A Cultura Política de Marsílio de Pádua: o Providencialismo do Império Universal

September 5, 2017 | Autor: M. Tôrres | Categoria: Medieval History, Marsilius of Padua, Marsiglio of Padua
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Anais do XIV Encontro Regional de História da ANPUH-MG

Juiz de Fora, julho de 2004.

A Cultura Política de Marsílio de Pádua: O Providencialismo do Império Universal Moisés Romanazzi Tôrres Prof. Adjunto do Departamento de Ciências Sociais (DECIS) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) Em Marsílio de Pádua, a legitimação do poder imperial passava por uma idéia da translatio Imperii. Tal perspectiva, ainda que apontada em sua obra principal, o Defensor Pacis, encontra seu desenvolvimento somente em outro texto: o Tractatus de Translatione Imperii. Foi, com efeito, apenas então que, paradigmaticamente preocupado com as origens e utilizando-se de um discurso que privilegiava a continuidade, o Paduano legitimou o Sacro Império enquanto o descendente direto de Roma pela mediação do Império Carolíngio. Colette Jeudy e Jeaninne Quillet, as tradutoras para a língua francesa do De Translatione Imperii marsiliano, salientam mesmo que o tema do opúsculo é a autonomia e a independência do Império. Para elas,1 Marsílio tenta em seu opúsculo se desembaraçar de toda e qualquer refutação a esta convicção inserindo a translatio em um contexto novo, chamado pelas autoras de historiográfico e histórico. Era preciso assegurar a continuidade entre a Roma pagã e a Roma cristã para justificar a legitimidade do Império Romano de Luís da Baviera; era preciso também libertá-lo da tutela pontifícia. No dossier da defesa e da exaltação do Império, de sua imediata origem divina, de sua universalidade e de sua independência, o De Translatione Imperii constitui, na visão de Jeudy e Quillet,2 uma peça mestre, e seu propósito é simultaneamente teórico, em sua interpretação da história, e político, porque defende, de uma vez por todas, a ideologia imperial. José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza, em seu importante artigo intitulado Scientia Historica e Philosophia Politica no Tratado sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua,3 acrescenta que a obra, enquanto opúsculo político ou de Filosofia Política, visava não só 1

JEUDY, Collete e QUILLET, Jeannine. MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii. Établi, traduit et annoté par Collete Jeudy et Jeannine Quillet, Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979, p.24. 2 JEUDY, Collete e QUILLET, Jeannine. MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii. Établi, traduit et annoté par Collete Jeudy et Jeannine Quillet, Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979,p.24. 3 SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. Scientia Historica e Philosophia Politica sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua. Revista Veritas, Porto Alegre: EdiPUCRS, v.43, n.3, p. 643 a 723, setembro. 1998, p.653.

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assegurar a legitimidade histórica do Sacro Império Romano-Germânico, mas também a sua autonomia política face às pretensões hierocráticas do Papado e, ainda, o direito dos príncipes eleitores de elegerem o rei da Germânia e o imperador, sem que houvesse necessidade da confirmação do papa. A obra, composta de doze capítulos, divide-se em duas partes. Nos seis primeiros capítulos, Marsílio inicialmente descreve e analisa os fatores que contribuíram para que os romanos tivessem construído um glorioso Império, tendo apresentado, para isto, razões como a valentia, a disciplina, a organização, o treinamento militar, as alianças militares com povos vizinhos, o respeito às leis e à justiça, entre outros. Em seguida, apresenta os motivos, religiosos e políticos, que conduziram o referido Império, já sediado em Constantinopla, à ruína. Entre estes, merecem destaque a adesão dos gregos às heresias, a forma tirânica de governo de muitos imperadores, a imperícia militar frente à expansão islâmica, as rixas entre gregos e latinos, a ambição de domínio por parte do Papado. Nos seis capítulos restantes, que de fato nos interessam mais de perto, Marsílio dedica-se a, por um lado, relativizar o papel do Papado na coroação imperial e, por outro, a ressaltar que carolíngios e saxônios chegaram à dignidade imperial por seus méritos pessoais, com especial destaque ao seu devotamento pela ortodoxia e pelos dirigentes da Igreja Romana, protegendo-os, guardando o seu patrimônio, sempre que eram solicitados, e ampliando-o, por causa de sua magnanimidade. Foi com efeito, pensa Marsílio, como por uma espécie de recompensa por estes favores que alguns bispos romanos concederam, primeiramente a Carlos Magno e depois a Oton I, o direito de escolher os dignitários eclesiásticos para todos os bispados e arcebispados, inclusive, para o romano. Vejamos como, segundo o texto do De Translatione Imperii, as concessões realizadas, por exemplo, pelo papa Adriano I a Carlos Magno, são vistas por Marsílio como recompensas pela doação dos ducados de Espoleto e Benevento. Notar igualmente com que radicalidade o referido papa tratava a questão, a ponto mesmo de lançar anátemas e confiscar os bens de todos os eclesiásticos que não respeitassem a designação do Patrício Carlos: “Então o mencionado pontífice Adriano seduzido por aqueles benefícios temporais ofertados pelo referido príncipe, reuniu um Concílio em Roma, em que compareceram 153 bispos e abades, e durante o mesmo, juntamente com eles, conferiu ao glorioso príncipe Carlos o direito e o poder de eleger o sumo pontífice e de colocar em ordem a

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Sé Apostólica; concedeu-lhe também a dignidade de Patrício, cujo título, outrora, quase eqüivalia a ser considerado como pai do príncipe. Além disso, ele decretou que os bispos e os arcebispos de cada província eclesiástica deviam receber a investidura de Carlos, e a fim de ninguém viesse a consagrar um bispo, caso não tivesse sido investido e nomeado pelo rei, amaldiçoou com o anátema todos aqueles que procedessem contra aquelas determinações, e a menos que voltassem atrás, ordenou, ainda, que todos os bens dos recalcitrantes fossem confiscados”. 4

Parece-nos que tal passagem demonstra claramente a entrega a Carlos, tornado Patrício, do direito, não só de intervenção, mas de pleno controle sobre toda a Igreja Romana. Tal perspectiva pode ser evidenciada simplesmente pela vastidão dos direitos concedidos por Adriano a Carlos, a saber: o direito de eleger o Sumo Pontífice, de colocar em ordem a Sé Apostólica, de conceder a investidura a todos os bispos e arcebispos de cada província eclesiástica. Tal passagem, ainda que esta tese não tenha sido então desenvolvida pelo Paduano (ele só o fez explicitamente na Secunda Dictio do Defensor Pacis), já denota sua perspectiva de total subordinação de toda a hierarquia eclesiástica ao poder imperial e, muito especialmente aos soberanos germânicos do Sacro Império. Com efeito, se assim o foi na época de Carlos Magno, também devia sê-lo na de Luís da Baviera, uma vez que, mediante a perspectiva geral do tratado, o segundo era legitimamente o sucessor do primeiro. Sem dúvida que, entretanto, a prova cabal de reconhecimento pontifício aos favores de Carlos Magno e Oton I encontra-se na sua coroação imperial pelas mãos dos papas Leão III e João XII. Mas este gesto para Marsílio era puramente simbólico, desprovido de qualquer caráter 4

N.T. DTI,VIII, p.713: “Tunc dictus pontifex Adrianus beneficiis temporalibus dicti principis allectus episcoporum et abbatum Romae concilium congregavit; ibique cum universa synodo, glorioso principi Karolo iuset potestatem tribuit eligendi Romanum pontificem et sedem apostolicam ordinandi, dignitatem quoque patritiatus eidem concessit, qui olim quasi pater principis videbatur. Insuper episcopos et archiepiscopos, per singulas provincias, ab eo investituram accipere diffinivit. Et ut nisi a rege laudaretur et investiretur episcopus, a nemine consacretur omnesque contra praedicta facientes anathemate maledixit et nisi resipiscerent, bona eorum publicari mandavit. Quorum nullam concedendi aut faciendi auctoritatem habuit pontifex supradictus, aut alter episcopus vel clericus, nisi demum fortasse de ordinatione Romani populi atque mandato” (DTI,VIII, p. 410 e 412). Obs.:. Todas as citações do De Translatione Imperii apresentadas neste artigo foram retiradas da tradução em língua portuguesa de José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza: MARSÍLIO DE PÁDUA. De Translatione Imperii. Tradução de José Antônio Camargo Rodrigues de Souza. Apêndice I do Artigo: SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. Scientia Historica e Philosophia Politica no Tratado Sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua. Revista Veritas. Porto Alegre: EdiPUCRS, v.43, n.3, setembro 1998, p.643-655. Os respectivos textos latinos foram retirados da edição crítica bilingüe de Colette Jeudy e Jeaninne Quillet, a mesma utilizada por José Antônio de C. R. de Souza: MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii. Texte Établi, Traduit et Annoté par Colette Jeudy et Jeaninne Quillet. Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979, p. 371-433.

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institutivo. Sem dúvida que o Paduano procura ressaltar sempre, ao lado da coroação em si, a aclamatio e a adoratio dos romanos. Mas para ele a própria coroação imperial, ainda que fosse realizada por um gesto papal, era na realidade uma concessão divina: era Deus quem coroava o imperador pelas mãos do papa. A passagem do De Translatione Imperii que narra a coroação de Carlos Magno deixa bastante claro todas estas considerações. Ademais, pelo trecho em que Marsílio declara que o papa Leão havia “preestabelecido cerimonialmente todas as coisas necessárias a tamanha solenidade”, fica aludido o conhecimento por parte de todos (e logicamente também por Carlos) de cada passo da referida solenidade e, inclusive, do próprio ato de coroação. Marsílio, em nossa opinião, dá então a entender que toda a cerimônia e, fundamentalmente a coroação papal, fora realizada sob autorização do carolíngio. Vejamos nas palavras do Paduano: “Neste mesmo dia sacratíssimo do nascimento de Cristo, durante a missa celebrada no altar consagrado ao Bem-aventurado Pedro, quando o gloriosíssimo rei Carlos erguia-se, após ter orado com devoção, o papa, Leão tendo preestabelecido cerimonialmente todas essas coisas necessárias a tamanha solenidade, colocou a coroa imperial sobre a sua cabeça e ele foi aclamado por todo o povo romano: a Carlos Augusto, magno e pacífico imperador, coroado por Deus, que lhe sejam asseguradas do céu vida e vitória. Todas as histórias narram esta coroação imperial efetuada pelo papa Leão e a aclamação, com os louvores imperiais, feita pelo povo. Mas, em seguida às mesmas, conforme o antigo ritual de entronização dos príncipes, Carlos foi adorado por todos, e tendo renunciado ao título de Patrício, foi aclamado Imperador Augusto pelos presentes”. 5

Tal passagem demonstra bem o princípio, defendido tanto por Marsílio quanto pelos Hohenstaufen, da derivação direta de Deus do poder imperial. Este fica claramente expresso no fato de ser Deus quem, pelas mãos dos papas, coroava o imperador. Efetivamente, para Marsílio, o rex francorum et longobardorum (rei dos francos e lombardos), possuidor portanto da coroa 5

N.T. DTI,IX,p:715 e 716: “Ipsa siquidem celeberrima Nativitatis Christi die, cum rex Karolus gloriosissimus in missa ante confessionem beati Petri surgebat ab oratione devote, Leo papa sollemniter praeordinatis quibuslibet ad tantam sollemnitatem necessariis, coronam imperialem capiti eius imposuit, et a cuncto Romano populo acclamatum est : Karolo Augusto, a Deo coronato, magno et pacifico imperatori, vita et victoria de caelo subministretur. Hanc siquidem coronationem per Leonem papam et imperialium laudum acclamationem per populum, omens historiae ponunt. Post praedicta vero, more antiquorum principum, fuit ab omnibus universaliter adoratus et ablato Patricii nomine, Imperator Augustus est ab omnibus appellatus”(DTI,IX,p.420). Obs: Sabemos perfeitamente que a palavra populus na Idade Média representava antes a aristocracia e não exatamente o conjunto dos súditos do governante, ou seja, o que hoje em dia chamaríamos de povo. Mas em se tratando de um texto marsiliano, por tudo o que já estudamos, o sentido da palavra populus só pode corresponder ao conjunto dos cidadãos. Os únicos que, pelo ato de aclamação e pela adoração, podiam legitimar a coroação imperial de Carlos Magno. Assim concordo com a tradução em língua portuguesa de “povo romano”, de José Antônio de Camargo Rodrigues de Souza.

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dos francos e da coroa de ferro dos lombardos, foi então, sob seu conhecimento e consentimento, por intermédio da vontade divina expressa pelo gesto papal e simbolicamente representada pela adição de uma terceira coroa (a imperial), tornado rex romanorum (rei dos romanos). Ou, em outras palavras, tal cerimônia marcou a “transferência do Império dos gregos (quer dizer, dos romanos) aos francos”. Com efeito, tal como nos meios carolíngios à época da coroação de Carlos, e habitualmente com os Hohenstaufen, Marsílio defendia a perspectiva de restauratio et translatio Imperii. Vejamos nas suas palavras: “O predito Carlos governou o Império Romano durante quatorze anos (...) em seguida à coroação imperial, desde aquele ano, todos os anais, todas as gestas e histórias que fazem menção a seu respeito, sem que haja qualquer discordância entre os relatos, o chamam de Imperador Augusto. (...) A mencionada transferência do Império dos gregos [quer dizer, dos romanos] para os francos durou sete gerações, quer dizer, prolongou-se durante o reinado de sete imperadores, permanecendo mais de cento e três anos com eles”.6

Com relação a Oton I, Marsílio procura demonstrar as semelhanças e as diferenças entre o fato histórico que corresponde à sua coroação e o que correspondeu à de Carlos Magno. Caracteriza igualmente de forma enfática que tal coroação representou a secunda translatio Imperii, agora dos francos ou gauleses para os germânicos. Observemos nas suas palavras: “Então, Leão VIII foi estabelecido pastor da Igreja de Roma, o qual, seduzido pelos benefícios concedidos à mesma pelo predito Oton, tanto porque ele a livrara de Berengário que a perseguia, realizou um sínodo, tendo reunido o clero e o povo romano, os quais, o constituíram imperador, sem que antes tivesse havido uma eleição, a qual [para tanto] foi instituída, quarenta anos mais tarde. Assim foi feita a translação do Império dos francos ou gauleses para os germânicos. Otão I, mediante esse procedimento, obteve pacificamente o Império. Também o possuíram sucessivamente, sem que tivesse havido nenhuma oposição, seu filho [Otão II] e seu neto [Otão III]”.7 6

N.T. DTI,IX,p.716: “Rexit autem praedictus Karolus Romanum Imperium 14 annis (...), post dictam imperialem coronam, ipsum Imperatorem Augustum, omens anales, omnia gesta omnesque historiae, facientes mentionem de ipso, sine aliqua varietate describunt. (...) Duravit autem imperii praescripta translatio facta Graecis in Francos, per septem generationes, videlicet per septem imperatores, annis centum et tribus et amplius apud Francos”(DTI,IX, p.422). 7 N.T. DTI,X, p.717: “Et factus est tunc Ecclesiae Romanae pastor octavus Leo qui allectus beneficio Ecclesiae Romanae per praedictum Ottonem collato, tum de Berengario, qui vexabat eamdem, tum de reformatione dicta Ecclesiae, ut praemittitur, facta per ipsum, easdem dignitates Ottoni concessit, quas Karolo contulerat Adrianus; factaque synodo et clero ac populo congregatis, insuper ipsum imperatorem constituerunt, nulla electione praecedente, quae post annos 40 fuit instituta sicque facta fuit Imperii translatio de Francis seu Gallicis in Germanos. Habuit siquidem hic Otto primus ex ordinatione praemissa pacifice Imperium. Habuerunt etiam Imperium successive, sine contra dictione, filius atque nepos” (DTI,X,p.426).

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Em nossa opinião, a principal semelhança entre os dois fatos históricos salientada por Marsílio é o fato de ter havido, em ambos os momentos, um ato de aclamação por parte do “povo romano”. Tal aspecto está em perfeito consonância com sua perspectiva, demonstrada na Prima Dictio do Defensor Pacis, que é por intermédio do consenso dos cidadãos que se deve proceder à eleição do governante. Uma vez que, no caso das coroações de Carlos e Oton, quem os aclamava eram os cidadãos de Roma, tal ato significava a própria eleição do rei da Urbs. Como pelo mito romano (elemento importante do imaginário imperial desde os carolíngios), quem controla a Urbs domina todo o Orbis, a aclamação representa, efetivamente, a instituição em sentido lato do rei dos romanos, ou seja, do imperador. Um fato novo ocorreu, após a morte de Oton III sem o mesmo ter deixado filhos, com a instituição em 1004 de um colégio eleitoral dos príncipes germânicos (segundo Marsílio, baseado nas gestas dos germânicos), o que, como salienta o Paduano, marca a passagem, na determinação do imperador, de um direito hereditário para um eletivo. Ou seja, deste momento em diante, segundo a percepção marsiliana, seria a virtude e não mais a sucessão, para o bom estado da Igreja de Deus e do povo cristão, que determinaria quem deveria possuir a dignidade imperial. Vejamos nas suas palavras: “Ora, os três últimos preditos imperadores [Oton I, Oton II e Oton III] obtiveram sucessivamente o Império como se fosse quase um direito hereditário. Todavia, para o bom estado da Igreja de Deus e do povo cristão, foi útil e prudentemente ordenado que um poder tão excelso não mais fosse atribuído a alguém por força do direito de sucessão hereditária, mas sim, mediante a virtude, e que se procedesse a uma eleição, a fim de que o mais digno viesse a possuir o título para governar o Império”.8

Analisando os três grandes momentos, identificados por Marsílio, na história do Império: a coroação de Carlos Magno que expressou a translação do poder imperial dos romanos aos francos; a coroação de Oton I que expressou a translação do poder imperial dos francos aos germânicos e; por fim, a instituição do colégio eleitoral dos príncipes, podemos estabelecer duas conclusões. Inicialmente, verificamos que o Paduano procura estabelecer uma visível continuidade 8

N.T. DTI,XI,p.718: “Quia enim praedicti tres Ottones successive quasi haereditario iure obtinuerunt Imperium, fuit pro bono statu Ecclesiae Dei et populi christiani provide ac utiliter ordinatum, ut tantae potestatis fastigium, quae non ebetur

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entre os dois primeiros momentos, o que, na nossa opinião, tem o objetivo de legitimar o Sacro Império por este ser, mais que o único e verdadeiro descendente do poder romano, mas a própria seqüência no tempo do Império Romano pela via do Império Carolíngio. Ou seja, a mesma visão que dele tinham os Hohenstaufen. O último momento surge também como a consagração de todo o processo, o elemento que se destinava a assegurar definitivamente a legitimidade do Império, pois, pela eleição, a virtude passa a prevalecer sobre a simples hereditariedade, servindo então, através dos tempos, de garantia para a dignidade imperial. Com relação ao papel do papa na designação imperial, mantido mesmo após a instituição do supradito colégio, Marsílio dá a entender, numa observação aparentemente menosprezadora em certo sentido, que a coroação é por ele realizada simplesmente porque tal fato se tornou tradicional: “Em seguida, à época de Gregório V, foi instituída a eleição do Imperador Romano, a ser efetuada pelos sete mencionados príncipes da Alemanha, os quais desde então, até aos nossos dias, elegem o Imperador, que deve ser coroado pelo bispo romano, embora, não haja motivo algum que justifique a necessidade desta coroação ser efetuada por ele”.9

Podemos, em resumo, caracterizar as perspectivas marsilianas com relação a translatio Imperii, uma das fontes da legitimidade do poder imperial, da seguinte forma. Para o Paduano o poder imperial vem diretamente de Deus, igualmente exprime o consenso dos cidadãos romanos. Ou, em outras palavras, são os cidadãos romanos o instrumento pelo qual Deus confere ao imperador o seu poder. Tal poder foi legado desde Roma até ao Sacro Império por meio de duas translações, chegando assim legitimamente às mãos de Carlos Magno e, posteriormente, às de Oton I. Enquanto não havia sido instituído o colégio dos príncipes eleitores, era o povo de Roma, pela sua especial dignidade, quem, representando a Cristandade, expressava o consenso através do ato de aclamatio (ou mesmo através da adoratio). A partir desta instituição, entretanto, tal colégio passa ser o representante e, portanto, o legítimo porta-voz da escolha dos romanos, quer sanguini sed virtuti, non per viam successionis sed electionis procederet, ut dignissimus habeatur ad dignitatem Imperii gubernandam” (DTI,XI,p.428). 9 N.T. DTI,XII,p.718:

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dizer da Christianitas. A vontade divina, estando logicamente por detrás da escolha consensual da Cristandade, é expressa com exatidão pela eleição do colégio dos príncipes eleitores. Em outras palavras, tal como pensavam os Hohenstaufen, para Marsílio os príncipes eleitores eram os verdadeiros intérpretes da vontade divina. Assim fica determinada a supremacia absoluta do referido colégio. É somente a ele que cabe, como representante dos cidadãos da Cristandade e como intérprete da vontade divina, a legítima escolha do imperador. Finalmente, também no que concerne à cerimônia de coroação, a opinião de Marsílio e a dos Hohenstaufen coincidem. Esta era executada pelo bispo romano simplesmente por ser assim tradicional, sendo simplesmente uma espécie de ato ritual, que nada acrescentava de constitutivo à autoridade imperial. Segundo Jeudy e Quillet

10

, Marsílio parece ter sido sensível aos sonhos messiânicos da

Idade Média que anunciavam a vitória final do Império. Em especial, parece ter aderido aos meios gibelinos que, desde o século XIII, anunciavam um imperador, designado sob o nome mítico de Fredericus Orientalis, que estenderia seu poder até aos confins da terra, depois de ter humilhado o Papado e os clérigos simoníacos. Desta visão histórica, ou mais exatamente mítica dos tempos, a figura de Luís da Baviera no Defensor Pacis é um exemplo especial: ele aparecia como uma espécie de “salvador temporal” da humanidade, que Deus escolheu por sua graça e a quem conferiu o poder supremo, ou seja, a encarnação própria do mito gibelino. Já o De Translatione Imperii, prossegue Jeudy e Quillet,11 por sua própria estrutura, participa desta mesma visão mítica da história. A obra apresenta duas partes, a primeira consagrada a história de Roma e do Império Romano, a segunda consagrada a translatio propriamente dita, onde o tema central é o da continuidade da Roma pagã ao Império do século XIV. Como a cidade de Roma pode, no seu desenvolvimento histórico, se transformar no Império Universal, seguidamente romano, cristão e germânico: é o que Marsílio se propõe a elucidar nesta “Et postmodum tempore Gregorii quinti, electionem Imperatoris Romani septem principibus Alamanniae praedictis fuisse concessam, Qui usque ad moderna tempora Imperatorem eligunt ad sollemnitatem, non quidem propter necessitatem aliquam, per Romanum episcopum coronandum (...)” (DTI,XII,p.430 e 432). 10 JEUDY, Collete e QUILLET, Jeannine. MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii. Établi, traduit et annoté par Collete Jeudy et Jeannine Quillet, Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979, p.344 11 JEUDY, Collete e QUILLET, Jeannine. MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii. Établi, traduit et annoté par Collete Jeudy et Jeannine Quillet, Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979, p.345

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obra. Para tanto, adota a ordem cronológica de retorno as origens, onde a obsessão do modelo original serve de apoio à ficção de uma narrativa que mistura inextricavelmente a hagiografia, a didática, o simbólico e o protesto contra a depravação do presente. José Antônio de C. R. de Souza tem uma perspectiva completamente diferente. Ele

12

acredita que o De Translatione Imperii enquanto contribuição historiográfica, abandona, por um lado, o providencialismo divino e, por outro, atribui a fatores puramente humanos a explicação do processo histórico. Quer dizer, a história da humanidade em Marsílio resulta apenas da ação dos homens, bons ou maus, plenos de virtudes ou de vícios. Em resumo, a grande inovação marsiliana, segundo este autor,13 seria uma certa dessacralização da história, o que implicaria, de acordo com o mesmo,14 numa análise interpretativa dos fatos históricos que só veio a se tornar corrente na Idade Contemporânea. Em nossa opinião, Marsílio de Pádua, com relação ao tema da importância histórica de sua obra, segue simplesmente a tradição dos cronistas medievais, onde mito e realidade se confundem num todo que se pretende harmonioso. O elemento norteador de toda a argumentação é exatamente o “mito das origens”, a busca do passado ideal colocado no começo do processo histórico, a degradação do presente e a esperança de um futuro redentor. Assim concordamos com Jeudy e Quillet e não aceitamos de modo algum a visão, em nossa opinião anacrônica e teleológica, de José Antônio de C. R. de Souza. Com efeito, parece que este autor se deixou levar pelo vício que contamina a ótica geral dos estudos marsilianos, tingindo a sua obra de um colorido moderno ou, no caso de José Antônio Souza, como textualmente admite, contemporâneo mesmo. O fato do tema da translatio ser apresentado por Marsílio através de argumentos racionais, o que de fato é verdade, não implica numa dessacralização da história, mas simplesmente de nisto seguir o método, igualmente racional, de seu grande mestre, Aristóteles, por exemplo na Política, 12

SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. Scientia Historica e Philosophia Politica sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua. Revista Veritas, Porto Alegre: EdiPUCRS, v.43, n.3, p. 643 a 723, setembro. 1998, p.652 e 653. 13 SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. Scientia Historica e Philosophia Politica sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua. Revista Veritas, Porto Alegre: EdiPUCRS, v.43, n.3, p. 643 a 723, setembro. 1998, p.653. 14 SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. Scientia Historica e Philosophia Politica sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua. Revista Veritas, Porto Alegre: EdiPUCRS, v.43, n.3, p. 643 a 723, setembro. 1998, p.653.

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método que também é empregado nos argumentos históricos do Defensor Pacis, relativos à origem da civitas e da Igreja Primitiva. O providencilismo também não se encontra ausente, muito ao contrário. É nossa opinião que Marsílio acreditava que toda a história do Império, desde a Roma pagã até ao Sacro Império do princípio do século XIV e, especialmente, as duas translações e o surgimento do colégio dos príncipes eleitores, seguiam plenamente o plano de Deus. Acreditava que o grande objetivo da Providência nesta evolução histórica era que os homens, no fim do processo, viessem a obter a vida suficiente neste mundo, disposição necessária para poderem atingir a vida eterna. Acreditava igualmente que era Luís da Baviera quem, submetendo o Papado e estendendo seu poder sobre toda a terra, levaria o Império a sua culminância, o que também estava de acordo com o plano divino. No entanto, o tema da supremacia absoluta do imperador sobre toda a Humanitas, sejam cristãos ou infiéis, a partir da redação de uma Lei Universal, supremacia a qual Luís da Baviera se encontrava predestinado, será desenvolvido por Marsílio somente no Defensor Minor. Em um artigo futuro pretendemos abordá-lo em todos seus aspectos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Fontes Primárias: MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii. Établi, traduit et annoté par Collete Jeudy et Jeannine Quillet, Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979. MARSÍLIO DE PÁDUA. De Translatione Imperii. Tradução de José Antônio Camargo Rodrigues de Souza. Apêndice I do Artigo: SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. Scientia Historica e Philosophia Politica no Tratado Sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua. Revista Veritas. Porto Alegre: EdiPUCRS, v.43, n.3, setembro 1998, p.643-655.

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Fontes Secundárias: JEUDY, Collete e QUILLET, Jeannine. MARSILE DE PADOUE. Oeuvres Mineures: Defensor Minor, De Translatione Imperii. Établi, traduit et annoté par Collete Jeudy et Jeannine Quillet, Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1979. SOUZA, José Antônio de Camargo Rodrigues de. Scientia Historica e Philosophia Politica sobre a Translação do Império de Marsílio de Pádua. Revista Veritas, Porto Alegre: EdiPUCRS, v.43, n.3, p. 643 a 723, setembro de 1988.

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