra e todos os quatro judeus olham assustados para a ocorrência do milagre. A sexta ilustração pode sugerir uma presença divina no local em que ocorreu a profanação. Há dois anjos voando no telhado da sinagoga, nesta cena, duas pombas pousam na janela e o sangue que havia jorrado da hóstia se fundiu à eucaristia e tornou-se um pequeno menino, o qual aparece no centro da cena em gesto de oração. Esta última visão, como aponta Miri Rubin, faz referência a Jesus Cristo137. Os quadros posteriores estão relacionados à captura dos judeus, a morte por decapitação dos que eram convertidos e a queima dos outros não batizados. Por fim, no último quadrado, aparecem três fieis cristãos adorando a hóstia recuperada, acima do altar há a presença de quatro ex-votos, ainda no interior deste objeto nota-se duas imagens não identificadas e uma cruz. Esta xilogravura que contêm doze cenas, de acordo com Hsia, era vendida nas proximidades de Passau. Este caso de profanação de hóstia teria motivado a vinda de muitos peregrinos para a cidade onde ocorreu esta acusação. A narração escrita do caso em conjunto com as ilustrações tornaria possível não só a memorização dos detalhes do ocorrido nessa cidade em 1477, mas também poderia motivar outros fieis a conhecerem o local de culto destinado à hóstia que havia sido roubada pelos judeus138. Outro exemplo do reforço do antijudaísmo, por meio da imprensa em tipo móvel, são as ilustrações referentes ao judensau (porca judia139). Este tema iconográfico, existente desde 1230 na fachada da Catedral de Brandenburg, foi representado em uma xilogravura impressa aproximadamente em 1472 (figura 10). O judensau estava relacionado à crença popular que os judeus se amamentavam nas tetas de uma porca e comiam as suas fezes. As origens desta lenda são desconhecidas como aponta Birgit Wiedl140. Contudo estas representações visuais poderiam ser um reforço do estereótipo negativo do judeu, no qual, este estaria ao nível dos porcos ao

137

RUBIN, Miri. Gentile tales: the narrative of assault on late medieval jews. Op. cit. p.83 HSIA, Po-Chia R. Op. cit. p.54 139 Tradução nossa. 140 WIEDEL, BIRGIT. Laughing at the Beast: The Judensau: Anti-Jewish propaganda and humor from the Middle Ages to the Early Modern Period In: CLASSEN, Albrecht; SANDIDGE, Marilyn. (Orgs.) Laughter in the Middle Ages and the Early Modern Times New York/Berlin: Hubert & Co. GmbH, 2010. p.326 138

40 beber o seu leite e comer seus excrementos141. David Areford defende que a difusão das xilogravuras referentes a esse tema tinha como função causar o repúdio cristão e desta forma aumentar a fobia contra os judeus a partir de uma desumanização destes últimos142. Além desta comparação conferir uma bestialização ao grupo em questão, também se caracteriza como uma ofensa aos seus costumes e suas crenças já que os judeus não comem carne de porco por uma interdição presente em Levítico 11,7.

Figura 10. Judensau c.1230. Brandenburg an der Havel, Capitel de coluna da Catedral Brandenburg,

Figura 11. Judensau. ca. 1472. Munique, Kupferstichkabinet. 141

Ver: SHACHAR, Isaiah. The judensau: A Medieval Motif and its History. London: Warburg Institute: Institute of London, 1974. 142 AREFORD, David. The viewer and the printed image in late medieval Europe. Op. cit. p.189

41 A amamentação dos judeus pela porca pode sugerir um vínculo de maternidade entre o animal e este grupo143 sendo mais um reforço da alteridade entre esta minoria e os cristãos. Nesta gravura (figura 11) estão presentes nove judeus adultos, identificáveis graças aos chapéus que portam144, oito destes interagem com a porca de formas distintas. O primeiro homem, no canto debaixo, à esquerda, olha para a porca enquanto coloca a mão em sua boca. Ao lado direito, ainda na base da figura, há quatro judeus sentados sendo amamentados. O personagem em pé, no extremo lado direito da figura, aponta para as fezes da porca e a sua língua posicionada ao exterior demonstra uma certa eminencia para a deglutição dos excrementos. Há dois judeus montados em cima da fera, um está deitado de bruços enquanto o outro segura e coloca, a ponta do rabo do animal, em sua boca. Michel Pastoureau denomina um olhar ambivalente ao porco no Ocidente Medieval, apesar do animal ser diretamente ligado às impurezas; este era também útil por fornecer alimento e possuir outras utilidades para os homens145. Contudo, a visão negativa em relação a este animal prevaleceu neste periodo. A passagem bíblica, presente em três dos quatro evangelhos, que narra como Jesus Cristo teria tirado os demônios do corpo de homem e os transferidos para um porco, seria a grande responsável para a associação desse animal aos atributos do Diabo146. Desta forma, a iconografia medieval, a partir do século XIII, teria sugerido progressivamente a relação entre o judeu e o porco147, no qual, o tema judensau seria um exemplo desta analogia. As xilogravuras, de um modo geral, difundiram-se na Europa Ocidental ao longo do século XV, a simplicidade da técnica para a realização dos moldes de madeira possibilitou uma reprodução em média escala de imagens de santos, de Jesus Cristo e da Virgem Maria. Como se apontou no segundo tópico, as xilogravuras poderiam ser multiplicadoras do sagrado. Por estarem associadas a outras imagens, inclusive de diferentes suportes, as gravuras poderiam multiplicar o poder de uma imagem, conferir sua originalidade e motivar peregrinações até o local onde o original se encontrava. Vale lembrar que as gravuras também possuíam valor devocional independente de outros objetos, esta técnica de reprodução tornou possível uma acentuação da devoção privada com o uso de imagens para as classes menos favorecidas, uma vez que este suporte era relativamente barato graças a uma técnica simples e rudimentar.

143

WIEDEL, BIRGIT. Op. cit. p.344 Ibidem. 145 PASTOUREAU, Michel. Bestiaires du Moyen Âge Paris : Éditions du Seuil, 2011. p.119 146 Ibidem p.121 147 Ibidem p.122 144

42 Não só pelas suas funções devocionais, mas também no seu papel de difusora do antijudaísmo, as xilogravuras obtiveram importância. Como visto nesse último tópico as gravuras possibilitaram difusões das acusações de crimes supostamente cometidos pelos judeus como o caso da profanação da hóstia na cidade de Passau (1477). Esta técnica de reprodução também permitiu o reforço de alguns dos estereótipos dos judeus como pode-se observar na gravura referente ao judensau, na qual, judeus são representados interagindo de diferentes modos com uma porca. A fácil mobilidade destas ilustrações impressas em papel permitia uma difusão mais rápida de informação e os horrores que eram atribuídos aos judeus passaram a se difundir de forma mais eficiente a partir destas gravuras. A Crônica de Nuremberg, um incunábulo ilustrado famoso pela sua quantidade de ilustrações, também é um exemplo de como o antijudaísmo teria se difundido por meio das gravuras. Este livro escrito pelo doutor humanista Hartmann Schedel pretendia ser uma compilação de a toda História da humanidade desde da Criação do Mundo por Deus até o ano em que ele foi impresso, a saber: 1493. Atribuição de más ações realizadas pelos judeus estão presentes majoritariamente na parte referente à Sexta Era que haveria começado após o Nascimento de Jesus. Dentre estas acusações atribuídas aos judeus, já citadas ao longo destes dois capítulos, estão presentes, na Crônica de Nuremberg, os casos de crimes rituais ocorridos em Norwich (1144) e em Trento (1475) assim como o caso de profanação da hóstia ocorrido na cidade de Sternberg (1492). Estas narrativas contra os judeus vieram acompanhadas de xilogravuras. Estes temas específicos dessa crônica serão analisados no próximo capítulo.

43 3. A CRÔNICA DE NUREMBERG E O ANTIJUDAÍSMO NO FINAL DO SÉCULO XV

Neste último capítulo analisaremos o incunábulo ilustrado intitulado A Crônica de Nuremberg. Este imponente livro foi impresso em 1493 na cidade de Nuremberg. Um exemplar da versão em alemão, presente no setor de obras raras da Biblioteca Nacional, foi utilizado para a posterior análise das três xilogravuras que fazem referências ao crescente antijudaísmo no final do século XV. Este livro em questão pertenceu a Cristiano Benedicto Ottoni e foi doado no início do século XX148. Há três outros exemplares em latim da Crônica de Nuremberg, dois pertenceram à Real Biblioteca Portuguesa e um também foi um ex libris da família Benedicto Ottoni149, contudo, devo lembrar, que a análise neste capítulo limitar-se-á à versão escrita em alemão. Busca-se, ao longo destes dois tópicos seguintes, demonstrar as especificidades da Crônica de Nuremberg frente aos livros do mesmo gênero conhecidos como “crônicas universais”. Assim como exemplificar alguns dos temas das 1809 ilustrações presentes neste grande incunábulo ilustrado. Por fim, analisaremos as xilogravuras referentes às lendas de crime ritual, libelo de sangue e profanação da hóstia, nesta análise apontarei como os estereótipos dos judeus eram reforçados por meio das ilustrações e dos trechos presentes nos fólios CCI versus, CCLIV versus e CCLVII versus respectivamente.

3.1 A CRÔNICA DE NUREMBERG E AS SUAS XILOGRAVURAS.

A Crônica de Nuremberg - tradução do português vinda do título em inglês Nuremberg Chronicle, Liber Chronicarum em latim ou Weltchronik em alemão - se destaca frente aos incunábulos do final do século XV. Este livro foi impresso em duas versões: uma em latim e outra em alemão; ambas editadas no mesmo ano com apenas alguns meses de diferença. Neste capítulo, a análise se limitará ao exemplar na versão alemã. A Crônica de Nuremberg possui 288 fólios e 1809 ilustrações vindas de 645 blocos de madeira150. Esse imponente incunábulo ilustrado foi resultado de um trabalho em grupo de importantes humanistas de Nuremberg como

148

Referência do exemplar em alemão na base da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: Z1,5,2 As referências dos exemplares oriundos da Real Biblioteca Portuguesa são respectivamente: Z1,03,06 e I,4,4. Este segundo exemplar, diferente dos demais encontra-se no setor de iconografia da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A localização do ex libris em latim da família Benedicto Ottoni é: Z1,03,07. 150 FÜSSEL, Stephan. The book of chronicles. Colônia: Taschen, 2013. p.8 149

44 Hartmann Schedel, dos financiadores Sebolt Schreyer e Sebastian Kammermeister, do impressor Anton Koberger e dos gravadores Micheal Wolgemut e Wilhem Pleydenwurff151. Schedel, assim como outros membros das classes abastadas de Nuremberg, seguiu uma importante trajetória nos estudos acadêmicos. Quando tinha apenas dezesseis anos, passou a frequentar a universidade de Leipzig, onde estudou até 1460 e ao sair obteve o grau de bacharel e mestre em Artes Liberais152. Logo depois, ao decidir estudar medicina, viajou para à península itálica e na universidade de Pádua onde obteve o seu título de doutor em 1466. Para além dos seus estudos, esse humanista, como aponta Beatrice Hérnad, possuía uma grande biblioteca pessoal com um acervo composto por livros manuscritos, impressos e xilogravuras impressas em folha única. Schedel viveu no período de transição das encadernações manuscritas para as impressas. Como aponta Zahn, nos anos de estudo de Schedel, durante a década de 1460, a imprensa de tipo móvel não havia atingindo grandes áreas do Sacro Império Romano Germânico e ainda menor havia sido seu alcance ao sul dos Alpes. Por esta razão, enquanto ainda era estudante, Schedel recorria aos livros manuscritos. A partir de 1470, os incunábulos passaram a fazer parte de sua coleção pessoal, após ter retornado da sua estádia na Itália para a Baviera. Na sua cidade natal, a compra de encadernações impressas era mais fácil se comparada a Pádua, haja vista que se localizava em Nuremberg uma importante oficina de impressão coordenada pelo impressor Anton Koberger. Na biblioteca de Hartmann Schedel encontravam-se textos sobre Medicina, Filosofia, Geografia, obras da Antiguidade clássica como as de Cicero, Virgílio, Horácio e da Alta Idade Média como as de São Jerônimo e de Santo Agostinho153. A sua coleção foi importante, como aponta Adrian Wilson, para a compilação de fontes que resultou na escrita da Crônica de Nuremberg154. Por ter o maior acervo da cidade, sua biblioteca foi primordial para os estudos do ciclo humanista local, todos os membros deste grupo tinham acesso aos livros de seu acervo. Entre estes intelectuais que frequentavam sua casa, um exemplo foi Conrad Celtis, um importante poeta e humanista155. Nuremberg, neste período final do século XV, foi um importante centro comercial e cultural. Esta cidade imperial contribuiu para a difusão de livros impressos não só pelas regiões adjacentes, mas também para os reinos: francês, português e o de Castela156. A oficina de 151

WILSON, Adrian. The making of the Nuremberg chronicle. Amsterdam: Nico Israel, 1976 RÜCKER, Elisabeth. Hartmann Schedels Weltchronik. München, Prestel-Verlag, 1988. p.20 153 ZAHN, Peter. Introduction. In: WILSON, Adrian. Op. cit. p.25 154 Ibidem p.28 155 FÜSSEL, Stephan. Die Welt im Buch: buchkünstlerischer und humanistischer Kontext der Schedelschen Weltchronik von 1493. Mainz: Gutenberg-Gesellschaft, 1996. p.23 156 WILSON, Adrian. Op. cit. p.177 152

45 impressão mais importante desta região foi a coordenada por Anton Koberger. Este impressor, além de organizar a impressão da Crônica de Nuremberg (1493), foi responsável pela edição da Legenda Aurea em 1488 e do Schatzbehalter um livro devocional ilustrado feito em 1491. A difusão de livros vinda de sua oficina, como aponta Peter Parshall, foi essencial não só para os intelectuais da cidade, mas também para outros homens do saber de várias regiões do Sacro Império Romano Germânico157. Em conjunto com a casa de impressão, havia o atelier dos mestres Michael Wolgemut e Hans Plydenwurff. Estes gravadores eram os responsáveis pelas ilustrações dos livros impressos por Koberger158. A realização da Crônica de Nuremberg contou com a ajuda de ambos e, como aponta Peter Parshall, a confecção dos 645 moldes das xilogravuras foi a parte, a qual, trouxe mais gastos para a manufatura desse livro159. Este grande incunábulo ilustrado narra a História da humanidade e a divide em sete Eras160. A Primeira Era se configura de Gênesis até o Dilúvio, a segunda até o Nascimento de Abraão, a terceira até o reinado de Davi, a quarta até o cativeiro dos judeus na Babilônia, a quinta até o Nascimento de Jesus, a sexta até o Apocalipse, a sétima até o Juízo Final. Esta divisão era comum para um gênero de livros conhecidos como “crônicas universais” presentes no Ocidente desde da Alta Idade Média161. O conceito cristão de “crônica universal” foi formulado pelo bispo Eusébio de Cesareia, o biografo do imperador Constantino. Em seu livro, Chronicarum Canones, há uma listagem de datas desde os assírios, hebreus, egípcios, gregos e romanos até o ano de 325. Este texto foi traduzido para o latim por São Jerônimo e deste então esta cronologia, proposta por Cesareia e baseada em fatos considerados como anteriores ao Nascimento de Jesus, tornou-se parte da narrativa referente à Quinta Era destas crônicas durante o período medieval162. Desde a época de Agostinho de Hipona, acreditava-se que cinco Eras já haviam se passado e a humanidade encontrava-se, desde o nascimento de Cristo, na sexta Era. Embora A Crônica de Nuremberg siga uma linha cronológica, por vezes, a sua narrativa histórica, tanto a sagrada como a profana, é intercalada por informações sobre cidades, filósofos gregos, santos, imperadores, papas e concílios. A parte referente à sexta Era é a maior do incunábulo e as três xilogravuras que serão analisadas no próximo tópico estão presentes neste trecho. LANDAU David; PARSHALL, Peter. The renaissance print: ca. 1470 – 1550. New Haven : Yale University Press, 1994. p.38 158 Ibidem. p.39 159 Ibidem. p.41 160 ZAHN, Peter. Op. cit. p.19 161 Ibidem. 162 Ibidem. 157

46 A importância e o destaque da Crônica de Nuremberg frente aos outros incunábulos impressos no mesmo período, como defende Peter Parshall, justifica-se pela sua grande quantidade de xilogravuras163. Encontram-se 1809 ilustrações nesse livro, estas gravuras fazem referência a variados temas desde as passagens bíblicas como a Criação do Mundo e a Expulsão de Adão e Eva do paraíso até aos relacionados à História profana como imperadores, arvores genealógicas. Há, também, a presença de dois mapas: um mundial, sem a referência ao continente americano e um outro referente apenas à Europa. Um texto escrito em latim intitulado, Comentadio operis novi cronicarum cñ (sic) ymaginus temporu et Europa Enee pij (Elogio da obra das novas crônicas com imagens das Eras e a Europa de Aeneas Pius) foi publicado em folha única em 1493. Este documento é identificado por Stephan Füssel164 e Adrian Wilson como uma forma de divulgação ao possível público leitor sobre A Crônica de Nuremberg que sairia brevemente em alguns meses. Esta forma de divulgação provavelmente foi escrita por Hartmann Schedel165. Este documento é primordial para trazer-se algumas questões acerca das intenções dos publicadores ao público leitor. A partir do convencimento sobre as singularidades da Crônica de Nuremberg, Schedel demonstra algumas razões, as quais, justificariam a compra desse livro. Esse autor começa:

A grande fortuna das Eras emergiu sobre nós, querido leitor, não importa o que você considere mais importante, a paz universal ou as habilidades desta geração. Mas nada parecido com isto, até agora, havia surgido para aumentar e elevar o prazer dos homens do saber e de todos aqueles, os quais, possuem algum tipo de educação 166.

A crônica, como pontua Schedel, seria destinada não só aos intelectuais mas também para aqueles que sabiam ler e, por ventura, possuíssem algum anseio de aprender sobre os variados temas presentes neste livro. Esse autor ainda salienta, incialmente, como o texto que seria publicado e distribuído dentro de algumas semanas se diferenciava dos outros do mesmo gênero e continua: O novo livro de Crônicas, com suas figuras de homens famosos e de cidades, o qual, foi impresso com as despesas dos ricos cidadãos de Nuremberg. De fato, eu me proponho a

163

LANDAU David; PARSHALL, Peter. Op. cit. p.40 FÜSSEL, Stephan. Op. cit. p.9 165 WILSON, Adrian. Op. cit. p.177 166 Tradução nossa do trecho: “The great fortune of the ages has dawned upon us, dear reader, whichever you consider more important, the universal peace of the world or the accomplishments of this generation. But nothing like this hinterto appeared to increase and heighten the delight of men of learning and of everyone who has any education at all.” Apud: WILSON, Adrian Op. Cit. p.209 164

47 prometer para você, leitor, um enorme deleite em lê-lo e assim você vai pensar não estar lendo um livro de contos, mas olhando para eles com os seus próprios olhos. Você irá ver lá não só retratos de imperadores, papas, filósofos, poetas e outros homens famosos, cada um, apresentado propriamente de acordo com as vestes de suas épocas, mas também vistas das mais famosas cidades e lugares pela Europa, e como cada um floresceu, prosperou e continuou. Quando você olhar para todas essas histórias, fatos, e dizeres sábios você vai pensar que estão todos vivos. Adeus, e não deixe que este livro escape de suas mãos 167.

Este segundo trecho é importante para pensar uma possível função, das inúmeras xilogravuras, sugerida pelos próprios responsáveis pela edição do livro em questão. O leitor não só leria várias páginas em sequência sobre a História da humanidade, como também as veria. Desta forma pensaria que todos estes fatos e homens ilustres tomariam vida diante de seus olhos. É inegável um certo exagero feito por Hartmann Schedel para o convencimento do leitor para a compra da Crônica de Nuremberg. Talvez seja possível afirmar que as inúmeras xilogravuras não tornariam a história presente de forma literal ao leitor e sim que as inúmeras ilustrações presentes nesse incunábulo poderiam estimular a imaginação do observador. A medida que este último lesse sobre os fatos históricos, os quais, a crônica faz referência, poderia presencia-los com os próprios olhos a partir de um exercício imaginativo. Esta imaginação seria estimulada tanto pelos detalhes das grandes gravuras referentes às cenas bíblicas, às vistas de cidades como também pelos inúmeros retratos de imperadores, santos, papas e filósofos que se encontram nessa obra. Desta forma, os mais vários assuntos são acompanhados por xilogravuras de diferentes tamanhos: as pequenas que se localizam apenas em uma parte da página, as médias que ocupam um terço ou a metade do folio e as grandes que tomam o espaço de uma folha inteira ou duas. A Crônica de Nuremberg, como podemos observar no primeiro trecho do documento citado na página anterior, pretendia como outras crônicas do mesmo gênero, ser uma compilação de trechos bíblicos, de considerações filosóficas, de arvores genealógicas das famílias imperiais e do conhecimento acumulado de forma geral pelos intelectuais. No entanto, seriam suas xilogravuras a razão da sua singularidade. Há de se ressaltar a importância dada aos mapas e à menção das cidades europeias consideradas relevantes por Schedel. Muitos destes pontos Tradução nossa do trecho: “The new book of chronicles with its pictures of famous man and cities which has just been printed at the expense of rich citizens of Nuremberg. Indeed, I venture to promise you, reader, so great delight in reading it that you will think you are not reading a series of stories, but looking at them with your own eyes. For you will see there not only portraits of emperors, popes, philosophers, poets, and other famous men each shown in the proper dress of his time, but also views of the most famous cities and places throughout Europe, as each one rose, prospered, and continued. When you look upon all these histories, deeds, and wise sayings you will think them all alive. Farewell, and do not let this book slip through your hands.” Apud: WILSON, Adrian Op. Cit. p.209 167

48 urbanos citados nessa crônica mereciam além de um trecho descritivo, uma xilogravura para representa-los visualmente para o leitor.

Figura 12. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. A vista da cidade de Nuremberg A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f. 99v. – 100r. Dentro das trinta e duas vistas de cidades, baseadas em alguns parâmetros geográficos reais168, presentes na Crônica de Nuremberg; a que se destaca não só pelos seus detalhes, mas também no seu tamanho é a referente à própria Nuremberg. Na figura 12, encontra-se uma das maiores xilogravuras desse livro, localizada nos fólios XCIX versus e C recto. A vista panorâmica da cidade é sugerida a partir de uma certa distância e de uma altura elevada, como se fosse vista de um monte. As muralhas definem a divisão entre o espaço urbano e o rural, ao centro do topo dessa ilustração nota-se as construções mais importantes da cidade como o Kaiserburg169 (Castelo Imperial) e mais abaixo, à esquerda, estão presentes as igrejas mais conhecidas de Nuremberg, indicadas pelos nomes dos santos, a mais à esquerda é dedicada a São Lourenço e a mais à direita a São Sebaldo (padroeiro local). A presença de várias torres e o tamanho maior destinado à xilogravura referente a Nuremberg, como aponta Kathleen Biddick, em conjunto com o texto que elogia o próspero comercio da região e as belas construções presentes nesta cidade imperial, poderiam se configurar como uma forma de criar uma imagem ideal de Nuremberg tanto para os seus

168

As 32 vistas de cidades autênticas, apontadas por Stephan Füssel, são: Ausburg, Bamberg, Basle, Breslau, Budapeste, Colônia, Constância, Constantinopla, Cracóvia, Eichstätt, Ensisheim, Erfurt, Florença, Genova, Heraklion, Jerusalem, Lübeck, Magdeburg, Munique, Neisse, Nuremberg, Passau, Praga, Regensburg, Rhodes, Roma, Salzburg, Strasburg, Ulm, Veneza, Viena e Würzburg. Ver: FÜSSEL, Stephan. Op. Cit. p.30 169 KREUER, Werner. Imago civitatis: Stadtbildsprache des Spätmittlelalters Kleve: Üniversität GH Essen Gesamtherstellung Boss-Druck, 1993. p.126

49 habitantes como também para pessoas de outras regiões170. A partir desta proposição desta historiadora, pode-se sugerir como as descrições de outros centros urbanos presentes ao longo do livro seriam uma outra forma de exaltar a cidade na qual a crônica em questão foi impressa. Para além das vistas de cidades, há também nesse grande incunábulo ilustrado, xilogravuras referentes aos temas cristãos desde a Criação do mundo até o Apocalipse e o Juízo Final. Na figura 13 encontra-se a cena da Queda de Adão e Eva, presente no trecho referente à primeira Era, no folio VII recto. Nesta cena, de modo semelhante à figura 4 analisada no capítulo II, o casal é representado à direita comendo o fruto proibido e a cobra encontra-se ao entorno da árvore.

Figura 13. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. A Queda de Adão e Eva. A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f. 7r. Logo ao canto esquerdo da cena, Adão e Eva são expulsos do paraíso por um dos querubins responsáveis por guardar a árvore da vida. Este último aparece na gravura com uma espada na mão. A posição do corpo do anjo sugere uma certa iminência de ataque, caso o casal

170

Ver: BIDDICK, Kathleen. Becoming collection: the spatial afterlife of medieval universal histories. In: Medieval practices of space. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000.

50 se aproxime em direção ao Jardim do Éden. Neste lado esquerdo da cena, Adão encontra-se virado de frente olhando para o Anjo e Eva está virada de costas enquanto também o observa. Além das passagens do Antigo Testamento, a Crônica de Nuremberg também dedica uma xilogravura de grande porte para o momento do Juízo Final que encerra a parte referente à Sétima Era que se inicia com o Apocalipse. A figura 14, faz referência à cena do Juízo Final e se localiza no folio CCLXII recto. Este momento que ainda estaria por vir é posto como o último acontecimento da História mundial pela crônica. Nesta cena, referente ao vigésimo capítulo do livro Apocalipse, nota-se na parte superior do centro da gravura a presença de Cristo. Da sua cabeça saem simultaneamente um lírio e uma espada. Ao seu lado esquerdo, encontra-se a Virgem Maria e ao canto direito está

Figura 14. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. O Juízo Final A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f. 262r.

João Batista. Ambos estão ajoelhados com as mãos em gesto de oração, enquanto olham para Jesus. Abaixo do filho de Deus, encontram-se dois anjos tocando as trombetas. Na base da cena, os mortos se levantam de suas tumbas e parecem ter dois destinos. Ao lado esquerdo, encontra-se um anjo que guia os bem-aventurados para a salvação eterna, nota-se duas pessoas que fazem um gesto de piedade diante de São Pedro. Este apóstolo

51 carrega consigo a chave do Paraíso. A frente do apostolo, uma multidão caminha para o encontro de Deus. Já no canto direito, encontram-se as chamas que conduzem os condenados para a segunda morte. Desse lado da gravura podemos observar as expressões de sofrimento dos que queimam no lago de fogo. Dentre as inúmeras cenas bíblicas e fatos históricos representados visualmente pelas xilogravuras, como destacado nos três exemplos desse tópico, A Crônica de Nuremberg também faz referência, em suas gravuras, ao crescente antijudaísmo do final do século XV. Na parte referente à sexta Era, na qual, encontra-se o maior número de acontecimentos relacionados à História profana, há também três xilogravuras referentes a hostilidade contra os judeus crescente na Europa ocidental. Estas gravuras se localizam nos fólios CCI versus, CCLIV versus, CCLVII versus. Como um grande incunábulo ilustrado pode ter sido um exemplo da difusão do antijudaísmo, somados aos que foram apresentados no capítulo anterior, será o assunto principal da parte seguinte.

3.2 AS XILOGRAVURAS DA CRÔNICA DE NUREMBERG E O ANTIJUDAÍSMO

A Crônica de Nuremberg possuí alguns trechos que fazem referência direta às lendas antijudaícas. São elas: o crime ritual e a profanação da hóstia. Esses trechos condizem com o assassinato de Guilherme de Norwich (1144), Ricardo de Paris (1179) e Simão de Trento (1475). Também são mencionados os casos de profanação da hóstia ocorridos em: Passau (1477), Regensburg (1478), Breslau (1478) e Sternberg (1492); este último é descrito com alguns detalhes e os outros três primeiros são apenas mencionados. Para além do texto escrito, os assassinatos de Guilherme de Norwich e de Simão de Trento são representados por xilogravuras e estas estão presentes nos fólios CCI versus e CCLIV versus respectivamente. Para os casos de profanação da hóstia, há uma gravura que demonstra a posterior punição dos culpados, no caso: a queima pública. Esta ilustração está presente no folio CCLVII versus. Embora se tratem de acontecimentos diferentes e com um espaço temporal entre os mesmos; essas três xilogravuras serão analisadas a partir de uma lógica que as unem: a sugestão de um estereotipo de ameaça dos judeus aos cristãos. Este grupo não seria apenas responsável pela profanação do mais sagrado sacramento, que como vimos anteriormente ganhou cada vez mais importância a partir do IV concílio de Latrão (1215), mas também pela morte de crianças

52 cristãs inocentes por rituais e em benefício das suas crenças. Estas acusações, feitas geralmente no período da Semana Santa, aumentavam um quadro de tensão entre cristãos e judeus e, por conseguinte, sugeriam uma vigilância redobrada desses últimos nesse período. Schedel, como veremos posteriormente, dá ênfase na prerrogativa de uma possível ameaça contra os cristãos que é apresentada pelos judeus. Desta forma, analisar-se-á as três xilogravuras pelos seus aspectos iconológicos e iconográficos, comparando-as com o texto escrito por Schedel. Deve-se ressaltar que não se busca perceber as imagens como mero reflexo do texto, nos três casos nota-se como as gravuras e suas cenas vão além da narração e possuem funções específicas que serão brevemente enunciadas ao longo dos próximos sub-tópicos. De todo modo, busca-se demonstrar como estes três exemplos de gravuras da Crônica de Nuremberg poderiam se constituir como exemplos do reforço do antijudaísmo difundidos pela imprensa de tipo-móvel no final do século XV, assim como exemplificado no último tópico do capítulo II. Se a crônica organizada pelo ciclo humanista de Nuremberg buscava representar a imagem da cidade imperial e difundir o conhecimento para os homens que possuíssem alguma educação, é possível sugerir que este grande incunábulo ilustrado tenha sido responsável por alguma repercussão na difusão do antijudaísmo não só nas regiões adjacentes mas também em outras áreas do continente171. David Areford relaciona a edição desse livro em questão como um dos fatores que teriam motivado a expulsão dos judeus de Nuremberg em 1499, seis anos após a primeira tiragem172.

3.2.1 O MARTÍRIO DE GUILHERME DE NORWICH

Ao contrário do caso do assassinato de Simão de Trento, o suposto crime ritual ocorrido em Norwich não foi tema de diversas gravuras ou até mesmo de afrescos, de esculturas ou de pinturas sobre retábulo de madeira. Todas as imagens que representam Guilherme de Norwich e sobreviveram até os dias atuais, como aponta E. M. Rose, foram feitas entre o século XV e o início do XVI; período, no qual, o culto foi reafirmado nas regiões próximas à Norwich173.

171

A Crônica de Nuremberg obteve um certo sucesso e com a forma de distribuição feita por Anton Koeberger, este livro chegou à diversas regiões da Europa entre elas: o reino português, francês e o da Boêmia Ver: WILSON, Adrian. Op. Cit. p.178 172 AREFORD, David S. The Viewer and the Printed Image in Late Medieval Europe. Surrey: Ashgate Publishing, 2010. p.189. 173 ROSE, E. M. The Murder of William of Norwich: the origins of the blood libel in medieval Europe. New York: Oxford University Press, 2015. p.234

53 Há alguns exemplos de pinturas sobre madeira em diferentes igrejas na Inglaterra; a seguir encontram-se, respectivamente, uma referente ao Martírio de Guilherme e uma outra ao seu posterior triunfo no céu como mártir. Na figura 15, observa-se um exemplo de uma das cenas presentes nos painéis de madeira do coro alto da igreja dedicada à Santa Trindade na pequena cidade inglesa chamada Loddon. Esta imagem pintada sob madeira foi feita aproximadamente no início do século XVI e faz referência ao assassinato do Guilherme de Norwich, já abordado no primeiro capítulo.

Figura 15. O Martírio de Guilherme de

Figura 16. O Triunfo de Guilherme de

Norwich. ca.1500-1510. Loddon, Inglaterra.

Norwich ca.1490. Eye, Inglaterra. Coro alto

Coro alto da Igreja da Santa Trindade.

da Igreja de São Pedro e São Paulo.

A pintura demonstra uma morte precedida de tortura que teria ocorrido na casa de um judeu, assim como narra o livro Vita et passio Sancti Willelmi Martyris Norwicensis escrito pelo monge beneditino Thomas de Monmouth. Nesta cena, há a presença de cinco judeus, os três que se encontram ao lado esquerdo contemplam a tortura do garoto, já um dos dois homens que está no canto direito perfura o corpo da vítima enquanto um deles segura uma jarra em outra mão para coletar o sangue do menino. Já na figura 16, pintura em painel de madeira localizada no coro alto da igreja dedicada a São Pedro e São Paulo na cidade inglesa de Eye na Inglaterra, feita aproximadamente no final do século XV; diferentemente do primeiro exemplo, não demonstra uma cena de assassinato. Nesta imagem, Guilherme segura com sua mão direita uma palma, símbolo diretamente

54 associado aos mártires pelo cristianismo, e com sua outra mão segura a Cruz que faz referência ao seu sacrifício feito pelos judeus. Como apontado anteriormente, o monge Thomas foi o primeiro a associar a morte de Guilherme com a Crucificação de Cristo e desta forma criar uma conexão entre o tempo bíblico e o presente. Esta ligação sugeria os judeus como uma ameaça em potencial que deveria ser mantida sob uma vigilância reforçada no período da Quaresma e principalmente no dia da Pascoa. É interessante observar que nesta segunda figura o martírio só é evocado pela cruz carregada no braço direito, o triunfo de Guilherme no céu como mártir havia se sobreposto ao seu sofrimento na Terra. Por várias razões, é interessante se atentar para o fato de uma imagem do Guilherme de Norwich estar presente no folio CCI versus da Crônica de Nuremberg. Não há casos de imagens deste pequeno mártir conhecidas fora da Inglaterra e a xilogravura presente no livro escrito por Hartmann Schedel parece ser a única que se refere a Guilherme e sobreviveu até o nosso século174. O trecho que descreve o caso de crime ritual de Norwich em 1144 é curto, possui apresenta apenas cinco linhas que se encontram ao extremo canto direito desta página e está ao lado da xilogravura que representava visualmente o Martírio de Guilherme. O texto mencionado na crônica não traz detalhes do acontecimento:

Guilherme, uma criança na Inglaterra, foi naquele tempo, crucificado pelos judeus na sextafeira santa, na cidade de Norwich. Depois começou a ver-se a história dos seus milagres175.

Diferentemente do caso de Simão de Trento (1475) também apresentado na crônica e que será analisado posteriormente, Schedel não menciona a idade de Guilherme, os nomes dos envolvidos no crime e nem o monge Thomas de Monmouth como responsável pela apologia do culto ao garoto. O curto trecho apenas menciona as duas características básicas que identificam o caso como crime ritual que são, os judeus como responsáveis pela morte de um menino cristão e a data específica do calendário litúrgico em que este sacrifício ocorreu: a Semana Santa. A consequência como sempre a esses martírios, como já apontada anteriormente, são os milagres associados ao corpo da vítima.

174

HSIA, Po-Chia R. The myth of ritual murder New Haven: Yale University press, 1988. p.47 Tradução nossa do trecho: „Gwilhelmus ein kind in engelland wardt diser zeit von de juden amb karfreytag in der statt norwico gekreützigt von dem liset man danach ein wunderlichs gesichte.“ SCHEDEL, Hartmann. Liber Chronicarum. Incunábulo. Nuremberg: 1493. Caracteres góticos. Ex-libris: Cristiano Benedito Ottoni. Setor: Obras Raras, FBN. Referência na base: Z1,5,2. Folio CCI versus. 175

55 Na figura 17, há algumas características que vão além do pequeno texto escrito por Schedel. Na cena encontram-se três judeus, o primeiro, localizado no topo da cruz, laça um dos nós que prendem Guilherme. O suposto mártir está presente no centro da gravura. Já o segundo homem, que está ajoelhado, faz o movimento para pregar a mão esquerda do menino. O terceiro judeu faz um buraco na base da cruz por meio de uma ferramenta. Esta cena da crucificação ocorre num campo e de longe, ao fundo, avista-se duas árvores.

Figura 17. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. Guilherme, uma criança. A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f. 201v Esta xilogravura faz referência direta à quinta parte do primeiro capítulo do livro Vita et passio Sancti Willelmi Martyris Norwicensis. Este trecho é intitulado “Como depois de entrar na casa dos judeus ele foi capturado, torturado e morto”176. Há diferenças entre a gravura da Crônica de Nuremberg e a narrativa do monge Thomas de Monmouth. A primeira condiz como Guilherme foi torturado, na casa de um dos judeus e não na floresta, é interessante também notar como Guilherme ao ser nomeado como inocente cordeiro é comprado diretamente, no trecho a seguir, com Jesus Cristo:

Então os judeus receberam o menino docemente, como um inocente cordeiro levado para o abate, e ele desconhecia o que estava sendo preparado para ele, e ele foi mantido lá até o Tradução nossa para o título: How after entering the jews’ house he was captured, mocked and killed. MONMOUTH, Thomas of. The Life and Passion of William of Norwich. Edição traduzida do latim para o inglês por Miri Rubin. London: Penguim Books, 2014. p.16 176

56 amanhecer. E então, após o nascer do sol, o qual condizia com a Páscoa deles naquele ano, depois do fim dos apropriados cantos para aquele dia na sinagoga, os líderes dos judeus se encontram na casa do já mencionado judeu, enquanto o garoto Guilherme estava comendo, não temendo ameaça alguma, de repente eles o puxaram com força, humilharam-no de várias formas miseráveis177.

Guilherme teve sua cabeça raspada durante a tortura, de acordo com Thomas, e então só depois foi posto na cruz para ser finalmente morto, diferentemente da xilogravura, na qual, Guilherme não parece ter sido torturado e ainda, encontra-se com os seus cabelos. É importante ressaltar como este menino sofreu dores semelhantes as de Cristo dentre elas: a coroa de espinhos posta em sua cabeça e a sua sentença para a crucificação:

Mas a crueldade das torturas, não poderia ser satisfeita mesmo por aqueles tormentos e eles acionaram dores ainda piores. De fato, após terem raspado sua cabeça, eles feriram-na com um infinito número de espinhos pontiagudos e fizeram o garoto sangrar miseravelmente pelas suas feridas inflamadas. [...] E então, enquanto os inimigos do nome de Cristo correram juntos ao redor do garoto em grande espirito do mal, havia outros entre eles, os quais, em escórnio à Paixão da Cruz, sentenciaram o menino para a crucificação. Uma vez feito, então eles disseram: “Igual nós condenamos Cristo à mais vergonhosa morte, logo condenamos um cristão, então punimos ambos o Senhor e o seu servo em uma punição de desgraça, aquela, a qual, eles nos reservam, nós vamos infligir a eles”. E então, conspirando a execução de tamanha malícia, eles puxaram para perto a inocente vítima com as suas mãos sangrentas e levantaram-na do chão. Ele foi posto na cruz e então eles competiram entre si mesmos em rivalidade para matar o garoto178.

A narrativa presente no livro do monge beneditino não menciona como Guilherme foi posto na cruz, como podemos perceber no trecho anterior. A tortura feita com os laços da corda, ocorrem anteriormente à Crucificação do garoto e se configuram como a primeira parte do ritual:

Tradução nossa do trecho: “Then the Jews received the boy kindly, like an innocent lamb led to the slaughter, and he was ignorant of what business was being prepared for him, and he was kept until the morrow. And so, following daybreak, which was their Pascha that year, after the appropriate chants of the day were finished in the synagogue, the leaders of the Jews, and while the boy William was eating, fearing no treachery, they suddenly seized him and humiliated him in various wretched ways.’’ MONMOUTH, Thomas of. Op. cit. p.17 178 Tradução nossa do trecho: “But the cruelty of the tortures could not be satisfied even by these torments and they added even worse pains. Indeed, having shaven his head, they wounded it with an infinite number thorn pricks and made him bleed miserably from the inflicted wounds. […] And so, while the enemies of the Christian name ran riot around the boy in such a spirit of evil, there were others among them who, in mockery of the Passion of the Cross, sentenced him to be crucified. Once they did so they said: “Just as we have condemned Christ to a most shameful death, so we condemn a Christian, so that we punish both the Lord and his servant in the punishment of reproach; that which they ascribe to us we will inflict them.” And so, conspiring to execute such execrable malice, they next seized the innocent victim with bloody hands and raised him from the ground. He was put upon the cross and they competed among themselves in rivalry to kill him.” Ibidem. 177

57

Alguns deles seguraram-no por de trás, outros inseriram em sua boca aberta um instrumento de tortura conhecido em inglês como teasel. e fixaram isto com cintas em ambos os lados de sua mandíbula, para o lado de trás do seu pescoço, onde eles ataram um nó muito apertado. Depois eles pegaram a corda pequena, tão espessa como um pequeno dedo, e ataram três nós em lugares marcados, e circularam a inocente cabeça da testa à nuca, no centro de sua testa eles pressionaram um nó, assim como eles fizeram em cada têmpora. Ambos os lados da cabeça estavam atados por trás, de um modo extremamente apertado, e lá um firme nó foi feito. Os fins das cordas estavam atados ao redor de seu pescoço e de seu queixo, e lá, este desconhecido tipo de tortura foi finalizado com o quinto nó 179.

A falta de detalhes na narração de Schedel acerca do caso de crime ritual ocorrido em Norwich e as diferenças entre a xilogravura presente no folio CCI versus da Crônica de Nuremberg e o livro Vita et passio Sancti Willelmi Martyris Norwicensis abre possibilidades para algumas perguntas que ainda não possuem respostas. Como Hartmann Schedel tomou conhecimento do caso de Guilherme de Norwich? E ainda, por que foi dedicado a este suposto martírio uma xilogravura? Como mencionado no tópico anterior deste capítulo, Schedel possuía uma vasta erudição e um grande acervo de livros sobre diversos eventos históricos. Mas como foi feito o descobrimento, por esse intelectual de Nuremberg, sobre este caso de crime ritual ocorrido em 1144 na pequena cidade inglesa ainda é um fato desconhecido. Talvez tenha se dado por outras crônicas universais do mesmo gênero ou por sermões das ordens mendicantes, que como vimos no primeiro capítulo, foi de certa forma responsável pela difusão destas acusações contra os judeus. A seguir, avançaremos na narrativa de Schedel em 331 anos para trazer os detalhes do libelo de sangue mais próximo do tempo da edição da Crônica de Nuremberg, ou seja, o assassinato de Simão de Trento (1475). Este último obteve grandes repercussões no Sacro Império Romano Germânico e na península itálica. Esta rápida difusão deve-se às xilogravuras que representavam o seu martírio. Dentre estas gravuras a que se encontra no folio CCLIV versus obteve alguma repercussão para a ênfase no estereótipo de ameaça atribuído aos judeus nas regiões próximas à cidade de Nuremberg180. Tradução nossa do trecho: “For some of them held him from behind, others inserted into his open mouth a torture instrument known in English as teasel, and fixed it with straps either side of his jaws, to the back of his neck, where they made a very tight knot. Next they took a short rope, about as thick as a little finger, and made three knots in places marked on it, an encircled that innocent head from forehead to back; in the centre of the forehead they pressed a knot, as they did at each temple. Both sides of the head were tied to the back, extremely tightly, and there a firm knot was made. The ends of the rope were tied round the neck and around under the chin, and there this unheard of type of torture was completed in a fifth knot.” MONMOUTH, Thomas of. p.16-17 180 HSIA, Po-Chia R. Op. cit. p.47 179

58 3.2.2 O MARTÍRIO DE SIMÃO DE TRENTO

A descoberta do corpo morto do menino chamado Simão Unferdorben, de apenas dois anos e meio, no subsolo da casa de Samuel de Nuremberg, causou grandes repercussões na cidade de Trento. A morte deste garoto que se encontrava desaparecido, desde a quinta-feira da semana santa, foi rapidamente associada a mais um caso de crime ritual181. Como visto anteriormente, no primeiro capítulo, os sermões dos franciscanos foram importantes para a difusão desta lenda pela península itálica em um contexto de crescente antijudaísmo local, enfatizado pela pregação do frade Bernardino de Siena no início e meio do século XV e do Bernardino da Feltre no final do mesmo século. A repercussão deste assassinato e a sua atribuição aos judeus do local como culpados pela morte de Simão de Trento em 1475 foi rápida. Esta velocidade deve-se a promoção do culto feita pelo bispo local da cidade Johannes Hinderbach e pelo exame do corpo feito pelo médico e físico Giovanni Tibertino. Esta autópsia resultou numa carta escrita pelo próprio doutor, na qual, ele menciona sobre os riscos, os quais, os cristãos estão submetidos graças a essa prática feita pelos judeus nos dias próximos à Páscoa. Para confirmar a santidade atribuída ao corpo que foi exposto no altar da igreja local destinada a São Pedro, a culpa dos judeus pelo ritual e o título de mártir ao menino sacrificado, lançou-se mão do uso de xilogravuras e de livros impressos ilustrados, como Geschichte des zu Trient ermordeten Christenkindes, para promover-se a difusão deste culto. Rapidamente esse caso ocorrido em Trento chegou às cidades ao norte da cordilheira dos Alpes. Entre 1475 e 1477 foi feita, em Nuremberg, uma xilogravura referente ao Martírio de Simão de Trento182. Esta gravura, feita em folha avulsa, sobreviveu como anexo da última página da carta do doutor Tibertino impressa em Nuremberg pelo impressor Freidrich Creussner por volta de 1475183. A figura 18 se configura como exemplo dessa rápida difusão deste crime ritual supostamente feito por Samuel e sua família. Nesta cena, Simão encontra-se no centro da gravura e está sendo torturado por cinco judeus simultaneamente. Eles perfuraram o pequeno corpo, cada um possui um prego na sua mão direita com a exceção de Tobias que é o responsável por amarrar um lenço no pescoço do menino. Estas cinco feridas fazem

181

HSIA, Po-Chia R. Trent 1475: stories of a ritual murder trial. New Haven: Yale University Press, 1992. p.1-3 AREFORD, David S. The Viewer and the Printed Image in Late Medieval Europe. Surrey: Ashgate Publishing, 2010. p.184. 183 Ibidem. 182

59 referências às cinco chagas de Cristo, esta analogia reforça a prerrogativa desse martírio como uma Imitatio Christi (imitação de Cristo)184. A identidade dos judeus nesta gravura é sugerida pelas suas faces e pelos seus nomes escritos acima de suas cabeças185.

Figura 18. O Martírio de Simão de Trento ca.1475-1477. Munique, Biblioteca Estatal da Baviera. Na Crônica de Nuremberg, diferentemente do trecho destinado ao Guilherme de Norwich, a tortura feita ao Simão é descrita em detalhes, os culpados por cada parte do suposto crime são apontados e a idade do garoto, o dia e o mês em que ocorreram o assassinato são mencionados. Por uma imersão de pontos específicos, deste momento da tortura no ápice da descrição desta tortura, sugere-se, como aponta David Areford, uma simulação da cena do martírio por meio da xilogravura e do texto escrito. Embora a gravura e a narrativa possuam seus contextos específicos; ambas parecem sugerir, ao leitor, o ritual, o mais próximo do possível, da forma como esse rito teria ocorrido nesta sinagoga em Trento. Como aponta David Areford, essa xilogravura (figura 18) fazia parte da coleção gráfica do Hartmann Schedel186. Há características semelhantes entre essa gravura e a que está presente no fólio CCLIV da Crônica de Nuremberg (figura 19). São elas: a quantidade de personagens presentes, ou seja, nove judeus, a posição de todos na cena e ainda a mesa que além de possuir

184

AREFORD, David S. Op. cit. p.187 Ibidem. p.186 186 Ibidem. p.185 185

60 um formato similar também está posicionada no centro da figura. Já as diferenças dizem respeito ao fundo, que se encontra em branco na primeira ilustração já, na gravura da crônica, este foi sugerido por uma parede, uma janela e um portal. Além disso nota-se um aprimoramento nos traços que delimitam as formas dos objetos e personagens da figura 19 em relação à 18.

Figura 19. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. O Martírio de Simão de Trento A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f.254v

A descrição do rapto de Simão de Trento, na Crônica de Nuremberg, se inicia ao falar sobre a organização da Pascoa pelos judeus de acordo com seus costumes. Embora já houvesse todos os ingredientes para os pães ázimos, faltava sangue cristão para o seu preparo:

Simão, o garoto abençoado de Trento, foi assassinado pelos Judeus no dia 21 de março A.D. 1475, durante a semana dos santos mártires, e se tornou mártir para Cristo. E então quando

61 todos os judeus residentes nesta cidade queriam celebrar a Páscoa, de acordo com seus costumes, contudo não havia sangue cristão para preparar os pães ázimos187.

Logo após Schedel afirma que o ritual ocorreria na casa de Samuel, o homem que se encontra ao centro da figura 19 e está segurando Simão para a realização da tortura. O texto menciona Tobias como responsável pelo rapto do menino, na porta da casa do pai da criança. Este último judeu também está presente no centro da cena como um dos torturadores de Simão: Eles pegaram a criança, aquela que eles haviam roubado e levaram para casa de Samuel o judeu, desta maneira: no terceiro dia antes da Pascoa, na hora das vésperas, esta criança, na ausência de seus pais, sentou-se na porta de entrada da casa de seu pai. Tobias, o judeu traidor, capturou a criança, a qual apenas tinha trinta meses de idade. Ele conversou com a criança de maneira suave, e logo a carregou para casa de Samuel 188.

Depois chega o ápice dessa narrativa, o momento da tortura, que ocorre durante a noite. Os cinco judeus, presentes no centro da cena, são mencionados como os responsáveis pelo planejamento e pelo derramamento do sangue inocente de Simão de Trento, a saber: Samuel, Tobias, Meyer, Vital, Moises; e Israel que está ao canto esquerdo:

Ao anoitecer Samuel, Tobias, Vital, Moises, Israel e Meyer, antes de ir à sinagoga, ficaram felizes pois derramariam sangue cristão 189.

A detalhada descrição da tortura começa com a retirada das vestes de Simão que se encontram jogadas debaixo da mesa como é demonstrado na base da cena da figura 19. Afim de que ninguém tomasse conhecimento do martírio que ocorreria na sinagoga, amarram um lenço no pescoço do menino, de forma semelhante ao uso da corda no caso de Guilherme, como visto no sub-tópico anterior. A violação do corpo prossegue, na gravura nota-se como um dos judeus, no caso Samuel, estende os braços da criança como uma forma de simulação da Crucificação de Cristo. Por sua vez Meyer, Vital e Tobias perfuram o corpo do garoto com Tradução nossa do trecho: „Symon das sellig kindlein zu Trient ist am xxi. tag des Merzen nach der gepurt Cristi M. cccc. Ixxv. Iar in der heiligen marterwochen in der statt Trient von den juden getödt und ein martrer Cristi worden. Dann als die juden in derselben statt wonende ir ostern nach irem sytten begeen wolten und doch kein cristenlichs plut zu geprauch irs ungeseurten prots hetten do brachten.“ SCHEDEL, Hartmann. Liber Chronicarum. Op. Cit. Folio CCLIV versus. 188 Tradução nossa do trecho: „Sie diss kindlein verstolens in Samuelis eins iuden haws. In solcher gestalt. an dem dritten tag vor ostern vmb versperzeit saße diss kindlein vor seins vaters thür in abwesen seiner eltern do nehnet sich. Thobias ein iüdischer verreter zu disem kindlein das noch nit dreymal zehen monat alt was. dem redet er mit schmaychlenden worten zu vnd trug es pald in das haws Samuelis.“ Ibidem. 189 Tradução nossa do trecho: „Als nw die nacht herfiele do frewten sich Samuel Thobias Vitalis Moyses Israhel vnd Mayer vor der synagog vber vergiessung cristenlichen pluts.“ Ibidem. 187

62 pregos; já Samuel amarra o lenço no pescoço de Simão e segura o menino pelas axilas. Moises realiza o corte da genitália do menino enquanto o Angelo coleta com uma jarra o sangue que jorra do corpo do pequeno beato mártir. Schedel narra este momento da seguinte maneira:

Eles despiram a criança, e colocaram um lenço ao redor do seu pescoço para que não se pudesse ouvi-la chorando; e eles estenderam os seus braços. Primeiramente, eles cortaram as genitais do garoto, e então tiraram um pedaço de sua bochecha direita. Eles pregaram todo o pequeno corpo com pregos pontiagudos, enquanto um segurava as mãos da criança e outro os seus pés. E agora, tendo coletado sombriamente o sangue190.

Após o martírio, a narrativa segue para o momento da comemoração dos judeus, no qual, eles cantam um hino que demonstra uma série de ameaças a todos os cristãos e, por conseguinte reforça, enfaticamente, o estereotipo negativo atribuído ao judeu no final do século XV. Nesta fala comemorativa, supostamente proferida por todos os envolvidos no crime direcionada a Simão de Trento, os judeus associam o ato que acabaram de realizar com a Crucificação de Cristo para então posteriormente ameaçar todos os cristãos existentes no mundo:

Eles começaram a cantar um hino de comemoração, e a falar com a criança por meio de palavras doces e ameaçadoras. “Contemple, você Jesus, que foi crucificado – isso que nossos antepassados fizeram uma vez contigo; e desta forma todos os cristãos, no céu, na terra e no mar serão mutilados191.

O momento final da narrativa do caso desse crime ritual é o desfecho da descoberta do corpo de Simão no córrego que passava no subsolo da casa de Samuel, a captura dos judeus, a morte dos culpados e a confirmação dos milagres atribuídos ao corpo do menino mártir:

Neste momento o inocente pequeno mártir se foi. Os judeus se apressaram para sua ceia, e comeram os pães ázimos feitos com sangue, em escórnio a Cristo, nosso salvador. Eles lançaram o corpo dentro do rio que passava pela sua casa, e celebraram a Páscoa com alegria. Os pais inconsoláveis procuraram a sua criança, e três dias depois, eles a encontraram no rio. Quando isso chegou ao conhecimento de Johannes de Salis, nobre burguês de Brixen, doutor

Tradução nossa do trecho: „Nw entplößeten sie das kindlein vnd legten ime ein faciletlein vmb sein helßlein das man es nit schreyen hören möcht vnd spanneten ime sein ermlein auß. Schnytten ime erstlich sein manlich glidlein ab vnd auß seinem rechten wenglein ein stücklein vnd stachen es allenthalben mit scharpffen spitzigen stacheln heftlein oder nadeln. Einer die hend der ander die füßlein haltende. vnd als sie nw das plut grawsamlich gesammelt hetten.“ SCHEDEL, Hartmann. Liber Chronicarum. Op. Cit. Folio CCLIV versus. 191 Tradução nossa do trecho: „Do huben sie an lobsang zesingen vnd zu dem kindlein mit hönischen bedroewortten zesprechen „Nym hin du gehangner Jhesu also haben dir ettwen vnßer eltern gethan. also sollen alle cristen in hymel. auff erden vnd meer geschend werden.“ Ibidem. 190

63 da lei imperial e mais alto governante, ele ordenou que os judeus fossem procurados e torturados; e eles confessaram como cometeram o ato. Como consequência eles foram extirpados por uma punição merecida. O corpo foi enterrado pela ordem de Johannes Hinderbach, o bispo da cidade, o corpo logo começou a manifestar milagres; e as pessoas de todas as regiões cristãs foram à tumba desta criança santificada; e então a cidade prosperou e cresceu em larga medida. Os burgueses da região ergueram uma bonita igreja para a criança192.

Há algumas diferenças entre esta última parte do trecho escrito por Schedel e o que haveria ocorrido em Trento. Como aponta, David Areford, o corpo de Simão já teria sido levado, logo após a sua descoberta, para a igreja, na qual, o menino havia sido batizado. No altar começaram a se manifestar os milagres atribuídos ao suposto mártir193. Apesar do homem ao extremo canto direito chamado Seligman (o pai do Vital)194 e a mulher Gültlein (a irmã do Engel)195 não estarem mencionados ao longo do texto da Crônica de Nuremberg, ambos foram julgados como culpados pelo assassinato e a tortura de Simão de Trento196. A ênfase nos detalhes da tortura sugeridos pelo texto e pela xilogravura poderia facilitar o exercício de imaginação do leitor da Crônica de Nuremberg de como teria sido o momento do Martírio de Simão de Trento. Contudo é necessário lembrar, assim como aponta Anna Esposito, como Simão já era conhecido como beato em Nuremberg e vários cristãos desta região do norte da Baviera faziam peregrinação até Trento, local onde se encontrava o corpo do menino mártir197. Desta forma é possível considerar esta gravura presente na crônica de Schedel como uma imagem devocional198. Na figura 19 pode-se notar logo acima da cabeça de Simão, a inscrição: Simon mr. Esta abreviação mr, como aponta David Areford, é uma referência direta

Tradução nossa do trecho: „Dieweil verschied das uschuldig mertrerlein, die iuden eyleten zum nachtmal vnd assen von dem plut das vngesewerte zu schmahe Cristo vnßerm hayland vnd wurffen den toten leichnam in ein fließends wasser nahent bey irem haws vnnd hielten ir ostern mit frewden. Die bekümerten eltern suchten ir verlorns kindlein. das funden sie vber drey tag in dem fluss. Als solchs an Johanßen von Salis den edeln burger von Brixien kaiserlicher rechten doctor vnd deßmals öbersten pfleger gelanget do hieß er nach den iuden greiffen vnd sie mit marter anziehen. Also das sie nach ordnung ansagten wie sie dise mißtat beganngen hetten. vnd darauff warden sie mit gepürlicher straff außgetilgt. Als der leichnam auff befelhe Johanßen hinderbachs bischoffs daselbst bestattet wardt do fieng er alßpald an in wunderzaichen zescheinen vnd auß allen cristenlichen gegenten zu dises heilliges kindes grab ein zulawff zewerden. Dauon dann dise statt nicht kleine auffung vnnd zunemung empfunden hat. vnd die burger daselbst haben disem leichnam ein schöne kirchen auffgerichtet.“ SCHEDEL, Hartmann. Liber Chronicarum. Op. Cit. Folio CCLIV versus. 193 AREFORD, David S. Op. cit. p.165 194 HSIA, Po-Chia R. Trent 1475: stories of a ritual murder trial. Op. cit. p.15 195 Ibidem. p.106 196 Ibidem p.26 - 33 197 ESPOSITO, Anna. Il culto del “beato” Simonino e la sua prima difusione in Italia. In: Il principe Vescovo Johannes Hinderbach (1465-1486) fra tardo Medioevo e Umanesimo. Bologna: EDB, 1989. p.431 198 AREFORD, David S. Op. Cit. p.187 192

64 ao seu título de mártir199. Seria possível levar em consideração o conceito proposto por JeanClaude Schmitt de presentificação do sagrado200. A imagem do Martírio de Simão de Trento poderia se configurar como uma forma de tornar presente ao fiel o momento do sacrifício de Simão e desta forma relembrar o sofrimento, o qual, esse pequeno beato haveria enfrentado no momento de sua morte. Além de sua função devocional, Areford enfatiza o reforço do antijudaísmo que as imagens de Simão de Trento trouxeram para Nuremberg e seus arredores201. Várias outras formas de antijudaísmo, como aponta Hsia, ocorriam nessa cidade e um dos exemplos são as peças de carnaval escritas por Hanz Folz e em uma delas relaciona-se os judeus como culpados pelos infanticídios por razões rituais202. Não só são mencionados crimes rituais ao longo da Crônica de Nuremberg, casos de acusação de profanação da hóstia também se constituem como um tema ao longo do texto de Schedel. Logo no folio CCLVII há uma cena da condenação dos judeus à fogueira e esta é referente à acusação ocorrida na cidade de Sternberg em 1492, um ano antes da edição do livro em questão. Esta xilogravura, em conjunto com o texto que narra este acontecimento, será analisada no próximo tópico.

3.2.3 A PROFANAÇÃO DA HÓSTIA E A CONDENAÇÃO DOS JUDEUS À FOGUEIRA

As acusações de profanação da hóstia surgiram no mesmo século da oficialização do dogma da transubstanciação do pão e do vinho que, no decorrer da missa, pelos gestos do sacerdote, tornavam-se respectivamente o corpo e o sangue de Cristo. Como anteriormente abordado no primeiro capítulo, acreditava-se que a hóstia carregava a presença divina e desta forma, tornou-se o principal sacramento para os cristãos. Desta forma, sugeriu-se festas para a sua comemoração como a de Corpus Christi e, também, reforçou-se o papel do clero na sociedade cristã, já que somente os clérigos poderiam praticar o rito, durante a missa, que resultava na transubstanciação.

199

AREFORD, David S. Op. Cit. p.187 SCHMITT, Jean-Claude. Images. In : LE GOFF Jacques ; SCHMITT Jean-Claude. (Orgs.) Dictionnaire raisonné de l’Occident médiéval. Paris : Fayard 1999 p. 501 201 AREFORD, David S. Op. Cit. p.189 202 HSIA, Po-Chia R. The myth of ritual murder Op. cit. p. 62 - 63 200

65 À medida que este sacramento ganhou uma grande importância para os cristãos, procurou-se cada vez mais afastá-lo dos grupos ditos como perigosos que é o caso dos judeus. É interessante notar como as acusações de profanação da hóstia eram feitas no mesmo período do calendário litúrgico que a de crimes rituais, ou seja, na Semana Santa. A Crônica de Nuremberg cita esses supostos casos de profanação no folio CCLVII. O texto é basicamente voltado para o caso ocorrido em Sternberg em 1492. Essas narrativas seguiam um certo padrão e assim eram pouco modificadas em alguns casos. Contudo quatro características eram principais. São elas: o roubo da hóstia feita pelos judeus, a profanação do sacramento, o milagre da queda do sangue e a posterior veneração da hóstia recuperada. A xilogravura presente na mesma página não está relacionada diretamente ao momento da profanação e sim à posterior punição feita contra os judeus pelo sacrilégio cometido contra esse sacramento. Hartmann Schedel menciona, antes de adentrar no caso ocorrido na cidade de Sternberg, como os judeus já foram responsáveis por outras profanações da hóstia em outras regiões da Germânia:

Apesar dos tolos, miseráveis e desconfortáveis judeus, no tempo passado, em várias regiões da Germânia, e em todo lugar, e particularmente em Breslau, Passau, Regensburg, etc. Em posse do mais sagrado sacramento, com escórnio e desprezo o manusearam, e seus delitos permaneceram sem retribuição203.

Schedel começa a narrar, de fato, sobre o caso afirmando que o judeu chamado Eleazer conseguiu uma hóstia por intermédio do padre Pedro. No momento da profanação, este judeu martela o sacramento junto com seus parentes e a hóstia sangra. Logo os judeus se assustam diante da intervenção divina e, por fim, devolvem o sacramento para o mesmo padre:

No ano de 1492 do nascimento de Cristo, no vigésimo segundo dia do mês de outubro, na cidade de Sternberg, então sobre o domínio dos duques do principado de Mecklenburg, Eleazer, um judeu, e seus parentes, através de um padre chamado Pedro, obtiveram o mais sagrado sacramento do Corpo de Cristo, o qual foi trazido para eles em forma de uma larga e uma pequena hóstia. E eles martelaram-na até que esta sangrasse e sua superfície branca se

Tradução nossa do trecho: „Wiewol das öde iamerig vnd trostlose volck die iuden in vergangnen zeiten an vil enden teütscher land vnd andrer gegent. Vnd sunderlich zu Preßlaw Passaw vnnd Regenspurg etc. Mit dem allerheilligsten sacrament vergessenlich schmahlich vnd vnwirdigclich gehandelt haben darumb dann auch an inen solch vbeltaten vngerochen nicht bliben sind yedoch yetzo nehst“ SCHEDEL, Hartmann. Liber Chronicarum. Op. Cit. Folio CCLVII versus 203

66 tornasse cor de sangue. Os judeus se assustaram diante do milagre, retornaram a hóstia para Pedro, o padre204.

O momento da punição vem logo após a devolução da hóstia. Logo quando os duques locais Balthasar e Mangen tomam conhecimento da profanação e exigem a devida punição aos torturadores de Cristo e ameaçadores da fé cristã, no caso, a queima dos culpados:

E quando o ocorrido foi reportado para os dois irmãos, os ilustres duques Balthasar e Mangen, e, então, eles a averiguaram e viram as feridas causadas pelas marteladas, eles ordenaram que os judeus fossem capturados e queimados como os torturados da majestade divina de Cristo e profanadores da nossa fé205.

Figura 20. Michael Wolgemut e Hans Pleydenwurff. A condenação dos judeus à fogueira. A Crônica de Nuremberg, 1493. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, f.257v. Tradução nossa do trecho: „Nach der gepurt Cristi. M.cccc.xcij. iar. am. xxij. tag des monats Octobris in der statt Sternberg vnder der hertzogen von Megkelnburg fürstenthumb gelegen haben Eleazar ein iud vnd sein mituerwandten durch einen briester Petrus genant das allerheilligst sacrament des fronleichnams Cristi in einer größern vnd klainern hostia zu inen gebracht. Vnd dieselben hostien durchstochen also das dz plut alßpald herauß floße vnd ein leineins weiß tuch dauon plutfarb ward. Als nw die iuden ab solchem wunderzaichen erschracken do trugen sie es wider zu dem benanten briester Petro.“ SCHEDEL, Hartmann. Liber Chronicarum. Op. Cit. Folio CCLVII versus. 205 Tradução nossa do trecho: „Vnd als aber die ding an die durchleüchtigen hertzogen Balthazarn vnd Mangen gebrüedere gelangt. Sich der ding erkündigten vnd die narben der wunden vnd stich sahen do hießen sie nach den iuden greiffen vnd dieselben als schmeher der götlichen maiestat cristi vnd vnßers glawbens verprennen.“. Ibidem. 204

67 A punição desses judeus, ou seja, a condenação à fogueira é representada pela figura 20. Contudo não há elementos que possuam identificar com precisão quem foi queimado, só é possível perceber que esta cena se trata de uma queima pública de judeus graças à algumas características dos que sofrem a pena. Há 26 judeus na gravura, só as suas cabeças aparecem no meio do fogo, o homem de costas, o único fora das chamas, ao lado direito da cena leva mais lenha para aumentar o fogo. Os elementos que permitem identificar os judeus são: os seus chapéus206, as feições que confere uma certa uniformidade a este grupo e os seus narizes avantajados207. Alguns demonstram expressões de dor, contudo a maioria demonstra um olhar de indiferença ao que ocorre e duas pessoas, no centro da fogueira, fazem um singelo sorriso, expressão não condizente para este momento de uma pena pública. É interessante notar, como aponta Miri Rubin, a forma como essa última xilogravura presente no folio CCLVII não só representa a punição pública dos judeus pela profanação da hóstia em Sternberg, mas também sugere a retribuição necessária a esses casos de desrespeito ao sacramento. Se, como apontou Hartmann Schedel, nos outros episódios de profanação supostamente não teria ocorrido a devida pena, a cena desta última xilogravura poderia sugerir, então, a medida necessária para toda vez que ocorresse uma afronta deste nível contra à fé cristã208. Desta forma, nos três exemplos citados ao longo destes últimos tópicos, nota-se como algumas acusações de crimes rituais e de profanação da hóstia sugeriam o judeu como praticante de ações hostis e uma perseguição justificada a estes últimos. Embora esses dois infanticídios tenham, de fato, ocorrido, não havia provas para apontar culpados. Por algumas razões e uma delas foi a época do ano, na qual, ocorreram essas mortes, associou-se a culpa aos judeus. Embora, Schedel cite os culpados pelo suposto martírio de Simão de Trento, logo no final do texto, como visto anteriormente, afirma que todos os judeus cantavam um hino de comemoração, no qual, recitavam sobre o planejamento da destruição dos cristãos. Da mesma maneira, no trecho da profanação à hóstia ocorrida em Sternberg, aponta-se um culpado; mas logo Schedel menciona como a totalidade das comunidades hebraicas é um entrave para a efetivação plena da fé cristã, já que os judeus blasfemam contra os dogmas. É justamente por essa uniformização sugerida ao longo destes exemplos da Crônica de Nuremberg que se amplia o medo da repetição desses eventos. Reforça-se os estereótipos

206

LIPTON, Sara. Dark Mirror: the medieval origins of anti-jewish iconography. New York: Metropolitan books, 2014. p.44 - 45 207 Ibidem. p. 104 - 105 208 RUBIN, Miri. Op. cit. p.173

68 dos judeus e uniformiza-se estes últimos como torturadores de Cristo, assassinos de crianças indefesas e profanadores do sacramento mais sagrado. Esta questão da homogeneidade fica evidente na última xilogravura, todos os judeus possuem feições parecidas e aparentemente maléficas209. Desta forma o antijudaísmo prosseguiu nos séculos posteriores causando algumas expulsões pontuais como foi o caso de algumas cidades no Sacro Império Romano Germânico e também de políticas de intolerância e de conversão forçada como ocorreu no reino de Castela a partir de 1492.

209

AREFORD, David S. Op. Cit. p.189

69 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como apontado no primeiro capítulo, à medida em que a sociedade cristã buscava ordenar-se, era necessário, na mesma medida, lutar contra as ameaças exteriores e interiores. Já no século XI, com as duas primeiras Cruzadas (1096 – 1099; 1146 – 1149), minorias foram perseguidas e sujeitas aos atos de violência de cristãos fervorosos. Por meio do Kidush HaShem, o sacrifício coletivo no qual não só ocorria a autoimolação, mas também, tirava-se a vida de entes queridos e inclusive de filhos, os judeus encontraram a forma de não se submeter as conversões forçadas ao cristianismo. Este ato chamava a atenção dos cristãos e poderia ter sido um dos fatores para a acusação dos judeus como assassinos de crianças cristãs posteriormente ao século XII. Já posteriormente no século XIII, com a oficialização do dogma da transubstanciação no IV concílio de Latrão (1215), a hóstia ganhou destaque no momento da missa, já que este pedaço de pão por meio dos gestos sacramentais feitos pelos clérigos recebia a presença divina. Desta forma, à medida que a eucaristia se tornou o sacramento mais importante para os cristãos, como denomina Miri Rubin, passaram a se relatar as histórias de sua profanação e assim sugeriu-se atenção dobrada aos grupos ditos perigosos e descrentes da sacralidade da hóstia. Desta forma, estas acusações contra os judeus e ainda outras, as quais, os apontavam como praticantes da usura, eram proferidas pelos sermões de franciscanos como Bernardino de Siena e Bernardino da Feltre durante o século XV. Desta forma, com a técnica da xilogravura e da imprensa de tipo-móvel, o antijudaísmo foi difundido por mais um meio e relatos como o assassinato de Simão de Trento (1475) e a profanação da hóstia na cidade de Passau obtiveram grandes e rápidas repercussões graças às gravuras avulsas e livros ilustrados que começavam a serem impressos em média escala a partir da década de 1460. Um grande exemplo, como foi demonstrado ao longo do último capítulo, foi o imponente incunábulo impresso em Nuremberg em 1493. Não só as suas xilogravuras, mas também seus textos reforçavam os estereótipos dos judeus e essa uniformização baseavase sobre exemplos de supostos crimes feitos pela comunidade hebraica. A parte contraditória, como apontada anteriormente, era como a narrativa dos últimos dois casos apresentados no último capítulo apontava os culpados, mas logo posteriormente Hartmann Schedel relembrava ao leitor sobre a inequidade dos judeus e como estes últimos se constituiam como um perigo constante a todos os cristãos. Desta forma, pela imprensa reafirmava-se o anijudaísmo contra aos supostos descendentes dos torturadores de Cristo e, além de tudo, aos consumidores em potencial do sangue cristão.

70 REFERÊNCIAS

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