A cultura do cotidiano - resenha sobre o livro \"Cotidiano e Cultura: História, Cidade e Trabalho\" de Maria Izilda Santos Matos

July 7, 2017 | Autor: K. Araujo Silva | Categoria: Cultural History, História, Cotidiano, Trabalho
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As Culturas do Cotidiano: novas possibilidades e contribuições da História do Cotidiano

MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: História, Cidade e Trabalho. Bauru, Edusc, 2002. Maria Izilda Santos de Matos é doutora em História pela USP, com pósdoutorado pela Université Lumiere Lyon II, Lyon-França, e pesquisadora do CNPq. Professora titular do Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sua área de pesquisa historiográfica concentra-se nas questões de Gênero, Trabalho e suas representações na cultura e imaginário. Entre suas obras publicadas, destacam-se: O imaginário em debate (1998); A cidade em Debate (1999); Por uma história da mulher (2000); Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues (2001), Trama e Poder (2002), Cotidiano e Cultura: História, cidade e trabalho (2002); Âncora de Emoções: Corpos, subjetividade e sensibilidade (2005), dentre outros. Em Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho (208 p.), Maria Izilda traça uma rica e complexa análise sobre o cotidiano urbano e suas experiências “porta adentro” durante o processo de industrialização em São Paulo nos primeiros decênios do século XX. Os estudos que geraram este livro trazem à luz da História, questões das segmentações e correlações entre o público e o privado, as tensões e contradições no espaço subjetivo e objetivo da sociabilidade urbana. As representações de processos de mudanças comportamentais e pluralidade cultural, apresentadas de maneiras heteróclitas e heterogêneas apontam para um complexo jogo de construção de identidades, onde a cidade, o trabalho, as demandas sociais com suas mais diversas origens, e uma nova linguagem – a modernidade – se fazem presentes neste cotidiano “desvairado” que a obra apresenta. Um segundo ponto levantado na obra, estuda questões dos imigrantes portugueses e seus desenvolvimentos de trabalho e sociabilização em São Paulo e Santos, tendo como preocupação e foco de análise o trabalho feminino em domicílio. O convívio entre criados e patrões, as relações de etnia e gênero e os modos de prática de vida no interior do lar/trabalho são resgatados com a sensibilidade necessária para a construção desta História do Cotidiano. História esta que, não deve-se confundir com

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um estudo do pitoresco simplesmente, mas com uma esfera rica de informações e intenções que dizem mais da realidade objetiva e subjetiva dos agentes e sujeitos históricos de nossa histórica recente, do que as grandes propostas explicativas dos velhos modelos das ciências humanas. Desta forma, trata-se de um exercício da nova historiografia, propostas desafiadoras que em muitos aspectos epistemológicos rompem e ultrapassam os paradigmas tradicionais da escrita da história e das convenções totalizantes de explicação da sociedade, promovidas desde o século XIX1. Pois sabe-se que, desde a primeira metade do século passado, a historiografia desenvolveu sua autocrítica e novas possibilidades de olhares para os diferentes acontecimentos passados, criando uma nova relação com o passado-presente2, através de novas fontes documentais e aberturas conceituais, dialogando com outras áreas do saber humano, como a sociologia, psicologia e a antropologia, por exemplo. “A Nova História, ao ampliar áreas de investigação com a utilização da metodologia e marcos conceituais renovados (modificando os paradigmas históricos), também influenciou a abertura de perspectivas para os estudos do cotidiano.” (MATOS, 2002, p.22)

Maria Izilda lembra que os estudos sobre o cotidiano não é tão recente, quando cita uma série lançada pelos editores franceses Hachette, “La vie quotidienne”, nos anos 1930. Contudo, foi a partir da década de 1960 que os estudos sobre o cotidiano ganharam maior repercussão nas academias, com a publicação de “Civilização material e capitalismo” de Fernand Braudel. Aportes como esses, resultaram em uma nova óptica do político no domínio do cotidiano, ampliando e germinando novas questões sobre o papel da família, da disciplina dos corpos e mentes, das relações entre mulheres e homens, os significados e representações dos fatos, enfim, a esfera política nas diversas tramas sociais do habitual. Teóricos como: Michel Foucault, Jacques Derrida, Michel de Certeau e E.P.Thompson, trouxeram grandes contribuições neste cenário 1

As macrovisões onde a economia ou a política, dita oficial, eram as determinantes dos processos de transformações ou permanências sociais, excluindo aspectos fundamentais da construção do real na sociedade, como a linguagem e suas representações na cultura, por exemplo. 2

A Escola dos Annales de 1929-89 e a Nova História desenvolvem a chamada “revolução francesa da historiografia” nos dizeres de Peter Burke, mas logo ultrapassou as fronteiras nacionais, sendo incorporada por vários historiadores europeus e americanos ao longo do século XX.

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intelectual das ciências humanas - como diz Maria Izilda - dando luz sobre uma “cultura de resistência” que se faz de maneira espontânea no seio social. Nesta perspectiva, o espaço urbano é um sintetizador de experiências e contradições. É na cidade que as manifestações e representações do moderno, do engajado, do conflituoso ganham destaques na história - uma vez que, a população majoritariamente se encontra nestes espaços nos dias atuais - sendo importante lembrar que o historiador também é fruto desta rede, desta trama social que se cria cotidianamente. Há, portanto, outro olhar para esta cidade, “cidade-documento” que trás em sua visualidade, em sua sonoridade, formas e normas, ritmos e descompassos, toda uma complexa historicidade que não se limita à meia dúzia de conceitos, mas a uma sensibilidade que busca nos pormenores a significação do social, do cultural, sem excluir o econômico e o político, uma vez que são partes indivisíveis do contexto. “Cabe ao investigador entender esse emaranhado de tempos-espaços e memórias, recuperar as várias camadas e as relações entre elas decifrando seus enigmas, como uma arqueologia social da cidade” (Ibidem, p.36).

Pode-se afirmar que, os estudos sobre a história do cotidiano acionaram focos de luzes em ambientes escuros ou em penumbras, que a historiografia não havia se declinado a questionar até então. A politização do mundo privado e a privatização do espaço público são, nos dizeres da historiadora, “novos desafios à interpretação crítica do historiador e permitem a ampliação de questões metodológicas, sem abstração do engajamento político do sujeito do conhecimento”. (Ibidem, p.27). Rompe-se, desta forma, com concepções lineares, evolutivas e/ou teleológicas da história, ampliando olhares e perspectivas, historicizando conceitos e categorias, e acabando com a segmentação passado-presente, dando fôlego e maior correlação do pesquisador e seu corpo documental num contexto cada vez mais criativo do fazer história. No segundo capítulo de Cultura e Cotidiano, Maria Izilda traça olhares para uma São Paulo em intensas transformações econômicas, políticas, culturais e sociais: trata-se da “Paulicéia Desvairada” de 1890-1930, a cidade que irá ufanar-se através de símbolos significativos de sua história. Com o enriquecimento através do “ouro verde”, a expansão urbana e uma nova configuração social, provinda de massas migrantes e

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imigrantes, esta “babel invertida”, cresce vertiginosamente em gênero, número e grau, devido à economia cafeeira que se transfigura em futuro capital industrial. “A crescente urbanização e a ascensão de São Paulo à posição de metrópole regional [...] provocaram transformações sociais em curto espaço de tempo e em ritmo acelerado, num quadro onde interagiram a desintegração da Abolição, a grande imigração e o êxodo rural.”

(Ibidem, p.43). As transformações no espaço urbano se fazem constantes e é símbolo de uma época embebedada pela ordem do Moderno: as máquinas, a velocidade, a preocupação com os corpos, higienização e sanitarismo dentro e fora dos lares, novos modos e modas, diferentes formas de sociabilização nas ruas, projetos urbanísticos engajados e a verticalização do espaço urbano que representava um ideário moderno3, dentre outras mudanças substanciais que fecundam os traços da cidade. O trabalho (em suas múltiplas dimensões) tem um foco especial na obra de Izilda, pois é através dele que as pessoas representam-se e constroem-se socialmente. A correlação entre esses trabalhos e o alto fluxo imigratório era sinônimo de progresso, uma vez que viam nas massas de italianos, portugueses e espanhóis, uma oportunidade de branqueamento do país, já que a negritude alforriada era considerada atraso para o progresso da civilização. Contudo, a valorização dos imigrantes não se dava de forma uniforme, pois ao passo que chegava povos de diferentes regiões – inclusive asiáticos – iniciava-se um processo de xenofobia e nacionalismo. Portanto essa trama social multiforme dava luz a questões de trabalho, por vezes apoiando e vangloriando os imigrantes, por vezes, hostilizando e excluindoos. “O passado escravista ainda recente e a ideia de branqueamento contida na proposta imigrantista, que também colocava o imigrante como sinônimo de progresso e civilização, estabeleceram relações e discricionárias e de hierarquia no mercado de trabalho [...] Paralelamente aos argumentos de pacífica e cordial relação, a majoritária presença de estrangeiros no espaço urbano paulista provocou ataques nacionalistas, gerando uma heterorepresentação negativa.” (Ibidem, p.49)

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O processo urbanístico de São Paulo baseava-se nos modelos europeus, principalmente o francês. Já as construções dos arranha-céus, como o Martinelli, por exemplo, tinha como modelo as escolas arquitetônicas norte-americanas do início do século passado.

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Junto à sobrevivência dos imigrantes, principalmente italianos e portugueses que alimentavam os espaços de trabalho nas lavouras de café e em diversas atividades urbanas, o vetor civilizatório que buscava “alinhar os trilhos” de São Paulo levou a massa de negros alforriados a condições cada vez mais marginalizadas, condenados à própria sorte. Além da própria sobrevivência negra nas zonas urbanas, havia a sobrevivência e resistência dos imigrantes despossuídos e reféns de uma realidade mais fria e dura do que o velho sonho das “árvores das patacas”. O trabalho domiciliar, assim como o trabalho na zona do porto, foi desenvolvido por diferentes mãos, umas mais grossas e rudes, prontas para carregar um sem número de sacas de café para navios internacionais, outras mais delicadas e ágeis, para trabalhos mais sensíveis (sensíveis, porém não menos cansativos ou desgastantes), como da costureira, bordadeira e da lavandeira, por exemplo. É importante citar que, mulheres que desenvolviam trabalhos no setor têxtil, durante a segunda metade do século XIX, destacaram-se com suas presenças em lutas e resistências operárias. Maria Izilda analisa o trabalho em suas várias facetas, como o rural, o urbano e o domiciliar, este último, desenvolvido na habitação dos trabalhadores, por “encomenda da empresa ou de seus intermediários”, geralmente essas tarefas eram “parciais do processo produtivo”, cujo pagamento era feito, geralmente, por peça. Criava-se, neste sentido, uma experiência feminina no trabalho de agulha domiciliar, onde o próprio sistema capitalista-industrial favoreceu em larga escala os processos desta intensificação. “Os trabalhos de agulha eram tradicionalmente realizados no domicílio das costureiras e bordadeiras. No caso da indústria de sacaria para o café, utilizou-se a costura domiciliar desde o século XIX, [...] mesmo após a implantação da indústria de fiação e tecelagem de juta”. (Ibidem, p.91)

A historiadora levanta alguns elementos que contribuiriam para a permanência do trabalho de agulhas nas casas das costureiras e bordadeiras: o caráter sazonal do trabalho nas oficinas e indústrias; a rejeição de boa parte da parcela consumidora em relação à produção industrial; as falhas de reprodução de peças nas fábricas em comparação às feitas manualmente, a resistência das costureiras ao trabalho fabril,

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dentre outras. Desta forma, vários fatores contribuíram para o processo dos trabalhos residenciais femininos criando e recriando práticas cotidianas do labor feminino em suas formas, desenvolturas e peculiaridades. Além das tarefas de agulhas, havia uma grande procura por imigrantes portuguesas para diversas funções de trabalho: cozinheiras, lavadeiras, engomadeiras, amas-de-leite, governantas, dentre outras. Já os homens desenvolviam trabalhos como jardineiros, choferes, pintores de parede, carpinteiros, quando não, como vendedores ambulantes de vassouras e vimes. Pensava-se que os portugueses eram bons trabalhadores, honestos, comprometidos e organizados. O trabalho de servir se concatenava entre as relações de imigrantes e brasileiros de maneira cada vez mais diversificada e intensa. Para trabalhos domésticos absorvia-se em maior quantidade, mão de obra feminina e menor de idade. “Mulheres casadas ou solteiras, imigrantes ou nacionais brancas ou negras, sós ou acompanhadas com filhos, empregavam-se para diversos serviços em casas de família”. (Ibidem, p.120)

Pensar o trabalho em São Paulo ou em Santos, assim como na capital da Federação, no final do XIX e início do XX, requer uma atenção especial sobre a relação com os pensamentos e práticas médico-sanitaristas. Sabe-se que uma tônica do processo de urbanização e crescimento urbano neste período, era a preocupação com a saúde em todos os espaços sociais (ruas e lares, largos e quartos). Sendo assim, uma atividade que foi atenção desta óptica, foi das amas-de-leite. Uma ocupação, das poucas femininas que rendiam um pouco mais em ganho, o aleitamento mercenário sofreu exclusão, devido aos patrões temerem uma possível infecção de doenças através do leite, principalmente tuberculose e sífilis. Exames de sangue e leite das amas eram as sugestões mais comuns naquele momento, o que gerava uma tensão nesta relação ama/patrão, uma vez que, muitas mães não amamentavam seus filhos por vários motivos: costume, vaidade, falta de paciência, até repugnância das “sujeiras da criança”. Desta forma, tanto os acontecimentos objetivos, como o crescimento da mortalidade infantil, quanto às construções discursivas e os apelos médico-sanitaristas, concatenaram para uma ruptura na cultura do aleitamento mercenário, com sua regulamentação e atrofiamento do serviço. Parte-se das transformações discursivas, das

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construções de elementos de novas formas de vida, novas relações de trabalho, novas práticas de sociabilidade entre os diferentes gêneros. Diversas relações que marcam outro contexto, rompendo com algumas atividades do dia a dia, ou recriando todo um cenário social. Estas mudanças e transformações de conduta, de prática e representação social e de ser como sujeito de seu tempo, se fazem presentes fora e dentro dos lares. O modelo moderno fez-se presente em todo imaginário coletivo: as ideias pertinentes das cidades não limitavam ao espaço público, mas adentrava ao espaço privado, travando uma correlação

paradoxal

entre

o

público-privado;

novos

estilos

arquitetônicos,

eletrodomésticos, modos de se postar, modas de se vestir, além das transformações trabalhistas se fazem ver e ouvir, configurando a cena cultural de São Paulo daquele momento. Pode-se dizer que, a obra: Cotidiano e Cultura da historiadora Maria Izilda, marca um novo olhar na historiografia brasileira: um olhar sensível aos pormenores, aos elementos que configuram toda uma época, e que a História Cultural está desenvolvendo com toda sua potência de análise, crítica e criatividade. Olhar para esta esfinge que é São Paulo nos primeiros, e frenéticos, anos do século XX, com o olhar da Nova História é ver como uma cidade pode criar-se e recriar-se com diversos elementos diferentes, de maneira moderna, portanto, antropofágica.

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