\"A Cruzada depois do fim do Outremer\", Visão História. Dezembro de 2014

July 7, 2017 | Autor: Gonçalo Matos Ramos | Categoria: Mozart, Ottomans, Reconquista, The Battle of Lepanto and the Great Siege of Malta
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Secção da publicação periódica Visão História: Depois das Cruzadas Título do artigo: As Cruzadas depois do fim do Outremer Qualquer texto que aborde um tema com ressonâncias históricas tão profundas como as Cruzadas, deve manter presente que o fenómeno cruzadístico é uma construção ideológica, no sentido em que a sua primeira entidade promotora, o Papado, e mais tarde os reinos cristãos do Ocidente, manejando as sensibilidades da profunda religiosidade medieval, agiram sob o argumento legitimador da recuperação dos Lugares Sagrados do Cristianismo, num movimento que pode ser mais correctamente lido como uma primeira fase de expansão europeia, que transcende os limites do seu continente e se lança, através de processos militares violentos, na conquista e manutenção de espaços controlados por uma civilização muito distinta, mas ela própria internamente muito diferenciada. De resto, as Cruzadas são também uma outra face do grande desenvolvimento económico que a Europa conhece a partir do ano 1000 e que só conhecerá um abrandamento sensível a partir de 1350, no rescaldo da Peste Negra, que viria agravar dificuldades que já se faziam sentir anteriormente. Propomos, portanto, uma leitura do relacionamento entre cristãos e muçulmanos após o fim oficial da época das Cruzadas até ao século XVII, não no contexto de um pretenso choque de civilizações (termo popularizado por Samuel Huntington), mas no de uma inter-relação complexa que influenciou mutuamente os destinos históricos de dois mundos. Nesta sequência, em abril de 1291, com a queda de S. João de Acre às mãos do sultão mameluco (dinastia que governou o Egito entre meados do século XIII e 1517), fechava-se um ciclo iniciado em 1099, com a conquista de Jerusalém, por Godofredo de Bulhões. A historiografia designou este longo intervalo de tempo como o período das Cruzadas, na medida em que se assistiu à criação de uma série de reinos cristãos latinos no Próximo Oriente, em territórios onde se situam hoje a Síria, Israel, Palestina e o Egito, através de sucessivas vagas bélicas contra os vários potentados islâmicos. O fim oficial deste modelo não significou, contudo, que as relações entre ambos os “blocos” tivessem cessado por completo. Na verdade, tantos estes estavam longe de ser homogéneos, como os contactos entre cristãos e muçulmanos foram muito distintos, em função do espaço e do tempo em que nos colocamos. Exploremos alguns desses exemplos. 1. Os reinos ibéricos e o Islão

Para a Península Ibérica, e o caso português em particular, após século e meio de avanços e recuos, a confrontação entre os reinos cristãos do Norte e o sul muçulmano haveria de se suavizar a partir de 1249, com a tomada definitiva do Reino do Algarve, por Afonso III e a Ordem de Santiago, encabeçada pelo Mestre Paio Peres Correia, ficando os seguidores do Islão politicamente circunscritos ao reino de Granada. Os mouros que permaneceram no território recém-integrado no ainda jovem reino português seriam organizados em comunidades, preferencialmente situadas nas periferias das principais cidades, devidamente regulamentadas, mais tarde designadas como “mourarias”. Em todo o caso, em termos de luta armada, até ao século XV, o momento de apaziguamento foi quebrado apenas aquando da batalha do Salado, em 1340, que opôs uma coligação entre o Rei de Castela, Afonso XI, e o Rei de Portugal, Afonso IV, sogro do primeiro, a uma ofensiva da dinastia Merínida de Marrocos, entretanto aliada ao enclave de Granada, ele próprio só desaparecido em 1492, no mesmo ano em que Cristóvão Colombo chega à América. Este movimento ascendente dos Merínidas é o último exemplo de uma história medieval hispânica que, desde o século VIII, com a chegada dos primeiros muçulmanos à Península Ibérica, sempre registou entradas maciças de contingentes magrebinos, de origem árabe ou berbere. 2. O ideal cruzadístico nas origens e desenvolvimento da expansão portuguesa Em contraste com o movimento final da dinastia marroquina em meados do século XIV, 1415 representa tradicionalmente o início da expansão portuguesa, com a conquista de Ceuta, cuja motivação ainda hoje gera intenso debate. Representou, portanto, um movimento descendente dos portugueses na direcção do Magrebe, que marca uma refundação das relações luso-marroquinas. A dinastia de Avis, após a batalha de Aljubarrota (1385), firmara-se no trono de Portugal, não tendo, porém, resolvido definitivamente o diferendo militar com Castela. Conforme nos relata o cronista-oficial Gomes Eanes de Zurara, a lógica de expansão para sul passava pela diversificação da política externa do reino, descentrando-os do vizinho castelhano, “o muro” como é chamado na época. Ainda assim, os textos da época são muito claros na absorção de um espírito neo-cruzadístico que, conjugados com um ideal de cavalaria renovado, legitimariam, aos olhos dos contemporâneos, a armada a Ceuta e serviriam de pretexto também às restantes expedições marroquinas e à própria expansão na costa ocidental africana. Se analisarmos a terminologia da documentação entre a Coroa portuguesa e o Papado, o argumento em ambos os casos

passa sempre pela realização de uma cruzada, destinada à dilatação da fé cristã e ao esmagar dos infiéis. O exemplo mais claro disto mesmo é a armada que Afonso V organizara, em 1457, no sentido de fazer guerra aos Turcos Otomanos, em resposta ao repto cruzadístico do Papa Calisto III, mas que acabaria por ser usada na conquista de Alcácer-Ceguer e no segundo assalto a Tânger (o primeiro dera-se em 1437 e resultara num fracasso), depois de a mobilização ter esfriado após a morte do pontífice. Também a construção do Império Português do Oriente implicou uma dimensão religiosa importante, presente sobretudo no imaginário medieval de um soberano cristão, fabulosamente rico e poderoso, que governava largas extensões territoriais das Índias (região mítica, sem verdadeira correspondência na geografia real): o Prestes João. Aliás, ao chegarem a Calecute, durante a primeira viagem de Vasco da Gama, um degredado cristão-novo que participava na expedição sintetizou bem as motivações dos portugueses ao dizer que “viemos buscar cristão e especiaria”: a constituição da “rota do Cabo” e o fluxo de mercadorias que, desde Malaca e as costas indianas até Lisboa, passando pelos entrepostos africanos, e a intensa actividade missionária de franciscanos e jesuítas nos séculos seguintes, no fundo concretizou as intenções iniciais dos portugueses e tornou-os pioneiros da expansão europeia da Idade Moderna. 3. A Europa face à ameaça turca Fora do âmbito ibérico, a Europa dos séculos XV e XVI encontrou-se a braços com o expansionismo otomano que, desde 1389 com a Batalha do Kosovo, mas sobretudo após 1453, com a conquista de Constantinopla, se consolidaram como uma grande potência. Oriundos das estepes da Ásia Central, os turcos otomanos começam a ganhar algum relevo a partir de meados do século XIII, ainda que só se tivessem constituído como unidade política em meados do século seguinte. No tempo que aqui nos ocupa, o Império Otomano atravessa o período de maior esplendor, tanto em termos de ganhos territoriais, como em termos internos, estabilizado como estava pelos longos reinados de Mehmed II (1451-1481) e de Solimão, o Magnífico (1520-1566). Terá sido a maior ameaça à Europa Católica durante todo o século de Quinhentos, como se comprova pelos diversos afrontamentos bélicos que se registaram com esta potência muçulmana sunita (corrente maioritária no Islão), a que não faltaram naturalmente alianças e embaixadas, num jogo diplomático muito complexo que movimentou e condicionou as hegemonias dos grandes estados da época, como Espanha, França, Inglaterra, o Sacro-Império e Portugal. Os portugueses foram colocados perante dois momentos decisivos na viabilização do projeto ultramarino nacional: o primeiro quando

se intrometeram, habilmente, nas disputas que os comerciantes de Calecute e de outras cidades indianas e do Golfo arábico travaram pelo controlo da circulação das especiarias, que esteve na origem da mudança estratégica da base de operações para Cochim, no qual se manteria até Goa lhe roubar esse título; o segundo momento é a famigerada Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, na qual se defrontaram D. Sebastião e dois reis marroquinos, um dos quais directamente apoiado pelos otomanos que, nunca tendo controlado verdadeiramente o Magrebe, necessitavam de manter segura a “fronteira” com o Egito, que conquistara em 1517 e que lhes dera uma posição estratégica privilegiada no Mediterrâneo Oriental. Por outro lado, é célebre o jogo geopolítico que opôs Carlos V e Solimão, que se acentuou depois da capitulação de grande parte do reino da Hungria: para conter a frente otomana, os Habsburgos reabriram outra na retaguarda destes, aliando-se aos persas safávidas, que disputavam há muito a hegemonia dos seus vizinhos turcos, distinguindo-se deles até por seguirem o Islão xiita; noutra frente, com o fim de dificultar a tarefa de Carlos V nos estados italianos, Francisco I, rei de França, coliga-se com o Império Otomano, que se compromete a apoiar os piratas berberes que assaltavam Argel e Tunes, dois postos importantes dos Habsburgos no Magrebe. Mais tarde, os príncipes eleitores do SacroImpério rejeitaram o pedido de verbas para combater os otomanos, já que, sendo protestantes, os consideravam um contrapeso essencial à maioria católica. Apesar destas reviravoltas na cena internacional, os turcos sofreriam alguns reveses decisivos, como o sejam o Primeiro Cerco de Viena, de 1529, que impediu o seu alastramento à Europa Central; o falhanço da conquista da ilha de Malta, ferozmente defendida pela Ordem de S. João do Hospital, em 1565, escudada numa fortaleza de dimensões colossais que ainda hoje pode ser admirada; na Batalha de Lepanto, em 1571, que lhes destronou as ambições de expansão no Mediterrâneo Ocidental, através de uma pesada derrota imposta por uma coligação entre os Habsburgos, a República da Veneza e os estados papais; finalmente, o golpe de misericórdia nas aspirações expansionistas dá-se com o Segundo Cerco de Viena, já em 1683, que os confina para sempre ao Próximo Oriente e à Anatólia. Desde então, e com o advento do imperialismo no século XIX, as suas possessões não mais deixaram de ser partilhadas e cobiçadas entre as potências ocidentais. Por fim, para medir o impacto da ameaça turca na “opinião pública” da época, basta recorrermos à literatura anti-otomana que floresceu na Europa Ocidental dos séculos XVI-XVIII, com grande incidência na Península Ibérica, na qual podemos

surpreender, uma vez mais, o ideal de Cruzada contra o infiéis e o seu falso profeta “Mafoma”, num sinal claro de heresia que urgia combater a todo o custo. Assiste-se, portanto, à sobrevivência de um modelo cruzadístico que fundava uma oposição ideológica inconciliável com a doutrina católica. De resto, esta literatura servia muito bem os interesses das monarquias europeias, já que incutia no público uma desconfiança instintiva face àquela que foi, na Idade Moderna, uma das maiores ameaças políticas e militares à Europa. No entanto, a partir de 1683, dá-se uma clara mudança nas sensibilidades, que se manifestam na criação de gabinetes de curiosidades, no gosto pelo exotismo e na exploração do “outro”: o mundo otomano tornou-se um mercado compreensivelmente apelativo, tendo reflexo na própria cultura europeia, de que o exemplo mais evidente serão trechos das óperas de Mozart, nos quais se podem ouvir as marchas dos janízaros, corpo de elite do exército otomano, recrutado na vasta população jovem e cristã do Império. Em suma, mesmo depois da época oficial das Cruzadas, nos séculos XII-XIII, as relações entre cristãos e muçulmanos mantiveram-se tensas, no geral, caracterizadas por alianças pontuais, mas onde o ideal da diferença nunca desapareceu, mesmo que não tenha impedido influências mútuas e um interesse pelo “outro lado” que não se esgota, de todo, num julgamento menos positivo. Caracteres com espaços (desde “Título do artigo (…)” até “menos positivo”): 11 897 caracteres.

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