A Cruzada e o Ultramar: Dos trovadores ao conde de Barcelos

June 19, 2017 | Autor: L. Oliveira | Categoria: Crusades, Crusades and the Latin East, Medieval Spain, Portugal, Troubadour Studies
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Carlos de Ayala Martínez es catedrático de Historia Medieval en la Universidad Autónoma de Madrid y coordinador del proyecto de investigación Génesis y desarrollo de la guerra santa cristiana en la Edad Media del occidente peninsular (ss. X-XIV), que ha permitido la elaboración de este libro. Sus líneas principales de investigación giran en torno a órdenes militares, guerra santa y espiritualidad militar, y sobre los problemas de legitimación religiosa del poder político en la alta y plena Edad Media peninsular.

Isabel Cristina Ferreira Fernandes é coordenadora científica do Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago – Município de Palmela e membro do C I D E H U S - U niversidade de Évora. Tem coordenado várias obras colectivas e actas de jornadas científicas e é autora de diversos artigos das especialidades que tocam os seus principais interesses de pesquisa: história, arqueologia e arquitectura do período medieval, nomeadamente das ordens militares.

Esta obra procura contribuir para o diagnóstico e a explicação das bases ideológicas e doutrinais do confronto entre cristãos e muçulmanos, que teve lugar no cenário peninsular, durante a Idade Média. O objectivo foi incidir em temas que continuam muito carentes de análise e de uma revisão actualizada, dentro da nossa realidade peninsular: a visão do “outro”, a construção de imagens do adversário, as justificações propagandísticas, o diálogo e/ou o confronto doutrinário, a construção de relatos míticos legitimadores, a fundamentação canónica do confronto, as suas motivações ideológicas. Do seu desenvolvimento vão depender, em grande medida, modelos teóricos que servirão para justificar o poder das principais formações políticas que se foram sucedendo na península durante esse longo período histórico.

Esta obra quiere contribuir al diagnóstico y explicación de las bases ideológicas y doctrinales de la confrontación entre cristianos y musulmanes que tuvo lugar en el escenario peninsular a lo largo de la Edad Media. El objetivo es el de incidir en temas que siguen muy necesitados de análisis y revisión actualizadora en el marco de nuestra realidad peninsular: la visión del ‘otro’, la construcción de imágenes del adversario, las justificaciones propagandísticas, el diálogo y/o confrontación doctrinal, la construcción de relatos míticos legitimadores, la fundamentación canónica del enfrentamiento, sus motivaciones ideológicas. De su desarrollo van a depender en buena medida modelos teóricos que servirán para justificar el poder de las principales formaciones políticas que se fueron sucediendo en la Península a lo largo de ese dilatado período histórico.

CRISTÃOS CONTRA MUÇULMANOS N A I D A D E M É D I A PE N I N S U L A R CRISTIANOS CONTRA MUSULMANES EN LA EDAD MEDIA PENINSULAR

Edições Colibri Universidad Autónoma de Madrid

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação CRISTÃOS CONTRA MUÇULMANOS NA IDADE MÉDIA PENINSULAR

Cristãos contra muçulmanos na Idade Média peninsular : bases ideológicas e doutrinais de uma confrontação : (séculos X-XIV) = Cristianos contra musulmanes en la Edad Media peninsular : bases ideológicas y doctrinales de una confrontación : (siglos X-XIV) / coord. Carlos de Ayala Martínez, Isabel Cristina F. Fernandes. – 1ª ed. – (Extra-colecção) ISBN 978-989-689-525-9 I – AYALA MARTÍNEZ, Carlos de,. 1957II – FERNANDES, Isabel Cristina F., 1957CDU 94(46)”09/13”(042)

La edición de este libro ha sido parcialmente subvencionada con la financiación del Ministerio de Economía y Competitividad, Secretaría de Estado de Investigación, Subdirección General de Proyectos de Investigación, Referencia: HAR2012-32790.

Título: Cristãos Contra Muçulmanos na Idade Média Peninsular. Bases ideológicas e doutrinais de um confronto (séculos X-XIV) Cristianos Contra Musulmanes en la Edad Media Peninsular. Bases ideológicas y doctrinales de una confrontación (siglos X-XIV) Coordenação: Carlos de Ayala Martínez / Isabel Cristina F. Fernandes Edição: Edições Colibri / Universidade Autónoma de Madrid Editor: Fernando Mão de Ferro Paginação: Abílio Alves Revisão dos textos: I. C. Fernandes; J. F. Duarte Silva Capa: Raquel Ferreira; imagem criada a partir da fotografia do alto-relevo da Igreja Matriz de Santiago do Cacém. Foto A. Chapa – Município de Palmela Depósito legal n.º 398 140/15

Lisboa, Outubro de 2015

A Cruzada e o Ultramar: dos trovadores ao conde de Barcelos Luís Filipe Oliveira Universidade do Algarve / I.E.M.

Entre as mais de quatro centenas de cantigas de escárnio e de maldizer1, há um pequeno núcleo de composições com referências à cruzada, a cruzados e às terras do Ultramar. No essencial, foi há muito identificado por C. Michaëlis de Vasconcelos, numa das glosas marginais aos cancioneiros, que nele não viu, no entanto, um testemunho particular do interesse peninsular pelas cruzadas, nem pelos valores a elas associados2. Na sua perspectiva, essas sátiras não revelavam uma preocupação especial pela história e pela geografia da Terra Santa, sem que nelas houvesse, por outro lado, um apelo às armas, um cântico de batalha, um hino de vitória, ou uma acção de graças3. Para ela, mais não eram, dizia, que uns abjectos poemas de escárnio, frívolos por natureza e dirigidos contra quem, real ou supostamente, tinha ido à Terra Santa4. Não as podendo assim comparar com as canções proven1

O inventário tem variado ao longo dos tempos: das 428 cantigas listadas em 1965 por Rodrigues Lapa passou-se para 431 na 2ª ed. (Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer dos Cancioneiros Medievais Galego Portugueses, ed. de M. Rodrigues Lapa, 2.ª ed., Vigo, 1970), tendo-se depois incluído no conjunto outras 38 (LOPES, Graça Videira, A Sátira nos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, Lisboa, 1994, p. 23-24, 343-372). Para a dificuldade em definir os limites do género, dada a ambiguidade que o caracteriza, e além das considerações de Rodrigues Lapa na introdução de 1965, LANCIANI, GIULIA, e TAVANI, GIUSEPPE, As Cantigas de Escarnio, Vigo, 1995, p. 7-16. Na base de dados Littera do Instituto de Estudos Medievais (http://www.cantigas.fcsh.unl.pt), pode aceder-se à totalidade das cantigas dos trovadores. 2 VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de, «Uma peregrina a Jerusalém e outros cruzados», Glosas Marginais ao Cancioneiro Medieval Português de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, ed. de Yara Frateschi Vieira et al., Coimbra, 2004, p. 219-273. 3 Ibidem, p. 230-231, 243. 4 Ibidem, p. 219. Para a designação do conjunto (ibidem, p. 234, 237) e os desenvolvimentos que suscitou, DOMÍNGUEZ, César «Lírica y cruzadas en el ámbito hispanomedieval. Una lectura de las cantigas Gallego-Portuguesas desde la literatura comparada», in Iberia cantat. Estudios sobre poesía hispánica medieval, ed. de Juan Casas RIGALL e Eva Díaz MARTÍNEZ, Santiago Compostela, 2002, p. 153-186.

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çais de cruzada, designou-as alternativamente como cantigas de Ultramar. Tal como admitia C. Michaëlis de Vasconcelos, aquele núcleo integra uma vintena de composições5. São cinco as que respeitam a cruzados, ou ao acto de tomar a cruz. À excepção de uma delas, a de João Nunes Camanês, que associou a cruzada à hoste de Jaén, e, portanto, a um contexto peninsular6 as restantes vincularam-na sobretudo a Jerusalém7, ou apenas ao Ultramar, como aconteceu com a cruzada da Balteira8. Mesmo sem a presença de cruzados, documentam-se referências à Terra Santa noutras seis cantigas. A maioria respeita a Jerusalém, e, depois, a Acre9, se bem que também se mencione o Santo Sepulcro e a cidade de Belém10, a par de outros locais11. O conjunto completa-se com outras sete sátiras, nas quais se alude a jornadas ao Ultramar12, ou apenas à partida de alguém para terras do além-mar13. Nestes últimos casos, infelizmente, nem sempre é possível determinar uma geografia precisa, por falta de dados objectivos. Algumas dessas viagens tinham, é certo, estatuto penitencial, garantindo perdões e a remissão de pecados, como sugerem duas das cantigas14, mas elas podiam divergir, como se sabe, para vários destinos, não apenas para o Mediterrâneo Oriental. A frequente associação do Ultramar com a Terra Santa, que se observa noutras composições15, parece indicar, no entanto, que era nesta que se pensava quando se evocava uma qualquer viagem para lá do mar. Para estes trovadores, é provável, portanto, que os dois termos fossem sinónimos e que ambos se conjugassem com a cruzada, como já se assinalou. Talvez só a espaços usassem a voz Ultramar para com ela designar outras paragens, em particular nos escárnios mais tardios16. 5

VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de, «Uma peregrina a Jerusalém...», p. 219. Na verdade, são apenas dezoito, como se verificará. 6 Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 68. 7 Ibidem, n.º 230, 313 e 317. 8 Ibidem, n.º 358. 9 Ibidem, n.º 13, 284 e 316 (Jerusalém), 284 e 395 (Acre). 10 Ibidem, n.º 44 (Belém) e 284 (Santo Sepulcro). 11 Ibidem, n.º 44 (Josaphat) e 191 (Jordão). 12 Ibidem, n.º 42, 338, 377, 430. 13 Ibidem, n.º 101, 172 e 324. Na última, a indicação consta da rubrica que a acompanha. 14 Ibidem, n.º 172 e 377. 15 Ibidem, n.º 44, 284, 313, 317 e 395. Para a sinonímia destes termos, VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de, «Uma peregrina a Jerusalém...», p. 230 e nt. 57; VENTURA, Joaquim, «Toponimia nas cantigas de sátira obscena do cancioneiro medieval galegoportugués», in Medioevo y Literatura. Actas del V Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, ed. de Juan Paredes, Granada, 1995, vol. IV, p. 484. 16 Talvez isso só ocorra nas cantigas de Estevão da Guarda e do conde de Barcelos (Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 101 e 324). Para a cronologia destes autores, OLIVEIRA, António Resende de, Depois do Espectáculo Trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV, Lisboa, 1994, p. 329-330,

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Não sendo numerosas, em parte devido à exiguidade do corpus arrolado, estas indicações mostram que os trovadores tinham alguma familiaridade com a geografia ultramarina. Alguns dos topónimos citados eram demasiado vulgares e conhecidos, sendo provável que, como tal, fizessem parte dos recursos culturais dos trovadores, como C. Michaëlis de Vasconcelos já tinha sugerido17. Era o caso de Belém, de Jerusalém e do Santo Sepulcro, embora através deles se evocasse a herança de Cristo e todos fossem relevantes locais de peregrinação. Talvez a eles se devam juntar as referências a dois outros lugares bíblicos, o rio Jordão e o vale de Josaphat, junto a Jerusalém18. Em contrapartida, são bem mais significativas as menções a Acre, que desde a segunda década do século XIII era o principal porto de destino dos cruzados e peregrinos que demandavam a Terra Santa19. A sua inserção, a par de Marselha, mas em posição invertida ‒ Marselha jaz alen / do mar e Acre jaz aquen ‒ numa paródia a um trovador que alegava conhecer bem a terra do Ultramar, é por isso particularmente reveladora do conhecimento que se tinha das escalas habituais para quem viajava do Ocidente para Jerusalém20. O porto de Marselha não era, de resto, o único mencionado. Duas outras cantigas, ambas motivadas pela cruzada de Pêro d’Ambroa, também deixaram registo de Montpellier21, lugar de trânsito comum para os peregrinos peninsulares desde o século XII22. Muito antes da construção do porto de Aigues Mortes, por meados do século XIII23, já Montpellier servia de embarcadoiro para a Terra Santa. Os trovadores não ignoravam, por outro lado, as condicionantes políticas e militares da presença latina no Ultramar. Se conheciam as perturbações 402-405; MARTINS, Miguel Gomes, «Da Esperança a S. Vicente; um percurso em torno de Estêvão da Guarda», in Cadernos do Arquivo Municipal, n.º 3, 1999, p. 10-60. 17 VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de, «Uma peregrina a Jerusalém...», p. 238. 18 Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 44 e 191. Tal como os anteriores, também estes lugares se associavam à memória de Cristo. Foram todos citados por S. Bernardo (DEMURGER, Alain, Vie et mort de l’ordre du Temple: 1120-1314, 2ª ed., Paris, 1989, p. 50) no Elogio da nova Milícia. 19 Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 395. Para a importância de Acre, DEMURGER, Alain, Croisades et Croisés au Moyen Âge, Paris, 2006, p. 76-77, 86-87; JACOBY, David, s. v. «Acre», in Alan MURRAY (ed.), The Crusades. An Encyclopedia, Santa Barbara, 2006, vol. I, p. 9-12. 20 Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 284. Para o papel de Marselha, DEMURGER, Alain, Vie et mort de l’ordre..., p. 216-219; ID., Croisades..., p. 77-80, 85. 21 Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 284 e 191. Há uma terceira referência a Montpellier, mas como centro de estudos (ibidem, n.º 42), apesar de a cantiga aludir a um capelo de Ultramar. 22 PEREIRA, Armando Sousa, Representações da Guerra no Portugal da Reconquista (séculos XI-XIII), Lisboa, 2003, p. 52-53; MATTOSO, José, D. Afonso Henriques, Lisboa, 2006, p. 51, 84-85. 23 DEMURGER, Alain, Croisades..., p. 79-80.

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causadas pelo imperador e pela luta deste contra Roma24, que afectavam a paz da cruzada e podiam pôr em causa o socorro da Terra Santa, estavam igualmente a par das realidades locais e das novidades mais recentes. Tinham notícia, pelo menos, do poder regional do sultão, mesmo se o apresentavam, para efeitos satíricos, como uma autoridade espiritual, capaz de dispensar perdões25. Estavam avisados, de igual modo, do aparecimento dos mongóis no médio oriente, bem como do nome por que os seus líderes militares eram conhecidos26. A consciência destas últimas movimentações revela, aliás, uma atenção particular aos sucessos da Terra Santa, já que os mongóis, ou tártaros, como o Ocidente os designava27, se dominavam o Irão desde inícios do século XIII, só haviam entrado na Ásia Menor e ameaçado a Polónia e a Hungria nos anos quarenta dessa centúria, cerca de uma década antes de assumirem o controlo de Baghdad28. O conhecimento atempado dos sucessos ultramarinos é atestado, de resto, por outras cantigas. Nelas sugere-se, em rigor, que na Península não era difícil obter novas do Oriente, nem fazerem-se tenções sobre a terra de Jerusalém29. Numa sátira à falsa cruzada de Pêro d’Ambroa, alegava Pêro Amigo de Sevilha que, mesmo em Burgos, poderia inteirar-se com exactidão sobre as últimas novidades de Jerusalém, fazendo-se passar, assim, por mais um palmeiro30.

Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 230 («veemo-lo Emperador levantado / contra Roma»), e 284 («d’andar Coira e Galisteu / con torquis do Emperador»). Ainda que estas perturbações nem sempre estejam directamente ligadas à Terra Santa, a paz na Europa era indissociável do socorro de Jerusalém. Entre outros, RILEY-SMITH, Jonathan, Qué fueron las cruzadas?, Barcelona, 2012 (1ª ed., 1977), p. 66-67; HOUSLEY, Norman, The Italian Crusades. The Papal-Angevin Alliance and the Crusades against Christian Lay Powers, 1254-1343, Oxford, 1982, p. 62-70; MASTNAK, Tomaz, Crusading Peace. Christendom, the Muslim World and Western Political Order, Berkeley, 2002. 25 Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 284. 26 Ibidem, n.º 230 («e Tártaros viir») e n.º 316 («Gran Can»). 27 JACKSON, Peter, s. v. «Mongols» in Alan MURRAY (ed.), The Crusades..., vol. III, p. 842. A origem da designação é desconhecida, embora reforce a associação dos mongóis com o inferno (tartarus) da mitologia clássica. Para as primeiras representações dos mongóis no Ocidente, que acentuam os traços infernais, FRANCHINI, Enzo, «Ay, Iherusalem: Nuevas fuentes y fecha de composición», in Revista de poética medieval, n.º 15, 2005, p. 23-32. 28 JACKSON, Peter, s. v. «Mongols», p. 841-847; DEMURGER, Alain, Croisades..., p. 284285. Ainda que os primeiros contactos com os mongóis datem dos anos quarenta (ibidem, p. 257-258), eles tornaram-se mais regulares na década de setenta (SCHEIN, Sylvia, Fideles Crucis. The Papacy, the West, and the Recovery of Holy Land, 1274-1314, Oxford, 1991, p. 43-44, 87-90), quando um embaixador mongol esteve presente no concílio de Lyon e contactou vários monarcas europeus. 29 Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 284, 313 e 316. 30 Ibidem, n.º 313. 24

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Era como uma penitência que os trovadores viam a cruzada e as jornadas ao Ultramar31. Diversas cantigas o testemunham, quer por as dizerem uma forma de expiação dos pecados e de purificação32, quer, sobretudo, por as associarem à obtenção de indulgências33, identificando como peregrinos, palmeiros e romeus34, aqueles que nelas tomavam parte. Por atenção a esse valor penitencial, insistiam com frequência no esforço e no cansaço dos cruzados e peregrinos ‒ come romeu / que ven cansado35‒, na demora das viagens36, ou nos mais variados perigos que delas decorriam37. Não esqueciam, por outro lado, a presença dos combates nos contextos peninsulares e ultramarinos38, posto que nada digam sobre os riscos e as provações da guerra, ou os sacrifícios em batalha. Para eles, as empresas desta natureza equivaliam, por vezes, a um serviço a Deus ‒ como foi a Ultramar / Pero d’Ambrôa Deus servir39‒, podendo ser vistas, de resto, como um exercício capaz de garantir o retorno a uma pureza primitiva. Foi isso que aconteceu na hoste de Jaén, quando um dos cruzados presentes fez voto de nunca mais dizer de mal bem40. A acreditar nas suas palavras, não faltou depois a esse compromisso, mesmo se assim legitimava o escárnio ao jantar de um infanção. Não sendo cantigas de exaltação da cruzada e da peregrinação, nem hinos de apelo à guerra e ao martírio, mas composições satíricas, encontram-se nelas, como se viu, muitos vestígios daqueles ideais. Dada a natureza do género, eles surgiam, por norma, sob o signo da inversão e da paródia. Era esse o caso, por exemplo, daquele romeu que queria servir Deus levando um furto a Jerusalém41, e, sobretudo, daquele mouro cruzado e pelegrin, que pretendia ir à Terra Santa sem ser baptizado e que era visto como um sinal 31

Para a dimensão penitencial da cruzada, RILEY-SMITH, Jonathan, Qué fueron las cruzadas..., p. 89-108; idem, The First Crusade and the ideia of crusading, Londres, 1993, p. 2, 22-30, 82-86, 135 e ss.; DEMURGER, Alain, Croisades..., p. 83-88. 32 O registo pode ser genuíno (Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 68: «jurei antan’en Jaen, / na oste, quando fui cruzado / que nunca diga de mal ben»), ou paródico (ibidem, n.º 377: «foi üa vez daqui a Ultramar / e quanto bon maestre pôd’achar / [...] todo-los foi provar o pecador»). 33 Ibidem, n.º 172 (perdom), 284 (perdon) e 358 (pardon). 34 Ibidem, n.º 230 (peregrino), 313 (palmeiro), 13, 44, 191, 284 e 317 (romeus e romaria). 35 Ibidem, n.º 317. Para a menção ao esforço, ibidem, n.º 377, atrás referida. 36 Ibidem, n.º 191, 284 e 313. 37 Ibidem, n.º 172 e 430. 38 Ibidem, n.º 44 («düa lide que foi en Ultramar») e n.º 68 («en Jaen, / na oste, quando fui cruzado»). Também n.º 172 («come os que na frota van»), com menção à partida de uma armada. 39 Ibidem, n.º 313. Para outra menção, ibidem, n.º 13: «E romeu que Deus assi quer servir / por levar tal furt’a Jelusalem». 40 Ibidem, n.º 68. 41 Ibidem, n.º 13.

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da perversão do mundo e do fim dos tempos42. Ou daqueles outros que se faziam passar por palmeiros sem terem feito a viagem43. O ideal de cruzada e o serviço de Deus não emergiam aí em estado puro, mas apenas de forma negativa, para denunciar todos os falsos cruzados e peregrinos, como já foi sublinhado44. Tal preocupação era genuína e tinha, aliás, algum curso entre os trovadores italianos e provençais45, servindo para censurar aqueles que tomavam a cruz sem fazer a viagem, ou não a faziam nas melhores condições, nem com as intenções mais adequadas. Através da condenação desses comportamentos desviantes, os recursos poéticos dos trovadores eram postos ao serviço daqueles ideais da Cristandade Ocidental. A cronologia destas composições traz outros dados importantes. De acordo com a informação disponível, as mais antigas são de trovadores com actividade a partir de 1220, casos de João Nunes Camanês, de Martim Soares e de Pêro Garcia Burgalês46. Junta-se a eles um segundo grupo de trovadores, activo a partir de 1240 e mais copioso, no qual se incluem Afonso Anes do Coton, Gonçalo Anes do Vinhal, João Soares Coelho, Pêro da Ponte e Pêro Gomes Barroso47. Uns e outros, todos passaram pela corte castelhana, de forma esporádica, ou mais permanente, a partir da década de quarenta, por onde se demoravam diversos jograis galegos, como João Baveca, Pedro Amigo de Sevilha e Pêro de Ambroa48. O universo de trovadores completa-se com Afonso X, com uma das suas composições a datar, ao que parece, dos tempos de infante, anterior, portanto, a 1252: a tenção com o provençal Arnaldo sobre a passagem para o Ultramar através do vento49. Fora deste conjunto, com maior coerência cronológica, ficam 42

Ibidem, n.º 230. Entre outros, Ibidem, n.º 44, 284 e 313. 44 LANCIANI, GIULIA, e TAVANI, GIUSEPPE, As Cantigas de Escarnio..., p. 170-173; DOMÍNGUEZ, César, «Lírica y cruzadas...», p. 159-175. 45 LANCIANI, Giulia, e TAVANI, Giuseppe, As Cantigas de Escarnio..., p. 152-153, 170; DOMÍNGUEZ, César, «Lírica y cruzadas...», p. 163-165, 175; ROUTLEDGE, Michael, «Songs», in Jonathan RILEY-SMITH (ed.), The Oxford History of The Crusades, Oxford, 1999, p. 71, 109. 46 OLIVEIRA, António Resende de, Depois do Espectáculo Trovadoresco..., p. 171-174 e 368-369, 386-388, 414-415 (biografias). Para as cantigas respectivas, Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 68, 284 e 377. 47 OLIVEIRA, António Resende de, Depois do Espectáculo Trovadoresco..., p. 174-177 e 305-306, 353-354, 370-373, 408-409, 416-417 (biografias). Para as cantigas respectivas, Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 42, 44, 172, 230, 395 e 358. 48 OLIVEIRA, António Resende de, Depois do Espectáculo Trovadoresco..., p. 173-174 e 199-203, e 357-358, 405-406, 410-411 (biografias); idem, «Na casa de Afonso X. O Rei, a Corte e os Trovadores (abordagem preliminar)», Revista de História das Ideias, vol. 31, 2010, p. 67-76. Quanto às cantigas respectivas, Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 191, 313, 316 e 317, 338. 49 Ibidem, n.º 430. Para a outra composição de Afonso X, ibidem, 13. A cronologia das 43

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dois trovadores, Estêvão da Guarda e o conde Pedro de Barcelos, cuja produção se estende pela primeira metade do século XIV e ambos responsáveis por cantigas nas quais o além-mar passou a preencher o espaço das anteriores menções ao Ultramar50. A cronologia exacta das composições é mais difícil de indicar, por falta de dados concretos e pelos embaraços para atribuir um sentido e um tempo mais precisos à linguagem dos trovadores. Os escárnios motivados pelas cruzadas da Balteira e de Pêro de Ambroa51, que no conjunto representam mais de um terço das cantigas aqui consideradas, foram há muito situados no contexto criado pelo cerco e conquista de Jaén, entre Agosto de 1245 e Março de 124652. A hipótese era sedutora, por diversas razões. Não só a campanha tivera a presença do herdeiro do trono, o futuro Afonso X, e de alguns dos jograis e trovadores atrás citados, como foi nessa ocasião que se tomou conhecimento da perda de Jerusalém e da organização de uma nova cruzada. O responsável pela notícia foi, ao que parece, Paio Peres Correia, que estivera no concílio que decidira a cruzada, em Lyon, e que seria autorizado a participar nela, em Maio de 1246, para cumprir o contrato que havia firmado com o imperador bizantino53. O projecto de cruzada do mestre de Santiago, que viajaria com cinquenta freires e com os cavaleiros e escudeiros

cantigas de Afonso X foi esclarecida por OLIVEIRA, António Resende de, «D. Afonso X, infante e trovador. II. A produção trovadoresca», in La Parola del Testo. Semestrale di Filologia e Letteratura Europea dalle origini al Rinascimento, vol. 14, n.º 1, 2010, p. 7-19. 50 Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 101 e 324, esta com a indicação na rubrica. Para os dados biográficos respectivos, OLIVEIRA, António Resende de, Depois do Espectáculo Trovadoresco..., p. 329-330, 402-405; MARTINS, Miguel Gomes, «Da Esperança a S. Vicente...», p. 10-60. 51 Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer..., n.º 358 (Balteira), 172, 191, 313, 317, 338 e 395 (Ambroa). 52 ALVAR, Carlos, «La cruzada de Jaén y la poesía gallego-portuguesa», in Actas del I Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval (Santiago de Compostela, 2 al 6 de Diciembre de 1985), ed. de Vicente BELTRÁN, Barcelona, 1988, p. 139-144. Para a biografia de Afonso X enquanto infante, GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel, «Alfonso X, Infante», in Estudios Alfonsíes, Granada, 2009, p. 281-299; OLIVEIRA, António Resende de, «D. Afonso X, infante e trovador. I. Coordenadas de uma ligação à Galiza», in Revista de Literatura Medieval, n.º 22, 2010, p. 257-270. 53 BENITO RUANO, Eloy, «La Orden de Santiago y el Imperio Latino de Constantinopla», in Estudios Santiaguistas, León, 1978, p. 37-50, 54; LOMAX, Derek, La Orden de Santiago (1170-1275), Madrid, 1965, p. 14, 20-21. Para o quadro geral, JOSSERAND, Philippe, Église et Pouvoir dans la Péninsule Ibérique: Les Ordes Militaires dans le royaume de Castille (1252-1369), Madrid, 2004, p. 601-609; AYALA MARTÍNEZ, Carlos de, «La presencia de las Órdenes Militares castellano-leonesas en Oriente: valoración historiográfica», in Isabel Cristina FERNANDES (coord.), As Ordens Militares e as Ordens de Cavalaria entre o Ocidente e o Oriente Actas do V Encontro sobre Ordens Militares (15 a 18 de Fevereiro de 2006), Palmela, 2009, p. 49-72.

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que o quisessem acompanhar, não se concretizaria, mas o entusiasmo provocado por tal empresa foi talvez ocasião para que muitos tomassem a cruz. Como C. Alvar sugeriu a partir de uma indicação de C. Michaëlis de Vasconcelos54, é bem provável que Pêro de Ambroa se tivesse então cruzado no mercado de Jaén (Çoco de Ven) e que alguns outros, como a Balteira, o tivessem imitado. Por estimulante que seja, esta interpretação conjuga-se mal, porém, com o que depois se apurou sobre a cronologia de Pedro Amigo de Sevilha55, responsável por aquela alusão, e com o que é possível saber das cruzadas que a Balteira e Pêro de Ambroa terão de facto realizado56. Ao que tudo indica, o contexto de tais composições não deve ser situado na cruzada decretada pelo concílio de Lyon, em 1245, e realizada três anos mais tarde, mas no quadro das iniciativas posteriormente desenvolvidas. A maior parte das composições deve datar, assim, das décadas centrais do século XIII. O facto merece ser devidamente sublinhado, sobretudo por revelar a época em que os jograis e os trovadores, mas também o público maioritariamente nobre para o qual escreviam57, se apropriaram dos valores da cruzada. A cultura escrita da nobreza abria-se, dessa forma, ao ideal de cruzada, muito depois de ele circular entre os meios monásticos e clericais da península58. A divulgação desse ideal entre aqueles círculos sociais deve situar-se no quadro das campanhas que submeteram as terras andaluzas e alentejanas a partir de 1225, quando os jograis e os trovadores conviveram 54

VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de, «Uma peregrina a Jerusalém...», p. 241; ALVAR, Carlos, «La cruzada de Jaén...», p. 142-143. Ignorando esta sugestão, Joaquim Ventura («Toponimia nas cantigas...», p. 484;) associou Çoco de Ven ao Zocodover, o mercado de Toledo, embora Carolina de Vasconcelos já tivesse afastado a hipótese, por estar exigida uma rima em «én». 55 Segundo António Resende de Oliveira (Depois do Espectáculo Trovadoresco..., p. 405-406) a sua actividade literária decorre entre 1257 e 1275. 56 SOUTO CABO, José António, «Pedro Garcia de Ambroa e Pedro de Ambroa», in Revista de Literatura Medieval, n.º 18, 2006, p. 225-248, sobretudo as p. 233-237; VENTURA RUIZ, Joaquim, «A trindade de Pedro Garcia de Ambroa», in Revista de Cancioneros Impresos y Manuscritos, n.º 3, 2014, p. 181-231; idem, «A verdadeira cruzada de María Pérez “Balteira”», in Actas do XV Congreso Internacional de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval (San Millán de la Cogolla, 8-14 septiembre de 2013), no prelo 57 OLIVEIRA, António Resende de, Depois do Espectáculo Trovadoresco..., p. 172-173, 181-185; ID. s. v. «Cortes Senhorais», in LANCIANI, G. e TAVANI, G. (coord.) Dicionário de Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, 1993; também SOUTO CABO, José António, Os Cavaleiros que fizeram as Cantigas. Aproximação às origens socioculturais da lírica galego-portuguesa, Niterói, 2012. Para a recepção do ideal de cruzada pelos trovadores, DOMÍNGUEZ, César, «Lírica y cruzadas...», p. 154-156. 58 KRUS, Luís, «A construção do passado na fronteira ocidental da Hispânia cristã, séculos XI e XII» (1999), in A Construção do Passado Medieval. Textos inéditos e publicados, Lisboa, 2011, p. 259-270; PEREIRA, Armando Sousa, Representações da Guerra..., p. 55-92.

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de perto com os cavaleiros das mesnadas senhoriais, das hostes dos monarcas e das ordens militares59. Mais votados à guerra feita em nome de Deus, os freires das ordens devem ter contribuído para difundir, entre eles, o estatuto penitencial dos combates contra o Islão peninsular, e para neles despertar, também, uma atenção acrescida pelos negócios da Terra Santa 60. Como se calcula, a sugestão não é totalmente segura, mas foi por essa mesma época que surgiram, pelo menos, as primeiras menções aos cavaleiros das ordens militares nas cantigas dos trovadores61. De maneira particularmente significativa, estavam estes de igual modo preocupados com a denúncia dos falsos freires, daqueles que não respeitavam os seus votos e que traíam o ideal de vida religiosa da milícia em que tinham professado. Como seria de esperar, este ambiente provocou um maior interesse pelos feitos da cruzada e pelas terras do Ultramar. Disso dão boa conta, para Castela, os diversos projectos africanos de Afonso X, que contavam com o apoio de Roma e que suscitaram o interesse de outras potências ocidentais62. Apesar de ter feito voto de cruzado nas cortes de Toledo, em 1254, como já 59

Pela concentração de meios e de combatentes, entre os quais de encontravam vários cavaleiros e trovadores portugueses, Castela deve ter sido o principal foco dessas trocas (OLIVEIRA, António Resende de, Depois do Espectáculo Trovadoresco..., p. 173-174; PIZARRO, José Augusto, «De e para Portugal. A circulação de nobres na Hispânia Medieval (séculos XII a XV)», in Anuario de Estudios Medievales, vol. 40, n.º 2, 2010, p. 902-903, 910-912), se bem que o fenómeno se observasse, a outra escala (PEREIRA, Armando Sousa, «O Infante D. Fernando de Portugal, senhor de Serpa (1218-1246): História da vida e da morte de um cavaleiro andante», in Lusitânia Sacra, 2.ª sér., t. 10, 1998, p. 99, 105-106, 109-115; OLIVEIRA, Luís Filipe, «A Ordem de Santiago em Portugal: a conquista das terras do Sul (séculos XII-XIII)», in Cuadernos de Estepa, n.º 3, 2014, p. 93-96) nas campanhas alentejanas e algarvias. A apropriação do ideal de cruzada pelos monarcas peninsulares situa-se no mesmo contexto, ERDMANN, Carl, A Ideia de Cruzada em Portugal, Coimbra, 1940, p. 46 e sgs.; AYALA MARTÍNEZ, Carlos de, «Fernando III: Figura, significado y contexto en tiempo de Cruzada», in Carlos de AYALA MARTÍNEZ e Martín RIOS SALOMA (ed.), Fernando III, Tiempo de Cruzada, Madrid, 2012, p. 63-76, 85-91. 60 Para a relação das ordens militares com a cruzada, NICHOLSON, Helen, Templars, Hospitallers and Teutonic Knights. Images of the Military Orders, 1128-1291, Leicester, 1995, p. 6-7; JOSSERAND, Philippe, Église et Pouvoir..., p. 43-44. 61 NETO, Cláudio, As Ordens Militares na cultura escrita da Nobreza ‒ 1240-1350. Representações nas cantigas de escárnio e de mal dizer, diss. de mestrado apresentada à FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2012, p. 7-12. Para a apresentação deste trabalho, in Medievalista online, n.º 17, 2015, disponível em: (http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA17/neto1711.html). 62 GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel, «Las cruzadas de Alfonso X contra el Islam occidental», Estudíos Alfonsíes..., p. 131-135; O’CALLAGHAN, Joseph, The Gibraltar Crusade. Castille and the Battle for the Strait, Philadelphia, 2011, p. 13-17; RODRIGUEZ GARCIA, José Manuel, Ideología Cruzada en el siglo XIII. Una visión desde la Castilla de Alfonso X, Sevilha, 2014, p. 115-138.

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foi sugerido, e de os seus planos terem ganho outra ressonância com a pretensão à coroa imperial, a aposta ultramarina tardou a concretizar-se. Por razões diversas, a que não foi alheia, por certo, a dificuldade para lhe determinar um objectivo ‒ Ceuta terá sido uma das hipóteses63 ‒ data somente de 1258 a primeira incursão conhecida, cujo destino se ignora, a que se seguiria o saque de Salé em 126064. Estas e outras iniciativas, sobre as quais pouco se conhece, foram acompanhadas por contactos políticos e diplomáticos com o Islão, e, em particular, com os sultões do Egipto65. Por meio deles, revelava-se o interesse de Afonso X pelos assuntos da Terra Santa, já que o Egipto era, na região, a potência mais importante e a autoridade dos seus sultões não era desconhecida, como se viu, dos trovadores peninsulares. A atenção aos negócios orientais suscitaria, por outro lado, um conjunto de importantes iniciativas cronísticas e literárias. Entre elas, a mais significativa é o pranto Ay, Jerusalém!, que narra o assédio e a conquista da cidade pelos turcos em 1244, e que constitui, de resto, uma verdadeira canção de cruzada, recordando o martírio dos defensores de Jerusalém e apelando à sua libertação66. Foi redigido por um poeta culto, de origem castelhana e estatuto clerical67, provavelmente um dos participantes no concílio de Lyon, em 1245, quando o Ocidente se inteirou da perda da cidade68. A data da sua 63 GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel, «Las cruzadas de Alfonso X.., p. 134; O’CALLAGHAN, Joseph, The Gibraltar Crusade...», p. 23-25; RODRIGUEZ GARCIA, José Manuel, Ideología Cruzada..., p. 112, 134. 64 GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel, «Las cruzadas de Alfonso X..», p. 134; O’CALLAGHAN, Joseph, The Gibraltar Crusade..., p. 21, 25-29; RODRIGUEZ GARCIA, José Manuel, Ideología Cruzada..., p. 126-128, 133-137 65 MARTÍNEZ MONTÁVEZ, Pedro, «Relaciones de Alfonso X de Castilla con el sultán mameluco Baybars y sus sucesores», in Al-Andalus, vol. 27, n.º 2, 1962, p. 349-376; O’CALLAGHAN, Joseph, The Gibraltar Crusade..., p. 19-21; RODRIGUEZ GARCIA, José Manuel, Ideologia Cruzada..., p. 186-187. Para a importância regional do Egipto e a sua transformação, a partir de 1187, num dos objectivos das cruzadas, MURRAY Alan, (ed.), The Crusades..., vol. II, p. 386-391, s. v. «Egypt». 66 ASENSIO, Eugenio, «Ay, Iherusalem! Planto narrativo del siglo XIII», Nueva Revista de Filología Hispánica, n.º 14, 1960, p. 251-270; VICTORIO, Juan, «Ay Jerusalem!: guerra y la literatura», in Actas del I Congreso de la Asociación Hispánica..., p. 595-601; TATO GARCIA, M. C., «En torno al poema Ay Iherusalem! y a sus vinculaciones con la literatura galorrománica», ibidem, p. 571-579; FRANCHINI, Enzo, «Ay, Iherusalem, una canción de cruzada castellana?», in Actas do IV Congresso da Associação Hispánica de Literatura Medieval, Lisboa, 1993, vol. II, p. 343-348. 67 VICTORIO, Juan, «Ay Jerusalem...», p. 601; FRANCHINI, Enzo, «Ay, Iherusalem: Nuevas fuentes...», p. 12, 15-16, 33 e sgs. 68 Ao contrário das propostas de Eugenio ASENSIO e de Juan VICTORIO, que a datavam dos anos setenta do século XIII e a associavam a contextos peninsulares, ou de Enzo FRANCHINI, que a articulou, em 1993, com a conquista de Salé, a relação da cantiga com o concílio de 1245 e com a Terra Santa foi notada por Pedro TENA TENA («Nuevas

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redacção provocou maiores controvérsias, mas é provável que seja pouco posterior ao concílio de Lyon, sendo possível, de resto, que a sua composição se tivesse iniciado no decurso dessa assembleia, como já foi sugerido a partir de alguns indícios internos69. Mais de duas décadas depois, seria secundado pelos Anales de Tierra Santa, tradução castelhana de um original francês do século XIII, no qual se registaram as principais efemérides entre 1095 e 126070. A versão castelhana foi realizada em data incerta, depois de 1266, ou até de 1275, mas antes de 1289, e apresenta diversas interpolações ao texto francês71, cuja origem parece estar em alguns dos materiais reunidos no âmbito da oficina historiográfica de Afonso X72. Pela cronologia, ou até pela provável procedência dos materiais usados pelo tradutor, os Anales de Tierra Santa podem ser vistos, portanto, como uma primeira manifestação do interesse peninsular pela história ultramarina, que haveria de levar, por finais do século XIII, à elaboração da Gran Conquista de Ultramar, no âmbito da corte de Sancho IV73. O panorama português, infelizmente, é bastante mais pobre e são poucos os testemunhos que revelam um interesse maior pelos feitos do Ultramar. Eles são, no entanto, mais abundantes do que se tem admitido74. Para lá da pregação das cruzadas à Terra Santa, que se atesta em diversas ocasiões, desde 1245 a 129175, e da discussão dos assuntos ultramarinos em concílios glosas al poema Ay, Jerusalem!», Medioevo y Literatura..., p. 383-388) e depois confirmada por Philippe JOSSERAND (Église et Pouvoir..., p. 38-39) e por Enzo FRANCHINI («Ay, Iherusalem: Nuevas fuentes...», p. 33 e ss.). 69 FRANCHINI, Enzo, «Ay, Iherusalem: Nuevas fuentes...», p. 34-35. 70 SANCHEZ CARDEIRA, Alfonso, «Las Cruzadas en la Historiografia Española de la epoca. Traduccion castellana de una redaccion desconocida de los «Anales de Tierra Santa», in Hispania, t. 20, n.º 80, 1960, p. 325-367. 71 CATALÁN, Diego, “Rodericus” Romanzado en los reinos de Aragón, Castilla y Navarra, Madrid, 2005, p. 528 e nt. 184, 533-534, 536; DOMÍNGUEZ, César, «Las Estorias de Ultramar en el Taller Historiográfico de Alfonso X. Identificación, catalogación e hipótesis de traballo», in Boletín de la Real Academia Espanola, t. 92, Cuaderno 305, 2012, p. 12-14. 72 Ibidem, p. 9-11, 15-17. Para a descrição do códice que transmite os Anales, CATALÁN, Diego, “Rodericus” Romanzado..., p. 493 e ss. 73 NORTHUP, George, «La Gran Conquista de Ultramar and Its Problems», in Hispanic Review, 1934, n.º 2, p. 287-302; GONZÁLEZ, Cristina, «Alfonso X El Sabio y La Gran Conquista de Ultramar», in Hispanic Review, n.º 1, 1986, n.º 1, p. 67-82; DOMÍNGUEZ PRIETO, César, s.v. «Gran Conquista de Ultramar», in DUNPHY, R. G., Encyclopedia of Medieval Chronicle, Leiden e Boston, 2010, p. 726-727. 74 ERDMANN, Carl, A Ideia de Cruzada..., p. 6-14; BARROCA, Mário, s.v. «Portugal», in MURRAY Alan, (ed.), The Crusades..., vol. III, p. 979-984. 75 LINEHAN, Peter, Portugalia Pontificia: Materials for the History of Portugal and the Papacy, 1198-1417, Lisboa, 2013, vol. I, n.º 321 (26-I-1245), n.º 697 (2-IX-1267), n.º 715 (1-IV-1268), n.º 862 (1-VIII-1291). Para os sermões e a pregação da cruzada no

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provinciais76, há notícias ao recrutamento de cruzados77, e, sobretudo, à recolha de esmolas para as cestas e a arca da cruzada em 1278, 1282 e em 1284, por vezes em várias dioceses78. O apelo de Jerusalém já não tinha, por certo, o impacto de tempos anteriores79, mas nem por isso deixava de suscitar algumas adesões, ora como peregrinos80, ora como cruzados. Entre os últimos, contava-se Afonso III, que tomara a cruz em 1268, no quadro do conflito que o opunha a Roma e aos prelados do Reino81, e cujo voto seria recordado por Inocêncio V em Maio de 127682, quando se preparava outra expedição, embora ele só viesse a ser lembrado por perseguir a terra d Afriqua com grande frota de navios83. Tal sonho africano seria retomado pelo seu sucessor, o rei Dinis, o qual, após reorganizar a armada régia e de ter querido fixar a Ordem de Cristo na fronteira marítima com o Islão84, viria a contar com o apoio de Roma para os fossados marítimos com que ambicionava defender a Cristandade e assegurar o controlo sobre a navegação no estreito de Gibraltar85. Nada disso obstou a que o monarca mantivesse, também, algum interesse pelos assuntos ultramarinos. Não só celebrou, a 29 de Janeiro de 1293, pouco depois, portanto, da queda de Acre, um acordo de paz e aliança com o sultão do Egipto, em conjunto com os reis de Castela e período, Patrícia Odber de Baubeta, Igreja, Pecado e Sátira Social na Idade Média Portuguesa, Lisboa 1997, p. 124, 136-140. 76 LINEHAN, Peter, Portugalia Pontificia…, n.º 605 (17-XI-1260), n.º 863 (18-VIII-1291). 77 Ibidem, n.º 642 (1-X-1263). 78 Ibidem, n.º 775 (1278-1279), n.º 798 (23-X-1282); OLIVEIRA GUIMARÃES, «Documentos Inéditos dos Séculos XII-XV. Mosteiro de Souto», in Revista de Guimarães, vol. VII, 1890, doc. n.º 97 (de 15-XII-1284). Tais esmolas não se confundiam, ao que parece, com a cobrança de dízimas e de outras rendas para a Terra Santa, das quais há notícias (LINEHAN, Peter, Portugalia Pontificia..., n.º 624 (26-VI-1262), n.º 749 (28-VI1275), n.º 771 (15-II-1277), n.º 809 (16-VII-1283) mais numerosas. 79 MATTOSO, José, D. Afonso Henriques.., p. 58-66. 80 Numa epígrafe proveniente da igreja de S. André, em Lisboa, infelizmente sem data, mas que pode ser atribuída ao período entre 1298 e 1325 (BARROCA, Mário, Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), t. I, vol. II, Lisboa, 2000, n.º 443), recordou-se o falecimento de um filho do vice-chanceler do rei Dinis, ocorrido a «caminho de Jerusalem». 81 ERDMANN, Carl, A Ideia de Cruzada..., p. 9. MARQUES, Maria Alegria, O Papado e Portugal no Tempo de Afonso III (1245-1279), dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990, p. 399. 82 SCHEIN, Sylvia, Fideles Crucis..., p. 53. 83 Crónica de Portugal de 1419, edição crítica, introdução e notas de Adelino de Almeida CALADO, Aveiro, 1998, p. 160. 84 DUARTE, Luís Miguel, «A Marinha de Guerra Portuguesa», Nova história militar de Portugal, dir. por Manuel Themudo BARATA e Nuno Severiano TEIXEIRA, vol. I, coord. por José MATTOSO, Lisboa, 2003, p. 299-302; OLIVEIRA, Luís Filipe, «Ordem de Cristo» e «Convento de Tomar», in Bernardo Vasconcelos e SOUSA (dir.), Ordens Religiosas em Portugal: Das Origens a Trento. Guia Histórico, Lisboa, 2005, p. 495-502. 85 Monumenta Henricina, Coimbra, 1960, vol. I, n.º 70, 71 e 72 (todos de 23-V-1320).

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de Aragão86, como haveria de destinar, nos testamentos de 1299 e de 1322, as verbas necessárias para manter um cavaleiro na Terra Santa, durante um ano, se viesse a organizar-se a cruzada para recuperar Jerusalém87. As cantigas dos trovadores, e, em particular, as mais tardias, de Estêvão da Guarda e do conde de Barcelos, com referência a viagens ao alen mar, não eram testemunhos isolados da simpatia pelos feitos da cruzada e do Ultramar. No mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, onde se haviam depositado, após 1220, os corpos dos mártires de Marrocos, guardava-se, talvez, um relato primitivo da sua vida e martírio, havendo notícia, pelo menos, de se ter feito uma primeira compilação dos seus milagres entre 1262 e 128288. Mais importante, por mostrar que o reino não se alheara por completo da literatura de cruzada que circulava por Castela, é a possibilidade de a Historia de Jerusalem Abreviada estar associada à segunda redacção da Crónica de 1344. A presença de dois fólios dessa tradução de Jacques de Vitry num dos códices castelhanos da segunda redacção da Crónica era conhecida89, mas pensava-se que eles eram alheios ao códice, facto que uma recente análise codicológica e paleográfica não confirmou90. Isso não basta, como é evidente, para demonstrar que a Historia de Jerusalem se difundira no reino português, ou que estivera à disposição dos redactores da Crónica. Mesmo sem conhecer essa tradução, que então já estaria disponível91, o conde de Barcelos partilhava, no entanto, o propósito de criar um paralelo entre a história oriental e a peninsular. Como Luís Krus mostrou de maneira exemplar92, a composição do Livro de Linhagens do conde de Barcelos também servira para se estabelecer, por meados do século XIV, uma analogia entre aquelas duas frentes de cruzada. 86

MARTÍNEZ MONTÁVEZ, Pedro, «Relaciones de Alfonso X de Castilla...», p. 375 e nt. 95. Para notícia doutros contactos com o Egipto e para o lugar que ele detinha na memória nobiliárquica, ERDMANN, Carl, A Ideia de Cruzada..., p. 10; KRUS, Luís, A Concepção Nobiliárquica do Espaço Ibérico (1280-1380), Lisboa, 1994, p. 132 e nt. 279. 87 Monarquia Lusitana, fac-simile da edição de 1650, Lisboa, 1976, Parte V, doc. n.º 34, p. 329-331; SOUSA, António Caetano de, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, ed. de M. Lopes de ALMEIDA e César PEGADO, Coimbra, 1946, vol. I, p. 125-132. Ao contrário do que disse Carl ERDMANN (A Ideia de Cruzada..., p. 10), nada sugere que se tivesse previsto o desvio dessas verbas para fins de beneficência se ninguém estivesse disposto a viajar, no lugar do monarca, para a Terra Santa. 88 NASCIMENTO, Aires do, s. v. «Lenda e Livro dos Mártires de Marrocos», in LANCIANI, G. e TAVANI G., (coord.) Dicionário de Literatura Medieval... O relato do martírio e dos primeiros milagres, alguns ocorridos em Marrocos e todos anteriores à deposição das relíquias em Santa Cruz, foram recolhidos pela Crónica de Portugal de 1419..., p. 113-119. 89 CINTRA, Luís Lindley, Crónica Geral de Espanha de 1344, Lisboa, 1951, vol. I, p. 523. Para a data da segunda redacção, ibidem, p. 39-40. 90 DOMÍNGUEZ, César, «Las Estorias de Ultramar...», p. 21, em particular o texto da nt. 60. 91 Segundo César DOMÍNGUEZ (ibidem, p. 28-30), a tradução terá sido feita entre 1247 e 1292. Para a descrição dos temas nela tratados, ibidem, p. 26-27. 92 KRUS, Luís, A Concepção Nobiliárquica..., p. 124 e nt. 257, 138.

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