A Dança das Cabeças. Os Munduruku no século XIX

Share Embed


Descrição do Produto

Johann Natterer e as coleções etnográficas da expedição austríaca de 1817 a 1835 ao Brasil

Uma exposição do Museum für Völkerkunde, Viena – Kunsthistorisches Museum

Claudia Augustat (Org.)

Johann Natterer e as coleções etnográficas da expedição austríaca de 1817 a 1835 ao Brasil

Museum für Völkerkunde, Viena 18 de julho de 2012 a 7 de janeiro de 2013

Ficha catalográfica Redação: Claudia Augustat Elisabeth Herrmann Redação de fotografia: Claudia Augustat Cécile Bründlmayer Revisão especializada: Elisabeth Herrmann Autores dos textos referentes às ilustrações: Claudia Augustat (CA) Cécile Bründlmayer (CB) Christian Feest (CF) Anita Gamauf (AG) Heinz Grilltisch (HG) Gabriele Herzog-Schröder (GHS) Klaus-Peter Kästner (KPK) Wolfgang Kapfhammer (WK) Marius Palz (MP) Johann Emanuel Pohl (JEP) Helmut Sattmann (HS) Christine Zackel (CZ)

Exposição Ilustração da capa: Machadão. Wakathatheri. 1976. (O pajé Machadão. Wakathatheri. 1976) Foto: Claudia Andujar Cocar com cobertura de nuca. Makuna-ui, Guiana, Região de fronteira Brasil/Venezuela. Em torno de 1830. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.923 Ilustração 1 da página 2: “Garoto. Krahô.“ Foto: Harald Schultz, 1954. Coleçao de fotografias, Nº de Inv. 25.808 Ilustração 2 da página 5: Tacape. Tucano, Noroeste da Amazônia, Brasil. Em torno de 1830. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.634 Ilustração 3 da página 6: Arquiduquesa Leopoldine. Josef Kreutzinger. Principio do séc. XIX. Óleo sobre tela. KHM, Galeria de Pinturas, Nº de Inv. 8.689 Ilustração 4 da página 7: Dom Pedro, imperador do Brasil. Séc. XIX. Óleo sobre tela. KHM, Galeria de Pinturas, Nº de Inv. 7.192

Tradutores e revisores: Marcelo Backes Wolfgang Kapfhammer Verônica Fernandes Schell Vanessa Noronha Tölle Michael Tölle

Ilustração 5 da página 8: Vitrine VI da Exposição na Casa Imperial. Objetos dos Paresí (Paressi) e Caripuna. Em torno de 1840. Aquarela. Arquivo

Direção de Arte KHM: Stefan Zeisler

Ilustração 6 da página 9: Vitrine VI da Exposição na Casa Imperial. Objetos dos Paresí (Paressi) e Caripuna. Reconstrução de 2012

Projeto gráfico: Klemens Wihlidal Ilustrações: Caso não indicadas diferentemente: ©: KHM mit MVK und ÖTM Direção de fotografia: Stefan Zeisler Fotos de objetos do Museum für Völkerkunde, Viena: Andreas Uldrich Tratamento fotográfico: Sanela Antic Thomas Ritter

Ilustração 7 da página 10: Johann Natterer. Michael Sandler. Litografia. Arquivo

Curadora: Claudia Augustat Assistência de curadoria: Cécile Bründlmayer Curadores convidados: Christian Feest Obadias Batista Garcia Gabriele Herzog-Schröder Wolfgang Kapfhammer Ranulfo de Oliveira José Carlos Simões Gerência da exposição: Christian Hölzl Organização da exposição: Ulrike Becker Projeto da exposição: Christian Sturminger Projeto gráfico da exposição: Christian Sturminger Acompanhamento de restauração: Christiane Jordan Sophie Fürnkranz Susanne Mendez Barbara Pönighaus-Matuella Florian Rainer Elisabeth Tarawneh Roswitha Zobl Administração de acervo: Reinhard Maurer

Índice

11

Steven Engelsman Prefácio

13

Claudia Augustat Além do Brasil Textos

21 32

Seção Catalográfica: Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, leste e sudeste do Brasil, Cuiabá, Mato Grosso, Gran Chaco, leste da Bolívia

41

Os Krahô na fotografia de Harald Schultz

47

Wolfgang Kapfhammer A dança das cabeças. Os Munduruku no século XIX

58

Seção Catalográfica: Munduruku, Pará

63

Lucia Hussak van Velthem Artes indígenas no noroeste da Amazônia

72

Seção Catalográfica: Tukano, Ticuna

81

Christian Feest Bororo. “A joia da coroa para a antropologia”

90

Seção Catalográfica: Bororo

99

Os Bororo na fotografia de Mario Baldi

105 110

Coleção fotográfica: Christine Zackel Eva Hackl

117 ISBN 978-3-99020-025-4 Todos os direitos reservados. A redação se esforçou em encontrar todos os proprietários de direitos de reprodução. Se isso ainda assim não tiver ocorrido em todos os casos, pede-se que a redação seja contatada.

Título: Claudia Augustat (Org.) Além do Brasil Catálogo da exposição do Museum für Völkerkunde, Viena Viena 2012

Agradecemos ao Ministério das Relações Exteriores da República Federativa do Brasil e à embaixada brasileira em Viena pelo apoio financeiro à publicação da versão em português do catálogo.

Montagem da exposição: Hugo Krammer Mila Milivojevic Julian Seppele Walter Schweiger Werner Ramharter Museom Comunicação e Marketing: Nina Auinger-Sutterlüty Ruth Strondl Sarah Aistleitner Angelika Kronreif Anja Priewe

Claudia Augustat Extintos!? Tentativa de aproximação de um conceito Seção Catalográfica: Pama, Apiaká, Kayapó Meridionais, Panará, Bororo do Cabaçal, população urbana junto ao rio Negro e na província peruana de Maynas Claudia Augustat, Obadias Batista Garcia, Wolfgang Kapfhammer e Ranulfo de Oliveira Uma visita à Casa do Imperador: sobre o trabalho de cooperação entre museus e source communities

126

Seção Catalográfica: Makuxi, Sateré-Mawé

135

Gabriele Herzog-Schröder “Acerca da selvageria dos Guaaribo se escreveu um bocado …”. Sobre a história do descobrimento e do contato com os Yanomami

144

Seção Catalográfica: Yanomami, Guaianas

155

Os Yanomami na fotografia de Claudia Andujar

163

Klaus-Peter Kästner Classificação histórico-cultural das etnias representadas na Coleção Natterer

Pedagogia museal: Christine Kaufmann Empréstimos: Kupferstichkabinett, Akademie der Bildenden Künste Wien Naturhistorisches Museum Wien Österreichisches Staatsarchiv Völkerkundliche Sammlung der Universität Marburg Claudia Andujar Wolfgang Kapfhammer John D. Marshall

Christian Feest Johann Natterer e as coleções etnográficas dos naturalistas austríacos no Brasil

Anexo 182

Mapa: Etnias representadas na Coleção Natterer de Viena

184

Johann Natterer e a expedição austríaca ao Brasil. Cronologia e biografias resumidas dos participantes da expediçao

190

Bibliografia

Prefácio

O século XIX foi a época das grandes expedições naturalistas. Na esteira de James Cook, naturalistas europeus também saíram em busca do Novo Mundo, a fim de descrevê-lo, catalogá-lo e medi-lo. A viagem de Alexander von Humboldt às Américas é certamente uma das mais famosas no âmbito da língua alemã e inclusive além dele, mas não pode ser tida como a maior. Essa honra certamente caberá a uma expedição ainda bem pouco conhecida, que tem seu ponto de partida em um país cujo nome surpreende ao ser vinculado ao assunto, levou a um outro país ainda bastante desconhecido e logo depois caiu no esquecimento: a expedição austríaca ao Brasil. Disso resultou, para o Museum für Völkerkunde, um bom motivo para apresentar a referida expedição a um público mais amplo na exposição Além do Brasil. Se a monarquia dos Habsburgos tinha imensa importância na Europa, além-mar, no grande e vasto mundo, e mesmo como potência colonial, seu papel era apenas subordinado. Com o enlace matrimonial da arquiduquesa austríaca Leopoldina com o sucessor do trono português Dom Pedro no ano de 1817, o príncipe Metternich vislumbrou uma oportunidade única de expandir a influência política da Áustria sobre o Brasil; a corte portuguesa havia se transferido ao país em 1807, fugindo de Napoleão. A ocasião representava também a chance única de enviar uma expedição científica ao país, à época ainda relativamente desconhecido; e a chance foi aproveitada com uma expedição que oficialmente durou apenas quatro anos: de 1817 a 1821. Um de seus participantes, no entanto, acabou permanecendo voluntariamente no Brasil por bem mais tempo. O taxidermista Johann Natterer, responsável pela zoologia no âmbito da viagem, atuou ao todo 18 anos, até 1835, no Brasil; ali amealhou de modo incansável produtos naturais e objetos etnográficos para as coleções imperiais. Os acervos etnográficos juntados por Natterer estão hoje entre as coleções mais importantes do Museum für Völkerkunde, e inclusive

fazem parte daquilo que há de mais expressivo acerca do assunto no mundo inteiro. Na exposição Além do Brasil esses acervos são novamente apresentados, e pela primeira vez se permite que os rastros de Johann Natterer sejam seguidos conforme pontos de vista geográficos. Com a vinculação dos acervos a questões atuais da pesquisa é construída uma ponte entre o passado e o presente, que também mostra como a perspectiva acerca dos objetos e sobretudo das culturas indígenas do Brasil se transformou no decorrer destes quase 200 anos. Não são apenas naturalistas e cientistas que dão seus depoimentos a respeito, mas também representantes de grupos indígenas do Brasil. Os últimos delineiam uma questão especialmente importante em nossa casa, pois pretendemos sempre trabalhar e expor a herança cultural em diálogo com as pessoas cujo passado está presente nas coleções. A cooperação com os Sateré-Mawé Obadias Batista Garcia e Ranulfo de Oliveira foi, nesse sentido, um passo importante e bem-sucedido para todos os envolvidos, um passo que esperamos ser o primeiro de uma longa caminhada. Graças ao engajamento da embaixada brasileira em Viena, o catálogo também está sendo publicado em língua portuguesa. Eu gostaria de agradecer cordialmente ao embaixador Julio Cezar Zelner Gonçalves por isso. Esperamos que desse modo o catálogo possa alcançar também a muitos no Brasil, e que a exposição possa seguir seus passos e chegar assim ao país. Meu agradecimento vai especialmente a todos os colegas do Museum für Völkerkunde e à instituição científica Kunsthistorisches Museum mit MVK und ÖTM, que contribuiu com muito empenho para que tanto a exposição quanto o catálogo se tornassem possíveis. Espero que todas as leitoras e todos os leitores do catálogo, bem como os visitantes da exposição possam se alegrar com o trabalho! Dr. Steven Engelsman Diretor do Museum für Völkerkunde de Viena

11

Claudia Augustat

AlÉM do Brasil

“Antigamente, os homens do clã bokodori (metade Ecerae) eram espíritos sobrenaturais que viviam alegremente em abrigos feitos de penugens e penas, chamados “ninhos de arara”. Quando queriam algo, mandavam um irmão mais novo pedi-lo a sua irmã, que o conseguiria com o marido. Um dia, mandaram dizer que estavam com vontade de comer mel; o mel que o cunhado os convidou a comer em sua casa era grosso, viscoso e cheio de espuma, pois ele havia copulado com a mulher quando foi pegá-lo. Os irmãos da mulher se retiraram, ofendidos, e resolveram procurar debaixo d’água a pedra com que poderiam furar as cascas de tucum e os caramujos, para confeccionar adornos como pendentes e colares. Finalmente acharam a pedra, e, graças a ela, realizaram com sucesso os trabalhos de perfuração. O sucesso arranca um riso triunfal [...] Curiosa por descobrir o motivo dos gritos que ouve ao longe, a mulher espiona os irmãos, violando então a proibição de olhar para dentro da cabana de penas. Após tal afronta, os bokodori resolvem desaparecer. Antes, repartem solenemente entre as linhagens os adornos que irão se tornar privilégio de cada uma; depois lançam-se todos dentro de uma fogueira (exceto os parentes já casados, que irão perpetuar a raça). Assim que pegam fogo, transformam-se em pássaros: arara-vermelha, arara-amarela, gavião, falcão, garça... Os outros habitantes da aldeia resolvem abandonar um lugar tão lúgubre. Apenas a irmã volta regularmente ao local do sacrifício, onde recolhe as plantas que nasceram das cinzas: urucum, algodão e cabaceira, e as distribui entre os seus.” (Citado conforme Lévi-Strauss 2010: 119–120) Na época mítica todos os seres eram humanos. Apenas em consequência de comportamentos errados é que os mesmos seres passaram a se diferenciar em humanos, animais, plantas, corpos celestes e seres espirituais, e foram definidas suas relações uns com os outros. Essa constituição de diferenças significava, com frequência, um longo processo de transformações, no qual os seres vivenciavam formas diversas da existência (Santos-Granero 2009: 4). Exemplos etnográficos mostram que também coisas eram parte desse processo: na mitologia dos Miranha (Miraña) o herói cultural no princípio era pura consciência, que apenas através da criação de uma banqueta se manifestava na condição de corpo. Com a ajuda do Yuruparí, que era ao mesmo tempo flauta e minhoca, ele criou humanos, animais e plantas (ibidem: 6). No tempo do surgimento dos animais também foram transformadas coisas que haviam possuído uma forma correspondente aos humanos. Assim, por exemplo, os Yanesha e Piro relatam que a rede Imagem 8: Mapa do Brasil com as rotas de viagem da expedição austríaca ao Brasil. Em torno de 1832/36. Arquivo

Imagem 9: Mamíferos e pássaros da coleção de Johann Natterer. Brasil. 1817–1835. Primeira Seção Zoológica, Naturhistorisches Museum, o Museu de História Natural de Viena Entre 1817 e 1835, Johann Natterer colecionou, no Brasil, além de mamíferos, mais de 12 mil pássaros, entre eles numerosas espécies que representaram novas descobertas para a ciência. Natterer principiou o processo de empalhamento in loco, enviando seu trabalho mais tarde ao Naturhistorisches Museum de Viena, onde o mesmo processo foi concluído. (AG)

tecida em que a aranha dormia se transformou em sua teia, e o colchão de palha sobre o qual dormia o tatu se transformou em sua couraça (ibidem: 5). A forma em que hoje se apresentam vários animais repousa, assim, sobre a transformação de objetos. Fernando Santos-Granero argumenta que os humanos, quando se adornam com objetos de penas, ossos, peles ou dentes de animais durante os rituais não estão equiparando seu corpo ao dos animais, mas sim aos artefatos da época mítica ancestral (ibidem: 7). Desse modo, eles estabelecem um vínculo com a época mítica ancestral e tornam a força criadora que esta emana utilizável no presente para a reprodução da comunidade. Nisso eles usam também objetos que na época mítica ancestral surgiram dos corpos dos heróis culturais e que em razão de sua origem possuem caráter sacral e efetividade ritual. “Objetos são componentes importantes dos corpos de todos os seres vivos, incorporados por processos míticos de criação ou técnicas cerimoniais da figuração do corpo.” (ibidem: 8.) As relações complexas de heróis culturais, humanos, animais, plantas e coisas, que foram esboçadas aqui de modo incipiente, são a expressão de cosmologias animistas. A maior parte dos objetos apresentados neste catálogo é oriunda de noções desse jaez. Segundo o antropólogo francês Philippe Descola constitui uma marca fundamental do animismo o fato de “humanos conce-

13

Imagem 10: Répteis e anfíbios da Coleção Natterer. Brasil. 1817–1835. Primeira Seção Zoológica, Naturhistorisches Museum de Viena Durante sua estada de dezoito anos no Brasil, Johann Natterer colecionou cerca de 1.400 répteis (tartarugas, crocodilos, lagartixas, cobras) e anfíbios (rãs, sapos, cobras-cegas) que são conservados na Coleção Herpetológica do Naturhistorisches Museum em forma de esqueletos, bem como de empalhamentos ou então conservados em álcool. (HG)

Imagem 11: Vermes intestinais conservados em álcool ou formol da Coleção Natterer. Brasil. 1817–1835. Terceira Seção Zoológica, Naturhistorisches Museum de Viena Trata-se aqui de quatro diferentes espécies de tênias (Cestoda) assim como de uma lombriga vomitada por Johann Natterer na viagem de volta. O que há de especial nos vermes de vísceras da Coleção Natterer é que em muitos dos casos também os animais hospedeiros se encontram na coleção do Naturhistorisches Museum. (HS)

derem a alguns não-humanos uma interioridade idêntica à sua” (Descola 2011: 197). De um modo geral, vinculamos essa interioridade ao conceito de “alma”. Esse conceito designa o si-mesmo interior diante do si-mesmo exterior, que é o corpo.1 Em cosmologias animistas, animais e plantas possuem ou, melhor dizendo, os não-humanos possuem uma alma comparável à humana, que lhes permite se comunicar com os humanos e se “comportar de acordo com as normas sociais e as prescrições éticas” (ibidem: 197). Os não-humanos se diferenciam, desse modo, dos humanos, não através de sua cultura, mas sim através de seus corpos, que são constituídos de penas, peles, escamas ou cascas. Essa percepção encontra sua confirmação na época mítica ancestral descrita acima, na qual todos os seres eram humanos não apenas segundo suas feições, mas inclusive possuíam uma cultura comum. Essa “continuidade cultural” prossegue no presente, pois as relações entre os humanos e os não-humanos são perspetívicas. Todos os seres do mundo percebem a si mesmo como humanos, enquanto outros seres são não-humanos, que em sua relação com os humanos são presas ou predadores. Descola elucida tudo isso com os seguintes exemplos: “os Macuna […] dizem que as antas se pintam com urucu para dançar e que os caititus tocam trompete durante seus rituais, enquanto os waris garantem que o caititu fabrica licor de milho e a onça leva suas presas para dentro de casa para que sua esposa as cozinhe.” (ibidem: 202). As ações das antas, caititus e onças não devem ser compreendidas como simbólicas ou como analogias, mas correspondem sim a autopercepção desses animais, no lugar dos quais os humanos são capazes de se colocar graças à alma e a à cultura comum. Em consequência do corpo diferente, na percepção dos humanos os caititus destroem a plantação de milho e a onça engole cruas as suas presas. Por outro lado, o fato de ter o mesmo corpo humano, permite aos humanos perceber humanos de outros grupos a partir da mesma perspectiva e perceber, portanto, suas ações quase completamente conforme elas de fato são. Essa breve introdução às cosmologias ameríndias mostra que muitos dos objetos apresentados na exposição e no catálogo estavam inseridos em uma concepção de mundo que se diferenciava fundamentalmente da concepção de mundo dos humanos que levaram essas mesmas coisas para a Europa. Para os pesquisadores do princípio do século XIX, o Brasil era um país desconhecido com uma natureza transbordante, que precisava ser descoberta e catalogada. Portugal havia praticado uma política de acesso restritiva até o princípio do século XIX, da qual também Alexander von Humboldt foi vítima: no ano de 1800, quando ele chegava da Venezuela, sua entrada no país foi proibida. Em 1807, a corte portuguesa, fugindo de Napoleão, se transferiu ao Rio de Janeiro; em 1815, a colônia foi proclamada “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves” – era, na época, a única monarquia na América do Sul –, e assim equiparada à pátria mãe. Com a transferência da corte, os portos brasileiros foram abertos para o comércio internacional e também para viajantes pesquisadores. 1

14

Sobre a universalidade da divisão entre físico e espiritual ver Descola 2011: 186ss.

O fato de a Áustria ter participado intensamente da exploração científica e natural do país a partir de então, deve ser creditado a uma aliança matrimonial, da qual muitos austríacos e brasileiros hoje em dia não mais se dão conta: em 13 de maio de 1817, a arquiduquesa Leopoldina (22.1.1797–11.12.1826), filha do imperador austríaco Francisco I e da princesa Maria Teresa de Nápoles-Sicília, se casou com o sucessor do trono português, Dom Pedro I (12.10.1798–24.9.1834), na Augustinerkirche, em Viena. O casamento realizado por cálculo político havia sido arranjado pelo Ministro do Exterior Klemens Wenzel von Metternich; Leopoldina se submeteu a esse destino, conforme lhe era ordenado pela educação habsburguiana (Fuchs 1999: 37). Em uma carta a sua irmã Maria Luísa, que havia sido entregue em casamento a Napoleão por Metternich, ela escreveu: “[…] pois tu sabes por experiência própria que uma princesa jamais pode agir como quer” (Oberacker 1988: 71). Não foi fácil para o pai de Leopoldina se declarar de acordo com a boda, uma vez que sabia da fama de “femeeiro” que marcava seu futuro genro. Dom Pedro tinha 10 anos de idade quando chegou com a família ao Brasil. Devido à relação deteriorada de seus pais, cresceu na singela fazenda de Dom João VI, seu pai. Sua cultura era deficiente, sua educação antes frouxa. Ele sofria de epilepsia e seu caráter é descrito como impaciente e agressivo. Contudo parece ter feito boa figura, a ponto de causar impressão. Leopoldina escreveu a sua irmã: “O retrato do príncipe ainda me deixa meio louca. […] Ele é bonito como Adônis” (Fuchs 1999: 40). Em 29 de novembro de 1816 foi concluído o contrato de casamento. As núpcias se realizariam apenas em 13 de maio de 1817, per procurationem: uma vez que o noivo não estava presente, o arquiduque Carlos, tio de Leopoldina, legitimado por plenos poderes, assumiu seu papel. O embaixador português Marialva, que também havia conduzido as negociações relativas ao casamento, promoveu uma grande festa no Augarten, que ainda por muito tempo permaneceu na recordação dos vienenses como o “casamento brasileiro”. Em agosto, Leopoldina viajou com o navio português São Sebastião até o Rio de Janeiro, onde chegou em 5 de novembro e foi recebida em festiva solenidade. O primeiro encontro de Leopoldina com seu esposo foi bastante positivo, o casal pareceu sentir uma inclinação mútua (Oberacker 1988: 128ss.) e os anos precoces do casamento por certo foram até bem felizes. Seus primeiros filhos nasceram em 1819 e 1820. Dom Pedro confiava em sua esposa e permitia que ela o aconselhasse em questões governamentais. Em 1821, o rei Dom João VI voltou a Portugal, que ele via ameaçado pelo pensamento liberal, e Dom Pedro I foi nomeado príncipe-regente. O Brasil à essa época já havia alcançado a independência econômica de Portugal. Com o retorno da corte portuguesa a Lisboa, o país deveria retroceder ao status de colônia, o que levou a perturbações e protestos. Para não perder completamente o domínio sobre o país, Dom Pedro I se decidiu a declarar, seguindo o conselho de Leopoldina, a independência de Portugal. Leopoldina inclusive foi a primeira a assinar a Declaração de Independência, e a enviou a São Paulo, a seu marido. No dia 1o de dezembro, Dom Pedro foi coroado primeiro imperador do Brasil, e Leopoldina se tornou a primeira imperatriz brasileira.

Imagem 12: Rédeas e sela para mulas. Cultura popular, São Paulo, Brasil. Em torno de 1820. Couro, algodão, caracol, penas, metal, C. máx. 70 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.378, 2.380, 2.383a/b A sela era usada, junto com o travesseiro de algodão posicionado debaixo dela, para amansar as mulas. De resto, essa combinação era usada normalmente apenas por condutores de jegues. O adorno de cabeça (cabeçada) ainda é decorado com um aplique de penas na parte superior. Ele era usado em torno do pescoço pelo primeiro animal do grupo, que seguia na frente do resto da expedição e indicava a direção a ser seguida. (CB)

O ano de 1822, no entanto, é um ano decisivo não apenas para o destino político do Brasil, mas também para o casamento do jovem casal. Em São Paulo, Dom Pedro encontra Dona Domitila, que se torna sua concubina. Não era a primeira vez que Dom Pedro traía Leopoldina, mas Domitila se transformou em componente efetivo na vida do regente; ele a introduziu oficialmente nos salões da corte e inclusive a nomeou primeira dama da corte. À mágoa pessoal, portanto, foi acrescentada ainda a humilhação oficial. Leopoldina suportou sua situação cheia de dignidade, pelo menos externamente. A cada ano, dava um novo descendente ao imperador, mas seus filhos não eram capazes de consolá-la das humilhações que experimentava por parte do marido. Sua saúde enfraqueceu, e em dezembro de 1826 ela teve um aborto. O povo brasileiro, cheio de amor por sua imperatriz, se mostrava profundamente preocupado. Por fim, toda a esperança foi vã: Leopoldina I, imperatriz do Brasil, fale-

15

ceu em 11 de dezembro. E até hoje ela é admirada pelos brasileiros. O casamento da arquiduquesa teve, em primeira mão, motivação política, mas ofereceu também uma excelente oportunidade para enviar uma expedição científica ao Brasil. O fato de esta expedição ter sido levada a cabo se deveu ao grande interesse pessoal do imperador Francisco I pelas ciências naturais, sobretudo pela botânica. Leopoldina mostrava os mesmos interesses de seu pai. Era tida como inteligente e culta, e se interessava por zoologia, astronomia e mineralogia. O diretor do Gabinete de Ciências Naturais da corte, Carl von Schreibers, definiu os objetivos da viagem e registrou instruções de serviço bem detalhadas para a expedição. Nelas se encontravam, em primeiro plano, além da atividade de colecionar, também a de documentar artigos de troca adequados ao comércio com a Europa e produtos naturais brasileiros. No que dizia respeito à população indígena, dizia-se: “De todos eles [nativos selvagens] devem ser buscadas informações acerca de sua vida, de seus usos e costumes, descrever seu aspecto exterior ou representá-lo por meio de imagens, e, na medida do possível, conseguir um exemplar de seu crânio” (citado conforme Kann 1992: 22). Depois que todos os membros da expedição chegaram ao Rio de Janeiro em 1817, foram feitas primordialmente algumas excursões às proximidades a fim de se familiarizar com o clima e com as dificuldades previstas para uma viagem mais longa. No dia 1o de junho de 1818, as primeiras coleções foram enviadas por navio a Viena, e os pesquisadores passaram a fazer expedições maiores: Johann Emanuel Pohl viajou pelas províncias de Goiás e Minas Gerais até 1821, Johann Natterer se pôs a caminho de São Paulo, acompanhado por Ferdinand Dominik Sochor. A partir de Ipanema, ele encaminhou numerosas excursões nos três anos seguintes, e organizou coleções abrangentes, sobretudo zoológicas, ao longo desse período. Natterer também recebeu permissão para atravessar o país inteiro por via fluvial. Este plano quase teve fim, no entanto, com as confusões políticas que culminaram na independência do Brasil em 1822. O embaixador austríaco, barão Stürmer, exigiu o retorno de todos os cientistas austríacos, uma vez que temia por sua segurança. Natterer, porém, não se mostrou disposto a atender às ordens. Deixou Sochor em Ipanema com as coleções e viajou ao Rio de Janeiro, onde recebeu permissão de permanecer no Brasil, e para trazer também seus ajudantes ao Rio. Desse modo, Natterer ganhou tempo e seu plano vinculado à estratégia deu certo: a situação política se acalmou e ele acabou recebendo permissão para realizar seus intentos. Natterer e Sochor partiram, em outubro de 1822, com uma caravana de mulas ao interior do país; de então em diante, as notícias dos cientistas foram ficando cada vez mais raras. Apenas as caixas com coleções que iam chegando mostravam que eles seguiam trabalhando incansavelmente. Passando por Goiás e Minas Gerais, eles percorreram o Mato Grosso, onde chegaram a Cuiabá em dezembro de 1823. Ficaram por lá até agosto de 1825, mas então tiveram de interromper a viagem, uma vez que Natterer sofria de uma grave inflamação no fígado. Partindo de Cuiabá, eles viajaram pelo rio Paraguai, e de lá seguiram adiante até a cidade de Mato Grosso, junto ao rio Guaporé, à qual chegaram em outubro de

16

1826. No local, Sochor acabou sucumbindo a uma febre em 13 de dezembro de 1826, e também a saúde de Natterer não andava bem. Por isso ele permaneceu até 1829, com algumas breves interrupções, em Mato Grosso. Em 1827, Natterer voltou a receber de Viena a ordem de retornar, mas acabou decidindo arbitrariamente prosseguir sua viagem. Em julho de 1829, seguiu de barco até o rio Guaporé e dali pelo rio Madeira até Borba. De Borba foi a Manaus, e depois, seguindo pelo rio Negro, até San Carlos, na fronteira venezuelana. Em 1831, Natterer voltou a Barcelos, onde se casou com a brasileira Maria do Rego, com quem teve três filhas. Por fim, explorou a região do rio Branco até a fronteira com a então Guiana Britânica. De 1831 a 1834, passou o tempo inteiro nas imediações de Manaus. Em 1835, viajou com sua família até a hoje cidade de Belém, e de lá, passando por Londres, a Viena, onde chegou em agosto de 1836. O rendimento da expedição é mais do que impressionante: 1.146 mamíferos, 12.293 pássaros, 1.678 anfíbios, 1.621 peixes, 32.825 insetos, 409 crustáceos, 951 conchas, 73 moluscos, 1.729 vermes intestinais conservados em álcool ou formol, 242 sementes, 430 minerais, 138 tipos de madeira, 216 moedas e 192 crânios, sobretudo de animais, foram levados a Viena em onze transportes, e lá integrados ao Gabinete de Ciências Naturais da corte. As coleções etnográficas parecem, em comparação com tudo isso, subproduto, mas ainda assim são, com seus 2.217 Números de Inventário, as mais abrangentes e importantes de sua época. O foco está nas culturas indígenas da Amazônia, mas também grupos do Mato Grosso, do Gran Chaco e do leste da Bolívia estão representados. Dignas de nota são também as coleções que documentam a cultura colonial do Brasil. A atividade de coleta etnográfica representou uma descontextualização que retirou os objetos de seus nexos de sentido e os colocou à disposição de novas atribuições de significado. Um símbolo desse processo são as aquarelas que documentam a exposição da coleção na casa imperial. Embora os objetos tenham sido ordenados por grupos indígenas ou regiões, o arranjo respeitou critérios estéticos que não contemplaram o verdadeiro significado ou a importância dos objetos. E com isso, também, os objetos não foram arranjados apenas de modo a corresponder aos hábitos visuais dominantes na época, mas também inseridos em uma concepção de mundo que constitui a contrapartida a seu âmbito animista de origem: o naturalismo (Descola 2011: 259). Segundo Descola, no naturalismo as leis universais da matéria e da vida servem de paradigma para situar também a diversidade cultural e botar seus elementos em relação uns com os outros (ibidem). Embora todos os seres vivos sejam diferentes em sua aparência exterior, eles são constituídos da mesma matéria, e por isso compartilham uma natureza comum. O que os diferencia uns dos outros é a interioridade, a alma, a cultura, que nessa concepção de mundo é atribuída apenas ao humano. A cultura humana se opõe à natureza. No princípio do século XIX, a posição dos índios nessa concepção de mundo ainda estava longe de ter sido definida. A classificação de Johann Natterer, dividindo-os em índios “mansos” e “selvagens”, que pode ser encontrada a cada pouco em seus textos, degreda os últimos com nitidez ao âmbito da nature-

Imagem 13: Chifre para beber água. Cultura popular, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1830. Chifre, couro, C. 20 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.435 Chifres para beber água como esse eram chamados de guampas e usados em expedições; usando-os, era possível beber água sem apear do cavalo. No caso da guampa aqui apresentada, trata-se da peça que o próprio Johann Natterer utilizava em suas viagens. (CB)

za, ao passo que são tomados como “mansos” os índios que haviam se inserido na cultura e na sociedade brasileiras (Schmutzer 2011: 164). O modo de ver de Natterer não é atípico para sua época, ainda que os escritores do iluminismo já tenham propagado a igualdade dos seres humanos e suas culturas (ibidem). O desenvolvimento da etnologia como ciência contribuiu, entre outras coisas, para que os índios e seu modo de vida fossem situados de modo definitivo no âmbito da cultura. Sua percepção, no entanto, via de regra permanece, mesmo no contexto científico, vinculada à diferenciação entre cultura e natureza, sendo que agora é uma variedade de culturas humanas que é oposta à natureza. A oposição entre animismo e naturalismo, conforme Philippe Descola a caracteriza, pretende deixar claro, no contexto do presente catálogo, que os objetos etnográficos, em sua condição de objetos de museu e objetos de pesquisa, se tornaram parte de diferentes cosmologias, que em minha opinião não deveriam se excluir, mas sim se explicar mutuamente. Não se trata de um “ou isso ou aquilo”, mas de um “tanto isso como aquilo”. Considerar coleções etnográficas por diferentes perspectivas deve levar a um diálogo produtivo e a uma compreensão mais profunda das coisas. É a esse ponto de vista que se tenta fazer jus tanto na exposição quanto no catálogo. Christian Feest oferece um panorama da história das coleções, ao passo que Wolfgang Kapfhammer com seu texto situa a coleção dos Munduruku em seu pano de fundo histórico-colonial. Lucia Hussak van Velthem propicia, ante o pano de fundo das transformações culturais entre os grupos de língua tucana, uma visão mais direta da compreensão artística dos índios. Christian Feest volta a tomar a palavra ao investigar o acer-

vo dos Bororo e relacioná-lo com algumas questões fundamentais da pesquisa atual. Claudia Augustat questiona, a partir de exemplos selecionados da coleção, o conceito de “extinção” e sua validade para os grupos indígenas representados nas diferentes coleções. Em outro texto, ela entabula, junto com Wolfgang Kapfhammer, Ranulfo de Oliveira e Obadias Batista Garcia, um diálogo com representantes dos Sateré-Mawé, que ilumina o significado de coleções históricas para representantes de comunidades indígenas e documenta o princípio notável de um projeto de colaboração. Gabriele Herzog-Schröder sublinha mais uma vez, em seu texto sobre a história da pesquisa e dos contatos com os Yanomami, como a imagem de um grupo indígena pode mudar no interior da ciência. Klaus-Peter Kästner oferece uma alentada classificação dos grupos indígenas representados nas coleções na história cultural brasileira. Um acesso completamente diferente é oferecido pelas sequências de fotos inseridas entre os textos, e que refletem o ponto de vista do fotógrafo Mario Baldi, do etnólogo Harald Schultz e da artista Claudia Andujar. Esperamos que a exposição e o presente catálogo sirva de estímulo também para outros cientistas e pesquisadores se ocuparem, a partir de sua perspectiva, com esse material abrangente e fascinante, e também para que a colaboração com representantes de grupos indígenas possa ser prosseguida e inclusive ampliada no futuro. Gostaria de aproveitar a oportunidade para agradecer cordialmente a todos os colaboradores do Museum für Völkerkunde e do Kunsthistorisches Museum por sua cooperação e seu engajamento nesse grande projeto. Meu agradecimento especial a Elisabeth Herrmann, que com seu profissionalismo e sua vasta experiência contribuiu de maneira decisiva para o catálogo fosse levado a cabo. Graças a ela, jamais perdi a alegria de trabalhar no projeto. Meu agradecimento vai também a todos os autores dos textos e das legendas fotográficas pela cooperação produtiva. Sobretudo as várias conversas com Wolfgang Kapfhammer, Gabriele Herzog-Schröder e Christian Feest foram e continuam sendo um enriquecimento para mim, e espero que continuem a sê-lo no futuro. Ranulfo de Oliveira e Obadias Batista Garcia nos permitiram, com muito conhecimento e humor, uma visada peculiar em seu modo de ver as coisas. Nossa cooperação está entre as experiências mais maravilhosas de meu trabalho em museus até hoje. Uma exposição surge na cabeça do curador, mas precisa de pessoas que permitem que essa ideia se torne realidade: Christian Sturminger organizou a exposição mostrando muita compreensão acerca da perspectiva etnológica, e eu lhe agradeço pela cooperação inspiradora e confiante. Christiane Jordan acompanhou a exposição pelo lado conservatório, e – junto com seus colegas e suas colegas da Seção de Conservação – preparou os objetos com todo o amor para a apresentação. Agradeço ainda a Ulrike Becker e Cécile Bründlmayer pela cooperação sempre engajada e amiga em todos os âmbitos da organização da exposição. Meu agradecimento vai também a todos os amigos de dentro e de fora do museu, que me acompanharam com paciência e de ouvidos abertos durante esse projeto, sobretudo a meu marido Robert Hofmann. Por fim eu gostaria de agradecer a meus pais Hildburg e Günter Augustat: agradecer-lhes simplesmente por tudo. É a eles que eu gostaria de dedicar este livro.

17

Textos

Christian Feest

Johann Natterer e as coleções etnográficas dos naturalistas austríacos no Brasil A coleção etnográfica que Johann Natterer, e, em proporção menor, outros naturalistas austríacos reuniram entre os anos de 1819 e 1835 no Brasil, e que hoje é conservada em sua maior parte no Museum für Völkerkunde de Viena, constitui o acervo mais abrangente de objetos da herança cultural dos povos indígenas brasileiros (e seus vizinhos não-indígenas) da primeira metade do século XIX, e além disso está entre os acervos mais importantes de todos os tempos dedicados ao assunto. O fato de uma coleção dessa envergadura e dessa importância permanecer quase completamente despercebida, sobretudo no Brasil, durante quase dois séculos, se deve ao efeito conjunto de diversos fatores: a história pessoal de Johann Natterer, a história institucional das coleções etnográficas em Viena, as barreiras linguísticas e ainda a dimensão e a diversidade da própria coleção. O presente texto se dedica primeiramente à questão de como foi possível que um empalhador austríaco pudesse amealhar uma coleção etnográfica tão abrangente, em seguida persegue as veredas confusas que a coleção percorreu em Viena (e alhures) até chegar ao lugar em que hoje se encontra, e por fim tenta buscar uma caracterização do acervo, sobretudo também em comparação com outras coleções semelhantes da primeira metade do século XIX.

Naturalistas como etnógrafos Durante os preparativos para a expedição que o imperador austríaco Francisco I enviou ao Brasil por ocasião das núpcias de sua filha Leopoldina com o sucessor do trono português Dom Pedro, que já residia com a família real no país desde 1807, o diretor do Real e Imperial Gabinete de História Natural, Karl von Schreibers, redigiu uma “Instrução de Serviço aos Naturalistas designados à Viagem ao Brasil”. O objetivo embutido nesse documento consistia em contribuir “o máximo possível para a pesquisa e o conhecimento dessa grande e altamente estranha parcela de nosso planeta” e sobretudo enriquecer em conhecimento e objetos “a ciência e os estabelecimentos públicos da monarquia dedicados ao assunto”.

Na verdade Schreibers não dispunha de nenhuma experiência atinente à organização de grandes viagens de pesquisa, de modo que não causa surpresa o fato de suas indicações relativas à atividade de coleta e pesquisa terem sido menos detalhadas do que as que diziam respeito aos procedimentos burocráticas e questões disciplinares. Os viajantes deveriam coletar, além de “produtos naturais”, também “artigos de comércio e entre eles sobretudo as espécies de madeira de lei mais nobres e refinadas, todas as plantas cultivadas extensivamente e todos os animais domésticos e de criação, na medida em que houver esperança de poderem de algum modo ser transportados de forma adequada e posteriormente aclimatizados também na Europa”; dados como origem, nomenclatura local e outras observações úteis relativas aos objetos da coleção deveriam ser pormenorizados por escrito, e as coleções deveriam ser remetidas somente ao Real e Imperial Gabinete de História Natural (Imagem 16). As instruções de qualquer modo não eram completamente desprovidas de contradições: por um lado era recomendado que fossem coletados diversos exemplares de comprovação, sobretudo de espécies mais raras, e por outro era concedida preferência à maior cobertura possível da variedade de espécies, em detrimento da quantidade de objetos coletados (Schmutzer 2011: 49–49). Na prática, a instrução de Schreibers tinha uma utilidade apenas mediana, pois a maioria dessas decisões poderia ser tomada apenas após o conhecimento das condições e possibilidades locais. O ato de coletar dados etnográficos e, principalmente, de objetos de interesse etnográfico, tinha um papel meramente subordinado nessa “Instrução de Serviço”. É mencionado apenas de passagem que os naturalistas deveriam dedicar também alguma atenção aos usos e costumes dos “primitivos semicivilizados” e fazer registros

Imagem 15: Viagem de navio nas cachoeiras do rio Grande de Belmonte. Em outubro de 1816” (Detalhe). Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied. 1816. Aquarela e bico de pena, L. c. 404 mm. BrasilienBibliothek der Robert Bosch GmbH, Stuttgart. (© ibid.) Antes ainda da expedição austríaca ao Brasil, o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied viajou por boa parte do leste brasileiro. Suas aquarelas oferecem uma noção bastante precisa acerca das dificuldades de uma viagem fluvial. Sobretudo cachoeiras e corredeiras podiam representar perigosos obstáculos. (CA)

Imagem 16: Provas de matérias-primas do Brasil. Col. Natterer

21

dos mesmos em palavras e imagens. Diante do fato de que o Gabinete de História Natural desde 1806 também dispunha de uma coleção etnográfica, a importância menor desse tema pode parecer estranha. Schreibers, no entanto, não se mostrava especialmente feliz com esse acervo sob sua responsabilidade – cuja existência se devia ao desejo do imperador de adquirir parte da coleção das circunavegações de Cook –, e inclusive por várias vezes se esforçou no sentido de transferi-lo à Coleção Real e Imperial de Ambras, localizada no palácio do Belvedere, a fim de abrir espaço às tarefas fundamentais no já espacialmente limitado Gabinete de História Natural. Nesse sentido, contudo, o imperador Francisco I talvez fosse mais moderno do que o diretor de seu Gabinete de História Natural, pois a etnografia havia surgido já no final do século XVIII como ciência independente no âmbito das ciências naturais (juntamente com a estatística ou as ciências estatísticas); o “Sistema Natural” de Linnaeus serviu de exemplo também para a prática etnográfica da coleta, da comparação e da classificação. Na Universidade de Göttingen, onde as palavras “etnografia” (Ethnografie) e “etnologia” (Völkerkunde) haviam sido cunhadas em 1771, o interesse pela diversidade cultural da humanidade se uniu também à identificação de sua variabilidade física no âmbito de uma antropologia de cunho naturalista e medicinal, que buscava uma unidade das ciências que propiciavam o conhecimento do homem. Por isso, também, não causa surpresa o fato de Schreibers ter solicitado um conselho especializado ao catedrático Johann Friedrich Blumenbach de Göttingen no que dizia respeito a esse assunto. No entanto as observações de Blumenbach chegaram demasiado tarde para poderem ser incluídas na “Instrução de Serviço”. Independentemente disso, Schreibers já havia solicitado encarecidamente a seus naturalistas prontos para a viagem que conseguissem “na medida do possível também um crânio” dos indígenas (Schmutzer 2011: 60–61) – portanto a única indicação concreta para a coleção no que dizia respeito aos povos do Brasil era, no fundo, uma indicação típica das ciências naturais. As coleções etnográficas do Gabinete de História Natural podem ter proporcionado estímulos sobretudo a Johann Natterer e Heinrich Schott, os dois naturalistas estabelecidos em Viena, no que dizia respeito a sua própria atividade de colecionadores. Isso vale não apenas para os objetos das circunavegações de Cook, mas também para a grande coleção da Groenlândia do ator e mineralogista Karl Ludwig Giesecke, que em 1815 – portanto pouco antes da viagem ao Brasil – chegou às mãos do imperador como presente, e logo foi apresentada ao grande público (Heger 1908: 5–8). Caso não se queira considerar o fato de que os austríacos, na condição de cidadãos de um Estado composto por vários povos eram confrontados com bastante frequência com a diversidade cultural, não havia nada, na verdade, que pudesse contribuir no sentido de ajudar os viajantes e naturalistas de um modo especial em sua atividade de coletar objetos etnográficos. Entre os participantes da viagem, que haviam sido escolhidos por sua especialização nos campos da zoologia, da botânica ou da mineralogia, e não como etnógrafos, Heinrich Schott, Johann Emanuel Pohl e Johann Natterer coletaram, em medidas bastante

22

diferentes, também documentos culturais no Brasil. Isso certamente tem a ver com sua permanência mais longa, se comparada com a de seus colegas – nenhum deles, ao que tudo indica, principiou a colecionar objetos etnográficos antes da volta dos referidos colegas. A coleção etnográfica também foi complementada através da intervenção da arquiduquesa Leopoldina, que tentou de tudo para fazer com que sua nova pátria estivesse bem representada na Áustria. Para determinar a origem e o objetivo desses objetos existem etiquetas e/ou listas de pacotes que se encontram aplicadas aos objetos dos, no total, doze comboios vindos do Brasil, ou então registros de entrada que foram escritos após a chegada das remessas a Viena (vide mais detalhes em Feest 2012).

A arquiduquesa Leopoldina As remessas de Leopoldina, vindas do Brasil, não aparecem no Panorama geral do conteúdo de todas as remessas enviadas do Brasil pelos naturalistas reais-imperiais durante os anos de 1817 a 1836, que Josef, o irmão de Johann Natterer, havia esboçado em 1837 na condição de curador do Gabinete de História Natural, uma vez que estavam destinadas em primeira mão como presentes a seu pai ou a outros membros de sua família (Josef Natterer 1837). Entre os referidos presentes havia um casalzinho de onças vivo, assim como macacos e pássaros, que chegaram em 1819, e foram mantidos em parte no jardim zoológico, em Schönbrunn, em parte nas gaiolas de animais raros do Burggarten (Riedl-Dorn 2000: 34). Com a quarta remessa chegou a Viena, em 1821, “um acréscimo não menos estranho”, como presente da princesa herdeira: “armas e utensílios dos já em parte civilizados Puris, uma tribo ancestral sul-americana que habita às margens do rio Paraíba, na capitania do Rio de Janeiro” (Wiener Zeitschrift 1821: 1229). A lista do pacote indicava 7 arcos e 140 flechas de pontas diferentes; quando a coleção foi inventariada, em 1882, foram encontradas inclusive 153 flechas que pareciam ser oriundas desse mesmo acervo. Para uma representação adequada da cultura material dos Puri, a limitação a arcos e flechas naturalmente evidencia uma visão bastante imprecisa das coisas. Mas ela não deixa de ser típica das primeiras coleções etnográficas, e reflete por um lado o estereótipo difundido da selvageria das populações indígenas, mas por outro lado também a disponibilidade de grandes quantidades desse importante instrumento de caça para fins de troca, em oposição a outros bens, que na condição de objetos isolados certamente eram menos dispensáveis para seus donos. Sobretudo no passado mais recente, pessoas vinculadas à administração de museus muitas vezes se desesperaram devido ao gigantesco acervo em flechas, ainda que a diversidade e a característica específica de uma cultura, visível em suas formas, faça delas fontes importantes da história da técnica, mas também da identidade indígena. Não existe nenhuma indicação de que Leopoldina, apesar da proximidade relativa das regiões habitadas pelos Puri da capital Rio de Janeiro, em algum momento tenha entrado em contato pessoal com os indígenas. É bem provável que os objetos da coleção sejam

oriundos da coleção do pintor e naturalista prussiano Friedrich Sellow, que havia chegado ao Brasil em 1814 a convite de Heinrich von Langsdorff, e em 1815 acompanhara, junto com o ornitólogo Georg Wilhelm Freyreiss, o príncipe Maximiliano de Wied em sua visita aos Puri (Hackethal 1995). Em 1818, Johann Natterer relatou, em duas cartas enviadas a Schreibers, acerca de um encontro com Sellow e de seus presentes à arquiduquesa, compostos de uma “significativa coleção de peles de pássaros e mamíferos, e também de insetos […] que em sua maior parte haviam sido reunidos na região da Bahia pelo senhor Freyreiss” (Schreibers 1820–1822, 1: 140; 2: 11–12). Embora as armas dos Puri não sejam mencionadas expressamente, vale a pena notar que elas não tinham a menor importância para Natterer nesse momento (e menos ainda para Schreibers).

Heinrich Wilhelm Schott As informações bastante completas sobre a atividade coletora do jardineiro Heinrich Wilhelm Schott podem ser colhidas não apenas nas listas de pacotes, mas também em seu relatório acerca das duas expedições na província do Rio de Janeiro (Schott 1822), que Schreibers publicou nas Notícias dos naturalistas imperiais austríacos no Brasil e dos resultados de seu diligente trabalho. Na primeira dessas viagens Schott encontrou, em julho de 1819, nas proximidades da fazenda de Luiz Lazar, alguns Puris por lá estabelecidos, aos quais insinuou através de sinais “que queria conseguir algumas de suas armas mediante uma troca”. Por um chapéu cheio de farinha, ele logrou se apossar de um arco e de um total de quatro flechas, mas não obteve sucesso em seus esforços no sentido de conseguir um número ainda maior dos instrumentos de caça. De qualquer modo, dedicou a eles uma descrição bem detalhada. (Schott 1822: 21–26). Quatro semanas depois o jardineiro viajante chegou à Aldeia da Pedra, uma colônia missionária organizada por frades capuchinhos, com uma população mista composta de Coroado e Coropo, onde presenciou uma dança dos Coroado, acompanhada de “maracás e algumas espécies de trompetes. Alguns dos últimos, que tive oportunidade de amealhar, são feitos de bambu, dos anéis ósseos de rabo de tatu e de cera” (Schott 1822: 48). O conjunto das coisas que conseguiu adquirir com sua atividade de coleta, Schott o resume conforme segue: “Além de duas caixas com plantas ressecadas e outras duas caixas com 46 plantas vivas, ainda consegui 209 sementes diferentes, 29 amostras de madeiras, várias centenas de insetos, algumas cobras, arcos, flechas e trompetes dos índios, um jacaré vivo de seis pés de comprimento e várias outras coisas” (Schott 1822: 65). Seu interesse na população indígena também é comprovado pelo registro de uma breve lista de palavras da língua Puri, vocabulários mais abrangentes e inclusive textos breves em Coroado (Imagem 17) e Coropo (Schott 1822: 22s., 41–51). Um vocabulário da língua Gueren, da família linguística Botocudo, do qual restou um fragmento (Loukotka 1968: 73, 383), deve ter sido registrado em outra oportunidade, talvez no Rio de Janeiro.

Imagem 17: Lista de palavras dos Coroado. Conforme Schott 1822: 44s

Os objetos etnográficos da Coleção Schott que chegaram a Viena, correspondiam apenas em parte às indicações do relato de viagem. Entre os objetos do terceiro comboio (1821), “3 arcos, 10 flechas e 1 trompete dos Coroado”, apenas o trompete é de origem incontestável; no processo de inventaração de 1882 os arcos e flechas também foram atribuídos aos Coroado, ainda que a lista não os identifique como tal e tenhamos apenas o relato de Schott acerca da aquisição de um arco e de quatro flechas dos Puri. Uma notícia de jornal de caráter oficioso fala de “armas e utensílios dos Coroado e Coropo” (Wiener Zeitschrift 1821: 1229). Com a quinta remessa, que Schott acompanhou pessoalmente em 1821/1822, chegaram, além de amostras de fibras, mais três arcos, cinco flechas e um “machado de pedra para o combate” sem indicação de procedência, “dois “cestos de transporte dos índios, feitos de folhas de palmeira”, atribuídos retroativamente aos Coroado, e “1 feixe inteiro com 10 flechas dos Coroado da região do rio Preto”. Provavelmente Schott tenha adquirido no Rio de Janeiro também o “guarda-chuva chinês” (Imagem 19), que aponta para o interesse dos naturalistas austríacos pela população chinesa do Brasil.

Johann Emanuel Pohl Mais abrangente e ainda muito mais multifacetada do que a Coleção Schott, ainda dominada por arcos e flechas, é a coleção do médico praguense Johann Emanuel Pohl. Pohl era um botânico respeitado, mas foi incluído na equipe da expedição ao Brasil como mineralogista, porque o âmbito da botânica no princípio havia sido reservado ao catedrático Johann Christian Mikan; este, no entanto, acabou se revelando uma personalidade difícil e um pesqui-

23

Imagem 18: “Índios Botocudos”. Litografia de Carl Heinrich Rahl conforme um desenho de Carl von Saar. 1821. Arquivo

sador pouco exitoso, e já depois de um ano voltou para a Áustria. Pohl, ao contrário, fez uma longa e espraiada viagem, que o levou às províncias de Minas Gerais e Goiás entre setembro de 1818 e fevereiro de 1821, e que está documentada com grande riqueza de detalhes em seu livro Reise im Inneren von Brasilien [Viagem ao interior do Brasil] (1832–1837). A coleção etnográfica de Pohl abrange cerca de 120 objetos de pelo menos oito povos indígenas (entre elas mais da metade dos Kayapó Meridionais e dos Krenak ou Botocudo), assim como da população neobrasileira das províncias do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, de Goiás e do Pará (os objetos da última provavelmente tenham sido adquiridos no Rio de Janeiro). As descrições etnográficas de Pohl não apenas demonstram uma visível simpatia pelos povos indígenas, que ele encontrou em um estado de completa dependência nas aldeias montadas pelo governo, como também são bem mais detalhadas do que seria de se esperar com base em suas permanências relativamente breves. Pode-se partir do pressuposto de que suas observações foram complementadas com informações que ele recebeu dos administradores das aldeias; eles também lhe ofereceram apoio na aquisição dos objetos coletados (Augustat 2012). É verdade que em casos isolados existem discrepâncias entre as indicações de procedência das listas de pacotes e das etiquetas originais, ou entre as listas e as descrições impressas. No que diz respeito à descrição do cenário cultural, no entanto, são sobretudo os objetos indígenas da coleção que aparecem comparativamente bem documentados. Em sua primeira exposição no Museu Brasileiro (Brasilianisches Museum) de Viena, os objetos etnográficos colecionados por Pohl despertaram o interesse amistoso do público. Um correspondente do

24

Morgenblatt für gebildete Leser [Folha matinal para leitores cultos], publicado em Stuttgart, se mostrou tão fascinado com a “capa de chuva trançada em junco, que por certo mal ultrapassaria a região dos quadris de um homem mais ou menos alto, sendo que se mostra extremamente simples no corte e nada menos do que elegante”, quanto com um chapéu de palha trançada dos Kayapó, ao qual atestou “uma forma assaz moderna”. Além disso, o correspondente escreve que “os limpadores de dentes dos portugueses em Minas Ferais são finamente trabalhados em formato de muito gosto, longos como agulhas de tricô e grossos como pequenos cabos de cachimbos de argila.” (Morgenblatt 1825: 208). No entanto quem despertou um interesse ainda maior foram os dois Botocudos, João e Francesca, que chegaram com o quarto transporte a Viena em outubro de 1821, acompanhados do próprio Pohl (Imagem 18). Eles eram parte de um grupo de 50 prisioneiros que o comandante do 7o Distrito Militar de Minas Gerais, Julião Fernandes Leão, presenteou ao rei português Dom João VI, e foram mandados adiante pela nora Leopoldina a seu pai, o imperador Francisco I. O imperador os colocou sob sua “mais expressa e suprema proteção pessoal”, devido à “bondade e comportamento decente dos mesmos”, providenciando para que fossem alojados “nas altas dependências dos jardins da cidade, onde desde então se ocupam da jardinagem e se mostram bem dispostos e assaz satisfeitos” (Schreibers 1820–1822, 2: Apêndice 101). Em seu alojamento, os indígenas logo mereceram intensas visitações por parte de vienenses curiosos, que lhes traziam presentes, e também eram levados ao teatro e a bailes, e por fim ainda foram recriados como figuras de cera e expostos. Francesca, cuja primeira filha, Barbara, nascida em Mainz, faleceu logo depois da chegada a Viena, se negava obstinadamente a casar com João, e foi engravidada por um soldado, mas perdeu também o segundo filho logo depois do nascimento e morreu ela mesma pouco antes da viagem de volta ao Brasil, solicitada por ela junto ao imperador, depois de permanecer por dois anos em Viena. João, que jamais se sentiu realmente bem na cidade imperial, voltou à sua pátria sozinho em novembro de 1823 (Schmutzer e Feest 2012).

Johann Natterer As coleções etnológicas e naturais amealhadas por Johann Natterer no decorrer de quase 18 anos no Brasil superam as de seus colegas de tal maneira em quantidade e variedade que a designação “Coleção Natterer”, ainda que um tanto ilusória, acabou se tornando sinônimo para as coleções de todos os naturalistas austríacos no Brasil. Diferentemente de Schott e Pohl, Natterer no entanto jamais publicou uma apresentação coerente de suas viagens, e mesmo as cartas do viajante publicadas por Schreibers na maior parte das vezes de forma resumida, mal chegaram a ser avaliadas de fato pelos especialistas algum dia, porque apareceram de forma aleatória em veículos de pouca representatividade. Ainda que trechos maiores de seu diário tenham sido perdidos, e suas anotações linguísticas e registros etnográficos por um bom tempo tenham permanecido inacessíveis (Kann 1989), a documentação da coleção de

Natterer é fundamentalmente bastante boa, mas em muitos aspectos ainda precisa ser devidamente decifrada (comparar com Johann Natterer 2012a,b). A abundância não diz respeito apenas ao número total dos objetos (bem mais de 2.000), mas também ao dos grupos étnicos (mais de 70), à ampla gama dos objetos colecionados e (em grande harmonia com a “Instrução de Serviço”), ao número de exemplares de tipos de objetos isolados. Os dois pontos mencionados por último valem sobretudo para os cinco grandes grupos de objetos dos Bororo (217 objetos), dos Munduruku (193), dos “Uaupés” (265), dos Baniwa/Baniva (137) e dos Makuxi (106). Na outra extremidade da mesma escala estão grupos étnicos como os Naú-a, Kulina, Uirina ou Calipuna, dos quais a coleção contém apenas um único objeto (Heger 1908: 9–12; Feest 2012). Assim como a Coleção Pohl, a de Natterer também contém variegados exemplos da cultura material dos neobrasileiros, incluindo esteiras de Cantão (Guangdong) e sapatos de Macau (Imagem 19), que haviam sido importados para uso da minoria chinesa. Diferentemente de seus colegas, no entanto, Natterer dedicou seu interesse aos índios “mansos” que viviam nas estações missionárias e cidades, e isso em uma época em que o hibridismo cultural não se encontrava especialmente em alta ante a “selvageria autêntica”. Nesse sentido a Coleção Natterer se parece com a Coleção da Groenlândia de Karl Ludwig Giesecke, que Natterer viu no Gabinete de História Natural da Corte antes de viajar ao Brasil. Um pequeno grupo de objetos do Japão, da Tailândia e do México claramente não foi trazido do Brasil por Natterer. Mas eles refletem seu crescente interesse pela etnografia, mesmo além das experiências pessoais. Ele deve ter adquirido dois cestos mexicanos e um par de pantufas siamesas em Londres em 1835/1836, e um grupo maior de trabalhos de cestaria japoneses – uma grande raridade à época, devido ao fechamento das fronteiras do Japão para o ocidente – provavelmente seja oriundo da famosa Coleção sobre o Japão do médico alemão a serviço da coroa holandesa Philipp Franz von Siebold, que Natterer havia visitado em Scheveningen e Leiden na viagem de volta de Londres a Viena (Johann Natterer 1836). Johann Natterer também foi o único entre os naturalistas austríacos que se esforçou para conseguir crânios humanos, mesmo que entre os 192 crânios que no final da expedição austríaca ao Brasil acabaram incluídos no levantamento estatístico final do butim conquistado (e que haviam sido todos colecionados por Johann Natterer) não houvesse exemplares humanos, mas sim de animais, pois também na zoologia da época ossos cranianos imutáveis eram considerados material mais confiável do que por exemplo empalhamentos. O trato com restos humanos e sobretudo com crânios era realmente um tema marcado por grandes e muitas vezes contraditórias suscetibilidades, que também colecionadores de crânios eram e continuam sendo obrigados a avaliar. O Botocudo Quäck, que o príncipe Maximiliano de Wied trouxe consigo a Neuwied de sua viagem ao Brasil como criado de casa, diante dos muitos crânios da coleção de Blumenbach, professor de Wied, não teria escondido sua admiração ante esse guerreiro visivelmente tão bem sucedido.

Imagem 19: Guarda-chuva originário da China e sapatos originários de Macau. Adquiridos pelos naturalistas na cidade do Rio de Janeiro. Cols. Schott e Natterer, Nºs de Inv. 2566, 2568, 2569

Em uma carta de 17 de outubro de 1828 a Joaquim José Gomes da Silva, responsável por conduzir a expedição de uma milícia contra os “cabixis”, Natterer faz gigantescos rodeios para fundamentar seu delicado interesse: “S.M. o Imperador de Áustria houve por bem enviar-me para estas terras remotas para fazer collecções das diversas producções da natureza deste vasto pais, juntamente com as armas enfeitos e outros trastes dos indios silvestres, accompanhado com o esquelletto das cabeças de alguns d’elles, para ver a differença na estructura do cranio. Por esta razão peço a V.S., que no caso, que aconteça ser mortos alguns Cabexis em alguma balroada, mandar cortar a cabeça a hum ou dous indios já feito homens, mandar tirar os miolos sem molestar o casco e secarlas perto do fogo para não podrecer muito. Eu m’obrigo de dar a quem fizer este serviço 4/8 por cada cabeças de molhadura. De mais queria todo quanto os indios possuen de armas, maxados da petra, enfeitos e qualquer traste, que não faza grande incomodo para conduzir, tanto de homens como de mulheres para o mesmo fim de colleccoes, o que tambem não deixarei de reconhecer aos portadores com molhaduras” (Johann Natterer 1828). Embora o propósito de Natterer no que diz respeito aos crânios pareça ter sido vão, podem ser encontrados em sua coleção três recipientes para guardar pontas de flechas envenenadas e duas flechas dos “Cabixi”, que provavelmente tenham chegado até ele pelas mãos de Gomes da Silva. Segundo as anotações de Natterer, tratava-se, no caso das flechas (Nos de Inv. 968, 969) daquelas com as quais os Cabixi “mataram um negro nas proximidades de São Vicente, em 1828. Usukwé, o referido negro, havia sido atravessado por 14 flechas” (Heger 1882). Provavelmente esse incidente tenha sido também o motivo para a milícia de ataque organizada por Gomes da Silva. Essa espécie de informação acompanhando os objetos da coleção evidentemente se refere menos aos significados culturais específicos do que ao esclarecimento das relações entre os povos indígenas e os neobrasileiros. Ela transforma, ao mesmo tempo, os obje-

25

tos em distintivos memoráveis concretos de acontecimentos, e não em abstrações de práticas culturais. Isso vale também para o único crânio humano que Natterer ao que parece conseguiu adquirir, e que de fato foi enviado com os objetos etnográficos a Viena (No de Inv. 966) e só bem mais tarde foi integrado às coleções antropológicas do Museu de História Natural (Naturhistorisches Museum). Sua origem é descrita por Natterer conforme segue: “Crânio de um índio Schamucoco [Chamacoco]. Essa nação mora abaixo de Coimbra, na província do Chaco, e é severamente perseguida pelos Guaicurús e escravizada por eles. Este, do qual é o crânio, tinha cerca de 20 anos de idade e morreu aqui, no hospital local [em Cuiabá]. Ele pertencia ao comandante da cidade, tenente-coronel Jeronymo Joaquim Nunes, que o recebeu de presente dos Schamucocos quando era comandante do Forte Coimbra, em uma oportunidade em que estes buscaram proteção junto a ele” (Heger 1882). Entre as cartas de Natterer ainda existentes, uma do ano de 1828 dirigida ao tenente-coronel Nunes, que na época era presidente da província de Mato Grosso, se refere à viagem que pretendia fazer pelo rio Madeira. Se a aquisição do crânio de fato ocorreu mais ou menos à mesma época, isso representaria o indicativo de um esforço objetivo do colecionador para cumprir a tarefa específica da “Instrução de Serviço” recebida onze anos antes (ou um desejo expresso à parte por seu chefe). O fato de Natterer ter começado a coletar objetos etnográficos apenas quando Schott e Pohl já haviam cessado sua atividade de coletores é um sinal de que a pesquisa etnográfica no princípio não tinha prioridade para ele. Em sua terceira viagem, que o levou à parte sul da província de São Paulo (ao hoje Estado do Paraná), Natterer entrou em contato, em Curitiba, com “uma jovem índia Cameh […], que pertencia ao juiz. Ela se chamava Ninschirim no passado, mas havia sido batizada como Rufina. Por meio dela e de um português, que por muito tempo viveu em Guarapuaba e compreendia sua língua, fiquei muito feliz em reunir as palavras anexas. São aquelas que o senhor von Eschwege publicou em seu jornal e que eu sempre voltarei a usar no futuro” (Johann Natterer 1821a). À mesma época, Natterer recebeu do dr. Renow, estabelecido em Curitiba, um do “monstruosos arcos” dos Cameh (um ramo dos Kaingang), “mais flecha […] e duas machadinhas de pedra”, que mandou a Viena junto com alguns instrumentos feitos de pedra retirados de um sambaqui, e eles representam as primeiras peças que comprovam seu zelo de colecionador etnográfico. A essa remessa Natterer ainda acrescentou uma caixa “com os utensílios para beber mate – embora pertencentes a mim próprio, doo-os à coleção”, conforme escreve a seu irmão (Johann Natterer 1821b). Com isso principiavam, no decorrer de poucos dias, dois dos grandes projetos de coleção de Natterer, que lhe garantiriam, além dos resultados alcançados para a zoologia (Pelzeln 1871; 1883; Shinohara e Cheung 2012), um lugar garantido na história da pesquisa dos povos indígenas do Brasil: a coleção de listas de palavras de línguas indígenas, que através do uso de uma lista de palavras standard (que na maior parte das vezes se mostrava possível) facilitaria uma comparação linguística mais tarde (Adelaar e Brijnen 2012), e a coleção etnográfica, que não apenas deveria documentar as culturais materiais dos povos indígenas, mas também a dos neobrasi-

26

leiros. O fato de Natterer ter acrescentado à coleção o conjunto de mate adquirido para uso próprio ilustra como o encontro com Ninschirim e o princípio da coleção de objetos etnográficos indígenas repentinamente evocaram também uma consciência para o caráter exótico da cultura popular da era colonial tardia no Brasil. Ainda assim se passaram quase quatro anos até que Natterer conseguiu prosseguir em seus dois projetos, depois de sua chegada à província de Mato Grosso, em dezembro de 1824. Como já acontecera no caso dos objetos dos Cameh, Natterer na maior parte dos casos conseguiu o material para sua coleção etnográfica, sobretudo no princípio, através de terceiros. Uma parte da grande coleção dos Bororo (Imagem 20) já estava em seu poder antes mesmo de um encontro pessoal com um grupo de Bororo da Campanha em 1825/1826. É possível que ele tenha conseguido esses objetos de alguns Guanás que caracterizava como “meus conhecidos de Cuiabá”, e que mais tarde providenciaram para ele peças de butim dos Bororo do Cabaçal, contra os quais haviam guerreado na condição de integrantes da milícia do Mato Grosso (Johann Natterer 2012b). Um dos Guanás cedeu a Natterer também um cachimbo de tabaco, uma bolsa e o adorno em penas de um Enimaga (Lilei) que ele havia abatido. Natterer também conseguiu grande parte da coleção Munduruku, assim como também as peças dos Apiaká e Bakairi no final de 1824 de seu “aluno”, o capitão Antonio Peixoto de Azevedo, um oficial brasileiro que havia conhecido em 1823, e, depois da morte do capitão, em 1826, talvez também de sua viúva. As peças Munduruku eram destinadas, na verdade, ao Museu Nacional do Rio de Janeiro fundado por Dona Leopoldina, e Natterer estava convencido com razão de que elas superariam em beleza a tudo “que até agora se encontrava em Viena e provinha dos índios” (Johann Natterer 1824; 1824–1825). A longa doença de Natterer em Mato Grosso também foi responsável pelo fato de ele não conseguir realizar a planejada viagem pelo rio Paraguai, na qual intencionava “visitar uma nação indígena, os Guató, que viviam na foz do São Lourenço. Eles são caçadores assaz exímios e destemidos, os únicos que se atrevem a atacar a onça e matá-la, e isso munidos apenas de uma lança de madeira” (Johann Natterer 1824–1825). De modo que demorou muito até sua passagem pela Fazenda da Caiçara (de fins de setembro de 1825 a meados de junho de 1826), localizada na região da nascente do rio Sangradorzinho, nas proximidades de Cáceres, onde ele enfim entrou em contato mais estreito pela primeira vez com um grupo indígena, os Bororo da Campanha, que viviam nos campos da região e sob os olhos alertas do coronel João Pereira Leite, pelo qual haviam sido “pacificados”. (O fato de a filha de Pereira Leite, Maria, mais tarde ter casado com seu primo, o filho do já mencionado Joaquim José Gomes da Silva, é também um indício da rede que Natterer usava para se locomover no Mato Grosso.) Os Bororo estavam prontos a dar por assim dizer tudo em troca das mercadorias como tabaco, farinha, açúcar-cândi, tesouras, facas e anéis que o colecionador havia levado consigo – até mesmo um cinto largo feito de embira usado pelas mulheres, depois de uma resistência inicial mudou de dono em troca de uma peça de tecido vermelho (Johann Natterer 2012b).

O destino das coleções em Viena

Imagem 20: Vitrine XVII com objetos dos Bororo. Aquarela de artista desconhecido. Em torno de 1840. Arquivo

No decorrer dos anos, Natterer desenvolveu não apenas um bom olho para as diferenças culturais entre os povos indígenas, mas também uma rotina no trato com eles, que facilitava a aquisição de objetos para sua coleção. Ele açulava o interesse das mulheres com contas de vidro e anéis, e durante as festas deixava a aguardente rolar solta, levando consigo sempre quantidades suficientes dos cobiçados produtos manufaturados, a fim de que os indígenas lhe oferecessem à venda, em oportunidades que ele mesmo providenciava, o que quisesse em armas, utensílios, roupas e adornos. Mesmo assim sempre havia determinados objetos dos quais os proprietários abriam mão apenas manifestando desgosto; mas mesmo dos cilindros de quartzo perfurados na longitudinal, que entre os Tukano e seus vizinhos do rio Uaupés eram usados apenas pelos caciques como joias em torno do pescoço, Natterer ao final das contas conseguiu adquirir quatro peças, depois de algumas dificuldades iniciais (Natterer 2012a). O transporte dos objetos colecionados, às vezes bastante volumosos, certamente representava um problema maior, e Natterer precisava carregá-los consigo às vezes durante meses, quando não durante anos, antes de mandá-los de navio até Viena. Além disso não deve ser esquecido que os objetos etnográficos constituíam apenas uma pequena parte de suas coleções. Ao que tudo indica, eram surpreendentemente raras as vezes em que havia perdas ou danos sérios nas coleções em seu caminho do interior do país à costa, de onde sucedia o envio marítimo à Europa. Uma perda dura, contudo, representou o saque do alojamento de Natterer durante a revolta dos Cabanos, no Pará (Belém), no ano de 1835, no qual foi destruída uma parte dos objetos coletados a partir da décima primeira remessa de outubro de 1834 ou não enviados na mesma (Anonymus 1835).

Ainda que a coleção, sobretudo de objetos naturais, fosse um dos objetivos centrais da viagem ao Brasil e no interior do país, visivelmente a diligência dos colecionadores não foi avaliada corretamente, tanto que não foi adotada nenhuma medida para o alojamento de novas peças. Schreibers, cuja moradia por algum tempo teve de servir de depósito provisório, conseguiu por fim mover o imperador a concordar com uma solução temporária. Segundo ela, os objetos vindos do Brasil deveriam ser expostos provisoriamente na condição de “Museu Brasileiro” (Brasilianisches Museum) em uma construção da Johannesgasse, em Viena, na qual já estava alojada a coleção de múmias do Imperial Gabinete de Moedas e Antiguidades. O acesso também seria permitido até que a descrição estivesse encerrada e eles pudessem ser integrados ao Gabinete de História Natural. Em abril de 1821 foi principiada a exposição, e, quando Pohl voltou do Brasil em outubro do mesmo ano, foi nomeado diretor e recebeu uma moradia oficial no novo museu. Para os objetos etnográficos, que em 1821 existiam apenas em pouca quantidade, foi reservada uma das treze salas de exposição (entre as coleções zoológicas e botânicas). Os objetos estavam providos de etiquetas descritivas que se restringiam às indicações dos colecionadores. Em lugar de um inventário, havia apenas as reproduções das listas dos pacotes, elaboradas por Josef Natterer, o irmão de Johann, na condição de curador do Gabinete de História Natural (Feest 2012; comparar com Schmutzer e Feest 2012). Com a chegada da última remessa, o acervo do museu, que até então já mostrava “35 diferentes povos e hordas, além de outras cinco da parte espanhola da América do Sul, fronteiriça ao Brasil”, foi ampliado em mais “500 peças de mais 32 tribos e hordas diferentes” (Schmidl 1837: 193), o espaço disponível já devia estar tão lotado a ponto de o museu quase estourar com seus cerca de 2.350 objetos.1 Com a volta de Johann Natterer a Viena no ano de 1836, a expedição austríaca ao Brasil chegava definitivamente ao fim; Leopoldina já havia falecido em 1826 no Brasil, e seu pai, Francisco I, falecera em 1835. Parecia chegado o tempo de botar um fim no provisório e já envelhecido “Museu Brasileiro”, uma tarefa da qual foram encarregados Johann e Josef Natterer. E para tanto as coleções etnográficas representavam um problema de caráter especial, e não apenas porque não podiam mais ser alojadas no Gabinete de História Natural devido a sua abrangência, mas também porque Schreibers já havia tirado de dentro dele os acervos mais antigos da mesma espécie em 1820, mandando-os à coleção de Ambras, no palácio do Belvedere, onde no foram eram expostas apenas como anexo e não registradas no inventário. Essa exposição no Belvedere também havia sido encerrada em 1836, e Schreibers estava obrigado desde então a reinventariar às pressas todas as peças novas que chegavam, a fim de juntá-las aos objetos etnográficos brasileiros no “Real e Imperial Museu Etnográfico” subordinado ao Gabinete de História Natural, que em 1838 havia 1

O “Panorama Geral” feito por Josef Natterer (1837) indica o número de “armas e utensílios” como sendo de 1.650 (dos quais 1.492 de Johann Natterer), sendo que alguns grupos de objetos ao que tudo indica foram registrados com um só número. A cifra de 2.350 se refere ao modo de contar usado hoje em dia, peça por peça.

27

Imagem 21: Vitrine III com objetos, principalmente dos Makuxi e Macuna-ui. Aquarela de artista desconhecido. Em torno de 1840. Arquivo

Imagem 22: Vitrine XII com peças de vestuário de brancos ou para brancos, originárias da Bolívia. Aquarela de artista desconhecido. Em torno de 1840. Arquivo

Imagem 23: Vitrine VII com objetos de grupos indígenas do norte do Amazonas. Aquarela de artista desconhecido. Em torno de 1840. Arquivo

Imagem 24: Vitrine XVIII com objetos principalmente dos Guaná da região do Gran Chaco (Bolívia). Aquarela de artista desconhecido. Em torno de 1840. Arquivo

sido erguido na assim chamada “Casa Imperial” (Kaiserhaus), na Ungargasse. Johann Natterer foi encarregado de dirigi-lo e principiou a nova exposição com sua própria coleção, à qual se juntaram a parte americana da coleção de Cook, a Coleção Giesecke da Gröenlândia e os objetos da tribo Plains-Ojibwa, que o comerciante de peles de Görz, Josef Klinger, havia presenteado ao imperador em 1825 (Hebenstreit 1840; Feest 2012). As coleções do Pacífico e da Ásia não chegaram mais a ser expostas, porque em 1840 a “Casa Imperial” foi usada para os objetivos da então fundada guarda pessoal lombarda-veneziana. Da exposição dos objetos etnográficos americanos no Real e Imperial Museu Etnográfico de vida tão breve, existe uma série de 20 aquarelas (Imagens 21 a 24), provavelmente oriundas da mão de um desenhista a serviço do Gabinete de História Natural, que concedem uma impressão vivaz das práticas expositivas daquela época, mas ao mesmo tempo também representam uma documentação visual abrangente da Coleção Natterer. O que havia sido mostrado em uma única sala no Museu Brasileiro, agora era exposto em 18 vitrines, em quatro salas e meia, ainda que apenas mais ou menos a metade do acervo estivesse sendo mostrada. Após 1840 a coleção acondicionada em caixas pelos irmãos Natterer foi preservada primeiramente no sótão do Gabinete de História Natural da Corte, em seguida transferida ao Palais Augarten, em Leopoldstadt, antes de ser levada em 1847 à Modenserhaus, na Herrengasse, e logo em seguida às garagens úmidas do palácio central da corte, o Hofburg, na praça Josef; em 1850, por fim, ela acabou chegando “a uma câmara sombria do segundo andar” do Gabinete Zoológico da Corte. Pelo menos assim os objetos foram poupados da destruição pelo fogo provocado pelo bombardeio enganoso da artilharia do príncipe Windischgrätz, que durante a revolução de 1848 demoliu parte do Gabinete Zoológico da Corte, bombardeio no qual aliás foi perdida também parte da coleção zoológica de Natterer (Heger 1908: 10; Riedl-Dorn 1998: 123–128). Johann Natterer faleceu em 1843 e não precisou vivenciar essa odisseia até o fim. Com a morte de seu irmão Josef Natterer, em 1852, a coleção etnográfica perdeu seu último conhecedor mais próximo e intercessor. A Coleção Natterer foi despertada de seu sono de Bela Adormecida apenas com a fundação do Museu de História Natural da Corte (Naturhistorisches Hofmuseum) no ano de 1876, quando o geólogo Ferdinand von Hochstetter, o primeiro diretor do museu, estabeleceu uma Seção de Antropologia e Etnografia, na qual a área da etnologia foi exercida profissionalmente pela primeira vez na Áustria. Franz Heger se dedicou, primeiro como assistente de Hochstetter e mais tarde como chefe da Seção, a examinar, trabalhar e ampliar os acervos, e é a ele que devemos também o primeiro e até hoje único inventário da Coleção Natterer, que foi concluído em 1882/1883, e pôde se apoiar na documentação em forma de listas e etiquetas originais ainda existente. Nesse inventário, as coleções etnográficas dos naturalistas austríacos no Brasil chegam a 1.169 números; a partir da numeração separada de grupos de objetos esse número aumentou para 2.126 em 1885 (Heger 1882).2 2

28

A soma de 2.177 que aparece em Heger (1908: 12) é, ao contrário, o resultado de alguns erros de cálculo.

Face a essa quantidade gigantesca, Hochstetter e Heger decidiram não inventariar cerca de 10% do acervo (223 objetos) e deixá-los prontos, em uma reserva de trocas, a fim de complementar a coleção etnográfica do mundo inteiro através de trocas com outras instituições ou pessoas. Lamentavelmente ao que parece não restaram documentos nos quais o conteúdo exato dessa reserva de trocas esteja descrito, mas ele pode ser parcialmente reconstruído através da comparação com as listas de pacotes e as aquarelas da “Casa Imperial”. Dos documentos que restaram, contudo, pode-se descobrir o destino de apenas a metade dessa parcela da Coleção Natterer, que foi repassada nos anos de 1882 a 1887 aos museus de Dresden, Berlim e Hamburgo (Feest 2012). Não se tratava da primeira nem da última vez em que alguém se desfazia de alguns dos objetos da Coleção Natterer.3 Já quando foi dissolvido o Museu Brasileiro, foram entregues exatamente 100 objetos ao Gabinete Tecnológico (Technologisches Kabinett) fundado em 1819 pelo futuro imperador Ferdinando I, que se dedicava à documentação e preparação de matérias-primas e dos utensílios, máquinas e aparelhos usados nesse processo, e que já em 1819 recebera produtos do Brasil, possivelmente como presente de Leopoldina a seu irmão (Technologisches Kabinett 1837). Durante sua passagem pelo Pará, pouco antes da volta à Europa, Natterer adquirira, entre outras coisas, “por 40 milréis, artigos de vidro prensado fabricados em Boston […] se esse tipo de artigos de vidro ainda não estiver sendo fabricado na Áustria, talvez eles sirvam para o gabinete tecnológico do imperador” (Johann Natterer 1836). Além disso, foram acrescentados à coleção mais de 30 objetos das populações indígenas e não-indígenas do Brasil, assim como peças do México e da Ásia oriental. O Gabinete Tecnológico se tornou parte do Instituto Politécnico (a hoje Universidade Técnica de Viena) na década de 1850, que em 1864 por sua vez entregou seus acervos ao novo Museu Austríaco da Arte e da Indústria (hoje: Österreichisches Museum für Angewandte Kunst/Gegenwartskunst – MAK [Museu Austríaco da Arte Aplicada e da Arte Contemporânea]), do qual em 1881 pelo menos alguns dos objetos oriundos do Museu Brasileiro chegaram à Coleção de Antropologia e Etnografia do Museu de História Natural. Seu pertencimento à Coleção Natterer apenas foi percebido de maneira insuficiente. No mesmo ano o Museu de História Natural assumiu do Museu Austríaco da Arte e da Indústria também a coleção etnográfica do comerciante vienense de peles Johann Georg Schwarz, falecido em 1867 e secretário da Fundação Leopoldina (Leopoldinenstiftung), fundada em 1829 em homenagem à falecida arquiduquesa, e que se dedicava a incentivar as atividades missionárias nos Estados Unidos (Kasprycki 2007). Schwarz esteve em contato com Natterer depois de este ter voltado a Viena, e é possível imaginar, pelo menos, que parte dos objetos etnográficos sul-americanos da Coleção Schwarz na verdade tenham sido conseguidos com Natterer, que mantinha um pequeno acervo de objetos etnográficos como sua propriedade privada (Feest 2012). 3

Em 1928 sete objetos das coleções de Pohl e Natterer foram trocados com a coleção etnológica do Vaticano, que acabava de ser exposta no Latrão. Duas das peças colecionadas por Natterer foram trocadas em 1967 com o hoje Museu das Culturas de Basel, na Suíça.

29

Imagem 25: Adornos com penas da coleção de Carl Friedrich Philipp von Martius, Brasil, entre os anos de 1817 e 1820. Doação Spitzy, Nºs de Inv. 179.769, 179.77a, 179.773, 179.775

Essa coleção privada chegou, depois da morte de Natterer, às mãos de sua filha Gertrude von Schröckinger, nascida no Brasil, cujo marido, o funcionário público e naturalista amador Julius Ritter von Schröckinger-Neudenberg, havia honrado a memória de seu sogro com a uma publicação em sua homenagem (Schröckinger-Neudenberg 1855; vide também Goeldi 1894–1896). Como herança testamentária, o museu recebeu, depois da morte de Gertrude no ano de 1895, essa coleção constituída de 99 objetos etnográficos brasileiros e alguns asiáticos – os últimos oriundos da viagem ao mundo da fragata austríaca Novara (1857–1859), da qual havia participado também Ferdinand von Hochstetter, e constituíam o presente de um dos participantes da viagem, Georg von Frauenfeld, à viúva de Natterer. As peças brasileiras se encontravam em excelente estado de conservação, e em parte ainda providas das etiquetas originais de Natterer (Feest 2012).

Homenagem À época de sua redescoberta, após 1876, a coleção dos naturalistas austríacos no Brasil era, com folga, o maior acervo individual da Seção de Antropologia e Etnografia. Hoje em dia ela

30

continua sendo a maior coleção do continente americano do Museum für Völkerkunde de Viena. No final do século XIX, no entanto, a prioridade do museu teve de se deslocar à criação de uma coleção mundialmente equilibrada, na medida do possível. Para a seção que contava com poucos funcionários isso significou que, para além da exposição dos acervos, mal haveria tempo para se ocupar de seu estudo mais adequado. O guia que foi publicado por ocasião da inauguração do Museu de História Natural (Hauer 1889) ainda homenageia o trabalho de Natterer e Pohl, mencionando-os pelo nome, mas já na segunda edição (Hauer 1902) essa indicação acabou sendo eliminada; afinal de contas o que se queria era mostrar povos e culturas, e não colecionadores. Também as exposições posteriores no Museum für Völkerkunde de Viena, nas quais a Coleção Natterer desempenhou um papel importante (p. ex. Becker-Donner et al. 1970; 1972), não colocaram Natterer em primeiro plano. Franz Heger (1908: 15), embora homenageasse minuciosamente o acervo oriundo das aquisições de Natterer como uma das “melhores e mais extraordinárias coleções etnográficas que foram amealhadas em tempos precoces”, não tornou Natterer suficientemente conhecido, sobretudo no Brasil, com sua publicação não ilustrada em língua alemã. Isso vale lamentavelmente também para as esporádicas publicações isoladas dos tempos posteriores (Nowotny 1949; Bauer 1965; Becker-Donner 1970), para a publicação das anotações etnográfi-

cas de Natterer (Kann 1989) 4 e para os resultados de um primeiro projeto de pesquisa atinente à Coleção Natterer, encaminhado entre 1998 e 2000 (Kann 2002). De modo que um artigo de Emilio Goeldi (1894–1896) permaneceu sendo, durante mais de cem anos, a fonte de informação mais importante acerca do tema (comparar com Dorta 1997). 5 Em comparação com isso, a coleção etnográfica amealhada pelos naturalistas bávaros Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, principiada também no âmbito da expedição austríaca ao Brasil, desde o princípio despertou uma atenção maior e mereceu respeito internacional (comparar com Bujok e Helbig 2012). O fundamento desse interesse se situava sem sombra de dúvida na publicação da obra de viagem (Spix e Martius 1823–1831), da qual pelo menos o primeiro volume foi traduzido imediatamente ao inglês, e da qual também foi publicada uma edição portuguesa em 1938; em seu atlas ilustrado também haviam sido reproduzidos objetos da coleção que hoje se encontra no Staatliches Museum für Völkerkunde de Munique. A coleção foi exibida várias vezes em exposições (a última, Helbig 1994) e há um catálogo de acervo da mesma (Zerries 1980), a partir do qual fica claro que ela era composta, no ano de 1843, por 452 números com 575 objetos individuais. Devido a uma troca com o British Museum e também em razão de perdas e extravios, o número de objetos foi reduzido a 422 números com 510 objetos até 1919; em 1979 Zerries ainda conseguiu comprovar apenas a existência de 319 números em Munique. São 32 os povos indígenas representados na coleção; além disso, há um grupo de objetos relativamente pequeno e limitado a peças de cerâmica e cabaça oriundas do artesanato de índios “aldeizados”. Em comparação com o tempo bem menor da permanência de Spix e Martius, o tamanho do acervo original é bem considerável, mas corresponde a apenas um quarto do acervo da Coleção Natterer.6 4

Os autores britânicos e brasileiros do catálogo da exposição Unknown Amazon (McEwan, Barreto e Neves 2001: 12, 244, 251), no British Museum, não tomaram conhecimento dessas publicações, ainda que a exposição contivesse empréstimos da Coleção Natterer. De qualquer modo, também os objetos colecionados por Spix e Martius no British Museum não possuem indicação.

5

Ainda cinco anos antes Dorta (1992: 502) havia, em seu útil panorama das coleções de etnografia brasileira, tomado conhecimento da Coleção Natterer apenas através dos objetos que por meio de troca chegaram ao museu de Dresden.

6

Uma pequena coleção, que remete a Martius, foi entregue por Christine Spitzy, uma tataraneta de Martius, ao Museum für Völkerkunde de Viena no ano de 2002 (Imagem 25).

Da expedição russa ao Brasil, realizada também à mesma época da austríaca e comandada por Georg Heinrich von Langsdorff, restaram 99 objetos dos Guató, Bororo, Apiaká e Munduruku na Câmara de Arte de São Petersburgo, dos quais uma seleção representativa foi reproduzida em desenho na publicação de Manizer (1967), traduzida também ao português. Especialmente valiosa devido a seus desenhos etnográficos é a coleção que Hercules Florence e Aimé-Adrien Taunay reuniram como membros da expedição de Langsdorff, e que em sua maior parte se encontra também em São Petersburgo (comparar com Monteiro e Kaz 1988). Por outro lado, a coleção amealhada pelo príncipe Maximiliano de Wied em sua viagem ao Brasil entre os anos de 1815 e 1817, e que se encontra em Stuttgart, permaneceu praticamente desconhecida, ainda que seu relato de viagem e seus desenhos tenham sido devidamente homenageados por várias vezes (Wied-Neuwied 1820–1821; Löschner 1982; Brasilien-Bibliothek 1988). Por fim seja referida ainda a coleção do naturalista português Alexandre Rodrigues Ferreira que, quarenta anos antes de Natterer, no âmbito de sua “Viagem Philosophica pela Capitania do Rio Negro” (Ferreira 1885–1888), amealhou a primeira grande coleção de etnografia brasileira. O acervo, que originalmente abrangia 933 objetos, desde o século XVIII está dividido entre o Museu Mayenense da Academia das Ciências de Lisboa e o Museu Antropológico da Universidade de Coimbra, sendo que em Coimbra podem ser encontrados 355 objetos e em Lisboa supostamente mais 723 objetos, dos quais no entanto muitos não são oriundos nem de Ferreira e nem sequer do Brasil (daí, também, a soma demasiado elevada). A coleção, cujo maior problema reside na inacessibilidade à documentação de origem das peças individuais, se tornou acessível em vários sentidos apenas através de uma nova e exemplar publicação (Monteiro Soares e Ferrão 2005). Ainda que tenha apenas a metade do tamanho da Coleção Natterer (mas o dobro da de Spix e Martius), a Coleção Ferreira é comparável a de Natterer em muitos sentidos, por exemplo no que diz respeito ao número de objetos de tipos específicos de artefatos, e oferece, junto com ela, um fundamento quantitativamente impressionante para possíveis comparações históricas.

31

Seção catalográfica:

Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Leste e Sudeste do Brasil, Cuiabá, Mato Grosso, Gran Chaco, Leste da Bolívia

Cinto usado em dança. Avá-Canoeiro, leste do Brasil. Em torno de 1821. Lã vegetal, garra animal, sementes, C. 141,5 cm. Col. Pohl, Nº de Inv. 674

Objetos de uso cotidiano. Cultura popular, Rio de Janeiro, Brasil. Em torno de 1820. Madeira, couro, latão, cerâmica, tecido, C. máx. 45 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.372a,b, 2.375a,b, 2.376, 53.557a,b A economia brasileira vivenciou, na década de 20 do século XIX, um impulso formidável no âmbito do comércio exterior. Os bens de exportação mais importantes eram o açúcar, a lã vegetal e as peles de animais. Na lista dos importados havia produtos industrializados como ferramentas, tecidos e sapatos vindos da Europa. Estribos decorados com arte, de acordo com os relatos de Natterer, eram usuais na corte do Rio de Janeiro. Os sapatos de pau, segundo o cientista e pesquisador, eram usados em casa ou para sair em dias de tempo ruim. (CB)

Acerca dos Avá-Canoeiro, Pohl observa o seguinte: “Estes constituem uma das tribos mais numerosas, mais selvagens e mais cruéis; são de constituição robusta, guerreiros, implacáveis, obstinados até a morte em seus propósitos, não perdoam jamais. [...] Com olhos invejosos, os colonos olham constante e genericamente para as posses dos índios, de cuja apropriação esperam grandes riquezas. Ouvia-se com frequência a queixa de que os índios, que afinal de contas já haviam deixado para trás boa parte do Brasil, continuavam possuindo as melhores terras e precisavam ser exterminados […] Por isso não é de admirar que os pobres índios também tomem suas medidas para garantir a própria segurança, medidas essas que objetivam exterminar os inimigos, ou pelo menos mantê-los afastados através do medo e do pavor.” (JEP) Utensílios de uso cotidiano. Cultura popular, Guarani, São Paulo, Brasil. Em torno de 1820. Chifre, materiais vegetais, pele animal, lã vegetal, C. máx. 110 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.397, 2.401, 2.405, 2.147, 2.148 No dia a dia dos paulistas, como são chamados os moradores do Estado de São Paulo, era fundamental, além dos importantes produtos de exportação como açúcar e café, sobretudo a mandioca. A farinha – em sua versão feita de mandioca, torrada em seguida –, era servida em tigelas de chifre como as da presente ilustração. Ela estava entre os alimentos mais básicos dos índios do Brasil, e também passou a integrar as refeições diárias da população não-indígena. Até hoje a farinha de mandioca é usada em vários pratos, adicionada a sopas ou dissolvida em água para ser bebida como refresco. Também peles de animais e fibras vegetais eram bastante requisitadas para a confecção de utensílios de uso cotidiano. A carteira aqui retratada, por exemplo, foi feita da pele de um pássaro chamado nhandu. Por fim havia também lã vegetal, uma matéria-prima igualmente indispensável no dia a dia, da qual os índios estabelecidos em São Paulo confeccionavam, entre outros objetos, também cilhas e cintos como os apresentados na ilustração. (CB)

Cinto, cesto de transporte e berrante. Xavante, leste do Brasil. Em torno de 1821. Cabaça (porongo), ráfia, folha de palmeira, fibra vegetal, C. máx. 44 cm. Col. Pohl, Nºs de Inv. 671, 672, 670 Johann Emanuel Pohl visitou os Xavante na aldeia Carretão do Pedro Terceiro, perto de Villa Boa, local em que fica a Goiás Velho de hoje. “Os índios que aqui vivem, já abriram mão de todos seus costumes e usos da época em que viviam em estado selvagem. [...] sobre sua situação e seu modo de vida no passado, consegui saber apenas bem pouco, ou nada. Eles parecem ter esquecido até mesmo sua língua, pois aqui todos falam apenas português.” Pohl conseguiu adquirir no referido lugar apenas o cesto de transporte. O cinto e o berrante, ele os conseguiu em outra viagem, com um grupo que – decepcionado com a vida na aldeia – voltou à sua vida não sedentária. (CA, JEP)

32

Cestos de transporte. Apinayé (Apinaié), leste do Brasil. Em torno de 1821. Tiras de folhas, barbante de ráfia e de plantas, folha de palmeira, sementes, corante, H. máx. 42,5 cm. Col. Pohl, Nºs de Inv. 681–683

Faixa de carregar criança. Krahô, leste do Brasil. Em torno de 1821. Lã vegetal, garras de animal, sementes, resina, C. 86 cm. Col. Pohl, Nº de Inv. 675

Segundo Pohl essa “tribo indígena dos apinagés [apinaiés]” era “uma das mais numerosas e educadas […].” “Dizem que suas aldeias são bastante populosas e várias espécies de atividades industriosas não lhes são estranhas. Eles possuem grande quantidade de objetos confeccionados por eles mesmos, criam gado e mantém em cativeiro avestruzes, papagaios e outros. Sua habilidade artística na confecção dos mencionados utensílios é excelente, e seus cajados, cestos, trompetes, pilões de madeira e demais objetos são muito requisitados. […] Além disso esses índios são muito pacíficos, vivem em concórdia, são ativos e trabalhadores, e sabem também conseguir alguns ganhos acessórios com seu empenho e seu trabalho. Assim, por exemplo, eles auxiliam os viajantes do rio Maranhão a carregar a bagagem pelos maciços de rocha acima, junto às cachoeiras.” (JEP)

Acerca do presente contexto, Pohl escreve: “No dia 12 de agosto navegamos adiante com bom tempo, e nos aproximamos de São Pedro d’Alcântara. Já de longe percebemos uma enorme multidão de crahãos [Krahô] reunidos à margem, também os soldados do Registo haviam se postado […] Os crahãos apareceram completamente nus, armados de arco e flecha, pintados de vermelho com urucu, em parte com os rostos enegrecidos. Apenas seu “capitão” se mostrava com calças azuis de tecido de lã vegetal, uma camisa e uma touca de dormir. […] Também consegui adquirir uma das faixas de carregar criança mencionadas acima, que ali igualmente encontrei sendo usadas por todas as mulheres; a proprietária não quis abrir mão dela até que o alferes Morreira [Moreira] lhe deu de presente um pedaço de tabaco em rolo.” (JEP)

33

Estojo peniano. Botocudo, leste do Brasil. Em torno de 1821. Folha de palmeira, C. 5,5, cm. Col. Pohl, Nº de Inv. 714

Setas e utensílios domésticos. Botocudo, leste do Brasil. Em torno de 1821. Caules de plantas, penas, madeira, casca de árvore, cipó, cera de abelha, Col. Pohl, Nºs de Inv. 697, 698, 716–719 Pohl relata: “Quando entrei em uma dessas ocas, encontrei sobre o fogo uma pequena panela, que eles ganharam de portugueses, e na qual estavam cozinhando os ramos de um cipó, que costumam mastigar e comer em lugar do pão. […] Seus haveres eram constituídos apenas da já referida panela, arco e flechas; penduricalhos de pescoço feitos de grãos de escléria, grossas varas de bambu, nas quais era transportada água, e algumas facas, que eles já haviam negociado anteriormente, e que usavam presas ao pescoço por um barbante. […] Depois de nos darem de presente ainda um pedaço de cera preta de abelha e uma vela feita deste material, eles nos deixaram e não mais voltamos a vê-los.” (JEP)

Objetos usados na expedição. Cultura popular, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1830. Couro, chifre, folha de palmeira, madeira, lã vegetal, C. máx. 81 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.431, 2.433, 2.436, 2.442, 2443

Colares. Botocudo, leste do Brasil. Em torno de 1821. Sementes de frutos, barbante, C. máx. 37,8 cm. Col. Pohl, Nº de Inv. 708, 712

Objetos de uso cotidiano. Cultura popular, Goiás, Brasil. Em torno de 1820. Folha de palmeira, ferro, couro, madeira, papel, pele de cobra. C. máx. 101 cm. Col. Pohl e Natterer, Nºs de Inv. 2.414, 2.416a,b, 2.417a,b, 2.418, 2.421, 2.422

Adorno labial e de orelha (labrete ou botoque). Botocudo, leste do Brasil. Em torno de 1821. Madeira, D. Máx. 10,3 cm. Col. Pohl, Nºs de Inv. 704–706

O jogo de cartas mostra os trajes nacionais dos portugueses na Goiás da época. Destes faziam parte chapéus feitos de palha de palmeira, que serviam para proteger do sol escaldante. O material para as botas e para o estojo da espingarda era oriundo da pele curtida de uma sucuri das águas locais, que se provou especialmente resistente. Ao contrário da preparação típica de hoje para as peles de cobra, aqui foram usadas não apenas as escamas do ventre, mas inclusive a cobra inteira. (CB)

Os Botocudo se distinguiam pelo uso de grandes adornos de madeira nas orelhas e nos lábios, conhecidos como labretes ou botoques, que eram encarados como deformantes pelos viajantes. Seu significado exato para os Botocudo não é claro: é possível que permitissem estabelecer o status da pessoa que os usava ou que estivessem em conexão com a aquisição culturalmente definida de ouvir (no sentido de compreender) e de falar (no sentido de possuir habilidade retórica). “Uma dessas botocudas se distinguia por seus botoques especialmente grandes. Uma vez que eu desejava possuir os mesmos, lhe ofereci em troca alguns presentes, e ela imediatamente se dispôs a trocar seu adorno de botocuda por um rosário, uma faca e um pequeno espelho; no último, no entanto, ela não encontrou agrado especial.” (CA, JEP)

34

A fim de que não faltasse nada aos membros da expedição durante a viagem, eram usados também objetos que pertenciam à população local. O mais importante de tudo era um estoque suficiente de água potável, que era transportada em sacos de couro de boi curtido como o da presente ilustração. A fim de que não fosse necessário apear do cavalo para beber, eram usados canecos feitos de chifre, presos a um barbante: deixava-se os descer, segurando-os pela correia de couro, enchia-se os mesmos de água e em seguida eles eram puxados mais uma vez para cima, a fim de permitir que se bebesse. (CB)

35

Adorno de orelhas e barbante de cintura. Guaná, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1830. Penas, cabelos humanos, lã, fibra vegetal, C. máx. 56 cm e 350 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 928, 929, 931 Pequenos bastões eram presos às longas penas vermelhas e azuis das araras. Esses bastõezinhos podiam ser enfiados atrás das orelhas em determinadas festividades. O barbante em torno dos quadris é contituído, entre outros materiais, de cabelos humanos, que, segundo Natterer, eram oriundos de um inimigo abatido. (CB)

Objetos de uso cotidiano. Guaná, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1830. Fibra vegetal, contas de vidro, casca de cabaça, penas, lã, C. máx. 17,5 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 944, 945, 947, 948

Adorno de cabeça. Guaná, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1830. Penas, lã vegetal, materiais de plantas. C. 62,5 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 927

36

À época de Natterer, os Guaná viviam em ambas as margens do rio Paraguai, na região fronteiriça entre Brasil e Bolívia. Adornos de cabeça como o aqui apresentado eram carregados na parte de trás da cabeça durante as festas e presos na testa através de um barbante enrolado em torno da cabeça. (CB)

Recipientes para beber e vasos de uso cotidiano muitas vezes eram confeccionados a partir de cabaças entre os Guaná. As cabaças possuem diferentes formas e tamanhos, ventres redondos e compridos, que se assemelham a garrafas. Depois de amadurecidos os frutos, a casca endurece, ficando quase como madeira. Usa-se os objetos feitos das cabaças por exemplo para beber, para distribuir alimento sólido ou líquido, para guardar alimentos e para coletar frutas. Acerca do objetivo para o qual era usado o berrante, lamentavelmente não se sabe nada. Também Johann Natterer chama a atenção, em seu registro de inventário, apenas para os enfeites finamente gravados no material, sem no entanto dar mais detalhes a respeito. (CB)

37

Chapéu e estribo. Cultura popular, leste da Bolívia. Em torno de 1830. Couro, madeira, H. máx. 39 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.493, 2.495, 2.496 No final do século XVII foram introduzidos animais domesticados na região de savana da Bolívia. Sobretudo a criação de gado bovino, e com ela a utilização do cavalo como força de trabalho, tiveram um papel muito importante nas missões, mais tarde. Em uma crônica dos jesuítas, os cowboys da região de Mojos são elogiados como excelentes cavaleiros. Eles cavalgariam com sela e arreios sem freios, e usariam chicotes feitos de couro cru para juntar o gato no rebanho. A mula tinha papel importante como transportadora de carga. Natterer e sua equipe expedicionária usaram mulas para o transporte de toda sua bagagem. Para conduzir os animais, havia guias dispostos especialmente para tanto; eles usavam chapéus semelhantes aos aqui apresentados, e podiam ser reconhecidos por eles. A forma fechada dos estribos lhes servia para a proteção dos pés, abrigando-os dos raios ardentes do sol. (CB)

Objetos de uso cotidiano. Itonama, Mojos, Bolívia. Em torno de 1830. Lã vegetal, madeira, palha, penas, madrepérola, C. máx. 231 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.178, 2.181, 2.183, 2.188, 2.189, 2.191 Na época das chuvas normalmente cerca de um terço da região de savanas da planície de Mojos é inundada, motivo pelo qual os habitantes adaptam seu dia a dia a essas circunstâncias. Relatos dos espanhóis nos primeiros tempos dão conta de como as redes eram simplesmente posicionadas um pouco mais acima nas traves de sustentação durante a época das chuvas; com a ajuda das canoas, além disso, era possível se movimentar livremente pela savana inundada. Os leques eram confeccionados com penas de ema, e serviam primeiramente para espantar insetos incômodos. A parte superior dos cabos é envolvida por pequenas penas vermelhas, azuis e amarelas, assim como por tecido de seda, ao passo que a parte restante dos mesmos cabos é constituída de madeira dura, marrom-escura, envolvida toda ela por madrepérola. O caneco belamente decorado era usado pelos Itonama como recipiente para beber. A madeira servia, segundo Natterer, para tirar o amargor da água. (CB)

Colcha. Mojo, Mojos, Bolívia. Lã vegetal, corantes, L. 213 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.193 Vestimenta feminina. Cultura popular, leste da Bolívia. Em torno de 1830. Lã vegetal, pele, seda, metal, L. máx. 135 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.491, 2.492 Vestimentas como essas eram usadas por mulheres da província de Santa Cruz, no leste da Bolívia. Natterer não chegou a percorrer, ele mesmo, a Bolívia. Conseguiu as duas peças de vestuário em Mato Grosso, no Brasil, como presente de dona Gertrudes Adelaide Delfina Ravin Pinto. (CB)

38

Essa colcha tecida em lã vegetal é um exemplo típico da junção de técnicas indígenas com motivos europeus. Johann Natterer, que jamais percorreu a Bolívia, adquiriu-a na região do rio Guaporé, do lado brasileiro. Tecer era, entre os índios Mojo da região de mesmo nome, quase sempre um trabalho feminino, e de grande importância para todos os habitantes da savana. Isso é provado por exemplo já por glossários de palavras dos primeiros tempos, que contêm mais de 50 designações diferentes apenas para ferramentas e técnicas da produção têxtil. (CB)

39

Os Krahô na fotografia de Harald Schultz O etnólogo e fotógrafo brasileiro Harald Schultz, nascido em Porto Alegre em 22 de fevereiro de 1909, estudou com Curt Nimuendajúe Herbert Baldus, entre outros, e foi membro do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que mais tarde seria substituído pela FUNAI, a Fundação Nacional do Índio. Em 1947, ele foi empregado pelo Museu da Paulista, em São Paulo, até sua morte, em 8 de janeiro de 1966. Tanto antes quanto durante o tempo em que permaneceu no museu, Schultz fez diversas pesquisas de campo de vários meses de duração junto a diferentes grupos indígenas, entre eles os Javaé, Karajá, Maku, Umutina, Kaxinawá, Suya, Uruku, Tacuna e Krahô, e coletou com eles não apenas dados e objetos etnográficos, mas também preparou materiais únicos em filme, foto e áudio. Entre seus colegas, Schultz era conhecido tanto por suas relações amistosas com os nativos como também por suas coleções etnográficas e arqueológicas, que se encontram em diversos museus brasileiros. As fotografias que vêm a seguir, ele as tirou durante sua estadia com os Krahô, no ano de 1954. Nessa época, os Krahô moravam no nordeste do hoje Estado de Tocantins, e contavam com cerca de 500 membros. Os Krahô ainda hoje vivem nessa região, que em 1990 recebeu o status de Terra Indígena. (MP)

“Garoto. Krahô.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.803

“Menina. Krahô.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.818 Os Krahô são um grupo dos timbiras orientais. Este conceito abrangente engloba vários grupos indígenas que possuem a mesma língua e compartilham elementos culturais. Eles fazem parte da família linguística gê e vivem a leste do rio Tocantins, no nordeste do Estado brasileiro de mesmo nome. Em 1990, a área de 302.533 hectares foi declarada região de proteção sob o nome de Terra Indígena Kraolândia. Ela possuía, em 2010, quase 3.000 habitantes. O areal é marcado principalmente por uma paisagem de estepes, que a cada pouco é interrompida por corredores de floresta, que crescem sobretudo ao longo dos rios. Os Krahô vivem tanto da caça e da pesca como também da agricultura. (MP)

Na idade de 10 a 15 anos os garotos recebem seu primeiro brinco. Isso é parte importante do ciclo de iniciação, que se encerra mais ou menos aos 20 anos. Com uma agulha de madeira, os garotos têm os lóbulos de suas orelhas furadas na casa de suas mães, e em seguida são enfiados pauzinhos de madeira nos buracos que acabaram de ser abertos. Enquanto a maior parte dos outros moradores da aldeia não dá nenhuma atenção especial ao procedimento, os garotos e a pessoa que faz o buraco na orelha são obrigados a manter uma dieta especial e não podem fazer nenhum trabalho pesado até que as feridas abertas estejam completamente curadas. A partir de então, o diâmetro do buraco é aumentado através de discos cada vez mais maiores, feitos de bambu ou de madeira, até que seja alcançada a largura desejada. Esta pode ser de até dez centímetros. Os discos então passam a ser usados apenas por ocasião de eventos festivos e rituais. Discos grandes correspondem ao ideal de beleza. (MP)

41

“Rapaz. Krahô.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.807

“Cantora. Krahô.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.823

A comunidade da aldeia dos Krahô se divide em várias ocasiões em metades complementares os assim chamados moieties. Um desses pares (de metades complementares) é definido pelas duas estações do ano, segundo as quais uma pessoa, pouco importando se do sexo masculino ou feminino, é associada, conforme o nome que lhe foi dado, ou com o período de seca ou com o período de chuvas. Os dois moieties têm, respectivamente, um chefe, que assume papel importante também nas reuniões diárias dos homens na praça central da aldeia. Cada grupo possui, na estação do ano que lhe foi atribuída, o poder de decisão acerca das questões fundamentais da aldeia. Em outras situações, sobretudo de caráter ritual, os encarregados são moieties definidos segundo outros critérios. Nesse caso mulheres solteiras pertencem á habitualmente do moiety do pai, e mulheres casadas do moiety do esposo. (MP)

A música, sobretudo o canto, é parte essencial da vida dos Krahô. Um cantor reúne, com batidos do chocalho cuité, as meninas e mulheres no centro da aldeia. Elas se colocam em fila e dançam, cantando, ao ritmo do chocalho, enquanto diante delas os garotos e homens também se movimentam seguindo o mesmo ritmo. O cantor, que goza de muito prestígio na comunidade da aldeia, marca o compasso com o chocalho. Quando ele muda o compasso, logo é entoada uma nova canção. Entre as mulheres existem as assim chamadas “melhores cantoras”, que têm uma função importante. Elas devem ser as primeiras que reagem ao chamado do cantor, e com suas vozes animam os outros membros da aldeia a participar da canção. (MP)

42

“Mestiço (Krahô e negro) com machado-âncora de pedra.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.816

“Oca dos Krahô.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.825

Os Krahô possuem uma longa tradição de relações tanto amistosas quanto hostis com outros grupos indígenas. Também sua relação com seus vizinhos brancos foi instável, na medida que em sua antiga região de colonização, nas proximidades do rio Balsas, ainda ajudaram, até os meados do século XIX, os fazendeiros brancos que por lá se estabeleceram a agir contra outros grupos indígenas. Quando os Krahô entraram em conflito com os fazendeiros, foram transferidos ao espaço em que ainda hoje vivem, onde passaram a ter ligações com os Xerente, Apanyekrá e outros grupos, através de casamentos intertribais. Descendentes desses casamentos são tidos como Krahô integrais. Isso também vale para os descendentes de alguns africanos, cujos antepassados provavelmente tenham sido aceitos na comunidade krahô durante a fase da catequese nas décadas de 1850, 60 e princípio da década de 1870. (MP)

As aldeias dos Krahô seguem o ideal infraestrutural dos timbiras. Suas casas são alinhadas com a parte frontal voltada para dentro na parte exterior de um caminho circular, que envolve o centro da aldeia, uma praça em forma circular. Essa praça central é ligada ao anel exterior por caminhos retos, que lembram os raios de um sol. Enquanto a vida familiar se passa em torno das casas e dentro delas, a praça central tem função em primeira linha ritual. (MP)

43

“O interior de uma oca retangular. Krahô.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.826 Nas casas individuais habitualmente moram juntas sob o mesmo teto várias famílias nucleares. Quando há um casamento, o noivo se muda para a casa da família da noiva e deixa assim sua própria família. Mesmo quando várias famílias nucleares vivem juntas, elas tomam as refeições separadas umas das outras. A comida a ser consumida, no entanto, pode ter sido preparada por um outro membro da casa. Todas as famílias nucleares que vivem na mesma casa formam uma única economia doméstica. Quando morre o chefe dessa economia doméstica, que é sempre o sogro dos homens que mudaram para a casa depois do casamento, uma das famílias nucleares assume a casa, enquanto as outras fundam novas casas nas imediações mais próximas. Mesmo que as economias domésticas individuais não tenham uma chefia conjunta, elas continuam vigorando como unidade social, o que se expressa por exemplo na prática do casamento exógamo. (MP)

44

“Corrida esportiva com troncos. Krahô.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.838

“Corte de cabelo e passagem à faixa etária seguinte. Krahô.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.841

Enquanto as corridas com troncos, segundo os registros de Harald Schultz,eram praticadas ainda diariamente na década de 1950, hoje em dia elas continuam acontecendo apenas em conexão com determinados ritos. Depois da participação coletiva na caça e na pesca, ou por exemplo da abertura de uma roça, os participantes se reúnem em uma área localizada alguns quilômetros distante da aldeia, onde começa a corrida. Dois grupos disputam um contra o outro, e um integrante de cada um dos grupos, respectivamente, bota sobre o ombro o tronco de árvore de até 100 quilos e corre em direção à aldeia. Quando ele cansa, um outro integrante do grupo assume a carga, mais ou menos como acontece em uma corrida de revezamento. Os troncos feitos de palmeira buriti mostram, dependendo da ocasião, diferentes tamanhos, formas e decorações. A origem dessa corrida está na mitologia dos Krahô: sol e lua são tidos como os ancestrais dos Krahô e fazem diariamente uma corrida de troncos após a caça. (MP)

Os Krahô de ambos os sexos e de todas as faixas etárias usam o mesmo corte de cabelomuito difundido entre os grupos dos timbiras orientais. Todo Krahô masculino é membro de uma faixa etária, que cobre sempre um intervalo de mais ou menos dez anos. Aos quatro grupos mais jovens e esportivamente mais ativos está destinada uma área determinada da praça da aldeia;

dois dos grupos se encontram do lado leste e dois do lado oeste. Durante o processo de iniciação, eles são alternadamente classificados ou do lado ocidental (oeste) ou do lado oriental (leste). Com isso, o mais antigo dos dois grupos já existentes abandona o posto de comunidade ritual ativa e se torna parte do conselho, cujo lugar cativo está definido no meio da praça da aldeia. Seu lugar anterior é assumido pelo grupo mais jovem seguinte de seu mesmo ponto cardeal. Os grupos individuais participam de diferentes rituais, entre outros das corridas de tronco. (MP)

“Sepultura. Krahô.” Foto: Harald Schultz, 1954. Coleção de Fotografias, Nº de Inv. 25.851 Quando falece o integrante de uma família, uma parente bem próxima anuncia sua morte através de lamentos altos, ao que outros parentes se reúnem na casa. O cadáver é amortalhado sobre esteiras de palha no centro da casa e preparado para o enterro, enquanto outros parentes entoam cantos de lamentação. Os cabelos do morto são cortados, as sobrancelhas aparadas e o corpo pintado com a tinta vermelha do urucum, que é tida como a cor da vida. Em seguida o cadáver é enrolado na esteira de palha e atado a uma estaca de madeira, a fim de que os coveiros possam levar o falecido ao cemitério localizado fora da aldeia. Ali ele é enterrado em um buraco escavado, que é coberto com galhos e folhas. Para protegê-lo de porcos selvagens, são colocados em torno da sepultura velhos troncos de árvore, que haviam sido usados nas corridas com troncos. Os integrantes da família não acompanham o morto ao cemitério e, em vez disso, se lavam com todo o cuidado depois de mais lamentos para assim se livrar da impureza trazida pela morte. Também a casa e o pátio frontal são varridos por esse mesmo motivo. (MP)

45

Wolfgang Kapfhammer

A Dança das Cabeças Os Munduruku no Século XIX Para tomar posse da extensa coleção única no mundo, formada de adornos de penas e outros objetos etnográficos dos Munduruku, Johann Natterer, em suas longas viagens, não teve nem sequer que se desviar muito das trilhas usadas na época, através da Amazônia. Melhor dizendo, em 1824 ele recebeu os objetos do amigo militar brasileiro, Antônio Peixoto de Azevedo: “Deste capitão adquiri objetos maravilhosos, especialmente dos indígenas Munduruku. Trata-se de cinco instrumentos de sopro, feitos com chifres, dos quais o mais longo mede sete pés, diversos cocares ou toucas, semelhantes a perucas, confeccionados com penas de arara, braceletes, um avental de plumas, lanças, arcos e flechas e outros objetos semelhantes, decorrentes dos Apiaká e Bororo, bem como alguns objetos dos Paresí e até uma flecha envenenada dos Maué. Os Munduruku habitam na área descendo o Tapajós. […] Apesar de que eu iria permanecer com esses índios por algum tempo, durante minha viagem ao Amazonas, pensei que teria que fazer a escolha mais certa, ou seja, levar esses trabalhos comigo, uma vez que dessa forma eles chegariam muito mais rápido a Viena, onde, em matéria de beleza, superariam todas as coisas indígenas, que existiam ali” (cit. Schmutzer 2007: 149). Como Peixoto de Azevedo era líder de uma expedição, que em 1819 avançou por Mato Grosso do Sul à procura de vias de acesso na região dos rios Arinos, Juruena e Teles Pires e que provavelmente tocou a margem sul da área onde viviam os Munduruku naquela época, teria comprado os objetos diretamente deles, no até então inacessível interior dos sertões amazônicos. Provavelmente, Natterer também teria podido adquirir alguns exemplares dos “curiosos objetos” dos índios Munduruku na metrópole, Belém do Pará, na embocadura do Rio Amazonas (Schmutzer 2007:

Imagem 55: Coifas com cobre-nuca. Munduruku, Rio Tapajós, Brasil. Em torno de 1830. Plumas, cera, algodão, fibras de plantas, H. máx. 59 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.253, 1.260, 1261 As coifas com cobre-nuca (akeri) dos Munduruku, juntamente com seus colares (akerikaha), foram iconográficas para a arte indígena do Brasil do séc. XIX. A mitologia dos Munduruku também enfatiza o esplendor dessa touca: Uma vez duas cabeças-troféu subiram ao céu e se tornaram o sol vermelho, da época da seca, e o sol branco, da época de chuva. Karuetaruybo, o deus do período de seca é tido como o criador dos Pecaris – ainda hoje se vê no firmamento a cabeça enfeitada com plumas de arara, pavão e galinha do mato. Sobre esses termos cosmológicos, os cocares dos Munduruku conotam a divisão social da aldeia em duas metades complementares (moieties), uma “vermelha” e a outra “branca”, bem como as atividades rituais durante o ano: as campanhas militares, na estação da seca, e os ritos subsequentes, no período chuvoso. (WK)

149). Pelo menos duas décadas mais tarde, o etimologista norte-americano, William H. Edwards relata o seguinte: “A algumas centenas de milhas (do Rio Tapajós), rio acima, a partir de Santarém, encontra-se um grande assentamento de índios, de onde vêm às roupas de pluma, que algumas vezes são vistas no Pará (Belém), e que são usadas pelos chefes. Uma touca, trançada com algodão cru e coberta com pequenas plumas de papagaio, ajustada à cabeça, na qual há uma ostentosa tapeçaria colorida fixada, que pende ao longo das costas e é feita com as longas penas da cauda dos mesmos pássaros. Do mesmo material também é feito o cetro, que se leva na mão. Há também peças para os ombros, cotovelos, punhos, cintura, pescoço e joelhos, e muitas vezes uma echarpe, belamente trabalhada, que é jogada sobre o corpo. Essas peças são o resultado de um admirável esforço e superam de longe, de maneira profunda e impactante, àquelas que algumas vezes são trazidas das ilhas dos mares do sul” (Edwards 1847: 102; Imagem 55). Os relatórios de viagem de Edward, A Voyage Up The River Amazon, também inspiraram o grande naturalista, Henry Walter Bates, juntamente com seu colega Alfred Russel Wallace, a embarcar nas pesquisas sobre a Amazônia (Raffles 2002: 244 com nota. 50). Em seu famoso livro “The Naturalist on the River Amazons“ (1863; com complemento 1866), ele descreve, em uma parte, um desfile na cidade de Santarém, no estuário do rio Tapajós: “Uma vez por ano os índios apresentam um espetáculo de dança, mascarados, o qual, em uma oportunidade, nos proporcionou grande prazer. Eles vieram juntos a noite, de diversas vizinhanças dos arredores da cidade e se dirigiram com tochas através das ruas para a área onde moram os brancos, para, em frente às portas dos principais moradores, executarem suas danças aos espíritos e à caça. Participaram do desfile cerca de cem homens, mulheres e crianças. Parte dos homens usava coroas esplêndidas, camisas e cintos de plumas, confeccionados pelos Munduruku, para serem usados em ocasiões festivas. No entanto, as mulheres estavam nuas até a cintura e as crianças totalmente nuas e todas pintadas de vermelho, com urucum. O dançarino principal representava o papel de um Tuxaua, ou cacique, e levava um rico e adornado cetro feito de penas verdes e vermelho alaranjado de tucanos e papagaios” (Bates 1989: 277). Com efeito, não era só a plebe que ficava fascinada com a representação das confrontações coloniais. Ao contrário, até mesmo nas mais altas rodas as pessoas se divertiam fantasiadas com supostos disfarces indígenas. De posse do Museu de Etnologia de Munique se encontram duas roupas de plumas, denominadas de “Traje Botocudo”, da coleção dos Leuchtenberg (Schindler 2002).

47

Amalie de Leuchtenberg foi a segunda esposa de Dom Pedro I, o imperador do Brasil, e as duas peças de plumas foram confeccionadas, provavelmente, para serem usadas em um baile de máscaras na corte. Sua majestade imperial teria comparecido a um sarau, em 1829, vestindo um traje curto de plumas, mas parecendo “Papageno, da Flauta Mágica”, conforme observou uma testemunha ocular, sarcasticamente (Schindler 2002: 43). Vale ressaltar que ambas as peças de plumas não têm a ver somente com os “Botocudo” brasileiros do leste – que na época era bem mais um tipo de denominação geral para “selvagem” – como também foram costuradas por uma mão desconhecida, à base das roupas de fantasia influenciadas pelo estilo rococó, nas quais foram incluídos enfeites de plumas dos Munduruku (Schindler 2002: 35–41). Em virtude disso, certamente não deve ser dito que os trabalhos de pluma dos Munduruku, nas primeiras coleções europeias, são “trabalhos de mosteiro” ou “tourist art”; esses indícios fortalecem muito mais as evidências do quanto às relações materiais e imaginativas entre os Munduruku e a sociedade brasileira colonial, na primeira metade século XIX, tinham avançado. E não se tratava só do “inofensivo” cocar de penas, cujos exemplares chegaram até as metrópoles, como artigo de troca e produtos comerciais – ao que parece tratava-se também de itens em circulação, que estavam no foco de uma obsessão ritual, notória dos Munduruku da época. O viajante americano Edwards, que foi citado no item sobre os adornos de penas dos Munduruku, continua no mesmo tom: “dos indígenas do Tapajós vêm também às cabeças embalsamadas, que se pode ver frequentemente no Pará. São as cabeças dos inimigos mortos em guerra, que conservaram maravilhosamente suas características naturais. O cabelo é o melhor conservado, as órbitas são preenchidas com barro e pintadas. Isso quer dizer que os índios manejavam essas cabeças com muito cuidado, uma vez que por causa de alguma superstição se sentiam obrigados a levá-las a cada empreitada importante […]” (Edwards 1847: 102). Os troféus de crânios e os adornos de plumas ritualísticos foram, no início do século XIX, parte de uma “ideologia” que pode ser descrita como a força motriz por trás da dinâmica cultural dos Munduruku. No entanto, as citações mostram também que essa dinâmica, nesse determinado período de tempo, não seriam mais concebíveis sem um envolvimento no sistema colonial. A dialética inextricável do anseio de uma população indígena amazônica, posta em cativeiro, esteve envolvida em quase todos os esforços desse sistema. Os índios foram envolvidos no tráfico comercial, onde deveriam compensar a grande escassez de mão de obra na Amazônia, e acabaram por representar o que hoje é denominado como traditional ecological knowledge (Berkes 1999). Esse conhecimento foi a única coisa que pode garantir a sobrevivência aos colonos nessa área e, ao mesmo tempo, propiciar a exploração rentável do meio ambiente. No final, os índios não foram só parceiros e colaboradores dos naturalistas do século XIX, eles ajudaram a construir a ciência ocidental (Raffles 2002: 138–147).

48

A qualidade hierárquica das relações entre índios e brancos está fora de questão. Não houve dúvida que a sucessão de evangelização, o reassentamento executado em contexto, bem como a época do “Diretório Pombalino”, com sua máxima iluminista de assimilação pela força, promoveram o processo de “destribalização” (Maclachlan 1972). Contudo, seria errôneo julgar as consequências sociais e culturais das relações étnicas exclusivamente como negativas. Pelo contrário, longe da percepção histórica, parece que, principalmente depois da dissolução do “Diretório” em 1798, assinalou o início de “uma população amazônica pré-moderna” (Cleary 1998: 111), a qual não só em sua maioria era de origem indígena, como também sabia como explorar seu âmbito de maneira autônoma. Acima de tudo, porém, essa população indígena procurava se emancipar da força vigente. O documento de petição do conselho indígena do assentamento Alter do Chão, perto de Santarém, mostra como o povo começou a exigir o cumprimento das ideias liberais da época: “[…] Eles (os coletores de impostos; W.K.) não fazem nada que não seja nos intimidar e levar nossos bens e isso sempre foi assim nessa aldeia. Estamos trabalhando aqui porque eles nos ameaçam constantemente e dizem que não passamos de macacos e papagaios. Para aqueles que dizem que a independência foi somente para eles e não para os índios: nós, que recebemos a liberdade do nosso excelso imperador, dizemos que apesar de sermos índios, somos tão batizados quanto eles […]“.1 Os Munduruku apareceram pela primeira vez perto do final do século XVIII, ante o pano de fundo do cenário colonial. Provavelmente de origem sulista, saíram de suas terras ancestrais no serrado, no afluente oriental do alto Tapajós, para o norte do vale do baixo Tapajós (Martius 1867: 394). A partir de 1780 se acumularam os ataques aos colonos do baixo Tapajós, de tal maneira que o governador do Pará, Martinho de Souza e Albuquerque, sentiu-se obrigado a apelar para o Ministro de assuntos Ultramarinos: Os Munduruku roubam e matam sem restrição e temor de Deus […] De todas as nações indígenas eles são atualmente os mais terríveis, tanto no que diz respeito ao seu grande número, quanto pela propensão que têm à barbárie sem limite […] não se importam nem com o sexo, nem com a idade de suas vítimas, somente lhes importa quantidade, já que visam aumentar sua coleta desumana de cabeças. (Santos 1995: 36; Harris 2010: 154–155). Contudo, os ataques dos Munduruku aos colonos, alguns dos quais ameaçaram algumas divisões importantes como Santarém e até mesmo (Belém do) Pará, não foram motivados, ou pelo menos, não exclusivamente, pelo ritual de caça à cabeça. O caráter dos ataques era evidentemente ameaçar os bens da população colonial: “Eu fui informado, que os referidos Mondurucúz, em suas bárbaras expedições, causaram, da última vez, enormes danos na área da Vila Altér do Chão. E não somente às plantações dos moradores, que já as abandonaram, por causa do ini1

Ver documento completo em Harris 2010: 193–194.

migo, como também às manufaturas, onde os índios desse assentamento se dedicam à coleta de produtos florestais (Drogas do Sertão). Por causa da perda de algumas pessoas, que foram mortas pelos pagãos, eles também foram obrigados a desistir dessas manufaturas, bem como de toda a farinha de mandioca, que tinham para a sua subsistência, para se trasladarem, sem nada, para a vila, cujos arredores encontra-se agora totalmente despovoado, enquanto o inimigo estava tão próximo, que algumas vezes até se podia ouvir o som de alerta das trombetas ou de outros instrumentos, usados pelos bárbaros” (de Souza e Albuquerque, nos mesmos inscritos de 1788; Santos 1995: 36; Imagem 56). Uma série de fatores favoreceu a enorme expansão territorial dos Munduruku, que levou alguns deles até o rio Xingú, no leste, e ao rio Madeira, no oeste; contudo, todos eles tinham a ver, direta e indiretamente, com a situação de contato, que tinha causado o avanço do sistema colonial. Suspeita-se que fatores como a escassez de alimentos e epidemias tenham contribuído para a dinâmica da expansão. 2 Um resultado direto do contato colonial consiste, sem dúvida, no fato de que os Munduruku puderam se aventurar em territórios que, em consequência da pratica administrativa de reassentamento, foram despovoados. Acima de tudo, porém, os Munduruku buscavam acesso aos cobiçados bens dos comerciantes brancos (Murphy 1960: 30). Com uma hábil dupla estratégia, os portugueses conseguiram ter a ameaça sob controle. Por um lado, tropas regulares foram deslocadas ao Tapajós, como relata Almeida Serra: Às margens do Rio Vermelho [Cururú, no alto Tapajós] […] vive a nação Mondruci, uma das mais valentes e mais ousadas de todo o interior do Amazonas, recém-pacificada com os portugueses, depois que alguns decidiram, voluntariamente, em 1795, estabelecer-se entre os nossos, em consequência de uma campanha que o atual governador do Pará ordenou contra eles” (Serra 1847 [1779]: 5). Por outro lado, seguiu-se uma política de “pacificação” mediante o aliciamento dos Munduruku com mercadorias. Os índios aprisionados eram transportados às colônias portuguesas, lá, muito bem tratados, e ao final, trazidos de volta às suas aldeias, munidos com os cobiçados objetos (Harris 2010: 156). Na década de 50, do século seguinte, alguns anciãos Munduruku ainda recordavam desse tempo: Nos tempos antigos nossos avós ainda eram selvagens e lutaram contra os brancos. Os brancos sempre vinham em seus barcos, rio acima, e nós sempre os combatíamos. Um dia veio um grupo deles, houve uma luta e nossos homens foram afugentados. Dois dos nossos jovens foram feridos e nós os deixamos para trás. Eles foram capturados e deportados. Da outra vez que os brancos surgiram, nós já estávamos prepara2 O engenheiro Tocantins, que visitou as aldeias Munduruku, no cerrado, em 1875, aponta para uma escassez de caça, devido ao aumento populacional, que levava a outras consequências (Tocantins 1877: 112). Por outro lado, as epidemias poderiam ter forçado os Munduruku a equilibrar a perda populacional através da “adoção” de prisioneiros de guerra (vide Ferguson 1990).

Imagem 56: Trombetas de guerra. Munduruku. Rio Tapajós, Brasil. Em torno de 1830. Tubo, algodão, plumas, pedaços de tubo, cabelo, L. máx. 205 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.209, 1.221 A trombeta transversal (bem ou toré) era empregada, por um lado, (juntamente com outros instrumentos de sopro, designados kiohoa) para dar o sinal de ataque, durante a guerra, e por outro, na terceira e mais importante fase da cerimônia das cabeças-troféu: o momento da “enfiação dos dentes”. (WK)

dos para o ataque quando os homens, que haviam sido capturados, levantaram da canoa e disseram que não devíamos fazer nada àquelas pessoas, porque elas eram nossas amigas. Então vieram até nós e nos mostraram roupas, facas, machados e muitas outras coisas bonitas que os brancos lhes tinham dado. Eles disseram que nós precisaríamos somente dar borracha e farinha aos brancos, e que assim também receberíamos aquelas coisas. Os velhos decidiram fazer isso, e desde então somos amigos dos brancos” (Murphy 1960: 27). Em um espaço de tempo incrivelmente curto, os Munduruku passaram de ameaça, a aliados dos portugueses, com os quais chegaram até a fazer, em 1795, um “acordo de paz” (Harris 2010: 156). É notável a rapidez com a qual, nos relatos contemporâneos, o horror pela “bárbara” prática de caça à cabeça, transformou-se em uma mais ou menos clara admiração da masculinidade militar: „[…] Os Mundurucús, cujo costume é pintar o corpo com as cores negras do jenipapo, são numerosos, de aparência agradável, guerreiros, e os mais temidos dentre todas as nações, as quais os alcunharam de Pay-quicé, que significa cortadores de cabeças, já que, de todos os inimigos, que caem em suas mãos, eles as cortam e sabem como mumificá-las de tal maneira, que elas permanecem por muitos anos com a mesma fisionomia do momento em que foram cortadas. Com esses troféus hediondos eles adornam suas moradas miseráveis. Aquele que possui mais de dez, pode ser apontado como chefe da horda. […] Quase todas as hordas mundurucús são nossas aliadas hoje; e alguns já são cristãos” (Casal 1847 [1817]: 317).

49

Imagem 57: Cetro de plumas com capa.  Munduruku. Rio Tapajós, Brasil. Em torno de 1830. Plumas, bambu, cano, L. máx. 74 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.237, 1.246, 1.248, 1.250, 1.251 De acordo com as ilustrações contemporâneas, os cetros de plumas eram segurados na mão, durante os rituais de caça à cabeça. A concepção estrita e formal, bem como a padronização de cor, lembram as insígnias do clã, as quais ficavam penduradas nos postes da casa-dos-homens e que, infelizmente, não foram preservadas. Aparentemente existe uma associação entre as espécies de aves, usada nas decorações festivas, com determinados clãs.

Os portugueses usaram o avançado movimento de migração dos Munduruku e convenceram grandes grupos a deixarem suas áreas isoladas de cerrado, para estabelecerem-se tanto no baixo Tapajós, quanto no oeste, às margens do rio Madeira. Aqui também se tratava de uma dupla estratégia, que vinha de encontro aos pré-requisitos básicos específicos da sociedade Munduruku: de um lado os portugueses tentaram habilmente subordinar a disposição bélica dos Munduruku a seus interesses coloniais, enquanto que por outro lado o desejo de acesso aos bens industriais, através da absorção dos Munduruku no sistema econômico colonial, deveria ser satisfeito. Quem desempenhou um papel chave foram as missões, fundadas como porto de escala para a transferência dos Munduruku ao Tapajós e ao rio Madeira. Além do trabalho pastoral, as missões deveriam, principalmente, proteger o aldeamento das atividades exploratórias dos regatões (comerciantes que atuavam às margens dos rios). Tocantins (1877: 134–140) relata, em detalhes, a luta infrutuosa da missão Bacabal, no Tapajós, contra os interesses dos regatões de Itaituba, que se queixavam do monopólio criado pela missão

50

com os Munduruku. Fora dos seus isolados assentamentos, no interior, os Munduruku sucumbiram rapidamente às condições da economia de extrativismo colonial, que era baseado em um comércio de troca, extremamente desigual3 de produtos florestais (no decorrer do século XIX houve aumento do caucho, no Tapajós e do guaraná ou sarsaparilla, no Madeira), bem como produtos agrícolas (sobretudo a farinha de mandioca), por produtos industrializados. Na segunda metade do século XIX, os Munduruku já tinham passado de “guerreiros do cerrado” a protagonistas do último degrau da estrutura hierárquica da economia extrativista, segundo relata o naturalista inglês Bates: “Eles [os Munduruku] têm uma grande plantação de mandioca e vendem, no Tapajós, o que não é consumido por eles – de 3000 a 5000 cestos anuais (a 60 kg) – para comerciantes que vêm nos meses de agosto a fevereiro, de Santarém, pelo rio. Eles também reúnem uma grande quantidade de sarsaparilla, caucho e feijão Tonka nos bosques. Quando os comerciantes chegam das campinas (área de arborização esparsa, onde vive o tronco principal dos Munduruku, na parte de cima do Coatá), primeiro distribuem suas mercadorias – algodão, a bom preço, machados de ferro, facas, pequenos artigos e cachaça – aos caciques, e esperam de três a quatro meses, até que se dê o pagamento dos produtos”. Na mesma proporção em que os Munduruku, através da sua produtividade como coletores e agricultores, puderam ter acesso aos cobiçados bens comerciais, o reassentamento nos grandes rios, minou os parâmetros sócio-cosmológicos de sua essência guerreira, que tinha seu movimento de expansão como base (Murphy 1960; 1974). Há indícios de que, apesar de falar um idioma Tupí, os Munduruku tenham uma afinidade com a cultura da língua Jê, do Brasil central. Característico desses grupos são os pontos de referência social e cosmológica e linhas de comunicação que se refletem no entorno da aldeia. Os assentamentos dos Munduruku nos cerrados eram aldeias circulares, que se dividiam em duas partes (vermelho e branco). Essas chamadas moieties (metade, do Francês) eram divididas novamente em um determinado número de clãs, alguns dos quais poderiam se unir (contudo pouco usual) em comunidades solidárias, denominadas Fratries (do Francês, irmandade). Fazer parte de um clã dependia da linhagem do pai (a chamada patrilinearidade) (Imagem 57). Uma particularidade da constituição social das aldeias Munduruku dos campos é que a descendência patrilinear era confrontada com a regra de que, depois do casamento, os homens tinham que se mudar, tanto para a aldeia, como para as dependências onde vivia a esposa (a chamada uxorilocalidade). Essa combina3

O sistema de aviamento da Amazônia funcionava de maneira que alguns comerciantes fluviais disponibilizavam seus bens e equipamentos a preços superfaturados, resultando em uma dívida que seu cliente precisava quitar, mediante a entrega dos produtos da colheita, plantio, caça ou pesca. Como o saldo nunca podia ser equilibrado, o cliente se enredava cada vez mais fundo com seu patrão, que sabia como monopolizar esse tipo de relação, e transformar a dívida em servidão – ou trabalho escravo (Burkhalter e Murphy 1989). Tocantins mostra uma transcrição de um débito absurdo, de um chefe Munduruku, constante de um livro de débito (1877: 152–154).

ção específica de descendência patrilinear e uxorilocalidade (regra matrilocal) teve duas classes de consequências para estrutura social dos Munduruku: por um lado a sociedade masculina de “exilados” das aldeias se reorganizou em um tipo de communitas, que residia, por um tempo mais ou menos longo, nas “casas-de homens” inseridas na aldeia circular e que de lá se organizava de forma complexa. Por outro lado os “índios extrangeiros” recém-chegados podiam confiar, mutuamente, nas relações inter-regionais dos clãs, como antes da dispersão. Ambas, tanto a solidariedade aldeana formada na “casa-de-homens”, quanto a conservação da relação global do clã, teria contribuído para o alto nível da organização militar dos Munduruku do século XIX, a qual no início foi temida pelos colonizadores, depois, admirada e no final, explorada por eles. Contudo, as fontes do século XVI não mencionam mais nenhuma casa-de-homens, nem aldeias circulares no baixo Tapajós. Aparentemente os imigrantes não mantiveram suas organizações sociais por muito tempo e a identidade Munduruku, visivelmente identificada no tipo físico dos homens e das mulheres, começou a desaparecer: Devido à relação sexual frequente com os brancos, ocorre uma rápida mudança nos hábitos desses índios e os que moram às margens do Tapajós agora tatuam seus filhos só raramente 4 (Bates 1989 [1866]: 368). Também na bacia hidrográfica do Madeira, o geógrafo Chandless relata que os índios agora estariam “civilizados” e que viveriam “em família”, não mais em “rede tribal”, e que apenas alguns dos jovens ainda permaneciam tatuados. Eles criaram sua subsistência através do plantio de tabaco e da coleta do guaraná, sarsaparilla e óleo de copaíba; também praticamente não existia mais ligação entre os grupos do Tapajós e aqueles do Madeira (Chandless 1870: 424). Entretanto, a memória das guerras e os rituais que a acompanhavam ainda estavam vivos nos anos 50 do século XX. De acordo com um mito dos Munduruku, uma vez duas cabeças-troféu subiram ao céu e ali se transformaram no brilhante sol “vermelho”, do tempo de seca, e no nublado sol “branco”, do tempo chuvoso. O primeiro ainda se pode ver até hoje no firmamento. Sua cabeça é adornada com plumas de arara, pavão e galinha do mato. Karuetaruybö, o sol do tempo de seca, é tido como o criador dos Pecaris (Kruse 1951; Murphy 1958; Imagem 58 e 59). Sobre esse termo cosmológico regulamentava-se a divisão social da aldeia em duas metades complementares: uma “vermelha” e outra “branca” e as atividades rituais, durante o ciclo anual: as campanhas de guerra, no período de seca, e consecutivamente, os grandes ritos, no período de chuva, nos quais as cabeças-troféu capturadas figuravam como foco principal. No verão, reuniam-se tropas de guerreiros de várias aldeias e saíam acompanhados por mulheres – as irmãs ou esposas dos guerreiros – para longas caminhadas. As fontes não revelam se os al4

Imagem 58: Capa de plumas. Munduruku, Rio Tapajos, Brasil. Em torno de 1830. Plumas, algodão, L. 110 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.295 Além das “roupas” de tecido de cascas, que envolviam, mais ou menos por inteiro, o corpo de quem as usava, o guarda-roupa dos índios do Amazonas incluía também uma série de peças feitas de cordões de algodão, tiras de entrecascas (fibras têxteis liberianas) e fios à base de plumas, que circundavam o corpo. Uma ideia para o escopo simbólico dos adornos de plumas, na visão de mundo Munduruku, vem de um mito, cuja origem é o javali, a cobiçada caça selvagem. No final, todo o espólio arrecado era dedicado à “festa da vitória”: Certa vez, diversos campos de caça estavam próximos uns dos outros. O herói da cultura Karusakaibö caçou somente galinhas tinamu, cuja carne, de qualidade inferior, seu filho deveria trocar com suas tias, por carne de caça de qualidade. Quando as mulheres rejeitaram o menino, Karusakaibö se vingou, trancando os parentes em uma caverna feita de plumas de arara, pavão de cauda negra e galinha do mato (ave da família Cracidae) e transformando-os em Pecaris de Barba Branca. (WK)

Imagem 59: Munduruku dançando em trajes de plumas. (Spix e Martius 1823–1831) Segundo as estampas do “Atlas”, de Spix e Martius, as capas de plumas de Arara e galinha do mato (ave da família Cracidae), eram usadas como uma “mantilha” nos ombros. O nome tradicional indígena para esse artigo, conhecido ainda hoje, é garutat e provavelmente tem a ver com karu, a palavra Munduruku para Arara. (WK)

Quase na mesma proporção que seu costume de caçar cabeças, a tradição de tatuar o corpo, do rosto até abaixo do joelho, contribuiu para a “fama” dos Munduruku do século XIX. A complementação da tatuagem, que era um processo muito doloroso, extendeu-se para jovens de ambos os sexos, por anos a fio, e teve caráter socializador (Martius 1867: 387; Tocantins 1877: 114).

51

vos dessas expedições eram claramente definidos. Entretanto, a “espartana” disciplina militar dos Munduruku foi uma projeção dos jornalistas contemporâneos. Muito mais provável é a ideia de que se tratava de uma gangue de saqueadores, que circulavam em uma grande área, e que aproveitavam todas as oportunidades para o ataque: quando uma maloca (casa comunitária) se apresentava como alvo, era cercada de madrugada e atacada. Os habitantes do sexo masculino eram mortos e, quando possível, degolados. Já as mulheres jovens e as crianças, eram capturadas. A retirada tinha que ser feita rapidamente e as cabeças degoladas eram dissecadas ainda no caminho. 5 Após o retorno das suas campanhas militares, os assassinos e seus troféus recebiam a mais alta atenção. Cabeças e guerreiros tornavam-se foco principal de um incipiente ciclo ritual multi-anual (Imagem 60). Essa sequência de festividade era dividida em três fases, na qual cada faixa etária ocupava um plano. A primeira festa, “a adornação das orelhas”, estava sob a liderança do matador; nessa ocasião ele levava o título de “Mãe do javali”.6 A cabeça do morto recebia a tonsura (corte circular dos padres) típica dos Munduruku e a “mãe pekari” fixava no crânio o tradicional brinco para as orelhas, feito de plumas, do traje festivo do guerreiro Munduruku (Murphy 1958: 54–55). Com isso, as cabeças dos mortos eram coletivizadas e unidas às comunidades dos guerreiros convidados-Munduruku, das aldeias vizinhas. Aqui, a rede de conexão entre os clãs era novamente ativada, uma vez que era privilégio de determinados clãs contribuir com plumas de algumas 5

O cérebro, os músculos, a língua e os olhos foram removidos dos crânios. Depois foram secos no fogo e esfregados com vários óleos, até que a pela sob a cabeça ficasse dura, mas de forma que as características faciais permanecessem (Martius 1867: 392; Tocantins 1877; Barbosa Rodrigues 1882b).

6

Pecari de barba branca (Tayassu pecari).

Imagem 60: Conjunto de cocares de um guerreiro com cabeçatroféu. Munduruku, Rio Tapajós, Brasil. Em torno de 1830. Plumas, algodão. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.256, 1.240, 1.262, 1.266, 1.267, 1.277, 1.279, 1.290, 1.291, 1.292, 1.297, 1.305, 1.306, 1.307, 1.312, 1.323, 1.324, 1.332 Para um ciclo ritual de grandes dimensões, que abrangia a caça à cabeça, os guerreiros Munduruku se apresentavam em um traje festivo de plumas, cujos elementos são representados, quase inteiramente, na coleção Natterer: juntamente com os cocares fazia parte do traje festivo um cinturão (tempe-á), que era usado em torno da cintura, do qual pendiam os fios de plumas, pendurados na frente, atrás e nos lados. Em um desses “aventais” (Nº de Inv. 1.297) estavam integrados chocalhos de caroços de frutas. Os “cordões para os ombros” (curuapé) eram usados ou individualmente, ou como um fardel, tipo uma echarpe, na parte superior do corpo. Na sua coloração estes cordões de algodão embutidos, aplicados com plumas de arara, ou galinhas do mato (família Cracidae), parecem com “uniformes”: são vermelhos ou amarelos, com franjas de diversas cores ou totalmente pretas. As peças que lembram dragonas (bamam) eram usadas ao redor do braço. Nas faixas para braço estão pendurados cordões de plumas, de coloração típica placativa dos Munduruku, que se movem livremente. Na coleção, além das faixas para o joelho e tornozelo, faltam os enfeites de orelha: uma espécie de roseta de plumas com borlas. As cabeças-troféu também eram enfeitadas com estes brincos, que foram usados na primeira fase do ritual, e que cujo nome lhes foi dado a partir deste ato. (WK)

espécies de aves, para os adornos. Ao mesmo tempo a cabeça do inimigo era associada como guerreiro-Munduruku, uma vez que havia sido equipada com evidentes marcas de identidade (Menget 1993). Depois do seu retorno, o assassino estava sujeito a estritas regras de abstinência ritual e era retirado das atividades cotidianas. Ao invés destas, colocava-se a serviço dos caçadores, onde figurava, com seu troféu, como elemento de sucesso à caçada. Na fase seguinte da festa, o “despelamento da cabeça”, a mesma era espancada com paus por um grupo de homens idosos, conhecidos como “abutres calvos”, com o intuito de liberá-la completamente da pele desecada. Depois, o crânio limpo era guardado na casa-dos-homens (Murphy 1958: 56).7 O simbolismo do ato era complementar à primeira fase: enquanto nesta a cabeça era cuidada para ser aceita na comunidade Munduruku, aqui ela era confrontada com “predadorismo”, canibalismo simbólico e agressão, que se tem apenas para com o inimigo (Menget 1993). Seguia-se então a “enfiação dos dentes”. Aqui a “mãe javali” arranca os dentes do crânio e os enfia em um cinturão de algodão, que ou é usado em uma nova campanha militar ou entregue a uma viúva de guerra.8 Nesta fase do ritual a sociedade (masculina) divide-se em três faixas etárias: a “sociedade muchachá” (velhos, antigas “mães javalis”, e também os “abutres calvos”), as “arqui-mães” (homens casados e guerreiros ativos das duas metades) e os garotos, cuja a atenção ritual vale ainda mais quando recém-pintados e tonsurados. A um sinal dos velhos, os meninos fogem para a floresta, onde são perseguidos pelas “arqui-mães”. Depois, cada “arqui-mãe” captura um garoto do grupo oposto moiety e o leva de volta a aldeia, todo enfeitado: assim, um novo grupo de guerreiros era criado (Murphy 1958: 57–58; Menget 1993). Mas para quê esses adornos bizarros de cabeça e mães-javali? Uma forma de acesso à compreensão consiste em entender esses rituais como uma variação de temas fundamentais da cosmologia dos indígenas da Amazônia. No entanto, tais temas, na conjuntura vigente no baixo Amazonas do século XIX, foram cada vez mais submetidos às regras da sociedade colonial. Em retrospecto, pode-se notar que a sociedade dos Munduruku do século XIX não permaneceu em uma situação arcaica estagnada. Ao contrário, estava sempre em agitação e movimento. Uma possí7 Isso significaria que todas as cabeças-troféus dos museus, completamente preservadas, teriam sido removidas desse ciclo ritual. 8

Ao ciclo ritual também foi integrada uma espécie de honra aos mortos. Barbosa Rodrigues (1882b) descreve a festa do “cinto-inimigo” (pariuate-ran), na qual os dentes de uma cabeça-troféu são fixados em um cinto, para ser entregue à viúva do guerreiro. A fabricação do cinto foi acompanhada por um canto de vingança. Tocantins informou que alguns foram feitos das cabeças-troféu, de gente do próprio povo, caídas na batalha, as quais foram guardadas em um cesto pelas mães, irmãs ou esposas e choradas publicamente, enquanto os guerreiros juravam vingança. A vingança era uma forte razão para manter o mecanismo do ritual em funcionamento. Nas duas festas foram tocadas as flautas karökö, as quais não podiam ser vistas pelas mulheres (Murphy 1958: 63–67). O cuidado ritual dos homens em torno dessas flautas sagradas deveria ser para agradar os (clãs) ancestrais e garantir o bem estar da aldeia. Aqui se depara novamente com um tema estrutural dos cultos masculinos amazônicos.

53

Imagem 61: Lanças. Parintintin, Rio Tapajós, Brasil. Em torno de 1830. Madeira, bambú, plumas, algodão, C. máx. 153,5 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.139, 1.205, 1.206 Essas lanças teriam vindo dos Parintitin que viviam ao sul dos Munduruku. Entretanto, “Parintintin” é também um termo genérico dos Munduruku para muitos grupos divididos da língua Tupi-Guarani, entre o Tapajós e o Madeira, que são resumidos como Kagwahiv. Muitos desses grupos, ainda mencionados no século XIX, desapareceram, ou adaptaram-se à população cabocla da Amazônia ou ainda vivem – surpreendentemente – escondidos na mata. (WK)

vel causa da dinâmica social e ritualística da sociedade Munduruku foi uma revolução na organização social,9 que confrontou os homens com a tarefa de consolidar, repetidamente, a sua posição em aldeias ”estrangeiras” com contemporâneos “estrangeiros” (ou desconhecidos) Murphy 1956; 1957; 1960. Na prática, principalmente na primeira fase festiva, veem-se claramente características compensatórias, que fazem o ritual da cabeça-troféu parecer com um dos não raros “cultos masculinos” da Amazônia, nos quais os homens reivindicam, durante a prática ritual, a força reprodutiva feminina (também) para si (Menget 1993). Os homicidas revertem seu status para “mãe-javali”, enquanto o grupo de guerreiros experientes se transformam em «arqui-mães». Assim, todos se colocam em unidade, ou com a “mãe-animal” ou com as “mães dos animais”, às quais os Munduruku dedicam outro importante ritual: neste, o pajé evoca a “mãe-animal”, para obsequia-la com bebidas (Murphy 1958: 58–61). Além disso, o ritual da cabeça-troféu converge com as idéias da “mãe-animal” como “grande cuidadora”, quando a “mãe-javali”, com a sua cabeça-troféu, acompanha os caçadores para a borda da floresta, a fim de agradar à senhora dos animais com sua presença. A entidade “da mãe que cuida” criada pelos homens guerreiros à partir do ritual realizado com caça selvagem – bem como com as crianças capturadas nas campanhas militares – está ligada também ao conceito da cabeça-troféu em si. Durante o período festivo, o homicida é submetido às regras de estrita abstinência, como em um tipo de “super-Couvade”10 (Menget 1993); a “criança”, tema enfocado neste ritual, é a cabeça-troféu. Neste contexto, as declarações que Tocantins conseguiu dos Munduruku, quando ele os entrevistou sobre os motivos das suas campanhas de guerra, ganham um duplo significado: aqui deve ser observado que as freqüentes campanhas militares dos Munduruku contra “gentios” inimigos são feitas com o intuito de capturar mulheres jovens e meninas, mas não para matá-las. Os homens, contudo, eles matam, visando manter suas cabeças como troféus. Quando preparam essas expedições, eles costumam dizer: “eu vou porque preciso de uma mulher para casar; ou, eu preciso de um filhinho para a minha esposa” (Tocantins 1877: 84, ênfase no original). Num tipo parafilia para com sua “criança-cabeça”, os homens guerreiros despotencializados lutam por sua posição de guardiões da subsistência da própria sociedade: “ao amanhecer, seu primeiro olhar foi para ela [a cabeça-troféu; WK]: ele a colocou em seu colo, penteou seu cabelo comprido com os dedos e acariciou-a como se fosse uma filha amada” (Tocantins 1877: 85) [7].11 9 Robert Murphy suspeita de uma transição da virilocalidade, que é permanência do esposo na aldeia do marido, para a uxorilocalidade, a transferência do marido, após o casamento, para a casa ou aldeia da esposa (Murphy 1956). 10 Como Couvade, designa-se regras de conduta a serem seguidas, após o nascimento de uma criança, para não colocá-la em perigo ou estado precário. 11 Tocantins observou aqui um jovem guerreiro que não se queria se separar do crânio de uma garota (acidentalmente) morta por ele. Martius (1867: 392) também descreve como o troféu acompanha o assassino dia e noite: Ele carrega-o com uma corda durante o dia, e a noite é colocado ao lado da rede.

54

Agora é um esquema comum na Amazônia, a guerra como elemento de produção de pessoas (Fausto 1999). Ou seja, a morte de inimigos produz novos meios de existência, dá continuidade aos que já existem, completa e transforma identidades: “[O nome] será trocado várias vezes durante a vida, sempre que o seu portador realizar um ato heroico na guerra ou na caçada. Dessa forma, pode acontecer que uma mesma pessoa assuma cinco ou seis nomes, um após o outro” (Martins 1867: 393). A condição para permitir aos inimigos a manutenção da sua identidade consistia em que seus costumes não fossem muito diferentes. A alteridade (ou outridade) do inimigo não deve ser absoluta, senão ser introduzida significavelmente em um processo de “familiarização” (Fausto 1999), de “criação de confiança”. Na Amazônia, esse processo segue o padrão de adoção: Assim como as cabeças, as crianças capturadas também eram socializadas pelos Munduruku. “Em suas campanhas, eles sequestram os filhos de seus inimigos, para criá-los e casá-los com pessoas de seu próprio povo e assim multiplicar a tribo: aqueles que tentam resistir ou fugir, eles matam. Em uma de suas casas, eu vi a cabeça de um menino, de cerca de doze anos, que foi morto recentemente, pois é costume levar as cabeças consigo e enfeitá-las com tinta e penas” (Chandless 1862: 276–277). De acordo com fontes do século XIX, as cabeças e as crianças fornecidas eram provenientes - a uma distancia cultural mediana - de grupos indígenas linguisticamente relacionados aos Tupí-Guaraní, da região do Tapajós superior (rio acima) até o Xingú, no oriente, e ao Madeira, no ocidente (Parintintin e de outros grupos dissidentes dos Kagwahiv, Apiaká, Kayabi, Juma, Sateré-Mawé, etc.) Tanto quanto se sabe, não pode ser comprovado se foram tomadas cabeças de grupos independentes, culturalmente distantes, como os Mura, ferozmente guerreados, ou de colonos.12 Um alvo frequente das campanhas militares dos Munduruku eram os Parintintin, cujos objetos, provenientes dos ataques, estão presentes na Coleção Natterer: “Neste momento, apareceu nas margens de um afluente do Rio Tapajós, não muito longe da missão, um esquadrão de parintintins. Esses pobres selvagens, ao invés de encontrarem cristãos, que iriam ser favoráveis a eles e os iriam introduzir ao trabalho e à vida social, encontraram os seus algozes. Alguns aventureiros, do tipo que no verão penetram as áreas para explorar borracha, informaram imediatamente os Munduruku de um aldeia vizinha. Estes logo se puseram em marcha, encontraram com os Paritins e os venceram. Mataram alguns e os que restaram fugiram. Trouxeram alguns presos com eles, dentre estes, mulheres e crianças.” (Tocantins 1877: 140.) Obviamente, a situação dos Parintintin era desesperadora e, como refugiados, vagavam pelas florestas da região. “Não é de admirar que para os Parintintin não seja mais possível construir aldeias no vale do Tapajós, no qual já vagam há anos. Estes bár12 Pelo menos as cabeças dos brancos eram consideradas como inaptas (Kruse 1946–1949: 324).

baros, cujo destino é estar constantemente em guarda, serão perseguidos até os confins da floresta. O risco de serem expostos à violência a qualquer momento e de terem suas esposas e filhos roubados, nutre em seu peito um tremendo senso de vingança. Uma vez que eles não são mais capazes de fazer lacunas nas fileiras de seu inigimos, os Mundurucús, e nem dentro daqueles que seguiram a estes, na mal esperança de roubar pelo menos alguns dos seus filhos Parintintin, estes bárbaros tentam, até onde lhes é possível, demonstrar o profundo ódio que lhes casou esse nefasto massacre.” (Tocantins 1877: 140; Imagem 61.) Já a situação dos Parárauáte, não era muito diferente. Esses índios viviam entre o Tapajós e o Madeira e provavelmente também pertenciam a um desses pequenos grupos de língua Tupi-Guarani, cujo nome não é mais mencionado no século XX: “Os Parárauátes foram uma tribo de selvagens rebeldes, com a qual os Mundurucús viveram por longo tempo em guerra” – assim contou um chefe Munduruku ao explorador inglês Bates. […] Os Mundurucús do alto Tapajós tinham acabado de fazer uma expedição militar, a pé, contra eles, e o Tuxáua suspeitou que o bando, era formado pelos refugiados que haviam se espalhado, após serem expulsos de suas malocas, Havia cerca de uma centena – homens, mulheres e crianças. Os selvagens famintos, antes de serem descobertos, tinham arrancado toda a macaxeira, batata e cana de açúcar, que os Mundurucús haviam plantados no lado oriental do rio, neste ano. Assim que foram vistos, fugiram. Mas o Tuxáua rapidamente pegou todos os jovens do seu assentamento, cerca de trinta, munidos com armas, arcos, flechas e dardos, e os seguiram” (Bates 1989 [1866]: 364–365). A situação nas vastas áreas de florestas, longe dos grandes rios, é praticamente desconhecida neste momento. Contudo, fontes, como as que acabamos de citar, sugerem que eram áreas realmente violentas e que o sistema colonial contribuía para que a situação fosse assim. A disposição belicosa dos Munduruku favorecia os planos dos governantes coloniais portugueses, que viam neles, mercenários extremamente necessários para manter abertas as rotas de comércio, que índios resistentes como os Mura, da região do Madeira, ameaçavam bloquear. Quando devido aos longos conflitos entre Brasil e Paraguai, a cidade de Cuiabá foi isolada, o Madeira e o Tapajós ganharam significativa importância como rota comercial alternativa e os Munduruku foram colocados como mercenários contra grupos hostis, como os Mura: “ Há cerca de 50 anos, os portugueses conseguiram trazer os guerreiros Munduruku para o seu lado, contra os Muras e, após muitos anos de perseguição, estes quebraram o poder da tribo e uma grande parte dos indígenas foi expulsa do seu assentamento, às margens do Madeira. […] Desde os motins, nos anos de 1835/36 - quando eles causaram grande devastação entre os assentamentos pacíficos, entre Santarém e Rio Negro, foram perseguido pelos Munduruku aliados dos brasileiros, e abatidos em grande número – eles não perturbaram mais a paz”. (Bates 1989 [1866]: 253.) Os “tumultos” a que Bates se refere, era a chamada cabanagem, a “rebelião dos cabanos”, na qual a população indígena-mestiça

55

da Amazônia levantou-se contra a exploração contínua ao Estado Nacional Brasileiro, por parte de potências distantes, durante a transição do império colonial para o Brasil Estado. Ao contrário da maioria dos grupos indígenas, como os Mura da Amazônia, e também o Sateré-Mawé, sem falar da população rural destribalizada, os Munduruku ficaram, na maioria, do lado dos legalistas. Na ata de uma reunião do Conselho de 1836, em Santarém, que abordava a discussão contra os Cabanos, as seguintes palavras foram colocadas na boca do chefe Munduruku, Joaquim Fructuoso: “Meus estimados senhores e honrados cidadãos, de tudo que já vi, desque que cheguei nessa cidade, e que ouvi na carta de Manoel Pedro dos Anjos, vejo claramente que a classe mais baixa atenta com crueldade e sem misericórdia, contra a vida de cidadãos educados e nobres – os mamelucos e os brancos. É impossível para nós, que temos entendimento, ignorar o abismo no qual esta vasta e rica provincia iria se afundar, face tais planos bárbaros e homicidas. Por este motivo, eu ofereço aos senhores todo o corpo da nação Munduruku, para defender suas vidas, famílias e propriedades” (documento citado em Harris 2010: 238–239). A consequência lógica dessa “soldadania étnica” (Whitehead 1990) foi o alistamento de indígenas do sexo masculino no serviço militar regular.13 De acordo com um documento de 1804, um certo José Rodrigues Preto, que anteriormente havia logrado conquistas na “pacificação” e relocação dos Munduruku no Madeiro, recebeu a concessão para formar uma “tropa de elite” formada por Sateré-Mawé, cuja tarefa principal seria a proteção das empresas comerciais ao longo do Madeira (Harris 2010: 158). Cada campanha militar dos Munduruku, as quais foram instigadas pelos comerciantes, e nas quais exerciam a função de uma espécie de senhores da guerra, praticando terrorismo contra todos que atrapalhavam o caminho dos interesses comerciais, diferiam das operações militares mais ou menos regulares: “No decorrer do ano de 1895 três comerciantes do Madeira foram massacrados, aparentemente por indígenas do Rio Machado, supostamente ninguém mais que os famosos Ipuriná. Os vizinhos das vítimas decidiram dar uma lição séria nos assassinos e não encontraram outra melhor do que recorrer aos Munduruku, esses cavalos de guerra, conhecidos por vender sua força a qualquer um que quisesse pagar por ela. […] Os comerciantes chegaram no Airí, atravessavam o Tapajós, acompanhados por alguns Munduruku das malocas do Sucunduri, e adentraram o Cururu, onde, com a ajuda do intérprete de Sucunduri, que falava um pouco de Português, intentaram recrutar alguns Munduruku do cerrado. Eles contaram sobre a grande safra, que seria colhida à cabeceira do Yauareté (nome dado pelos índios, […] ao Rio Ma13 Na primeira metade do século XIX, a carreira militar foi uma opção para os índios “destribalizados”. Em c. de 1830 os índios representavam grande parte da sociedade de homens da Amazônia, o que era um problema para a cabanagem, uma vez que a elite legalista, não sem razão, duvidava da lealdade dos índios para com a coroa (Cleary 1998: 115).

56

chado). Deitaram fora todos os bonitos artigos, que os brancos do Rio Madeira trouxeram para os amigos Munduruku do cerrado e só poucos antes de saírem em expedição de guerra, os emissários comerciantes falaram sobre o seu plano (Coudreau 1897: 39–40; Imagem 62). No século XIX, até mesmo nas remotas aldeias do cerrado, no Cururu, a prática cultural da guerra era impensável sem a influência do sistema colonial. É inútil dar preferência a uma realidade pré-colonial, com a premissa do contato colonial para a guerra (Fausto 1999), ou vice-versa (Ferguson 1990). A lógica de agir dos Munduruku, como ressaltam fontes do século XIX, parece estar determinada, acima de tudo, pela forma organica das estações alternadas da Amazônia: as obrigações rituais do período de chuva, quando todos estão de volta à aldeia de suas esposas, são confrontadas com a liberdade oportunista do período de estiagem, quando os homens (acompanhados por suas esposas) se lançam a longas caminhadas. A guerra foi tão somente uma das oportunidades que se apresentou ali. O pintor francês, Hercules Frorence, graças ao qual temos alguns dos mais impressionantes portraits dos índios do século XIX, relata em seu livro de viagens, como a expedição Langsdorff encontrou com um grupo faminto de Munduruku. Eles estavam muito distantes de suas casas, onde cultivavam mandioca para vendê-la aos regatões. Agora eles estavam indo matar um brasileiro, que havia arruinado sua lavoura. O encontro passa de forma amigável, mas depois o grupo roubou um depósito da expedição (Florence 1977: 275–277). Mais tarde, já no século XX, um informante Munduruku contou ao padre Kruse sobre uma oportunidade que apareceu, durante uma campanha militar de verão, contra os Apiaka: Eles correram para fora. Os índios já estavam em fuga. Eles mataram uma mulher velha, carregada em uma rede, e mais cinco outros fugitivos. Capturaram seis crianças e em seguida se puseram a caminho de casa. Foram para os abrigos que haviam feito na viagem de ida e então seguiram mais um dia de viagem. Depois voltaram novamente ao abrigo e ali cozinharam os crânios capturados, os defumaram e os colocaram para secar no calor do fogo. O resto da estação seca eles ficaram na região. No São Manuel visitaram um dos povoados Munduruku. Na casa do velho Moreira – um brasileiro – trocaram ainda a borracha recolhida durante a viagem e logo estavam no Kapikpi“ (Kruse 1946–1949: 327). Até mesmo as empresas coloniais foram moldadas pelas condições básicas orgânicas da Amazônia. As expedições coletoras de verão, organizadas pelo Estado colonial na segunda metade do século XVIII, foram uma oportunidade muito bem vinda para os índios “destribalizados”; o front para escapar do trabalho forçado durante o Diretório Pombalino (Roller 2010). Por um lado, essas expedições frequentemente interferiam no caminho dos índios “tribais” nômades, como os Munduruku (Roller 2010: 455), por outro, esse regime comum de ação, permitiu a penetração das áreas de índios e colonos. Ao lado da atividade como mercenários, a coleta de borracha, de verão, tornou-se cada vez

mais uma opção para os Munduruku do Tapajós: Enquanto os índios de “estradas” trabalhavam suas seringueiras, os regatões subiam o rio para trocar seus bens pela colheita de borracha (Tocantins 1877: 147). O antropólogo francês, Philippe Descola, fala de uma lógica de ação observada em uma das muitas etnias amazônicas, que atua de acordo com um esquema de “violação generalizada”, o qual nega qualquer obrigação de dever mútuo (2010: 501). Tal esquema de apropriação oportunista – vivenciado nas trilhas de verão e ritualmente transportado para a aldeia no período chuvoso – parece ter dado continuidade e dinâmica à sociedade Munduruku do século XIX. Contudo, quanto maior se tornou a dependência dos clientes Munduruku aos seus patrões e às suas mercadorias, mais limitada se tornou sua margem de atuação. Uma condição fundamental do sistema de aviamento consistia na monopolização da relação comercial através do endividamento: assim, o cliente foi preso em seu trecho do rio e o tempo das grandes expedições ficou para trás.

Imagem 62: Índio Munduruku. Hércules Florence, Aquarela, 1828 (segundo Carelli 1995) A pintura de Hércules Florence mostra um tradicional homem Munduruku, tatuado de maneira tradicional, tendo como pano de fundo um dos botes, que eram usados pelos comerciantes não indígenas em seus passeios de veraneio. A cena ilustra como no tempo de mobilidade, durante o período de seca, as áreas de ação dos Munduruku e demais povos indígenas amazônicos, ampliavam-se ainda mais. (WK)

57

Seção Catalográfica

Munduruku, Pará

Arcos e flechas. Munduruku, Parintintin, rio Tapajós, Brasil. Em torno de 1830. Tubo, penas, fibras vegetais, madeira, bambu, C. máx. 203,5 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.121, 1.122, 1.129, 1.188, 1.189, 1.194, 1.195, 1.199, 1.202a As flechas de guerra, Nºs de Inv.1.121, 1.122 e 1.129, devem ter sido obtidas dos Parintintin, que mantinham relações de guerra com os Munduruku. Nº de Inv. 1.199, no entanto, é designada comouma Obram, flecha envenenada de guerra Munduruku. Segundo Martius, os Munduruku não preparavam o veneno para as flechas, eles o negociavam com grupos vizinhos. Isso mostra que a natureza guerreira dos Munduruku também tinha a capacidade de comunicação pacífica, comocondição prévia. Os Nºs de Inv. 1.194 e 1.195 se tratam de uma caça de arcoe flecha (uup). Grande parte dos esforços rituais Munduruku girava em torno da ideia de “mães”, que tinham os animais de caça sob seus cuidados e cujo afeto precisava ser ganho, para que ela concedesse aos humanos o direito à presa. Esse conceito foi tão longe que no ritual o guerreiro Munduruku mesmo se transformava em “mãe”, a qual podia realizar o desejo da caçada. O ritual da caça à cabeça tinha início no período de chuva, época em que, efetivamente, rebanhos enormes de porcos queixadas frequentemente se aproximavam dos assentamentos. Nas cerimônias de caça propriamente dita, as “Mães Animais” foram evocadas em crânios de animais alinhados e obsequiadas com mandioca. (WK)

Acessórios de adornos de penas. Parintintin, rio Tapajós, Brasil. Em torno de 1830. Penas, fibras vegetais, cano, C. máx. 64 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.144, 1.146, 1.152 Cocar capturado. Parintintin, rio Tapajós, Brasil. Em torno de 1830. Penas, algodão, L. 40 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.140 Não só armas de adversários foram capturadas durante as campanhas militares, mas também adornos de penas. Estes foram então negociados posteriormente, da mesma maneira que seus próprios adornos. A catalogação desse espólio nem sempre é fácil, uma vez que em alguns casos a origem deles vem marcada nos inventários, somente como “Munduruku”. Quando isso acontece, a comparação com outras coleções é o que mais ajuda. (CA)

58

Utensílios de banho. Pará, Brasil. Em torno de 1835. Cerâmica pintada, H. máx. 11,5 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.509, 2.510 O design e decoração dessa bacia com jarra representam um inconfundível formato da linguagem europeia. Provavelmente se trata de um artigo importado. (CA)

Bracelete capturado. Parintintin, rio Tapajós, Brasil. Em torno de 1830. Penas, ossos tubulares, fibras vegetais, H. 26 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.153

Objetos do cotidiano. Pará, Brasil. Em torno de 1835. Fibras vegetais, borracha, lona, tiras de liana, madeira, H. máx. 40 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.483, 2.485ab, 2.487ab, 2.479ab, 2.478, 53.552 Grão Pará, atualmente Belém, no estuário do Amazonas, foi a última paragem de Johann Natterer. De lá ele deixou o Brasil, sob a ameaça iminente de um levante, que entraria para a história do país como cabanagem. Na primeira metade do século XIX Belém era o maior porto de exportação de borracha existente. Contudo, a indústria de calçados local também usava esse material, como mostram os exemplos dos sapatos e de uma garrafa de rapé, decorada artisticamente com desenhos ornamentais. A posição de Belém, como metrópole comercial, também estava representada nas botas, cujos interiores eram forradoscom lona de Nova Iorque. (CA)

60

Vasos para beber. Pará, Brasil. Em torno de 1835. Cabaça, corante, H. máx. 20,5 cm. Col. Pohl, Nº de Inv. 2.473; Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.503, 2.454, 2.455, 2.453, 2.446, 2.449 As cabaças elaboradamente decoradas demonstram, inequivocamente, a fusão de técnicas indígenas, com a decoração europeia. Cabaças cortadas ao meio eram usadas pelos índios como vasos para beber e algumas vezes decorados com grafismos. A pintura decorativa é atribuída à influência dos jesuítas, nos séculos XVII e XXIII, que promoveram a arte em suas missões. Segundo Johann Natterer, esses vasos também foram produzidos pelos “brancos”, supostamente porque representavam uma mercadoria apreciada por Portugal. (CA)

61

Lucia Hussak van Velthem

Artes indígenas no noroeste da Amazônia

Os povos indígenas no Brasil se expressam esteticamente de diferentes maneiras, tanto através de efêmeras pinturas corporais, como de permanentes registros rupestres. Singulares em sua essência, as produções ameríndias são, entretanto, diversificadas em sua aparência e conceituação. São constituídas por saberes e formas expressivas, tais como a dança, a musica, as narrativas míticas, as performances cênicas, os artefatos, a pintura corporal e os adereços, a arquitetura. As manifestações artísticas indígenas são concebidas e executadas em contextos que não compartilham das premissas ocidentais acerca da definição clássica de “arte”, enquanto um campo separado de outras esferas culturais, e da sua múltipla ocorrência. Esse aspecto gera diferentes distorções e uma das principais é relativa à sua identificação, pois são invariavelmente rotuladas com uma expressão no singular: “arte indígena” ou por uma variante, “arte nativa”. Entretanto, essa qualificação não pode ser considerada enquanto um meio de identificação de uma arte que seja comum e geral aos índios, uma vez que cada povo desenvolve um estilo próprio que expressa preocupações específicas e que possui representatividade única. A referência requer sempre a pluralidade, a saber, “artes indígenas” ou “artes ameríndias” para uma correta identificação. Os artefatos produzidos e utilizados pelos povos indígenas não podem ser apreendidos tão somente através da consideração da variabilidade das formas concretas, do requinte dos grafismos ou das matérias-primas empregadas. É necessário mergulhar em estruturas profundas para conhecer os significados que estão conectados aos diversos domínios da vida social e do conhecimento prático e metafísico. Nas sociedades ameríndias a arte não representa, não é um simples significante, ela produz comunicação e motiva a interação entre sujeitos os mais diversos, em múltiplos campos da alteridade, os mortos, os inimigos, os sobrenaturais.1 Esse fazer artístico possui um caráter de integração com diversas esferas culturais e com redes de sentidos que são próprias a cada cultura e assim sua natureza é coletiva, múltipla e transformativa e remete a formas de ver o mundo, a sociedade, os humanos e os não humanos.2 As concepções indígenas que valorizam esteticamente os artefatos consideram muitos aspectos, pois eles são pensados enquanto receptáculos de intenções que se desenvolvem em uma tessitura

relacional.3.Desta forma, os objetos seriam capazes de intermediar relações e também de interagir e causar eventos no meio em que se encontram.4 A beleza e valor dos artefatos estariam antes naquilo que desencadeiam e não em si próprios. Neste campo, um dos principais aspectos considerados é a capacidade transformativa gerada tanto pelo objetos de uso ritual, como máscaras ou adornos plumários, quanto pelos utensílios de uso cotidiano, tais como os empregados no processamento da mandioca brava. Os métodos das artes ameríndias e os sentimentos que as animam são inseparáveis, não se pode compreendê-los como um encadeamento de formas, mas como um mecanismo cognitivo que reflete a visão e o sentido que é conferido pelos membros da sociedade produtora. Esse é o motivo porque, entre os povos indígenas, a arte serve, sobretudo para ordenar e definir o universo, uma vez que é parte integrante da função cognitiva global.5 Ademais, ao incorporarem as características formais e estilísticas de uma filiação cultural permitem afirmar e confirmar uma determinada idéia de humanidade, que é específica a cada povo indígena, como se procurará ressaltar no presente texto. 3 Gell 1998. 4

Barcelos Neto 2008: 31.

5

Velthem 1998; 2000.

1 Gallois 2005: 108. 2

Perrone Moisés 2005: 89.

Imagem 70: Trançador de cestos. Tuyuka, São Pedro, rio Tiquié, Brasil. 2006. Foto: Michael Kraus

Imagem 71: Em lojas de produtos domésticos de São Gabriel da Cachoeira encontram-se à venda, ao lado de mercadorias produzidas industrialmente, também cestos e remos de produção indígena. São Gabriel da Cachoeira, rio Negro, Brasil. 2006. Foto: Michael Kraus

63

Imagem 72: Casa comunitária com representação da canoa-cobra. São Pedro, rio Tiquié, Brasil. 2006. Foto: Michael Kraus

A aldeia e o cosmos: a fabricação material A fabricação de objetos materiais representa uma atividade prenhe de significados para os povos indígenas na Amazônia.6 Os artefatos constituem figuras proeminentes nas suas elaboradas cosmologias, e sua presença nas aldeias e comunidades provoca um importante movimento de “imersão do cotidiano na ordem cosmológica”.7 Os artefatos convertem-se assim em prismas que refletem as concepções acerca da composição do universo e dos componentes que o povoam, sobretudo daqueles que estão alijados da vida social. Essas noções sublinham e enfatizam a origem não humana de muitos objetos e grafismos os quais, ao serem reproduzidos em espaços sociais, materializam a convergência desses mundos. Os adornos, as máscaras, as cerâmicas, os trançados e outras categorias de artefatos, sejam eles de argila, de penas, de fibras vegetais, usados ou confeccionados por homens ou por mulheres, em momentos da vida cotidiana ou nas complexas práticas rituais, constituem formas expressivas e reflexivas. Os objetos raramente são apenas objetos8 e assim compartilham com os humanos de uma série de faculdades, uma das principais sendo a antropomorfia. Segundo essa concepção, os artefatos não seriam apenas corporificados, como também permutariam seus atributos com os humanos, e assim partes de seus corpos são assimiladas aos artefatos. Esse processo muitas vezes implica na intervenção de poderosos demiurgos, cuja capacidade criativa toma a forma de atos tecnológicos para dar forma e vida a coisas e pessoas.9 6

Esse aspecto foi enfatizado em diversos trabalhos sobre os povos de língua Carib (Guss 1989; Overing 1991; 1999; Van Velthem 1998; 2000; 2003) e os xinguanos (Barcelos Neto 2008). Ver igualmente Santos-Granero 2009 para uma visão mais geral.

7

Overing 1999: 85.

8

Barcelos Neto 2008.

9

Van Velthem 2003; Santos-Granero 2009.

64

Nas sociedades indígenas a importância da corporalidade é recorrente e está diretamente conectada às categorias de identidade (individuais, coletivas, cosmológicas, étnicas) que se exprimem através de idiomas corporais como a alimentação e a decoração corporal.10 O corpo humano, enquanto matriz organizadora central estabelece uma correlação simbólica com outros elementos culturais e, nessa lógica, os artefatos são compreendidos enquanto seres corporificados, ou melhor, constituem “corpos” ou parte de “corpos”, cuja principal função é a de fazer emergir a diferença e a definição de uma identidade.11 Este aspecto é relevante para os Tukano,12 pois sua mitologia enfatiza que no princípio do mundo existia apenas o Avô do Universo e seus “instrumentos de vida e transformação”, constituídos por artefatos, tais como o cigarro e o porta cigarro, o banco, a lança chocalho, o recipiente de cuia e seu suporte que possuíam grande significância xamânica e cerimonial.13 Nos mitos tukano, esses instrumentos eram inicialmente partes constituintes do corpo do demiurgo e posteriormente, os ossos dos seres humanos. Desta forma, não é estabelecida a separação entre coisas e pessoas, uma vez que o corpo humano é percebido como tendo correspondentes entre os objetos culturais e assim os bancos estão em correlação com a pélvis e às nádegas e as cabaças ao útero, ao estomago e à cabeça, entre outros exemplos. Ademais, a reprodução humana deriva de modos de fabricação, aspecto os Tukano compartilham com outros povos indígenas.14 As habilidades técnicas representam para os povos indígenas uma questão de conhecimento que associa diferentes formas de aquisição e produção, as quais conjugam a visão, o gesto e outras faculdades. A confecção de artefatos é uma atividade acessível aos membros de determinada sociedade indígena e constitui um conhecimento que resulta de um aprendizado evolutivo, oriundo de uma transmissão social, sexualmente diferenciada, em que pais, tios, avós, iniciam as crianças aos aspectos técnicos, artísticos e simbólicos. Iniciado na infância, este conhecimento se amplia e se aprofunda na puberdade, porque visa habilitar os jovens ao casamento e à geração de filhos, e vai se refinar e se especializar na idade adulta.15 Para os Baré,16 o aprendizado das técnicas manufatureiras está sempre associado ao uso de plantas medicinais que incrementam as habilidades técnicas e a sua memorização. Outras práticas propiciatórias valorizadas emanam de elementos minerais, entre os quais um lajedo existente nas cercanias da cidade de São Ga10 Viveiros de Castro 2002: 387. 11 Van Velthem 2003. 12 Os Tukano habitam o alto Rio Negro e a bacia de seu afluente, o rio Uaupés, no Estado do Amazonas e constituem o mais numeroso povo entre os dezesseis que conformam a família lingüística tukano oriental. 13 Ver Hugh-Jones 2009: 35–41 para detalhamento desses aspectos. 14 Ver a respeito, Van Velthem 2003; 2009. 15 Van Velthem 2009: 215. 16 Os Baré vivem no alto e médio rio Negro e afluentes, tais como os rios Jurubaxi, Uneiuixi, Preto. Pertencem à família linguística Aruak, mas expressam-se sobretudo em Nheengatu (Língua Geral).

briel. Para os homens, a imposição das mãos sobre a sua superfície permite adquirir conhecimentos para as práticas pesqueiras e a confecção de artefatos de cestaria.17 Similarmente, inscrições rupestres existentes no alto rio Uaupés aperfeiçoam o trabalho dos artesãos que esfregam as mãos sobre os desenhos gravados na rocha.18 Homens e mulheres, quando dedicados à confecção de objetos, consideram os contextos de uso, cotidiano ou ritualizado, e outros pré-requisitos, relacionados com a vida em sociedade, entre os quais estão as obrigações matrimoniais e familiares que os engajam em dádivas e redes de troca. Através dos artefatos são garantidos, por um lado, a própria reprodução e manutenção física dos indivíduos, e por outro as relações sociais. Os objetos permitem estabelecer, ainda, como são estabelecidas conexões cosmológicas fundamentais que afirmam, confirmam e renovam as sociedades indígenas. No Brasil, as sociedades ameríndias estão sendo submetidas a um contexto de transformação social acelerado, devido a atual característica dos contatos. Os indivíduos produtores de cestos, de bancos e de outros artefatos procuram encontrar respostas para um seletivo número de pressões decorrentes deste quadro, e que alteraram radicalmente o que produzem, assim como as formas de avaliá-los. As transformações envolvem não somente a introdução de novas técnicas, de outros materiais e usos, como também o deslocamento dos artefatos indígenas para fora do contexto da aldeia. O surgimento de oportunidades de mercado atraiu há longo tempo muitos grupos indígenas. Entretanto, a comercialização de artefatos é quase sempre estabelecida em termos desvantajosos, impostos pelas conveniências deste mercado.19 As produções artísticas ameríndias são muitas vezes apreciadas e aquilatadas como obras de artistas incapazes de operarem mudanças ou como sucedâneos empobrecidos de uma arte outrora pujante.20 A realidade que se apresenta é completamente diversa, pois danças e canções são criadas, narrativas míticas são reelaboradas e os artefatos podem apresentar formas, materiais e grafismos que foram obtidos através do contato com outros grupos indígenas ou nos centros urbanos.21 Nesse processo, os artistas indígenas reformularam suas produções e as vias que as nortearam são as mais variadas. Os elementos externos selecionados são então adaptados e contextualizados e, ao serem incorporados passam a integrar o repertório existente. As recriações nas artes indígenas contribuem para que os produtores continuem a redefinir a sua própria cultura, assim como operam politicamente em prol de sua manutenção. A redefinição cultural dos povos ameríndios apresenta no momento presente, contornos diferenciados e o campo museal constitui um cenário

17 Segundo um Baré: “aprende tudo, tipiti, waturá, urupema, é só encostar as mãos” (Moisés 2006). 18 B. Ribeiro 1995: 94. 19 B. Ribeiro 1983. 20 Vidal 1992. 21 Vidal e Silva 1995; Vidal 2001.

propício de identificação dessa dinâmica.22 No passado, os produtores dos artefatos recolhidos aos museus brasileiros e europeus não compreendiam o porquê das coletas, assim como não imaginavam o destino daqueles objetos. Na atualidade, os artesões ameríndios se interessam pelas formas de aquisição, pela documentação de coleções, recentes e antigas, assim como pela apresentação museal de suas culturas.23 As artes ameríndias que se expressam através de artefatos e grafismos tem sido alvo, no Brasil, de algumas iniciativas positivas, em um contexto mais amplo de proteção dos patrimônios culturais indígenas, articulados ao conceito de patrimônio cultural imaterial. Apesar de ocuparem um lugar predominante nos programas de salvaguarda, essas estratégias levantam uma série de questionamentos, relacionados com a documentação dessas manifestações, pois o registro, em si, não assegura nem a sobrevivência nem a continuidade de uma prática cultural.24 É preciso reconhecer, contudo, que os registros, os inventários e, também, as informações agregadas às coleções etnográficas, depositadas em museus brasileiros e europeus, contribuem para o fortalecimento cultural das sociedades indígenas.

Viajantes, coletores e a circulação de artefatos Os artefatos indígenas, sendo coisas individuais são passíveis de serem coletados, deslocados, estocados e expostos em instituições museais, onde integra uma categoria específica, a dos objetos etnográficos. No Brasil, as mais amplas coleções encontram-se em museus do Rio de Janeiro, de São Paulo e Belém do Pará. Na Europa, importantes acervos históricos, originários do Brasil, estão dispersos em instituições na Alemanha, Áustria, Dinamarca, Itália, França, Portugal e Suíça. Nos museus brasileiros e europeus, as coleções recentes de proveniência indígena representam geralmente o resultado de pesquisas de campo, tanto da ciência antropológica como de outras ciências. As mais antigas, entretanto, originam-se de coletas efetivadas por naturalistas, viajantes, militares, comerciantes, religiosos, que percorreram os territórios indígenas. Muitos desses acervos constituem eloquentes testemunhos da história dos contatos entre índios e não-índios, a qual possui, não raro, um componente de violência. Este é o caso da subtração de ornamentos e outros objetos de cunho religioso e cerimonial entre os povos indígenas do alto rio Negro,25 praticada por missionários salesianos em princípios do século XX. A história do contato no noroeste da Amazônia atesta que essa região foi assolada por incursões em busca de escravos índios nos primeiros anos da colonização portuguesa, ainda no século XVII. Como decorrência das atrocidades praticadas pelos agentes colo22 Reportar-se a Gallois 2011, para uma análise aprofundada desses aspectos. 23 Gallois 2011: 29. 24 Gallois 2006: 77; Van Velthem 2010a: 20. 25 Em 2008 uma pequena parcela de ornamentos de dança foram repatriados do Museu do Índio de Manaus – Estado do Amazonas para a região do alto rio Negro.

65

niais, dezenas de povos indígenas que viviam às margens do rio Negro foram dizimados ou então transferidos para outras regiões sem que ficasse um único registro escrito ou material sobre suas vidas e culturas. Esses povos precisaram aguardar a chegada dos primeiros naturalistas viajantes, no século XVIII, para serem merecedores de um olhar interessado em suas culturas e em suas produções artesanais. No período compreendido entre meados do século XVIII e princípios do XX, destacam-se três importantes colecionadores: Alexandre Rodrigues Ferreira, Johann Natterer e Theodor Koch-Grünberg. O naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira comanda a primeira expedição científica ao Rio Negro, a conhecida “Viagem Philosophica”. Entre 1783 e 1792 esta expedição percorre as capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuyabá e coleta valiosa documentação textual e iconográfica sobre as populações ameríndias, os fortes portugueses, a fauna e a flora que mereceram publicações no passado e no presente.26 Organiza coleções de artefatos indígenas posteriormente remetidas para instituições portuguesas, a Academia de Ciências de Lisboa e o Museu da Universidade de Coimbra Em 1817 chega ao Brasil o naturalista austríaco Johann Natterer, como integrante de uma expedição financiada pelo imperador Francisco I da Áustria. Após sucessivas viagens, atinge o rio Amazonas e em seguida o rio Negro, instalando-se em Barcelos, onde vive por largos anos, pois permanece no Brasil até 1835. Realiza vastíssimas coleções de minerais e também de espécimes da flora e fauna, com especial destaque para as aves. Recolhe 1.492 artefatos indígenas, conservados no Museum für Völkerkunde de Viena, mas deve ser sublinhado que uma pequena parcela encontra-se no Staatlichem Museum für Völkerkunde de Dresden.27 Natterer não produziu um relato de síntese sobre suas viagens, o que resultou na inexistência de todo e qualquer volume contendo informações sobre as suas atividades de colecionador. 28 Entretanto, é inquestionável o fato de que os objetos que coletou no rio Negro entre os Manao, Puri, Baniwa, Tukano e entre outros povos, constituem fundamentais documentos para história indígena da região. O Museum für Völkerkunde de Berlim encarrega Theodor Koch-Grünberg de realizar viagem de pesquisas no noroeste da Amazônia em princípios do século XX. Este antropólogo alemão percorre entre 1093 e 1905 o alto rio Negro e seus afluentes, rios Içana, Uaupés e Curicuriari, regressando ao Amazonas pelos rios Apaporis e Japurá. Realiza documentação fotográfica e coleta de borboletas, de plantas e de minerais, assim como de material linguístico e de artefatos indígenas o que permitiu formar duas coleções. A mais vasta foi destinada ao museu de Berlim e a outra ao atual Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, Brasil. Koch26 Consultar Antunes 2003 e Soares e Ferrão 2005 para referências sobre as populações indígenas e as coleções etnográficas,

-Grünberg publica monografias, artigos em revistas especializadase relatos de viagem.29 As descrições e ilustrações que apresenta nessas publicações constituem valiosos subsídios para a pesquisa etnológica e museológica sobre a região do alto rio Negro e possibilitam a identificação de artefatos presentes em coleções antigas e históricas. A circulação de objetos entre diferentes povos indígenas no noroeste da Amazônia é atestada desde os primeiros relatos dos viajantes mencionados e de outros mais que percorreram a região. Ao se refletir sobre os fatores relacionados com a circulação de artefatos e as redes de troca interculturais, uma das questões centrais observadas é o pressuposto de que um objeto é passível de circular através de circuitos que ele determina e nos quais ele é determinante. Este é caso dos objetos permutados, vendidos, doados e que são oriundos da especialização artesanal, a qual se desenvolveu em regiões distintas e distanciadas umas das outras como o rio Negro, o alto rio Xingu e as Guianas, sistema este que permanece ativo até o presente. No rio Negro, artefatos especializados fundamentam as trocas cerimoniais nas comunidades e integram um ativo comércio que desemboca nos centros urbanos da região, sobretudo em São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro.

Arte e especialização artesanal no noroeste da Amazônia O noroeste da Amazônia é ocupado na atualidade por vinte e dois povos indígenas que se expressam em idiomas pertencentes às famílias linguísticas Aruak, Maku, Tukano e Yanomami. Nesse contexto de diversidade cultural, determinadas características são comuns aos Tukano Orientais, Baniwa, Tariana e Baré e se contrapõem às especificidades dos povos Maku, principalmente no que diz respeito aos mitos, às atividades de subsistência, a arquitetura tradicional e a cultural material.30 Entretanto, todos compartilham de uma importante particularidade, constituída pela especialização artesanal. A produção material dos povos indígenas do rio Negro repousa em exclusividades, como resultante de antigos e tradicionais sistemas de troca e comércio e também devido à disponibilidade ou não de diferentes fontes de matérias-primas.31 Desta forma, surgiram focos de “especialização artesanal”, sobretudo relacionados aos objetos de plumária, cestaria, cerâmica e de madeira. Difundiram-se assim estilos compostos de tradições historicamente diversas, que transmitiram uma característica peculiar aos artefatos produzidos.32 Neste sistema, os bancos monóxilos são propriedade dos Tukano; as canoas dos Tuyuka, os raladores incrustados com pedrinhas de quartzo dos Baniwa; as máscaras de entrecasca e as faixas frontais emplumadas dos Kubeo, mas outros ornatos plumários são dos 29 Consultar as referencias em Koch-Grünberg [1905], 2005.

28 Segundo Montez (2010: 703), o trabalho de reconstituição de seu trabalho virá apenas de uma criteriosa comparação de textos oficiais e não oficiais. Para a etnografia Amazônia, deve ser acrescida a análise de suas coleções de artefatos indígenas.

30 Cabalzar e Ricardo 1998: 32. 31 Galvão 1979a; B. Ribeiro 1995; Buchillet 1990. 32 Galvão 1979b: 293–294; B. Ribeiro 1995: 63.

Imagem 73: Dançarino com chocalhos durante uma pausa. PariCachoeira, rio Tiquié, Brasil. 2001. Foto: Michael Kraus

35 B. Ribeiro 1995; Cabalzar 2003; Cabalzar 2011.

Os ornamentos plumários (mahá poali) 37 dos índios Tukano são confeccionados pelos homens e integram a categoria dos “ornamentos de dança” (basá busá). São, portanto, envergados nas danças relacionadas com as cerimônias de dabucuri e nos rituais de iniciação masculina e feminina e nos de nominação do recém-nascido, os quais são organizados pelo especialista ritual (bayá), conhecedor dos cantos tradicionais. Esses adornos empregam matérias-primas de origem vegetal e animal, tais como arumã, taquara,

36 Cf. Dorta e Van Velthem 1983 para aprofundamento os aspectos técnicos e sociais da arte plumária.

37 As identificações entre parênteses estão em língua tukano.

33 B. Ribeiro 1995: 70.

27 Straube 2000; Dorta 1992.

66

Bará; as cestas de arumã são privativas dos Desana e os grandes cestos coadores dos Wanano, assim como um pigmento vermelho. Entretanto, as propriedades dos Maku são a zarabatana e o cesto cargueiro de cipó.33 Alguns produtos, resultantes da especialização artesanal são dotados de complexo significado simbólico e hierárquico, tais como o banco tukano, a máscara Kubeo, a plumária bará, e de certa forma, se tornaram artefatos simbólicos dessas tribos, funcionando como emblemas de identidade. O mesmo pode ser dito em relação aos artefatos utilitários, como os cestos cargueiros maku, os raladores baniwa, pois constituem especializações que são indispensáveis ao provimento da subsistência e, portanto, criam uma rede de dependência e reciprocidade, contribuindo para a integração social desses diferentes povos indígenas.34 Entre os Tukano Orientais as prescrições relacionadas com a especialização artesanal são oriundas da narrativa mítica, pois situam no Lago de Leite o ponto de partida da Cobra-Canoa que trazia em seu bojo a humanidade. Ao emergir em certas localidades, a cobra criava as Casas de Transformação, nas quais os povos que estavam amadurecendo adquiriam conhecimentos, habilidades, cultivares, objetos e instrumentos rituais. A humanidade, segmentada pelo herói cultural em diferentes povos, surgiu em momentos distintos das pedras da cachoeira de Ipanoré, local de uma dessas Casas. Os primeiros a aparecerem foram os Tukano e receberam de seu ancestral Waúro as riquezas, ornamentos e artefatos cerimoniais que lhes cabiam, depois vieram os demais povos que obtiveram as respectivas propriedades e especializações. Os povos começaram então a se espalhar pela região, ocupando cada qual uma área, a falar línguas distintas e a reproduzirem os artefatos de sua especialização exclusiva: ornatos plumários, armas de caça, adornos corporais, bancos, cestos cargueiros e outros trançados.35 Os artefatos emplumados estão no cerne das culturas ameríndias e assim seus contornos refletem uma maneira particular, própria e mais ampla de estabelecer relações sociais e cosmológicas. Paralelamente, informam como essas sociedades pensam e formulam seu próprio sistema estético e sua experiência do belo. A seleção e modificação das penas, plumas, penugens, os volumes e as tessituras, os jogos cromáticos, os ritmos de repetição, combinação e oposição que essa matéria-prima permite conformar, resulta em adornos valorizados que se integram ao corpo ou a outros artefatos. Os adornos de penas constroem um campo de visibilidade que torna concretamente apreensível as diversas categorias indígenas que ordenam o universo, o que permite orientar as relações sociais que são estabelecidas entre os humanos, e também as que remetem à natureza, aos sobrenaturais e aos tempos míticos.36

34 D. Ribeiro 1987; B. Ribeiro 1995.

67

Imagem 74: Motosserra em cesto de transporte tradicional. Comunidade do Areial, alto rio Negro, Brasil. 2001. Foto: Michael Kraus

fibras vegetais, sementes e cocos, lenhos de palmeiras, pelagem de várias espécies de macaco de penas, plumas e penugem de dezessete espécies diferentes de aves e pássaros, sobressaindo-se os tucanos, as garças, os papagaios, as araras, os mutuns, os japus. As penas e plumas são escolhidas tanto pela textura, encontrada nas longas penas caudais, nas penas do dorso ou na penugem do peito das aves, quanto pelo seu colorido que, nos ornatos dos Tukano, formam uma paleta em que predomina o branco, o preto, o vermelho e o amarelo que se associam de modo contrastivo. As formas dos adornos plumários são múltiplas e se voltam principalmente para a ornamentação do corpo humano, mas também podem ser encontradas em artefatos, entre os quais as flautas e a

68

lança-chocalho (yaígö), um importante instrumento ritual dotado de complexo simbolismo.38 Os ornatos da cabeça podem ser flexíveis e se ajustarem à fronte como as faixas frontais (mahã poáló) que empregam penas de arara, papagaio e mutum; outros prendem-se aos membros como as braçadeiras (baxsá karõgá) de pelos de macaco e penas de japu e tucano e as jarreteiras tecidas (iuhtáseró) com seus pingentes, estes feitos com caroço de tucumã e plumas de tucano e japu. Outros ornatos são rígidos e grandiosos como os grampos para occipício (ukáló) que conjugam uma base rígida, tecida com tiras de arumã e fios de pelo de macaco e cabelos humanos, encimada por longas penas egretes de garça; os grampos para cabeleira (mahã pixkõrõ) e os pentes transversais (waxtá iró) de finos espinhos de palmeira paxiúba ou patauá e arremates laterais de penas de tucano.39 Esses ornamentos se ajustam à cabeleira numa arquitetura complexa, alguns por meio de suportes de osso e de cordéis de pelo de macaco que constituem, eles próprios, em pingentes. É na utilização sobre o corpo do dançarino que a plumária adquire sua plena expressividade: os adornos rígidos e os flexíveis se sobrepõem e se encaixam uns nos outros, refletindo as concepções sobre a pessoa humana e ultrapassando assim o conteúdo embelezador das formas e das cores. A criação dos adornos plumários observa uma proporção e uma combinação que não são arbitrarias nem casuais, pois uma conotação simbólica está presente, relacionada para os Tariana com “riqueza, vida e alegria”.40 Ao se unir aos aspectos materiais, formais, cromáticos esses valores permitem individualizar e valorizar cada ornamento. Contudo, os adornos plumários dos povos do rio Negro portam tantas características comuns que se tornam representativos de um conjunto estilístico regional, agrupando as diferentes comunidades. Como mencionado para os povos Tukano, um importante aspecto relaciona-se com a mitologia,41 pois permite revelar o caráter mágico-religioso desses ornatos e a sua relevância enquanto elementos que conferem visibilidade à sua identidade. A confecção de ornamentos plumários requer a captura de diferentes aves e pássaros. A principal arma usada para este fim pelos povos do noroeste da Amazônia é a zarabatana, também referida como carauatana e buxpú-wö.42 No alto rio Negro a sua confecção e uso é mencionada para os Baniwa do rio Içana e seus afluentes, mas os Tukano a obtém através de troca com os Maku que possuem a exclusividade de sua fabricação.43 Para os povos que a utilizam, a zarabatana é extremamente valorizada e possui uma força simbólica que ultrapassa o seu referencial de arma de caça. Constitui um elemento de alto valor estético devido a sua própria estru-

tura formal e aos conhecimentos necessários para sua confecção.44 Composta de longo tubo fino e reto, essa arma tem como matéria-prima principal o caule da palmeira paxiúba e pode atingir três metros de comprimento. Na produção da zarabatana a operação mais delicada é a introdução do tubo interno, pois é este elemento que confere à arma toda a sua eficácia.45 Confeccionado com o caule de uma palmeira deve se ajustar perfeitamente ao externo e ser extremamente liso. Uma embocadura talhada em madeira é adaptada a uma das extremidades da zarabatana, e dois dentes incisivos de roedor, presos com breu, constituem a mira dessa arma precisa e complexa. Os seus projeteis (kurabi) são feitos da nervura de folha de palmeiras, apontados e untados com veneno em uma das extremidades, pois a outra é provida de paina da sumaumeira. A substância tóxica é o conhecido curare (uirari) cujo monopólio de confecção pertence aos Maku, tendo sido alvo de florescente comércio ao longo do rio Amazonas e seus afluentes. As setas envenenadas são transportadas dentro de uma aljava (búsása) que pode ter formatos diferenciados. O mais requintado é cilíndrico, alargando-se nas extremidades e é confeccionado pelos Baniwa. Entrançado com fibras de arumã, possui fundo de madeira que é revestido, assim como a parte inferior do artefato, de espessa camada de resina. Um trançado primoroso reveste o corpo desta aljava, e uma faixa central ostenta os mesmos grafismos que são pintados nos recipientes de cerâmica ou entretecidos nos cestos e balaios produzidos pelos Baniwa.46 A indumentária masculina ritual não se resume aos adornos plumários, pois um atavio muito valorizado até o presente entre os povos do alto rio Negro é um tipo de colar (õxtã bohá) confeccionado com sementes negras e um cilindro de quartzo polido.47 No passado, a ornamentação corporal incluía ainda brincos e outro colar, formado por triângulos de prata, ambos de moedas marteladas. Os dançarinos também envergam cintos de dente de onça, de porco do mato ou de macacos (heri tusé), tornozeleiras-chocalho (kihtió) de cápsulas de frutos, provavelmente thevetia, e um estreito avental (wahsoró) confeccionado com entrecasca e recoberto de padrões pintados com pigmentos de cor vermelho escuro. A confecção desse avental é complexa e os grafismos que apresenta são específicos desta indumentária, e estão relacionados com as visões provocadas pelo alucinógeno caapi.48 A principal ornamentação das mulheres Tukano e Baniwa consistia outrora de uma tanga (iahké waxsólo) tecida com miçangas azuis e brancas, utilizando uma simples armação quadrada. Essas tangas eram trajadas nas danças cerimoniais, juntamente com pinturas corporais, pelas mulheres que acompanhavam os cantores/dança-

39 Cf. Van Velthem 1975 para a descrição e análise desses ornatos, presentes em coleções do Museu Nacional e Museu Goeldi.

44 Como observou Koch-Grünberg “o indígena aprecia muito a sua arma de caça, que lhe concede tantos atrativos nas silenciosas caçadas, além da satisfação material e não quer desfazer-se dela” (Idem 2005: 127) e como destacam artigos recentes sobre o assunto (Chaumeil 2004).

40 Luis Aguiar – Os adornos indígenas do Rio Negro (IPHAN/FOIRN/ISA, s/d).

45 Chaumeil (2004: 290).

41 B. Ribeiro 1995; Hugh-Jones 2009.

46 B. Ribeiro 1995; Koch-Grünberg 2005.

42 O primeiro termo está em nheegatu ou Língua Geral e o segundo na língua tukano (Brüzzi 177: 181) Descrições da produção da zarabatana podem ser encontradas em Wallace (1979: 139) e Koch-Grünberg (2005: 121–126).

47 Brüzzi Alves da Silva 1977; B. Ribeiro 1995. A mais antiga referencia sobre esse colar provém do padre Monteiro de Noronha (1862) que o observou em 1768, ao fazer o reconhecimento do Rio Ucayali.

43 Brüzzi Alves da Silva 1977.

48 B. Ribeiro 1995: 80.

38 Ver a respeito as descrições e análises de Vincent 1987 e Hugh-Jones 2009.

Imagem 75: O Tukano Celestino Azevedo confeccionando uma banqueta para se sentar. Pirarara. Rio Tiquié, Brasil. Foto: Michael Kraus

rinos que se posicionavam junto ao especialista ritual.49 Os artefatos presentes na coleções brasileiras e européias possuem formato trapezoidal e curtas franjas, ostentando grafismos semelhantes aos que são encontrados nos recipientes de cerâmica, nos cestos circulares de fibras de arumã ou nos raladores de madeira e fragmentos de quartzo, formando, desta forma, um sistema representacional. Empregado por jovens e adolescentes para marcar o ritmo durante as danças cerimoniais, o chocalho de cabaça (ñahsãn) é outro arte49 Brüzzi 1977: 190, 277; B. Ribeiro 1995: 80; Koch-Grünberg 2005: 152.

69

fato recoberto de grafismos gravados com faca e avivados com tabatinga branca. O principal grafismo reproduzido nesse tipo de chocalho é o “galho da seringueira” (wahsun dëhpëli). Os chocalhos usados nas curas xamânicas são, entretanto, de menor tamanho e não possuem desenhos gravados.50 Entre os povos indígenas amazônicos, a elaboração decorativa que se caracteriza por ser essencialmente gráfica e destina-se tanto aos humanos quanto aos diferentes artefatos utilizados na vida cotidiana ou ritual. Empregando pigmentos minerais e também vegetais, tais como urucu e jenipapo, e atualmente também tintas industriais, os grafismos revelam o estilo de cada povo indígena e, mesmo quando ocorre coincidência formal, os significados são sempre diferenciados. As unidades gráficas se expressam de diferentes formas, pois podem ser isoladas e variadas, ou então se apresentarem uniformes, através da repetição ilimitada de um mesmo padrão. Essa última modalidade constitui uma característica do sistema gráfico dos Baniwa e dos Tukano, sendo perceptível em vários tipos de artefatos, como o chocalho de dança e os cestos trançados com fasquias de arumã. Nas sociedades indígenas, a reprodução dos complexos padrões tecidos ou pintados pertence geralmente a especialistas, um saber que está invariavelmente acompanhado do conhecimento das narrativas míticas e das práticas rituais, por compreenderem domínios intimamente associados. O poder e a influência de um grafismo advêm justamente de sua capacidade de representar e assim, de exprimir e conceituar diferentes realidades. A apreciação formal, não raro desvela que os grafismos comportam a existência de elementos figurativos ou icônicos que se traduzem por formas de reconhecimento visual, de semelhança, geralmente constituídos pelos traços mais característicos e definidores do modelo, a saber, um objeto, um animal, um sobrenatural, o qual nomeia o grafismo.51 Este aspecto é facilmente intuído em um desenho tukano denominado “borboleta” (momori), pois possui a forma de ampulheta, o que permite aproximá-lo do aspecto que esse inseto tem com as asas abertas. Um amplo repertório de grafismos está associado aos trançados ameríndios, tanto no noroeste da Amazônia, como em outras regiões. A categoria dos objetos trançados possui ampla distribuição geográfica e se apresenta, entre os povos indígenas, segundo uma apreciável variedade de técnicas de confecção, de elementos gráficos, de formas que conectam cada objeta a uma função específica ou a vários usos. Nas comunidades e aldeias indígenas os artefatos trançados desempenham funções diferenciadas, tanto armazenando as miudezas de um indivíduo como permitindo que uma família transporte e processe os alimentos necessários à vida cotidiana. Muitos trançados e tecidos se apresentam como suportes para ornatos plumários e quando envergados, contribuem para a estética corporal, tornando-se assim determinantes para a individualização e construção da pessoa. Outros artefatos trançados constituem verdadeiros painéis de identificação coletiva e individual entre os quais despontam os cestos cargueiros da região do rio Negro, os quais se diferenciados pelas

técnicas de fabricação e aspecto formal. Entre os Baré, os homens produzem com cipó um cesto cargueiro específico, o waturá. Este cesto de base hexagonal, bordo circular e alça de envira testemunha a respeito da condição feminina e individual e também sobre um estado produtivo, presente ou futuro, que relaciona a mulher baré aos filhos, às roças, aos alimentos.52 Os cestos cargueiros determinam, paralelamente, uma condição coletiva, indígena, no contexto urbano e também uma identidade especifica, através de sua estrutura formal, do material constitutivo e das técnicas de produção e de decoração, pois os Baré são os únicos que possuem os conhecimentos da produção deste cesto cargueiro. Os Makú possuem o domínio completo do mais difundido e importante elemento econômico, o cesto cargueiro (pii), utilizado por todas as mulheres Tukano Orientais. Possui execução feminina e emprega cipó titica, sendo extremamente durável. Esse cesto tem bordo circular e base arredondada e é provido de uma alça de envira que deve ser confeccionada por sua possuidora. Estão espalhados por uma área extremamente vasta e podem ser encontrados no alto e no médio rio Negro, sendo comercializados tanto nas comunidades maku, como nos centros urbanos de Iawareté, no rio Uaupés e São Gabriel, no rio Negro. A especialização de outros itens de cestaria tende a desaparecer no alto rio Negro por se tratar de uma tecnologia que não se vincula a nenhum simbolismo hierárquico, como é o caso do banco dos Tukano.53 Ademais, matéria-prima empregada, o arumã é abundante em toda a região, ao contrário do que ocorre com as plantas que produzem curare ou permitem confeccionar zarabatanas e também com as pedrinhas de quartzo para os raladores artefatos que permanecem enquanto fundamentais especializações dos Maku e Baniwa. A principal especialidade artesanal dos Tukano é constituída pelo banco (kumurõ). Este artefato circula nas redes de troca, pois antigamente e ainda hoje, os Tukano fazem bancos para oferecer aos seus aliados, os cunhados e os sogros. Constituem índices de posição e autoridade, reservados aos homens de grande status, tais como os dançarinos e os xamãs. Como sugere o mitologia dos Tukano, os bancos não são apenas formas objetivas do conhecimento xamanístico, mas igualmente objetificações da vida humana e de suas capacidades.54 O banco é talhado em um único bloco de madeira de sorva e a primeira etapa de fabricação é encontrar a matéria-prima na mata. Entalhado em uma única peça, o banco possui quatro pés, e um assento de plataforma côncava. O banco cujo assento é maior destina-se ao mestre das cerimônias, os menores são para uso generalizado e possuem dois tipos: o banco “canela de anta” tem pés curvos, e o “pássaro tesoura” se caracteriza pela estrutura de apoio inteiriça.55 Ao entalhar um banco, os artesões trabalham segundo suas habilidades, mas todos seguem certo numero de etapas que busca desde o início o equilíbrio e a simetria das formas. Utilizando

50 B. Ribeiro 1995: 75.

54 Hugh-Jones 2009: 48.

51 Van Velthem 2003.

55 Cabalzar 2003: 6–7.

diversos instrumentos de entalhe, a peça de madeira toma aos poucos sua forma final. Uma vez esculpido, o banco é lixado e polido para igualar os pés e as demais partes constituintes e prepará-lo para a pintura. A última etapa é a da pintura do assento e portanto a superfície e as partes laterais são esfregadas com a mistura de sementes de urucu e um fixador para adquirirem um colorido vermelho intenso. O banco está então preparado para receber seus desenhos (hori). Os grafismos se concentram nos assentos e são impressos com argila diluída em água, com o auxílio de carimbos de arumã e pincéis de capim. Comportando poucas variações, os grafismos possuem uma elaborada estrutura. A borda recebe três traços contínuos que acompanham seu perímetro; na parte central, duas linhas transversais, separadas entre si, dividem o assento. Essas dois campos são preenchidos com um desenho de aspecto trançado (pamuri hori), conhecido como o “desenho do banco”. Esse grafismo possui diversos significados, e no contexto ritual representa a pintura corporal de uma serpente, a Cobra Canoa de Transformação, que transportou a primeira humanidade em seu bojo. A faixa central do assento do banco é pintada com grafismos variados, tais como “couro da paca”, “asas de borboleta”, “casca de abacaxi”, “costela da cobra”, conferindo individualidade ao artefato. Terminada a pintura, deixam-na secar durante algum tempo e depois o banco é levado ao rio para ser lavado. Quando a argila é retirada revela grafismos em cor negra sobre o fundo vermelho. Os bancos produzidos peloa Tukano, estão relacionados com diferentes comportamentos e competências e responsabilidades. Um banco não é apenas um objeto ou o correpondente a uma parte da anatomia humana (placenta, pélvis, nádegas). Este artefato incorpora efetivamente uma noção abstrata de suporte, base, fundação que se relaciona com o caráter de um indivíduo, pois o objeto constitui o “assento de uma pessoa”. Quando uma criança é nomeada, o xamã oferta-lhe um banco o que permite fixar o nome/alma que recebeu em seu corpo, mas ao atingir a puberdade o jovem recebe um novo conjunto de bancos, estes relacionados com as responsabilidades da vida adulta.56

O presente ensaio destaca alguns dos principais conceitos e práticas que constituem o estrato principal das artes ameríndias sem, contudo, esgotar o assunto. O texto ressalta que as expressões artísticas indígenas apresentam-se como que marcadas pela impressão de uma acumulação de cargas e menos como o resultado de um impulso criativo espontâneo. 57 Parecendo abolir o tempo, essas obras conferem a cada uma de suas criações a qualidade e valor de modelo, pois as artes indígenas referem-se ao universo mítico, ao simbólico, ao sistema de poder, ao terapêutico, ás relações sociais. Mantem-se no presente numa grande tensão, provocada pela necessária articulação entre tradição e inovação, 58 assim como dos recentes posicionamentos dos povos indígenas, face a seus patrimônios culturais. Enquanto produtos humanos, essas artes refletem as mudanças efetivadas no decorrer do tempo, mas também constituem um arcabouço transformativo que faculta o surgimento de concepções, de percepções, de técnicas, de manipulações que proporcionam às sociedades criadoras os meios de adaptação às novas realidades. Desta forma, no alto rio Negro, as artes ameríndias se abrem para novos campos expressivos, um dos quais se materializa através das pinturas dos artistas desana, Luis e Feliciano Lana que transpõem no papel, com tinta guache, narrativas míticas orais que se tornam uma linguagem gráfica. 59 O que é revelado através das artes dos povos indígenas é certa qualidade de “estar no mundo”, a qual infere um tipo de participação, de uma ideologia, de um posicionamento, profundamente marcados pelo cultural, pelo comunitário, pelo compartilhamento. Os povos ameríndios são detentores de uma arte inegavelmente diferenciada, mas dotada de uma contemporaneidade inquestionável que a conecta ao debate mundial e atual sobre arte e cultura, assegurando-lhe um espaço em uma sociedade mais vasta.

57 Van Velthem 2003. 58 Vidal e Silva 1995: 374; Vidal 2001: 42.

56 Hugh-Jones 2009: 48.

59 D. Ribeiro 1987.

52 Lasmar 2008; Van Velthem 2010b. 53 B. Ribeiro 1995: 68.

70

71

Seção Catalográfica

Tukano, Ticuna

Aljava para setas de zarabatana. Tukano, rio Uaupés, Brasil. Em torno de 1830 e 2006. Folhas vegetais, resina de árvore, lã, fibra de tucum, cabaça, C. máx. 53,5 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.624; Col. Kowalski, Kraus, Nº de Inv. 184.808 Em aljavas como essas eram transportadas setas para caçar pássaros, que nos tempos de Natterer eram usadas em combinação com a zarabatana. Com a aparição de bens e valores ocidentais, no entanto, os métodos de caça práticos e também a inserção social dessa atividade mudaram drasticamente. Caça e pesca são hoje em dia uma questão puramente individual, motivo pelo qual seu rendimento também é mínimo. Embora aljavas como esta ainda hoje sejam estimadas por seu valor simbólico, mal continuam sendo utilizadas na caça. A maior parte é produzida para o mercado turístico, que se torna cada vez mais importante, no qual as aljavas são vendidas como souvenires. (CB)

Utensílios de cozinha. Tukano, alto rio Negro, Brasil. Em torno de 1830 e 2006. Argila, corante, materiais vegetais, cabaça, alumínio, plástico. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.763, 1.747; Col. Kowalski, Kraus, Nºs de Inv. 184.849, 184.877a,b, 184.968 A entrada dos grupos indígenas do alto rio Negro no mercado mundial trouxe consigo a mudança social e a transformação da cultura material dos Tukano. Enquanto no passado eram usadas sobretudo panelas e bacias de argila, hoje em dia essas peças são feitas quase exclusivamente de alumínio e plástico. Apenas o suporte de panelas e bacias com uma cumbuca de cabaça possui ainda hoje sua forma tradicional. Isso se deve a seu vínculo estreito com o mito originário dos Tukano. Assim como a banqueta, também o suporte de panelas estava entre os objetos que durante a criação do universo foram dados ao homem e por isso possui um alto grau de importância simbólica. (CB)

Cestos de transporte. Tukano, alto rio Negro, Brasil. Em torno de 1830 e 2006. Trançado vegetal, H. máx. 51 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.769; Col. Kowalski, Kraus, Nº de Inv. 184.806 Cestos de transporte dos Tukano, semelhantes aos aqui apresentados, apontam para o princípio feminino, que está situado todo ele em torno do conceito da produtividade no âmbito dos filhos, do desbravamento da terra e dos víveres. A mulher, o desbravamento e o cesto de transporte formam uma tríade, que confirma o trabalho no contexto do feminino. Paralelamente a isso, tais cestos apontam, através de sua respectiva técnica bem como pelos materiais usados, a uma identidade conjunta e indígena. (CB)

Cumbucas de palha. Tukano, alto rio Negro, Brasil. Em torno de 1830 e 2006. Trançado vegetal, C. máx. 47 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.772; Col. Kowalski, Kraus, Nº de Inv. 184.858 A arte indígena não está situada apenas no ritual, mas também no cotidiano. Objetos aparentemente profanos, como estes cestinhos de uso diário, representam elementos fundamentais na integração social de um indivíduo na comunidade. Ainda assim, hoje em dia estão desaparecendo várias especializações no trançado de cestos na região do alto rio Negro, uma vez que se trata de uma tecnologia que não depende de nenhum simbolismo hierárquico, conforme acontece no caso das banquetas, por exemplo. (CB)

72

Costume de dança. Tukano, rio Uaupés, Brasil. Em torno de 1830. Penas, pele de macaco, materiais vegetais, dentes de jaguar, ossos, corante, C. máx. 800 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.640, 1.658, 1.661, 1.672, 1.684, 1.693, 1.699, 1.702, 1.703, 1.714 A beleza é uma qualidade social e não uma qualidade natural entre os Tukano. Por isso matérias-primas naturais como penas, por exemplo, são tidas como bonitas somente quando transformadas em artefatos. A confecção do adorno de penas se iguala, assim, a uma socialização da natureza, e corresponde ao jeito e à maneira como a produção de objetos e o uso de adornos socializa os corpos. Na escolha das penas, dominam as cores preta e branca, assim como o vermelho e o amarelo. A combinação dessas cores aponta para uma identidade étnica comum dos grupos Tukano. Os ornamentos de pena são empregados sobretudo nas danças que ocorrem no âmbito de rituais de iniciação para jovem homens e mulheres, assim como em rituais em torno da escolha do nome de um recém-nascido. Cada uma das partes individuais do adorno de dança é vinculada, através de um simbolismo complexo, à mitologia e à ordem social dos Tukano, desvelando assim o caráter mágico-religioso desses artefatos. O adorno no antebraço, por exemplo, é usado pelos rapazes durante seu rito de iniciação. A noz de tucum afixada no centro simboliza um útero, a partir do qual segundo a mitologia o universo passou a existir. (CB)

73

Banqueta. Tukano, alto rio Negro, Brasil. Em torno de 1830 e 2006. Madeira, corante, C. máx. 60,5 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.730; Col. Kowalski, Kraus, Nº de Inv. 184.883

Chocalhos. Tukano, alto rio Negro, Brasil. Em torno de 1830 e 2006. Cabaça, madeira, grãos de fruta, sementes, corante, C. máx. 40 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.722; Col. Kowalski, Kraus, Nº de Inv. 184.872 O chocalho está entre os sete objetos que segundo o mito da criação apareceram junto com o “avô do universo” do meio da escuridão para então chegar ao mundo. No contexto do ritual, chocalhos como este são usados por pessoas de todas as faixas etárias, a fim de marcar o ritmo durante as danças cerimoniais. Eles são entalhados com uma faca a partir de uma cabaça de pescoço e, com a pintura de sinais brancos, “despertados para a vida”. No presente tipo, uma pintura com a designação de “galho de seringueira” é gravada na cabaça e por fim preenchida com argila líquida branca. Na sociedade dos Tukano, competências técnicas e simbólicas andam de mãos dadas. A capacidade de fabricar objetos aponta para a maturidade espiritual, motivo pelo qual os que os confeccionam na maior parte das vezes são guias ou especialistas rituais. (CB)

Tanga de dança. Tuyuka, alto rio Negro, Brasil. 2006. Ráfia, H. 77 cm. Col. Kowalski, Kraus, Nº de Inv. 184.907 O poder de atuação e a influência de motivos gráficos sobre objetos estão diretamente vinculados a suas capacidades representativas. Na maior parte das vezes, eles representam, de forma abstrata, animais, objetos ou seres transcendentais que caracterizam o objeto. Nesta tanga de dança para homens (wedyo) foi aplicado o assim chamado motivo da borboleta, que simboliza o controle de um jovem homem sobre sua sexualidade. Isso significa, entre outras coisas, que ele pode se relacionar apenas com mulheres que estejam fora de sua própria linha de descendência. Ainda hoje tangas de dança como essas são usadas em danças cerimoniais, no entanto apenas em combinação com shorts ocidentais. (CB)

74

Vestimenta. Tukano, rio Uaupés, Brasil. Em torno de 1830 e 2006. Pérolas de vidro, barbante de fibra vegetal, lã, C. máx. 94 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.694; Col. Kowalski, Kraus, Nºs de Inv. 184.924, 184.927 O adorno tradicional das mulheres Tukano era constituído essencialmente de tangas feitas de pérolas desse tipo que encobriam os órgãos genitais. Essas tangas eram usadas no contexto de festividades da maturidade de jovens mulheres, nas quais estas simbolizavam, através do ato de tapar o sexo, a necessidade de uma vida sexual regrada. Também nesse caso a inserção na mitologia tinha papel significativo. Os objetos mais importantes dos Tukano foram criados pela primeira vez por seres espirituais na era mítica ancestral. Sua força especial se origina da crença mítica de que o homem teria se formado a partir desses objetos. Assim, as primeiras mulheres teriam surgido de tangas sexuais caídas ao chão. Camisetas e tops apontam para a mudança drástica no estilo de se vestir ao longo do tempo. Ambas foram produzidas especialmente para a venda, e trazem o logotipo de uma organização indígena local. (CB)

O significado dessas banquetas vai muito além de seu uso meramente prático e ritual. Elas representam o fundamento e o assento de uma pessoa, motivo pelo qual é repassada pelos xamãs a cada criança, no decorrer do ritual em que lhe é dado o nome, uma dessas banquetas. Através disso, o nome da criança, junto com sua alma, é fixado na banqueta. Maximiliano Correa Menezes, um membro dos Tukano do alto rio Negro, nos explicou em sua visita ao museu que também nesse processo a vinculação ao mito de origem tem um papel fundamental. Durante o surgimento do mundo, objetos como este foram distribuídos à humanidade pela “avó do universo”. O banco serve de metáfora para o saber tradicional de uma sociedade, que é assim transferido os homens. Ao aceitar esse banco espiritual, cada indivíduo assume a responsabilidade de passar adiante o saber tradicional. (CB)

Lança com chocalho. Tukano, rio Uaupés, Brasil. Em torno de 1830. Penas, ráfia, resina de árvore, C. 265 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.626a Nos mitos dos Tukano a Terra se encontra sobre duas lanças com chocalho cruzadas, que lhe servem de apoio. A ponta denteada representa o porta-charutos, que no mito da criação dos Tukano teve papel essencial na criação do homem. Abaixo podem ser encontrados dois círculos ovais que representam o sol e a lua. Contemplados de lado, pode-se identificar neles imediatamente a forma abstraída do suporte de panelas. Cada uma das partes da lança com chocalho incorpora uma esfera do universo. A parte inferior, na qual se encontra também o chocalho, representa a esfera dos seres humanos. Nos tempos de Natterer, a lança com chocalho era também uma arma de guerra, conforme se pode reconhecer na ponta de osso: ali ainda se encontram restos ressequidos do curare, veneno usado para setas que tem uma ação paralisante sobre a musculatura e assim leva à morte por parada respiratória. (CB)

75

Adorno de cabeça. Ticuna (?), Amazônia Ocidental, Brasil. Em torno de 1830. Penas, fibra vegetal, H. 80 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.481 Os Ticuna vivem na região fronteiriça entre Brasil, Colômbia e Peru, e hoje em dia estão entre os maiores grupos indígenas da Amazônia. No século XVIII, eles podiam ser encontrados sobretudo nos afluentes superiores do Amazonas, uma vez que as margens deste rio eram colonizadas por seus inimigos, os omáguas. Os omáguas, no entanto, acabaram vítimas de numerosas epidemias, e os Ticuna avançaram assim para a região que hoje ocupam. Johann Natterer, ele mesmo, jamais visitou a região do alto Amazonas. Provavelmente tenha adquirido os objetos dos Ticuna em Manaus, através de terceiros. Nesse processo, talvez também se tenha chegado às vezes a classificações erradas: atribuir esse adorno de cabeça aos Ticuna, por exemplo, é questionável. Estilisticamente, ele corresponde muito antes aos objetos dos culinos, um grupo de indígenas da língua pano que habitavam a região e na época era vizinhos dos Ticuna. (CA)

Partes de uma vestimenta cerimonial. Ticuna, Amazônia Ocidental, Brasil. Em torno de 1830. Penas, pássaros empalhados, fibra vegetal, madeira, cascas de fruta, caracóis, lã vegetal, H. 55 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.478, 1.482 Com a chegada da primeira menstruação a menina se recolhe a uma seclusão que dura cerca de três meses. Em um tabique localizado debaixo do telhado da oca, ela fica completamente afastada do mundo dos homens; ali seus parentes femininos providenciam para que não lhe falte nada e a instruem quanto às tarefas reservadas às mulheres. Em seguida, em uma festa de três dias, a iniciante passa por todas as fases típicas de um ritual de passagem: a separação da comunidade, a morte simbólica e o renascimento. Uma vez que o cabelo entre os Ticuna é visto como uma sede da força vital, ele é completamente arrancado da cabeça da iniciante no decorrer do ritual, para assim elucidar a morte da criança. Depois disso, a jovem mulher é pintada de vermelho com o que protege de todos os males e adornada com uma coroa de penas e uma capa de pássaros empalhados. (CA)

Fantasia de máscara. Ticuna, Amazônia Ocidental, Brasil. Em torno de 1830. Ráfia, fibra vegetal, resina, H. máx. 175 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.476, 1.477 Até hoje a festividade da maturidade das meninas é o ritual mais importante dos Ticuna. Nela, seres espirituais se incorporam em fantasias de máscaras. Durante as fases críticas do ritual, os dançarinos mascarados atacam tanto aquela que está sendo iniciada como também os convidados da festa. Os dançarinos mascarados tornam visíveis e experimentáveis os perigos nos quais um ser humano, e com ele toda a comunidade, se encontra durante uma fase de passagem. O espírito da tempestade O´ma com seu pênis ereto está entre os mais perigosos seres espirituais. (CA)

77

Adorno de pescoço. Ticuna, Amazônia Ocidental, Brasil. Em torno de 1830. Dentes de macaco, sementes, pedúnculos de plantas, fibra vegetal, material de cascas de árvore, D. 36,5 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.486 Criar arte é para os Ticuna, ainda hoje, um aspecto importante de sua cultura. Eles veem nisso tanto um meio de resistência ativa contra a sociedade nacional brasileira quanto uma expressão inconfundível de sua própria identidade. Adornos de pescoço suntuosos como este, feitos de dentes de macaco, de qualquer modo não são mais confeccionados hoje em dia. Seu lugar foi ocupado por correntes de pescoço com pingentes de figuras animais. (CA) Faixas de braço e de pulso. Ticuna, Amazônia Ocidental, Brasil. Em torno de 1830. Fibra vegetal, penas, H. máx. 6 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.489–1.492

Aplique de penas. Ticuna, Amazônia Ocidental, Brasil. Em torno de 1830. Penas, fibra vegetal, H. 53 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.488 Apliques de penas como estes, fixados em ambos os braços com a ajuda de faixas, eram usados por homens. (CA)

78

Christian Feest

Bororo “A joia da coroa para a antropologia”1 No espelho da diversidade cultural da humanidade todos os povos são iguais. Como portadores de uma identidade coletiva, seja esta autodeterminada ou de determinação alheia, eles são os representantes visíveis das variegadas possibilidades da adaptação humana às exigências e desafios de nosso mundo. E cada uma dessas adaptações merece nosso respeito como expressão de nossa humanidade comum. Mas nem todos os povos desempenham o mesmo papel na concepção ocidental do mundo. Há os grandes e poderosos que com seu poderio econômico, sua força militar ou sua riqueza de ideias imprimiram seu selo ao mundo; os trágicos (que muitas vezes são os mesmos grandes e poderosos), que fracassaram de modo mais ou menos espetacular; os muitos que se procura em vão em uma boa obra de referência, porque sequer são objeto de nossa conversação usual; mas também os pequenos, que devem sua proeminência ao acaso, ao fato de terem estado na hora certa no lugar certo, chamando assim a atenção de observadores a partir de cujos escritos foram por assim dizer canonizados.1 Os Bororo, uma população que mesmo nos melhores tempos mal chegou a ser constituída de alguns milhares de indivíduos, são um bom exemplo disso. Poucos povos com essa ínfima envergadura são capazes de apresentar uma enciclopédia em três volumes, dedicada exclusivamente a sua cultura (Albisetti e Venturelli 1962–1976). Porém desde que o fundador do estruturalismo francês Claude Lévi-Strauss os tornou conhecidos também de uma opinião pública mais abrangente em seu livro muito lido Tristes trópicos (1957 [1955]) e logo no início de sua obra Mitológicas (Lévi-Strauss 2004) divulgou partes do rico tesouro de mitos dos Bororo, estes subiram definitivamente à Liga dos Campeões no mundo dos povos. 1



Na versão em alemão da Wikipédia (http://de.wikipedia.org/wiki/Bororo, retirado em 23.3.2012) é atribuído a Claude Lévi-Strauss o seguinte comentário: “[Os Bororo] são a joia da coroa para qualquer etnólogo” [sic], sem a devida comprovação. Vincent Debaene, o editor das obras de Lévi-Strauss, (Œuvres, Paris, 2008: Galimard) desconhece essa citação e certamente duvida com razão de sua veracidade (comunicado pessoal a Marie Mauzé, em 23.03.2012). De acordo com o histórico dessa versão da Wikipédia, a referida frase foi acrescentada em 28.11.2008, por ocasião do 100º aniversário de Lévi-Strauss, por um contribuinte anônimo do artigo, identificado apenas por seu IP, que pode ser localizado na região de Bonn (Alemanha). Certamente não se estará errado ao supor que a fonte seja oriunda de uma citação mal interpretada e/ou deturpada anteriormente por uma tradução falha ou uma lembrança errada inserida em uma das homenagens que no dia do jubileu encheram as páginas dos cadernos de cultura. Como subtítulo do presente artigo, “Joia da coroa para a antropologia” também não pretende reproduzir a opinião de Lévi-Strauss, mas sim caracterizar a avaliação de uma opinião pública culta e cidadã.

Imagem 92: Adorno para orelha. Bororo do Cabaçal, Brasil. Em torno de 1825. Anéis das sementes da palmeira tucum, fibras vegetais, penas e pingentes em forma de peixe feitas de conchas. Col. Schröckinger, Nº de Inv. 53.525 (ex-Col. Natterer)

Imagem 93: Os Bororo nos séculos XIX e XX (Sem levar em consideração a assincronia da apresentação). Mapa: Christian Feest

Os Bororo Os “bons selvagens”, conforme Lévi-Strauss (1957: 225) os caracteriza, aludindo ao calvinista genebrino Jean de Léry, que no final do século XVI contribuiu decisivamente no sentido de cunhar a imagem francesa dos índios através de sua descrição dos Tupinambá canibais da região do Rio de Janeiro, chamam a si mesmo de “Bóe” (literalmente “coisa, ser animado ou inanimado”). “Bororo” é a designação que eles dão à parte da praça da aldeia que se localiza diante da casa dos homens, na qual são realizadas as danças e que, assim como a própria casa dos homens, é tabu para as mulheres e as crianças. No uso linguístico científico, “Bororo” designa, hoje em dia, em sentido amplo, uma família linguística que, junto com os Chiquitano na Bolívia, forma um subgrupo do tronco linguístico Macro-Jê. Certamente eram parte dessa família, além das três línguas bororo bem documentadas, do Bororo em sentido estrito, do Otuké do leste da Bolívia, extinto no século XIX, e do Umutina de Mato Grosso, que deixou de ser falado desde 1988 (Campbell 1997: 195), também numerosas línguas do Chaco boliviano, das quais foram documentadas apenas algumas poucas palavras ou então absolutamente nada, antes de estas caírem em desuso (Loukotka 1968: 84–85). O mais importante, no entanto, é que a variedade linguística e cultural dos grupos designados como “Bororo” na literatura histórico-etnográfica era bem maior do que o nome conjunto permitiria supor a princípio. Pode-se conjeturar que o processo de diferenciação dessas línguas sucedeu mais ou menos nos últimos 2000 anos no território histórico em que viviam essa populações, na região da linha divisória

81

das águas entre a bacia do Amazonas, ao norte, e a região em que deságua o Rio de la Plata, ao sul, na qual os Bororo em sentido estrito formavam o grupo mais oriental (Imagem 93), e apesar de os Bororo históricos possivelmente representarem o resultado de um processo de fusão de populações heterogêneas (Viertler e Ochoa 2012). Nessa região marcada pelo cerrado e pelos campos em torno do extremo norte da região palustre do Pantanal, os Bororo viviam sobretudo da caça, da pesca e da coleta, sendo que peixes e coleta permitiam um sedentarismo em tal medida que acabou significando a condição mínima necessária para a manutenção de algumas pequenas lavouras de produtos úteis (tabaco, algodão, cabaças) e plantas alimentícias (milho, mandioca); o período em que principiou a prática da agricultura ainda é objeto de discussão. Contatos esporádicos com europeus, fossem eles jesuítas espanhóis ou grupos avançados de aventureiros (bandeirantes) vindos de São Paulo já aconteciam desde o século XVII. Em 1718, contudo, a região de um momento a outro passou a ser de interesse central para os paulistas, quando na região de Cuiabá, hoje capital do Mato Grosso, foi encontrado ouro e mais tarde também diamantes. Em seu caminho até os Bororo, Lévi-Strauss vivenciou, ainda em 1935, a importância excepcional dos garimpeiros em busca de ouro e pedras preciosas para o Mato Grosso não indígena, de modo que a proximidade dos Bororo com os diamantes dá uma dimensão nova, e talvez não intencional à metáfora das “joias da coroa”, ainda que os garimpeiros desde o princípio tenham se disposto antes a enganar a Coroa – e mais tarde o Estado – na medida em que isso lhes parecia possível, omitindo ou fraudando o pagamento dos impostos devidos. Saindo de São Paulo, embora fosse necessário superar apenas dois cursos de rios de águas menos profundas, o tempo de viagem para chegar às correntes superiores do rio Paraguai e seus afluentes Jauru, Cuiabá e São Lourenço – no meio das terras dos Bororo – era de quatro a seis meses. (Ainda em 1935, Lévi-Strauss ficou durante semanas a caminho, de caminhão e de barco, apenas para chegar de Cuiabá à aldeia bororo de Quejare.) O afluxo dos aventureiros levou, o que aliás era de se esperar, a confrontos violentos com a população indígena, mas também à introdução de epidemias que levaram a uma rápida diminuição da população. A presença constante dos neobrasileiros após a fundação da Capitania de Cuiabá, no ano de 1748, também trouxe mudanças à relação de forças entre os povos da região. Em torno de 1740, grupos bororo foram instrumentalizados pelos portugueses na luta contra os Kayapó Meridionais – antigos inimigos dos Bororo –, mas também na defesa das fronteiras com as possessões espanholas, onde inclusive encontraram novos inimigos por exemplo entre os Guaikurú, já hábeis cavaleiros, e outros povos do Chaco. A fundação de grandes fazendas, em cujos campos escravos africanos passaram a plantar cana-de-açúcar, levou não apenas à separação espacial entre Bororo “Orientais” e “Ocidentais”, mas também a um conflito duradouro, marcado por sua grande brutalidade, dos Bororo Ocidentais com o latifundiário João Pereira Leite, conflito este que terminou no princípio do século XIX com a “pacificação” (com alguns aspectos de extermínio) dos índios e sua utilização nas fazendas, sob o controle explorador daquele que os subjugou e de seus descendentes (comparar com Viertler 1990).

82

Em 1820, quatro anos antes da chegada de Johann Natterer a Cuiabá, isso dizia respeito sobretudo aos assim chamados “Bororo da Campanha”, que viviam entre o rio Paraguai e o rio Jauru. Na condição de hóspede de Pereira Leite, o naturalista austríaco ficou durante meses, entre os anos de 1825 e 1826, na Fazenda da Caiçara, perto de Cáceres (Vila Maria), onde também aconteceu seu primeiro e mais importante contato com os Bororo da Campanha. O mesmo ou outro grupo dos Bororo da Campanha vivia, nessa época, um pouco mais a oeste, em Pau Seco, junto ao rio Jauru, onde foi visitado em 1827 pela expedição russa ao Brasil, comandada pelo barão Heinrich von Langsdorff (e onde também Natterer permaneceu por algum tempo); outros grupos haviam se estabelecido em Cambará, perto de Jacobina, e na propriedade de Francisco Correia, na margem leste do rio Paraguai. Em 1894, os Bororo da Campanha haviam deslocado seu território a Laguna, entre Cambará e Descalvados, ao sul de Cáceres, e continuavam vivendo nas terras da família Pereira Leite, quando não se mudaram a San Matías, transpondo a fronteira boliviana. Em 1931, o etnólogo americano Vincent Petrullo descreve os Bororo de Laguna como estando completamente aculturados, ainda que a seu pedido eles tivessem trazido uma pele de onça pintada e demonstrado diante dele a dança da onça, oriunda do ritual fúnebre não mais praticado por eles (Waehneldt 1864: 213–219; Florence 1875, 2: 241–252; Koslowsky 1895; Petrullo 1932: 120–122; comparar com Albisetti e Venturelli 1962–1976, 1: 293). Seus descendentes hoje em dia não constituem mais uma comunidade indígena reconhecida oficialmente.

Os Bororo Ocidentais À época da visita de Natterer, os “Bororo do Cabaçal” ou Cabaçais (Cabaçaes), que habitavam mais ao norte, junto ao rio Cabaçal, continuavam envolvidos em combates com seus vizinhos brancos. Os objetos que Natterer conseguiu desse grupo são os únicos documentos culturais materiais que restaram dos Cabaçais (Imagem 92). Eles são oriundos de butim de guerra e lhe foram entregues, pelo menos em parte, por seus amigos guaná, que em fevereiro de 1826 participaram de uma milícia de ataque aos Bororo do Cabaçal. Sete mulheres e 17 crianças foram presas no referido ataque e levadas à fazenda de Pereira Leite, onde Natterer se tornou testemunha das tentativas de libertação empreendidas por parte dos maridos e pais das índias. O austríaco aproveitou a oportunidade favorável, e, com o auxílio de uma das mulheres presas, conseguiu registrar uma lista de palavras de sua língua. A mulher inclusive indicou o nome de seu povo como sendo “Halorione”, ao passo que uma autoridade responsável chamou os Bororo do Cabaçal de “Aravirá”. Na casa de Pereira Leite, em Jacobina, Natterer compilou mais tarde um segundo vocabulário da boca de uma moça de 15 anos dos Bororo do Cabaçal. Esta disse que seu povo (ou talvez seu clã) se chamava “MaköGörö-Itgé Taiè-Katö”. Os Bororo da Campanha relataram a Natterer a existência de pelo menos dois grupos dos Cabaçais: os Aravirá, que habitavam ambas as margens do rio Cabaçal, e os Ariuné (= Halorione?) entre o rio Cabaçal e o rio Sepotuba; os últimos

dos por bernes em suas cabanas de palha já decadentes morriam de fome diante dos olhos de Weddell em proporções epidêmicas. “Em pouco tempo, talvez em alguns dias, a Aldeia dos Cabaçaes existirá apenas no nome” (Castelnau 1850–1851, 3: 47–49). Embora Castelnau também relate que a aldeia visitada por ele em 1845 foi reconhecida pelo governo da província de Mato Grosso (e portanto ao que tudo indica não estivesse completamente despovoada), os rastros dos Bororo Ocidentais logo acabam se perdendo (Castelnau 1850–1851, 3: 46, 51; comparar com Albisetti e Venturelli 1962–1976, 1: 293).2

Pesquisa de campo e realidade etnográfica Imagem 94: O uso do estojo peniano entre os Bororo. À esquerda: Bororo da Campanha. Desenho de Johann Natterer, 1826 (Johann Natterer 2012b). Biblioteca da Universidade de Basel. À direita: Bororo Orientais, Quejare. Desenho conforme uma foto de Lévi-Strauss, 1935 (Lévi-Strauss 1957: 227) Natterer informou sobre os Bororo da Campanha: “Eles andam completamente nus. A única cobertura usada pelos homens é uma tira da largura de um dedo feita de uma folha da palmeira babaçu, trançada de modo a formar um anel, colocado na ponta do órgão sexual, que é direcionado para cima, preso a um barbante que lhes envolve a cintura”. Mais de um século depois, Lévi-Strauss observa o seguinte acerca dos Bororo Orientais de Quejare: “Os homens estavam completamente nus, salvo o pequeno estojo de palha que encobria a extremidade do pênis e era mantido preso pelo prepúcio”. Observe-se a pequena diferença em relação aos Bororo da Campanha. (CF)

compreendiam tanto a língua dos Aravirá quanto a dos Biriboconné (Bororo da Campanha), ao passo que entre os Aravirá e Biriboconné não havia possibilidade de compreensão (Johann Natterer 2012b). As anotações de Natterer demonstram, ao mesmo tempo, que a língua dos Biriboconné não passa meramente de um dialeto dos Bororo Orientais (Viertler e Ochoa 2012). Em sua extensa viagem pela América do Sul, o pesquisador gentleman francês Francis de Laporte de Castelnau visitou, em junho de 1844, uma aldeia com cerca de 110 Bororos do Cabaçal nas proximidades do Registo de Jauru, estabelecidos ali há alguns anos nas terras de Pereira Leite, que deveriam ser convertidos ao cristianismo e levados à civilização pelo padre José da Silva Fraga, vindo de Jacobina. Castelnau fez um desenho do cacique e também registrou uma lista de palavras que de qualquer modo mostrou maiores semelhanças com os dois vocabulários dos Cabaçais registrados por Natterer do que com a língua dos Bororo Orientais. O diagnóstico linguístico mostra, sobretudo graças às anotações de Natterer, que a subdivisão usual vigente até hoje entre “Bororo Orientais” e “Bororo Ocidentais” é meramente geográfica, e não linguística nem cultural. Ao que tudo indica, os Bororo da Campanha eram o grupo mais ocidental dos Bororo Orientais, ao passo que os Cabaçais usavam uma ou provavelmente várias línguas nitidamente diferentes, que em certo sentido eram mais semelhante ao Umutina e ao Otuké. Em agosto de 1844 o botânico britânico e companheiro de viagem de Castelnau, Hugh Algernon Weddell, também passou pela aldeia dos Cabaçais, na margem oriental do rio Jauru, e foi confrontado com um quadro de horror: os indígenas completamente deforma-

Johann Natterer era um empalhador de animais de grande conhecimento; a etnologia ainda não existia como disciplina acadêmica em sua época, e quando encontrou os Bororo da Campanha tratava-se de seu primeiro contato com um grupo indígena, depois de ter conhecido apenas alguns Kaingáns e Guanás isolados em contexto urbano. Ele não foi o primeiro branco a encontrar com os Bororo, mas foi o primeiro que reuniu material acerca deles de maneira sistemática: anotações acerca de observações próprias ou de outros sobre seu modo de vida, cinco listas de palavras de suas línguas e seus dialetos, o primeiro texto breve em sua língua, três desenhos a lápis, cerca de 250 objetos etnográficos; e tudo isso no decorrer de alguns poucos dias em um período de mais ou menos três anos. O fato de Natterer ter achado uma de suas apresentações musicais “arrepiantemente bela” é um sinal da mistura do estranhamento e do fascínio com que encarou os Bororo. Ainda que se mostrasse compreensivo com os esforços de “pacificação” dos latifundiários, isso não o impedia de fazer descrições etnográficas que se mostram quase completamente livres de arrogância, na melhor tradição do iluminismo. Nos anos de sua estada no Brasil, Natterer jamais voltaria a dedicar tanta atenção a um outro povo indígena. Sua obra, porém, permaneceu praticamente desconhecida da posteridade até um passado bem recente. Também para Claude Lévi-Strauss os Bororo Orientais foram o primeiro grupo indígena que ele encontrou em seu próprio mundo e não, como aconteceu com os Kaingán e Caduveo, em aldeias que mal se diferenciavam das dos seus vizinhos neobrasileiros. Em seu livro Tristes trópicos, Lévi-Strauss descreve sua mudança do erudito decepcionado com a filosofia acadêmica na Sorbonne ao etnólogo que veio a se tornar e, vinculado a isso, seu desejo de alcançar acesso a comunidades que até então não haviam sido objeto de pesquisas sérias e ainda se mantinham em estado quase intacto, uma vez que sua destruição havia acabado de começar justamente na época (Lévi-Strauss 1957: 225). Um primeiro sinal de que a aldeia de Quejare seria um lugar assim, resultou de sua observação 2

Com relação à segunda e florescente aldeia dos Bororo no caminho de Vila Maria a Salinas mencionada por Castelnau, trata-se de San Matías, que hoje se localiza na Bolívia, mas que ao que tudo indica era habitada por Bororo da Campanha. A descrição de uma visita à aldeia dos Cabaçais, junto ao rio Jauru, por Ferreira Moutinho (1869: 168–170) é uma invenção adaptada do livro de Castelnau (comparar com Von den Steinen 1894: 443–444).

83

Imagem 95: “Um missionário se torna cacique bororo”. Fotógrafo anônimo, antes de 1939. (© Museum der Kulturen. Basel, (F)IVc7479R [Álbum Grisoni]) Os Bororo das missões uniam tradição e civilização, os padres salesianos vinculavam a tradição ao afastamento dela. (CF)

de que os homens, assim como à época de Natterer, apenas estavam vestidos com uma folha de palmeira trançada usada como estojo peniano (Imagem 94). O tempo no entanto não ficara parado nos últimos 200 anos, e o isolamento solitário de Quejare era apenas relativo. Enquanto os Bororo da Campanha e os Bororo do Cabaçal foram “pacificados” por meios militares no princípio do século XIX e levados a um estado de dependência, os Bororo Orientais permaneceram praticamente intocados até meados do século XIX às margens do rio São Lourenço, onde eram conhecidos entre os neobrasileiros pela designação genérica de “Coroado”. A construção de uma estrada que atravessava seu território e a vinda de camponeses e garimpeiros, porém, provocaram a resistência dos Bororo e os levaram a um con-

84

flito militar que terminou mais uma vez com sua “pacificação” e, em 1887, com seu estabelecimento em “colônias” sob a guarda do governo. Ali eles foram visitados um ano depois por uma expedição alemã sob a chefia de Karl von den Steinen, a quem devemos a primeira representação etnográfica detalhada dos Bororo, e que em seu livro também não poupou críticas à situação na Colônia Teresa Cristina e sua administração (von den Steinen 1894: 441–518). Com a posterior entrada em cena de Cândido Rondon, que mais tarde seria promovido a marechal, os Bororo já haviam alcançado seu lugar na consciência nacional antes mesmo da chegada de Lévi-Strauss. O marechal Cândido Rondon, que descendia ele mesmo dos Bororo pelo lado materno, trabalhou como engenheiro na construção da linha telegráfica e da estrada pouco depois da “pacificação” dos Bororo no Mato Grosso. Rondon acabou por garantir aos mesmos Bororo seus direitos sobre a terra na colônia em 1896 e mais tarde lhes deu trabalho na construção do telégrafo. Sua visão de uma integração pacífica e politicamente respeitosa dos povos indígenas no Estado Nacional levou, em 1910, à fundação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). No mito brasileiro daquele que deu o nome ao Estado de Rondônia e à cidade de Ron-

donópolis, localizada na região dos Bororo, os índios Bororo assumem um lugar que não pode ser de todo compreendido em termos históricos. Para incentivar o processo de “civilização” que pareceu necessário à referida integração dos Bororo, a direção da Colônia Teresa Cristina foi entregue em 1895 à congregação salesiana, que foi considerada mais capaz de dar conta da missão do que os órgãos estatais. A congregação foi dispensada dessa tarefa já em 1898, mas em 1902 fundou nas proximidades imediatas uma estação missionária própria, a partir da qual em pouco espraiou suas atividade por toda a região dos Bororo Orientais (Albisetti e Venturelli 1962– 1976, 1: 218–222). A ordem fundada por Dom Bosco em 1859 originalmente via sua tarefa primordial na diminuição do sofrimento das crianças de rua na Itália, mas já na década de 1880 estendeu seu campo de atuação até a América do Sul, e mais tarde inclusive até a Ásia. Na missão indígena, assim como na missão nas ruas, o que ocupava o primeiro plano era a ideia do valor educativo e civilizatório do trabalho; para o trabalho nos campos da missão, os Bororo recebiam os salários normalmente pagos na região e com isso eram integrados ao mesmo tempo na economia nacional. Um aspecto essencial do interesse dos Bororo pelos salesianos estava na proteção que podiam desfrutar nas estações missionárias contra seus inimigos tradicionais, como os Xavante ou Kayapó (Caiuby Novaes 1997: 65–101). Além de sua atividade missionária e “civilizatória”, pelo menos alguns entre os salesianos se dedicaram desde logo também à pesquisa etnográfica, que encontrou seu ápice na Enciclopédia Bororo e que representa de forma perene e inclusive até hoje, também para os próprios Bororo, um recurso de preservação e renovação de sua tradição. Esse papel duplo dos salesianos como conservadores da cultura e da sociedade bororo, e ao mesmo tempo como iniciadores de sua transformação, tinha lá suas contradições internas (Imagem 95). Na condição de pesquisadores, eles documentaram, antes de Lévi-Strauss, o sistema das metades e dos clãs, e como reformadores tentaram mobilizar os Bororo a abandonar a casa dos homens e a viver em aldeias com estradas, a fim de assim destruir o sistema das metades e dos clãs (Lévi-Strauss 1957: 226, 231–232). Em sua função de missionários, os salesianos viam na nudez um indício da selvageria a ser superada e da falta de vergonha natural, como pesquisadores coletaram indicações detalhadas acerca da pintura cerimonial do corpo nu. Eles tentaram, em parte com o argumento do perigo de infecção, fazer com que fossem cessados os complicados ritos fúnebres dos Bororo, nos quais os ossos dos cadáveres decompostos são limpados e pintados, mas também reconheceram o papel central dessas tradições na relação dos Bororo com o mundo. Lévi-Strauss se mostrou admirado, por um lado, com o trabalho dos missionários como etnógrafos, mas por outro lado escolheu a aldeia de Quejare, sobretudo porque lá a influência das missões mal chegava a ser visível, ainda que naturalmente se possa ver o distanciamento dos Bororo tradicionalistas de seus parentes nas missões também como resultado das atividades salesianas. Curiosamente, o pesquisador francês escolheu, como informante principal, um antigo educando dos salesianos, que no passado havia sido mandado por eles a Roma e inclusive encontrou o papa, mas que mais tarde

Imagem 96: Planta da aldeia de Quejare. 1935. (Por Lévi-Strauss 1957: 231) A linha que separa as duas metades corre mais ou menos em direção leste-oeste, da esquerda, embaixo, para a direita, acima; as linhas pontilhadas marcam os caminhos para a casa dos homens. (CF)

se retradicionalizou e voltou para Quejare. Não sem escárnio, LéviStrauss (1957: 227) observa que “inteiramente nu, pintado de vermelho, o nariz e o lábio inferior perfurados pelos tembetás, emplumado, o índio que vira o Papa revelou-se maravilhoso professor de sociologia bororo”. (Um dos informantes-chaves dos salesianos era, aliás, um outro Bororo, que viajara pela Itália e pela França e mais tarde se distanciou dos missionários, antes de voltar a seus serviços mais uma vez; talvez de fato apenas um Bororo com formação ocidental fosse capaz de compreender o interesse dos pesquisadores e se expressar de modo compreensível diante deles.) Um ano antes da chegada de Lévi-Strauss, os salesianos convidaram o fotógrafo austro-brasileiro Mario Baldi para fazer um documentário sobre o trabalho missionário com os Bororo. O filme foi extraviado, mas as fotos de Baldi dão uma ideia do pluralismo cultural entre os Bororo na década de 1930, que aliás jamais se suspeitaria depois da leitura de Tristes trópicos (Lopes e Feest 2009; Feest e Luiza da Silva 2011). Enquanto Lévi-Strauss louvava a nudez natural dos Bororo em Quejare, Baldi percebeu nas missões uma timidez incomum diante das fotos: ali os Bororo não queriam de modo algum ser fotografados sem antes terem se vestido com todo o asseio. Com o surgimento da teologia da libertação na década de 1970, os salesianos perceberam a chance de se livrar de sua imagem arquiconservadora no Brasil. Eles passaram a promover, agora também

85

Imagem 97: “Vista da aldeia dos índios Bororo, chamada de Pau-Seco […]”. Aquarela de Aimé-Adrien Taunay, dezembro de 1827. Academia Russa de Ciências, São Petersburgo. (© Christian Feest)

na condição de missionários, o respeito vivenciado ante a cultura tradicional, e se colocaram, ainda mais do que antes, ao lado dos Bororo na luta contra seus vizinhos neobrasileiros que continuavam ávidos por terras e extremamente violentos, o que aliás culminou, em 1976, no assassinato de um Bororo e do padre salesiano alemão Rodolfo Lunkenbein (Caiuby Novaes 1997: 102–144).

Grupos de parentesco e suas propriedades A aldeia dos Cabaçais, que Weddell desenhou em 1844, era constituída de 30 casas retangulares com telhado de duas águas para um total de cerca de 110 habitantes. Estas casas estavam organizadas na forma de um retângulo alongado. Dois terrenos cercados na parte da frente insinuavam pequenas hortas; nas proximidades da margem do rio pode ser reconhecida uma casa maior de paredes sem revestimento e com redes penduradas na parte interna. Quejare, junto ao rio Vermelho, que Lévi-Strauss visitou em 1935, era um pouco maior: exatamente 150 habitantes viviam em 26 casas. Também ali telhados de duas águas haviam substituído, conforme o modelo ocidental, as antigas casas com telhado redondo em forma de cúpula; sua organização circular em torno da grande casa dos homens correspondia, no entanto, à forma tradicional, na qual se refletia também a organização de parentesco típica dos Bororo: nas casas da metade norte do círculo viviam os membros da metade Tugarége, na metade sul os da Ečeráe; eles eram subdivididos de forma ideal em quatro clãs, que por sua vez se estruturavam em subclãs (Lévi-Strauss 1936; 1957: 233–234; Imagem 96). Em razão do número reduzido de 150 habitantes, a realidade não correspondia ao ideal, que poderia ser vivenciado apenas com uma popula-

86

ção maior. Devido aos acasos de todo e qualquer desenvolvimento populacional, estruturas fundamentadas em clãs raramente são estáveis a longo prazo: alguns clãs são extintos, outros crescem em tal medida que acabam se dissociando em vários subclãs. As mudanças populacionais maciças ocorridas após o contato com os neobrasileiros apenas aceleraram ainda mais processos como esse. As metades eram exógamas, ou seja, os cônjuges tinham de ser escolhidos sempre na metade oposta; além disso havia relações de casamento preferenciais entre determinados clãs. Pertencer às metades, aos clãs e subclãs era uma herança materna, e depois do casamento os homens se mudavam para a casa de sua mulher, ou seja, se transferiam para o outro lado da aldeia. Os homens de todos os clãs, no entanto, passavam boa parte de sua vida na casa dos homens comum, na qual a tradição era cultivada e também os privilégios dos clãs eram expressados materialmente. Os clãs, entre os quais havia ricos e pobres, eram na verdade os proprietários de mitos a partir dos quais eram deduzidos os direitos a determinadas cerimônias, tarefas sociais e nomes próprios, mas também a forma de objetos de uso cotidiano. Lévi-Strauss (1957: 236) escreve que “quase todos os objetos” eram adornados com os emblemas que indicavam o pertencimento a clãs e subclãs, e a Enciclopédia Bororo salesiana apresenta várias descrições detalhadas dessas diferenças. Em sua visita a um acampamento temporário dos Bororo da Campanha no ano de 1825, Natterer não descreve a forma das casas nem sua organização; metades, clãs ou subclãs estavam longe de ser algo importante para a etnografia em sua época (o mesmo vale para Karl von den Steinen, 60 anos mais tarde). Natterer relata apenas que suas casas eram cobertas com folhas de palmeira, que “toda a parentela vivia em um rancho ou oca” e que após a separação os filhos ficavam com a mãe (Johann Natterer 2012b). Em um desenho feito no âmbito da expedição de Langsdorff por Aimée-Adrien Taunay, no entanto, pode ser reconhecida com nitidez uma grande casa com telhado de duas águas, de paredes sem revestimento, em torno da qual se juntavam de forma mais ou menos circular numerosas casas com telhado de duas águas ou redondo em forma de cúpula, de fundamento oval ou retangular e sem paredes destacadas (Imagem 97). Apenas supõe-se que a organização de parentesco dos Bororo da Campanha correspondia à de seus parentes próximos que viviam junto ao rio São Lourenço. A descrição dos emblemas que indicavam pertencimento a clã e enfeitavam os objetos dos Bororo Orientais do século XX abre por certo um questionamento interessante no que diz respeito aos objetos da cultura material colecionados em tempos históricos anteriores. Se “quase todos os objetos” mostravam peculiaridades específicas ao clã, os objetos colecionados durante o século XIX também seriam fontes para uma história da organização social dos Bororo. De qualquer modo existem, nas coleções dos museus do mundo inteiro, cerca de 7000 objetos oriundos dos Bororo – uma quantidade suficiente para, partindo das descrições minuciosas da etnografia salesiana, poder constatar a manutenção ou a mudança das diferenças particulares que caracterizavam cada um dos clãs. A coleção bororo de Natterer com seu grande número de peças do mesmo tipo de objeto ofereceria um fundamento ideal para tal pesquisa.

Imagem 98: Adorno alongador de cabelos (aé-aé) e proteção de pulso (aé). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Crina de cavalo, resina, fibras vegetais, cabelos humanos, C. 55 cm. Col. Schröckinger, Nº de Inv. 53.529 (ex-Col. Natterer), Col. Natterer, Nº de Inv. 886 Cabelos humanos, arrancados ou cortados no âmbito de rituais fúnebres, eram transformados em adornos capilares semelhantes a perucas e longos cordéis pelos Bororo da Campanha. Enrolados em torno do pulso, eles serviam de proteção ao fio do arco que rebatia assim que a flecha era disparada. Entre os Bororo Orientais, seu uso era restrito ao caçador, que na condição de representante do morto vingava a perda sofrida pelos parentes enlutados matando uma onça. A utilização substitutiva de crinas e pelos de cauda de cavalo pode ser constatada apenas entre os Bororo da Campanha e sugere um distanciamento do ritual fúnebre. (CF)

O exame do acervo colecionado, no entanto, apresenta resultados decepcionantes, por vários motivos. Por um lado na Coleção Natterer (e também na coleção de Langsdorff, da mesma época, que se encontra em São Petersburgo; comparar com Manizer 1967: 202–205) estão representados objetos que nunca foram ou não eram mais confeccionados pelos Bororo Orientais no século XX. Deles fazem parte por exemplo os alongadores de cabelo artificiais, feitos de cabelos humanos ou pelos de cavalos (Imagens 98 e 99), grande parte dos adornos de pescoço e de testa feitos de dentes de onça, bovinos, macacos e cervos, e também conchas, alguns adornos em pena, os cascaveis feitos de unhas de cervo e de caitetu e os clarinetes com

Imagem 99: “Bororo da Caiçara”. Desenho a lápis de Johann Natterer. 1826. (© Naturhistorisches Museum Wien, Wissenschaftsarchiv [Arquivo de Ciências]) Representação do uso do labrete, adorno para orelhas, adorno em penas e artefato para alongar os cabelos. Natterer descreve o uso deste último conforme segue: “Os cocares de penas de feitio mais grosseiro (baatsch) são presos atrás na cabeça. Antes disso, os cabelos são presos na parte de trás, em seguida colocados em torno dos mesmos vários adornos de pelo de cavalo e por fim, sobre o conjunto enfeixado, fixados vários desses adornos em pena compostos de penas dispostas em pé, formando uma espécie de auréola de santo”. (CF)

bojo de chifre de boi (Steinle 2002: 71–72, 76–77, 79–85, 86–87, 88). Por outro lado há objetos que nos séculos XX e XXI eram de grande importância justamente como bem pertencente a um determinado clã, caso do diadema de penas chamado pariko (Dorta 1981), que não podem ser encontrados nas coleções de Natterer e Langsdorff. Uma observação das peças comparáveis oferece poucas indicações a modelos específicos de clãs e sua divisão. Isso vale sobretudo para os arcos e flechas que não mostram nenhuma das peculiaridades que Albisetti e Venturelli (1962–1976, 1: 488–499, 940–952) identificaram como características de algum dos grupos de parentesco. No que diz respeito aos alongadores de cabelo que podem ser encontrados em grande quantidade, existem diferenças, mas que parecem ser individuais; objetos semelhantes eram usados por homens de todos os clãs entre os Bororo Orientais (Albisetti e Ven-

87

Imagem 101: Pele de onça. Bororo da Campanha, Brasil. Em torno de 1825. Col. Natterer, Nº de Inv. 890 Natterer observa acerca da presente peça: “Pele de onça, serve para deitar e em dias de festa é amarrada no pescoço durante as danças, caindo sobre as costas, com a parte do pelo virada para dentro. Ade – significa onça. Adugå böli. Onça é um antigo termo português para o jaguar. A pintura corporal corresponde, com pequenas variações, à iwará arége edúgo, “a pintura corporal dos espíritos dos iwará arége” entre os Bororo Orientais, e é propriedade do clã Baádo-Jebáge Čebegiwúge. (CF)

Imagem 100: Dois cocares de pena. Bororo da Campanha, Brasil. Em torno de 1825. Col. Natterer, Nºs de Inv. 772–773 Natterer chama esses apliques de pena de “2 cocares. Um enfeitado com uma pena do Gavião real (Falco destructor [está faltando]). É amarrado na cabeça – kurugå baré-enau”. Bóe etáu significa adorno de cabeça entre os Bororo Orientais, kurugúgwa o gavião carrapateiro; a posse de determinadas penas de diferentes espécies de gaviões significa entre eles um privilégio concedido a clãs específicos. As peças colecionadas por Natterer se assemelham claramente aos grampos de cabelo em formato de flor (sem penas de gavião) chamados péku dos Bororo Orientais, que são, nas versões preta ou amarela, propriedade do sub-clã Baádo Jebáge Čebegiwúge Čebegiwúge. (CF)

turelli 1962–1976, 1: 419). Os adornos em pena em forma de buquê de flores, usados na parte de trás da cabeça e chamados por Natterer de kuruga bare enau (Imagem 100), podem ter sido até específicos de algum clã, mas não permitem qualquer identificação nítida com formas mais recentes. No caso das viseiras (ebukejéwu) e adornos para o occipício (kiogoáro bóe) (Albisetti e Venturelli 1962– 1976, 1: 390–393, 550–554), dos quais pode ser encontrado um exemplar de cada um na Coleção Natterer, também há, por um lado, diferenças significativas em relação às formas mais recentes dos Bororo Orientais, assim como por outro lado surgem problemas na atribuição à propriedade específica de um clã devido à dificuldade de determinar com mais precisão a origem das penas. Os impressionantes adornos de peito feitos de unhas de tatu-canastra (bokodóri), que Natterer descreve como adornos de peito e de testa, podem, segundo Albisetti e Venturelli (1962–1976, 1: 364–366) ser usados por todos os homens e mulheres de todos os grupos de parentesco; formas peculiares, específicas a clãs, no entanto, se diferenciam nitidamente dos exemplares da Coleção Natterer. É grande a probabilidade de que a pele de onça com pintura seja específica ao clã (Imagem 101), pois seus adornos, em sua estrutura fundamental, se parecem muito com uma variante registrada na

88

etnografia salesiana (Albisetti e Venturelli 1962–1976, 1: 234–238). Há vários motivos possíveis que podem explicar o problema na determinação de formas específicas a clãs na Coleção Natterer, e muitos deles também poderiam ser concomitantemente corretos. Em primeiro lugar é improvável que os Bororo da Campanha gostassem de abrir mão, no princípio do século XIX, de objetos que na condição de propriedade de seu grupo de parentesco tinham grande importância para eles; Natterer, que não tinha noção clara acerca dessa importância, não concedia nenhum significado especial a quais eram os objetos que lhe eram dados em troca quando formou sua coleção.3 Ao mesmo tempo, a afirmação de que “quase todos os objetos” dos Bororo mostraria uma especificidade de clã também 3

Entre os pontos críticos dos Bororo à exposição dos objetos colecionados por Lévi-Strauss no Musée de l’Homme, em Paris, estava a falta da menção à propriedade do clã nos objetos, que para eles constituem a característica primordial e fundamentadora de sentido (Carvalho 200: 36; 2012).

prova ser inconsistente. Ao que tudo indica, eram específicos do clã talvez apenas os arcos, flechas ou estojos penianos usados em ocasiões cerimoniais; por outro lado, isso certamente é correto apenas em parte em relação aos bokodóris e certamente não diz respeito aos alongadores de cabelo. Depois que a utilização de arco e flecha como ferramentas para buscar o sustento diminuiu, os mesmos avançaram ao centro do interesse como armas cerimoniais. Também se pode especular se o significado dos privilégios materiais dos clãs e subclãs não aumentaram a partir do momento em que os Bororo foram estabelecidos em aldeias e devido às mudanças demográficas. Arcos e flechas Bororo reconhecivelmente específicos de clãs aparecem em coleções apenas na virada do século XIX para o século XX, o que poderia ser esclarecido tanto por uma prontidão crescente à venda de insígnias, quanto pelo significado cada vez maior da especificidade do clã. Por fim não pode ser completamente excluída a possibilidade de que a organização de parentesco dos Bororo da Campanha (e sobretudo dos diferentes grupos de Bororo do Cabaçal) se diferenciava da organização dos Bororo Orientais. A pergunta sobre se ao final das contas tentamos aqui comparar coisas apenas em parte comparáveis ou inclusive completamente incomparáveis, deve ser feita não apenas devido às mudanças históricas nas estruturas dos clãs, mas também às mudanças nas próprias insígnias. Uma vez que “história” e “tradição” são duas construções diversas (comparar com Feest 1997), a afirmação da imutabilidade da transmissão como parte da afirmação da tradição em muitos casos não resiste a um exame histórico. Isso vale sobretudo para o presente caso, no qual se passaram quase dois séculos entre a época dos objetos colecionados e o saber contemporâneo dos portadores da tradição, que além disso nem sequer são os descendentes diretos daqueles que os confeccionaram. As coleções formadas sobretudo na primeira metade do século XX pelos salesianos junto aos Bororo Orientais hoje em dia se encontram em boa parte na sede italiana da congregação, em Castelnuovo Don Bosco, nas proximidades de Asti, e no Museu das Culturas Dom Bosco, em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. O Museu das Culturas também coordena um museu de aldeia, cujo nome homenageia Rodolfo Lunkenbein, na comunidade bororo de Meruri. Um grupo de Bororos de Meruri teve a oportunidade, em 2004, de visitar as coleções na Itália, e pôde assim ser confrontado nitidamente com as mudanças históricas em sua cultura material, que ao mesmo tempo serviu de incentivo para que, através de reproduções, eles se reapropriassem desses objetos do passado reclamados por eles como propriedade de clã (Imagem 102; Carvalho 2006: 28–37, 219). Desse interesse dos Bororo de Meruri surgiu a ideia de uma “repatriação visual” da propriedade de clã oriunda da comunidade, que alhures havia sido preservada como documento de diversidade cultural (Carvalho 2012). No âmbito de um projeto conjunto do Museu das Culturas e do Museum für Völkerkunde de Viena, o acervo mundial das coleções bororo de mais de dois séculos foi identificado e em seguida principiada sua documentação, para ao fim tornar o material acessível aos próprios Bororo, e ao mesmo tempo encontrar, junto com os mesmos Bororo, uma resposta às perguntas ainda abertas acerca da identificação da propriedade histórica de seus grupos de parentesco. Para a realização desse projeto ainda será preciso resol-

Imagem 102: Repatriação Visual. Bororo Orientais, Meruri, Brasil. Em torno de 1825. (Fotografia: © Sérgio Sato) Jorge Bororo durante a reconstrução de um cocar tipo pariko, feito de penas de arara, seguindo fotos de um artefato do Museu das Culturas Dom Bosco (Campo Grande-MS). (CF)

ver vários problemas de ordem metodológica e técnica, mas também outros de natureza financeira, uma vez que muitos museus hoje em dia se veem obrigados a contemplar suas coleções não apenas como herança cultural, mas também como recurso financeiro. A percepção de que as coleções de objetos dos Bororo que Johann Natterer principiou há quase 200 anos como parte de seu esforço no sentido de fazer do Gabinete de História Natural do imperador austríaco um dos maiores e mais belos do mundo, agora visto com razão também pelos Bororo como sua herança cultural, significa para a Áustria, o Brasil e os Bororo a chance de professar uma responsabilidade no sentido de continuar conservando e pesquisando

89

Seção Catalográfica

BORORO

Adorno de penas para o occipício. Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Penas de papagaio e de falcão, algodão, fibras vegetais, resina, H. 36 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 771 Adornos semelhantes a esse (kiogoáro bóe el-aobáru) foram encontrados entre os Bororo do rio São Lourenço. Eram usados junto ao occipício, tanto por homens quanto por mulheres, de um modo que as penas caíssem sobre o dorso. O tamanho e o tipo de penas utilizadas eram as marcas determinantes para a diferenciação entre os clãs. (CF)

Flechas com pontas de osso (dögöla) e pontas de cana (döga, duga, köka, tschora). Bororo da Campanha, Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Cana, madeira, penas, fibras vegetais, resina, algodão, C. máx 229 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 735, 744, 750, 753, 764 Os dois tipos de pontas de flecha dos Bororo da Campanha, tanto as com pontas de osso ou de madeira e emplumação tangencial (preferencialmente para a caça de pássaros e caça de pequenos animais), ou então as com pontas de cana e emplumação radial (para a caça de grandes animais e para a guerra), se parecem com aquelas, que mais tarde foram encontradas também entre os Bororo do rio São Lourenço. Elas eram, no entanto, meio metro mais longas, e pelo menos as encontradas por Natterer não mostram quaisquer sinais específicos de clãs. A emplumação radial com fixação por meio de costura também é incomum. Como as flechas dos Bororo do Cabaçal eram provenientes de butim de guerra, elas representam mais o segundo tipo de flecha, mas possuem uma haste de cana muita curta e mostram, além da fixação por costura, também a fixação de penas mediante envoltura de ambos extremos, na qual uma das pás é cortada, na maior parte das vezes de maneira denteada. As formas diferentes poderiam ser um indicativo da heterogeneidade dos Bororo Ocidentais. (CF)

Duas testeiras de garras de onça (aduga bulegi). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. São respectivamente 18 e 52 garras de onça, couro, ossos, algodão, fibras vegetais, resina, C. máx. 26,5 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 793; Col. Schröckinger, Nº de Inv. 53.523 (antiga Col. Natterer)

Viseira de penas (até mutché). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Penas de arara e de papagaio, algodão, fibras vegetais, resina, C. 45 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 766

As garras e os dentes de uma onça morta em uma caçada cerimonial depois de uma morte eram presenteados aos parentes do índio morto. Natterer conseguiu adquirir pelo menos 10 dessas testeiras com as garras viradas para cima, nas quais não havia diferenças específicas de clãs e que se diferenciavam sobretudo pela quantidade das garras utilizadas. A testeira maior entrou para a coleção do museu apenas após o falecimento de Natterer, oriunda de seu espólio. (CF)

A viseira, pela descrição de Natterer, “usada na testa com o topo apontando para baixo durante as danças”, corresponde ao ebukejéwu dos Bororo de São Lourenço, que é usado em conjunto com o grande cocar (pariko), e no qual falta a pena central ou que é cortado na largura da viseira. Essa diferença torna impossível a atribuição a eventualmente imaginada propriedade de um clã específico. (CF)

Dois adornos para o occipício (baatsch, “garça”). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Penas, algodão, fibras vegetais, C. máx. 48 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 767, 769 Johann Natterer descreve o modo de usar esses adornos de cabeça, feitos de penas de garça e aves de rapina, conforme segue: “Primeiro os cabelos são presos na parte de atrás da cabeça, depois adornos de pelos de cavalo amarrados ali, e depois são fixados no feixe vários desses adornos em penas com as penas arranjadas verticalmente, como se fosse a auréola de um santo.” Entre os Bororo Orientais do século XX, a posse de adornos com penas de garça (báĩe ariareu), semelhantes aos baatsch dos Bororo da Campanha, era privativo aos homens do clã Iwagúdu-dóge. (CF)

90

Pente (budega). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Madeira, algodão, C. 8 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 787 Assim como seus parentes orientais, os Bororo da Campanha penteavam seus longos cabelos com pentes duplos feitos de pontas do tronco de palmeira, que eram afixadas artisticamente com barbante de algodão a duas varetas de madeira. (CF)

91

Peitoral de garras de tatu (bakàdåli bulegi). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Garras de tatu-canastra, conchas, resina, algodão, L. 13,5. Col. Natterer, Nº de Inv. 849 Entre os enfeites mais característicos dos Bororo estão os ornamentos em forma de meia-lua crescente, feitos de duas das grandes garras das patas traseiras do tatu-canastra, que além disso são decorados com conchas, penas ou fios de algodão. Natterer provavelmente comete um equívoco quando se refere a eles como peitorais e testeiras. Mais além, a designação bororo deste adorno como relatado por Natterer refere-se a um colar feito das garras das patas dianteiras do tatu. (CF)

Brinco (apa da ato) e dois pares de brincos (idaé). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Anéis de tucum, bico de tucano, algodão, conchas, fibras vegetais; L. máx. 7 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 805, 809–810, 838–839

Dois peitorais de dentes de onça (aduga-a) e dentes bovinos (dabira-à,dabiráõ). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Dentes de onça, algodão e resina e, respectivamente, dentes bovinos, algodão; C. total 129 e 85 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 796, 803

Os pingentes em forma de meia-lua, feitos de bico de tucano ou conchas, eram utilizados como peça única ou aos pares. Era bastante comum o uso de vários brincos na mesma orelha. Entre os Bororo Orientais do século 20 os brincos feitos de bico de tucano (apódo otó) eram um privilégio exclusivo dos homens do clã Kie, enquanto ao mesmo tempo os brincos feitos de lata (em vez de madrepérola) eram usados por todos, homens e mulheres, sem distinção de clã. (CF)

Mesmo que Natterer tenha definido essas peças como testeiras seu uso é documentado somente como peitoral. Os aduga-a eram confeccionados com 4 caninos de onça flanqueados por 4 a 5 molares. Esses adornos não eram específicos de clãs e podiam ser usados por homens e mulheres. Do mesmo modo que as testeiras, os peitorais estão relacionados aos rituais fúnebres. Isso certamente não vale para os exemplares de dentes de bois, os quais provavelmente tenham sido adquiridos pelos Bororo ao trabalhar como vaqueiros das grandes fazendas. (CF) Um par de brincos (atu-bulinia). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. 12 e 13 anéis de tucum, respectivamente, pingentes de conchas, penas, fibras vegetais, algodão, resina, C. 5,5 a 5,9 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 807–808 Johann Natterer caracteriza esses brincos muito elaborados, confeccionados por homens, como adornos destinados exclusivamente a “meninas crescidas”. Não se descobriu o eventual significado simbólico das mãos. (CF)

Colar com dentes de onça (i kuie). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Dentes de onça, fibras vegetais, L. 16,5cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 850

Faltam dados quanto à utilização especial dos dentes incisivos de onça como contas do colar que Natterer colecionou entre os Bororo da Campanha, não há peças comparativas dos Bororo Orientais. (CF)

93

Cinta para mulheres (ïuoei) e faixa (kada binoei). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Casca de árvore, fibra vegetal, entrecasca, algodão, C. máx. 210 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 859, 863 No que diz respeito à indumentária feminina Johann Natterer comentou: “As mulheres […] trazem em volta da cintura uma faixa de mais de um palmo de largura feita da casca da árvore Nagale cogu. Esta casca é dura e imóvel, mas uma faixa mais estreita da entrecasca de figueira passa por entre as pernas e está afixada na parte de trás e na frente. Nenhuma mulher quis me ceder esse ornamento até que um tecido vermelho ganhou a batalha. Após entrar em sua maloca, a proprietária deu a faixa ao marido, que veio me entregá-la”. Durante a gravidez e o resguardo, a faixa de entrecasca fica presa a uma cordinha de algodão ou outra fibra vegetal. (CF) Dois pares de braçadeiras. Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Couro de cobra, penas, C. máx. 75 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 881, 882

Não há objetos dos Bororo do rio São Lourenço, que pudessem servir para uma comparação com essas “3 braçadeiras de couro de cobra” colecionadas por Natterer entre os Bororo da Campanha. As grandes diferenças em relação à falbalá de penas poderia ser um indício relativo à propriedade de determinados clãs. (CF)

Corda de cintura (baràgurà), corda de cintura (noito-ina, aevora) e estojo peniano (inobe). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Ossos de pássaros, lã, folha de palmeira, algodão, C. máx. 103 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 867, 875, 880 De acordo com Johann Natterer “os homens usam somente uma corda na cintura, à qual amarram o membro masculino”. Antes de amarrá-lo, eles o comprimem em um estojo peniano trançado de folha de palmeira, de tal maneira que apenas o prepúcio se destaque no orifício da extremidade. As cordas na cintura podiam ser apenas de fibra vegetal e enfeitadas com contas de osso, ou também conchas e nozes de tucum. (CF)

94

Corda com guizos (butolé) e maracá de cabaça (ï-u-abó). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Unhas de veado, fibras vegetais, cabaça, madeira e pedriscos ou sementes, C. máx. 131 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 887, 889 Para acompanhar as danças, os Bororo da Campanha usavam dois tipos de chocalhos. Cordinhas com guizos feitos de unhas de animais como o porco silvestre ou veado campeiro “(Cervus dichotomus) eram amarradas envolvendo os pés ou os tornozelos, dando várias voltas. […] O proprietário desses guizos abriu mão deles somente mediante a troca por uma faca, um lenço e um pedaço de fumo de rolo.” Os maracás de cabaça dos Bororo Orientais com marcas específicas de clã eram usados durante as danças para dar o rimo. (CF)

95

Leque ou abanador para fogo (bá kuu). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Folhas de palmeira, C. 65 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 896 Como único exemplar de um trabalho de cestaria feito por mulheres, Natterer adquiriu com os Bororo um leque ou abanador para fogo, feito de duas folhas de palmeira trançadas e entrelaçadas, cujas extremidades ainda serviram de cabo ao leque. (CF)

Dois clarinetes (koa). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Cana, cabaça, penas, resina, crina de cavalo, algodão, C. máx. 40 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 904, 906

Durante o ritual fúnebre dos Bororo Orientais, o caçador da onça, que incorporava a alma do morto, recebia de seu pai ou de seu cunhado um clarinete com um pavilhão feito de cabaça, que representava a voz do morto no ritual. Todos esses instrumentos apresentam adornos específicos de clãs e eram mantidos escondidos dos olhares de mulheres e crianças. Ao final do jantar festivo, o caçador da onça recebia de presente um clarinete igual ao usado durante a cerimônia fúnebre. (CF)

Clarinete (boali). Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Chifre de boi, cana, fibras vegetais, algodão e cabelo humano, C. máx. 19,5 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 894 Os instrumentos musicais, chamados de “chifres” por Natterer, devido ao material de seu pavilhão, e utilizados tanto pelos Bororo da Campanha quanto pelos Bororo do Cabaçal, eram clarinetes, cujo nome aponta para sua origem dos clarinetes de cabaça (Bororo Orientais powári, “cabaça”). O seu uso, no entanto, não era ritualístico. “Eles tocam os instrumentos para se comunicarem e quando estão viajando”. Os Bororo do rio São Lourenço desconheciam esse instrumento. (CF)

96

Artefato para afiar pontas de flechas (duga barega) e concha de caracol como plaina. Bororo da Campanha (Biriboconné), Rio Paraguai, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Dentes de animal roedor, algodão, resina, folhas de palmeira, concha de caracol, C. máx. 27,5 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 901–903

Um dente afiado de capivara ou outro animal roedor, afixado em um pedaço de madeira, servia para os homens bororo como ferramenta multiúso, pois não somente afiava as pontas das flechas, como também aplainava a madeira. Para cada ferramenta havia um cabo da palmeira bacuri, que servia para afiar os dentes. As ferramentas de tratamento da madeira eram complementadas com uma concha de caracol, que servia para aplainar e alisar também os cabos das flechas. (CF)

97

Os Bororo na fotografia de Mario Baldi O espólio fotográfico do fotógrafo austro-brasileiro Mario Baldi (nascido em 1896, em Salzburgo, na Áustria, e falecido em 1857, no Mato Grosso, no Brasil), constitui sem dúvida uma das coleções fotográficas mais importantes do Museum für Völkerkunde de Viena e, com certeza, também a maior. Ajudado por seu material visual, o outrora fotógrafo de guerra e, que tornou-se fotógrafo profissional após ter emigrado para o Brasil em 1921, conseguiu documentar em todas as suas variadas formas o modo de vida da população da pátria que escolheu para viver, concedendo atenção especial às comunidades indígenas. Em suas longas viagens pelo país (por algum tempo na condição de secretário de Dom Pedro de Orléans e Bragança, bisneto de dona Leopoldina, Imperatriz do Brasil), o pioneiro do fotojornalismo brasileiro Mario Baldi retratou os mais variados tipos de gente e suas condições de vida nas cidades grandes e nas comunidades rurais. Ao mesmo tempo, sua volumosa coleção apresenta também um grande número de fotografias das paisagens, das expedições e de registros privados. Estas imagens refletem não apenas seu grande interesse na etnografia, como também nos permitem, e de uma maneira inigualável, conhecer de perto as condições de vida dos Bororo, dos Karajá e de outros grupos indígenas. Viajando durante grande parte de sua vida, Baldi acabou morrendo durante uma de suas expedições e foi sepultados pelos Tapirapés. Graças à ajuda do embaixador da Áustria no Brasil, a grande e importante coleção de objetos etnográficos de Mario Baldi, e também seu espólio fotográfico de 4.800 imagens (que ainda precisa ser identificado e classificado), acabou chegando ao acervo do Museum für Völkerkunde de Viena. (CZ)

Mulher idosa. Bororo Orientais, Meruri, Brasil. Foto: Mario Baldi, 1934. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/2.808 Vestida com roupas neobrasileiras, essa senhora idosa, que possivelmente ainda se lembrasse da vida fora das colônias e aldeias missionárias, usa vários colares de dentes de onça, um presente que ganhou de um caçador no passado. Esses adornos não diferem significativamente daqueles que Johann Natterer coletou mais de um século antes com os Bororo da Campanha. (CF)

Vista da aldeia Meruri. Bororo Orientais, Brasil. Foto: Mario Baldi, 1934. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/2.791 Em Meruri os padres salesianos conseguiram convencer os homens a abandonar a casa dos homens, centro da vida social até então, e distribuir suas casas no sistema de ruas, deixando para trás a organização em círculo típica do passado. (CF)

Padre Albisetti e crianças bororos. Bororo Orientais, Sangradouro, Brasil. Título da série: “O caminho espinhoso”. Foto: Mario Baldi, 1934. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/2.869 “A maior parte dos missionários é muito estimada pelas crianças dos índios e também gosta muito das crianças. O missionário sabe perfeitamente que o trabalho sério com as crianças é de suma importância. As crianças escutam atentamente as belas histórias da Bíblia Sagrada que o Bom Padre lhes lê. Seguram as mãozinhas em oração, rezando com ele em sua língua indígena. E assim o primeiro grão de fé é plantado na alma delas” (descrição original de Mario Baldi). (CF)

99

Menina com papagaio. Bororo Orientais, Jarudori, Brasil. Foto: Mario Baldi, 1934. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/2.872 “Uma menina graciosa dessa tribo na Colônia do Sagrado Coração. Sobre seu ombro pousa um papagaio manso” (descrição original de Mario Baldi). Johann Natterer já mencionava a criação de pássaros de estimação. Principalmente as araras eram muito estimadas como fornecedoras de penas. Uma técnica chamada “tapiragem” possibilitava colorir as penas, deixando-as amarelas, quando se pingava gotas de certa seiva de árvore sobre o local de onde foi retirada recentemente a pena da ave viva. Mas os Bororo também acreditavam que suas almas eram araras vermelhas e que quando morressem eles mesmo continuariam vivendo nessas aves. (CF)

Apelo para a cerimônia. Bororo Orientais, Jarudori, Brasil. Título da série: “Danças fúnebres dos índios Orarimugudoge, 2”. Foto: Mario Baldi, 1934. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/2.902 “Um jovem guerreiro chama os dançarinos para a cerimônia fúnebre usando uma trombeta de cabaça de timbre abafado” (descrição original de Mario Baldi). Essa trombeta (pána), feita geralmente de um conjunto de cabaças, é propriedade de um clã específico, mas também pertence a Itubóre, o herói cultural e senhor do reino dos mortos do leste, o que junto com Bakoróro organizou a mundo para os Bororo. Sua história é dramatizada no ritual fúnebre. Orárimógudóge (“moradores do país dos peixes manchados” foi uma designação introduzida pelos missionários salesianos para designar os Bororo Orientais. (CF) Prontos para a dança. Bororo Orientais, Jarudori, Brasil. Título da série: “Danças fúnebres dos índios Orarimugudoge, 4”. Foto: Mario Baldi, 1934. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/2.892

100

“À esquerda se encontra o bâri (feiticeiro), que simboliza a alma do morto e, por isso, mantém seu rosto coberto com uma viseira de penas de gavião; na mão o maracá dos espíritos. À direita se encontra um dançarino com saia de folhas da palmeira babaçu, cocar de penas de araras azuis e vermelhas e labrete de madrepérola de conchas ribeirinhas. O peitoral é de garras do tatu-canastra” (descrição original de Mario Baldi). (CF)

101

“Bororos pescando”. Bororo Orientais, Meruri, Brasil. Foto: Mario Baldi, 1936. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/3.046 Os Bororo gostavam de ficar na água – para se refrescar, para sua higiene e para pescar com redes de três pontas. Essas redes eram chamadas buke (“tamanduá-bandeira”), uma vez que seus contornos se assemelham aos deste animal. Natterer chega a mencionar a pesca em suas anotações, mas não colecionou material referente a ela. (CF)

A dança Marido. Bororo Orientais, Jarudori, Brasil. Título da série: tDanças fúnebres dos índios Orarimugudoge, 9”. Foto: Mario Baldi, 1934. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/2.896

102

A dança “Marido” faz parte do ritual fúnebre, e nela os vivos e as almas dos mortos são incorporadas por homens que dançam ou competem em corridas a pé com rodas feitas de folhas da palmeira buriti de até 100 quilogramas. Lévi-Strauss sugeriu que “numa alegre desordem, os indígenas têm a sensação de jogar com os mortos e de ganhar deles o direito de continuar vivendo”. (CF)

“Mulher bororo confeccionando um cesto”. Bororo Orientais, Meruri, Brasil. Título da série: “Posto avançado da civilização, 9”. Foto Mário Baldi, 1934. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/2.796 “Esses cestos, que são extremamente resistentes, são trançados a partir de uma única folha da palmeira babaçu ou buriti. Contudo, cada umas dessas folhas têm entre seis a oito metros de comprimento” (descrição original de Mario Baldi). Cestos e bolsas eram utilizados pelos Bororo para o transporte de carga em suas viagens, e também para o sepultamento definitivo dos ossos dos falecidos. (CF)

Guerreiro bororo pronto para a dança. Bororo Orientais, Meruri, Brasil. Título da série: “Tipos de indígenas nas missões no Brasil central”. Foto: Mario Baldi, 1936. Coleção de fotografias, Nº de Inv. 30.896/3.067 “O arco de honra do ‘Caçador da Onça’ mostra arranjos impressionantes de penas” (descrição original de Mario Baldi). Nas aldeias missionárias a antiga nudez desapareceu, porém, as formas de adornos como os cordões de cabelos humanos enrodilhados na cabeça à maneira de um turbante e as noções e cerimônias tradicionais continuaram visíveis como expressão da identidade bororo. (CF)

103

Claudia Augustat

Extintos!? Tentativa de aproximação de um conceito Como etnóloga que trabalha com as culturas indígenas da Amazônia, muitas vezes fui confrontada com o ponto de vista de visitantes de museu, amigos e conhecidos de que ao final das contas a maior parte dos grupos indígenas já estava extinta ou de que as mudanças culturais pelas quais passaram eram tão graves que no fundo não restava mais muito de sua cultura “original”. Também em um livro sobre a arquiduquesa Leopoldina e as relações entre Áustria e Brasil publicado em 2011, no qual a expedição austríaca ao Brasil é caracterizada como a maior da história das Américas, pode ser lido: “Em Viena estão armazenados mais de 2000 objetos de culturas indígenas entrementes já desaparecidas há muito tempo” (Hölzl 2011: 51). A noção de que os índios sejam uma “raça” extinta, ou pelo menos fadada ao desaparecimento, é amplamente difundida, e tem suas raízes no trauma da conquista: o extermínio da população indígena de ambas as Américas foi semelhante a uma extermínio em massa: guerra, escravização e doenças trazidas da Europa levaram a enormes perdas, que só podem ser expressadas em cifras com muita dificuldade, já que números populacionais pré-coloniais mal podem ser reconstruídos devido à falta de fontes escritas que os tenham registrado. Estimativas se fundamentam em fontes precoces da era colonial, condições ecológicas, geografia populacional e explorações arqueológicas. Para o Brasil, os resultados dessas pesquisas oscilam entre dois e cinco milhões de habitantes antes da chegada dos europeus (Hemming 1987: 487ff.). Hoje em dia seu número é indicado como sendo de 350.000 habitantes. Também é difícil dizer quantos foram os grupos vitimados em sua totalidade pela conquista. Os primeiros cronistas tiveram contato sobretudo com a população da costa e com os grupos localizados junto aos principais rios. A exploração do interior iniciou em uma época em que as primeiras epidemias já haviam feito seus estragos. Através de contatos intertribais e redes de comércio, também grupos que não tiveram contato direto com a sociedade colonial foram atingidos pelas epidemias. Em razão ainda de epidemias que haviam atingido grupos recentemente contatados no século XX, sabe-se que até 80% de sua população total tombou vítima delas. Uma experiência traumática como essa por certo significou um abalo para todas essas comunidades em seu conjunto: a estrutura social entrou em colapso, o abastecimento com víveres não pôde mais ser garantido. Os mortos não puderam mais ser enterrados. O abalo se manifestou também no aspecto religioso, uma vez que os especialistas religiosos e curandeiros se mostraram impotentes diante da situação. Alguns grupos indígenas não mais tiveram condições de se reconstruir como coImagem 132: Adorno de penas para cabeça. Apiaka, rio Arinos, Brasil. Em torno de 1830. Penas, fibra vegetal, H. 67 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.185

munidade e se desintegraram em indivíduos que foram integrados por outros grupos, pelas missões e pelas estruturas citadinas ou rurais que estavam surgindo. O escritor e jornalista canadense Terry Glavin caracteriza a situação de maneira precisa como “a dissolução do mundo vivo” (Glavin 2008: 9). No Brasil, foram atingidos por esse processo sobretudo os grupos que viviam na região da costa e às margens dos grandes rios, aqueles que foram os primeiros a se confrontar com a vanguarda de conquista e de colonização. Mas também no interior, grupos indígenas bem podem ter sido aniquilados antes mesmo de os europeus terem podido tomar conhecimento deles. O conceito “extinto” é usado sobretudo em relação à extinção das espécies na flora e na fauna. Nesse âmbito, são tidas como extintas espécies que não foram mais vistas por um longo espaço de tempo em seu habitat natural e depois disso também globalmente. Diferentemente do que acontece na extinção das espécies, na qual a espécie acaba com a morte do último indivíduo, a morte de uma cultura não está vinculada à vida de seus representantes. O exemplo dos Pama mostra como é difícil determinar a época em que uma cultura de fato se extingue.

Os Pama Os Pama habitavam, no princípio do século XIX, a região junto ao rio Madeira. Em um fragmento de texto da década de 1820 Johann Natterer informa: “Junto ao Salto Theotino havia uma missão dos índios Pama que queriam matar o padre responsável por eles. Essa nação não existe mais, foi extinta. Diz-se que por ter sido punida pelo fato de querer matar seu padre.” A extinção dos Pama aparece na tradição oral da população local como uma espécie de veredicto divino, ainda que permaneça em aberto por que caminho se deu a “execução”. O caso lembra muito antes o retrato de uma epidemia do que o de um ataque violento. A estes, aliás, os Pama já haviam sido submetidos em sua região de colonização anterior, junto ao rio Madeira: os Caripuna os pressionaram de tal modo com seus ataques que eles tiveram de se mudar para a região do rio Purus (Martius 1867: 414). Uma vez que a missão mencionada por Natterer ficava junto ao rio Madeira, no entanto, é fácil imaginar que alguns dos Pama buscaram proteção por lá e em seguida sucumbiram, vítimas das doenças dos brancos. O que aconteceu com os Pama estabelecidos junto ao rio Purus não se sabe ao certo, mas seu rastro não se perde totalmente junto ao Salto Theotino: Natterer ainda informa que partes restantes desse grupo se estabeleceram junto ao rio Machado, e que a maior parte dos habitantes de Borba, no curso inferior do rio Madeira, era formada por

105

“descendentes” dos Pama. Uma vez que eles no entanto continuavam falando apenas a língua franca ou o português, e Natterer ao que parece não mais pôde observar uma cultura distintiva, parece que já à época apenas “eram tidos” por Pama devido a sua origem, mas não mais por sua cultura. Nesse contexto fica claro que a cultura de um grupo não é idêntica a seus representantes, e que o desaparecimento da primeira não significa que os seres humanos não possam continuar se identificando como Pama e inclusive anunciá-lo diante do viajante estrangeiro. A perda linguística, contudo, não pode ser tratada com desleixo, e deve ter contribuído para o fato de os Pama não mais serem mencionados em quaisquer fontes desde o final do século XIX. A perda da língua própria também sempre acarreta perdas no âmbito cultural. Pois línguas não são apenas um meio para a comunicação, mas também portadoras de cosmologias inteiras, e nelas está “inscrito” o saber específico de um grupo acerca do ambiente e de seu uso. A perda de um língua traz consigo a perda da variedade cultural, do saber humano, das relações sociais, das identidades e das ideias (Perley 2012: 131). Paradoxalmente, a escola é uma das maiores ameaças para as línguas indígenas. Nos lugares em que as aulas são dadas na língua dominante no país, crianças que conhecem primeiro sua língua materna indígena vivenciam uma crise existencial quando entram na escola: tudo que sabem e aprenderam até então se torna insignificante (idem). E o que passam a aprender muitas vezes não tem importância nenhuma para sua vida cotidiana nas comunidades. A autoconfiança é abalada, e às vezes a adequação à cultura dominante parece uma saída para esse dilema, uma vez que além disso promete uma aceitação maior e possibilidades profissionais também fora do âmbito da própria comunidade. No Brasil, as aulas – quando isso é possível – são dadas nas comunidades indígenas e em sua própria língua, sobretudo nos primeiros anos escolares. A perda da língua própria é, no entanto, apenas um dos aspectos que tem papel importante no processo de extinção de uma cultura. Depende dos fundamentos sobre os quais estabelecemos a autonomia de uma cultura ver quais são os outros aspectos que têm papel relevante no referido processo. Elementos culturais distinguíveis, uma estrutura social autônoma e a questão acerca da atribuição dada a si próprios e da atribuição por parte dos outros também são importantes nisso. Quando se considera apenas determinados elementos, grupos também já podem ser declarados extintos mesmo no passado, conforme fica claro através dos exemplos que seguem.

Os Taruma: identidade multiétnica Os Taruma hoje em dia podem ser tidos como extintos, caso na definição de uma cultura se situe o foco sobre uma estrutura social autônoma. Os Taruma viviam nas proximidades da foz do rio Negro, no Amazonas, no século XVII, e de lá migraram para a região em que hoje se localiza a fronteira do Brasil com as Guianas (vide Kästner no presente volume). No princípio do século XX, essa região próxima às fontes do Essequibo foi assolada por epidemias de

106

mesmo no interior da sociedade waiwai, é mostrado pelo exemplo dos raladores de mandioca: na época de Johann Natterer, os raladores de mandioca dos Taruma eram um cobiçado bem de comércio. Natterer adquiriu um de seus exemplares com os Makuxi (Imagem 133). Hoje em dia, o comércio de raladores de mandioca é dominado pelos Waiwai, e na conformação destes pode ser encontrado o mesmo desenho que pode ser visto no exemplar da Coleção Natterer, conforme pode ser constatado em um exemplar documentado em uma aldeia dos Trio, no Suriname (Imagem 134). Mesmo que os Taruma não tenham podido manter sua autonomia na condição de grupo social, ainda assim encontraram seu lugar nas aldeias multiétnicas dos Waiwai e permanecem visíveis na cultura material.

Apiaká: Fênix ressurgida das cinzas

Imagem 133: Raladores de mandioca dos Taruma e Waiwai, Guaianas, Região da fronteira Brasil/Guiana. Em torno de 2009. Madeira, resina, pedras, corante, C. máx. 60 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.116; Propriedade privada

gripe e varíola, e apenas poucos entre os Taruma conseguiram sobreviver. Uma reprodução independente, e com isso uma reconstituição da comunidade, não foram mais possíveis. Os Taruma se casaram sobretudo com os Waiwai de uma aldeia vizinha (Halbmayer 2010: 225). Essa integração de poucas pessoas em outro grupo cultural muitas vezes é caracterizada como “desintegração”, e vinculada à noção de que as pessoas integradas se adequam totalmente ao novo grupo, e com o tempo perdem sua própria identidade cultural. Isso no entanto não é correto em relação aos Taruma, uma vez que os Waiwai constituem uma sociedade cuja continuidade cultural repousa sobre o fato de integrarem culturalmente a outros em sua comunidade. Esse “processo de fusão e integração étnica” é característico da Guiana Central (idem: 226). É difícil avaliar em que medida esta estratégia é uma reação à situação colonial e ao extermínio populacional vinculado a ela também entre os Waiwai, uma vez que as fontes primeiras apenas referem poucos detalhes acerca dos Waiwai, e imbricações multiétnicas sem conhecimentos mais profundos acerca de um grupo apenas podem ser reconhecidas e compreendidas com grandes dificuldades. Independentemente disso, contudo, essa estratégia é um elemento central da reprodução cultural para os Waiwai. Eles promovem processos de integração de maneira ativa, nos quais não se trata apenas da integração de pessoas, mas sim também de aspectos culturais do outro (ibidem: 230). O fato de ter sido permitido aos Taruma continuar praticando aspectos de sua cultura

A falta de uma estrutura social autônoma e a adaptação de sua cultura à população local provavelmente tenha levado o etnólogo Curt Nimuendajú a declarar, na década de 1940, que os Apiaká – um grupo de língua Tupi-Guarani, estabelecido na região entre os rios Madeira e Tapajós – não mais existiam (Nimuendajú 1948e: 313). Meramente algun indivíduos do grupo ainda podiam ser encontrados nas missões e na cidade de Collectoria, no Estado do Mato Grosso (Nimuendaju 1948e: 313). No site “Povos Indígenas No Brasil” do Instituto Sócio-Ambiental, os Apiaká continuam sendo enumerados. Em 2001, o número de sua população é indicado como sendo de 192 pessoas, e em um artigo atualizado de 2009 eles já são estimados em 1.000 pessoas. Como pode ser explicada essa nova aparição dos Apiaká? A história dos Apiaká pode ser lida em Nimuendajú como uma enumeração de pessoas, lugares, fluxos de rios e ondas migratórias. Os números da população diminuíram continuamente desde meados do século XIX, o que deve ser creditado, entre outros, ao fato de os Apiaká estarem enquadrados em uma matriz cultural marcada pela vingança de morte, pela caça de cabeças e pelo canibalismo ritual (vide, acerca disso, o texto de Kapfhammer no presente volume). Enquanto os confrontos guerreiros com seus vizinhos se aguçavam, os contatos dos Apiaká com os neobrasileiros eram preponderantemente de natureza pacífica.1 Numerosos viajantes e expedições usaram os Apiaká como guias e remadores, e trocaram com eles mercadorias por víveres. Com esse enquadramento na economia local, a dependência dos Apiaká de mercadorias industriais aumentou e principiou uma adaptação ao estilo de vida não-indígena por parte deles. Na virada do século XIX para o século XX, principiou também o boom da borracha na região, e os Apiaká foram explorados no trabalho de coleta do caucho. Epidemias e atos de violência por parte dos barões da borracha continuaram dizimando a população indígena, e os sobreviventes, enquanto fugiam ou buscavam proteção, acabaram se espalhando em uma região bem ampla. Casamentos frequentes com neobrasi1

Na medida em que não for mencionada outrafonte, eu me refiro, no que se segue, ao textoacerca dos Apiaká na Enciclopédia Online do Instituto Sócio-Ambiental.

Imagem 134: Ralador de mandioca dos Waiwai em uma aldeia dos Trio, no Suriname. 2008. Foto: Jimmy Mans

leiros e parceiros de outros grupos indígenas como os Munduruku e os Kaiabi, também contribuíram para que os Apiaká abrissem mão de sua própria língua para assumir a língua de seus parceiros. Os Apiaká veem o abandono de seu modo de vida tradicional como uma consequência de sua inclusão violenta no boom da borracha, mas ainda assim mantiveram uma identidade própria tanto na atribuição concedida a si mesmos quanto na atribuição que lhes é dada por parte de estranhos. Desde a década de 1970, está sucedendo uma reorganização social e política. Embora ainda continuem existindo apenas alguns pessoas de mais idade avançada que falam isoladamente o Apiacá, e esforços no sentido de revitalizar a língua tenham fracassado até agora, o português é usado para estabelecer os limites na vida em comum com outros grupos indígenas. O que constrói identidade para os Apiaká é menos a língua e a cultura do que a interpretação de sua história e de sua capacidade de conviver em uma comunidade marcada pela reci-

107

procidade. Também não se deve permitir que a figuração externa de si mesmos e de seu modo de vida, que muitas vezes correspondem ao da população brasileira local, sejam motivo de engano: a percepção do mundo que os envolve continua ancorada em uma imagem de mundo animista. O exemplo dos Apiaká mostra o quão estreitamente a noção acerca da extinção de uma cultura pode estar vinculada à noção de tradição: assim o modo de vida de um grupo documentado em determinada época parece original, e transformações acabam distanciando cada vez mais dessa origem, até que enfim ela não é mais reconhecida como autêntica para quem a vê de fora. A cultura é classificada como extinta, ainda que seus portadores, os homens, continuem vivos. Esse modo de ver compreende a tradição como estática e concede à autopercepção dos homens uma importância apenas risível. No século XX, a etnologia foi se libertando aos poucos desse conceito estático de tradição e de cultura. A mudança é uma qualidade inerente a todas as culturas, que inclusive lhes possibilita se adequar e dar conta das condições de vida que se transformam ou também das influências vindas de fora.

O desaparecimento dos Kayapó meridionais e os Panará invisíveis Um sinônimo muito apreciado de “extinto” é “desaparecido”. O interessante é que o último pode conter a noção de uma existência em algum outro lugar, desconhecido: o desaparecido perde sua visibilidade e o contato é interrompido. Nesse sentido, os Kayapó meridionais, ou Kayapó do sul, haviam sido extintos. Esse grupo de língua Gê era bastante numeroso e largamente espraiado no assim chamado Triângulo Mineiro no século XVIII. A região habitada por eles se estendia do norte do Estado de São Paulo ao sul de Goiás, leste do Mato Grosso e até o sudeste do Mato Grosso do Sul. Eles eram muito temidos tanto por seus vizinhos quanto pelos colonizadores brancos, uma vez que se dizia que jamais faziam prisioneiros em combate.2 Essa fama fez com que, com a exploração das jazidas minerais em seu território, os portugueses enviassem numerosas expedições punitivas contra os Kayapó meridionais. Até 8.000 indivíduos desse grupo indígena teriam sido aprisionados e escravizados na empreitada. Quando, em 1772, também foi descoberto ouro, os conflitos se aguçaram ainda mais: todos os homens que se defendiam com armas foram mortos. Apenas o final da corrida do ouro, ainda na década de 1770, é que trouxe alguma tranquilidade à região, e as relações com os Kayapó acabaram mudando de foco quando Luis da Cunha Menezes assumiu o posto de governador, em 1778. Ele voltou a adotar métodos de eficácia comprovada para, com a ajuda de generosos presentes, fazer com que os índios deixassem a hostilidade de lado e em seguida levá-los a se estabelecer em uma aldeia (Hemming 1995: 68s.). Em 1780, 36 Kayapós chegaram à cidade de Goiás e foram estabelecidos na Aldeia São José de Mossamedes. Ali eles foram 2

108

Na medida em que não for mencionada outra fonte, eu me refiro, no que se segue, ao texto acerca dos Panará na Enciclopédia Online do Instituto SócioAmbiental.

visitados por Johann Emanuel Pohl em março de 1820.3 Ao contrário do que aconteceu com Hemming, que descreve a localização da aldeia como bem escolhida em razão de fontes contemporâneas, “[…] well watered and surrounded by forests and plains, at the Foot of the Dourada hills some thirty-five kilometres south of Goiás” (Hemming 1995: 69), Pohl critica a mesma localização da aldeia, uma vez que não possibilita a caça e a pesca tão importante para os Kayapó (Pohl 1832: 400). Pohl chega a falar de uma precariedade que “muitas vezes nem sequer permite que eles satisfaçam sua fome […]” (Pohl 1832: 399). A discrepância entre as descrições resulta provavelmente das mudanças pelas quais passou o espaço vital da aldeia em 50 anos de uso, e é um exemplo impressionante dos problemas vinculados ao abandono de um modo de vida seminômade. Pohl está entre os poucos viajantes que visitaram os Kayapó meridionais e fizeram relatos acerca de seu modo de vida. Ele descreve as corridas de troncos típicas também de outros grupos gês e um ritual vinculado a elas, o “quebrar-cabeça”. À época da visita de Pohl, a população dos Kayapó meridionais já havia diminuído bastante. Sobre seu destino posterior pouco se sabe. Em 1910, ainda foram encontrados de 30 a 40 sobreviventes às margens do rio Grande. Depois disso, seu rastro se perde, e eles são tidos como extintos desde então (Lowie 1946c: 519). Na década de 1960, aumentaram os relatos de que a noroeste da região ocupada pelos Kayapó meridionais, nas profundezas da floresta do norte do Mato Grosso, vivia um grupo de índios que foram chamados de índios gigantes, uma vez que arcos e clavas encontrados, em razão de seu comprimento, podiam ser manejados apenas por índios de grande estatura. Em 1967, Cláudio Villas-Bôas, uma das mais importantes ativistas em favor dos direitos dos índios no Brasil, sobrevoou a região e descobriu sua aldeia. Os índios dispararam flechas contra o avião, em seguida abandonaram a aldeia em que estavam estabelecidos e fugiram ainda mais profundamente floresta adentro. A construção de uma estrada através da região que ocupavam, no entanto, tornou inevitável um contato por parte das instituições brasileiras, uma vez que se pretendia evitar conflitos com os operários da construção e a transmissão de doenças. Em 1973, Villas-Bôas conseguiu, junto com seus irmãos, estabelecer enfim um contato. Provavelmente os índios nessa época já se mostrassem prontos a aceitá-lo, uma vez que os contatos esporádicos com os operários da estrada já haviam levado às primeiras epidemias, que acabaram vitimando vários índios. As perdas foram tão grandes que testemunhas locais dão conta de que os sobreviventes estavam tão fracos que não se encontravam mais em condições sequer de sepultar seus mortos. Ficou provado que os índios – dos quais apenas alguns poucos tinham grande estatura e chamavam a si mesmos de Panará – eram descendentes dos Kayapó meridionais. O que ajudou na identificação foi, entre outras coisas, uma lista de palavras registrada por 3

A Coleção de Pohl relativa aos Kayapó meridionais abrange 31 objetos, que se encontram especialmente bem documentados, uma vez que ele os descreve em seu relato de viagem, explicando sua utilização. Nesse primeiro contato com um grupo indígena, Pohl se mostrou, portanto, visivelmente esforçado no sentido de comprovar, na medida do possível, com objetos colecionados, tudo aquilo que ficou sabendo sobre a cultura dos índios.

Pohl (Pohl 1832: 447s.). A tradição oral dos Panará confirma que eles migraram das savanas orientais ao território que hoje ocupam, fugindo da perseguição de brancos especialmente violentos, que haviam matado muitos de seus antepassados. O trauma vivenciado ficou inscrito profundamente na recordação dos Panará, e acabou fazendo com que se retirassem a um isolamento nas florestas que eles mesmos escolheram, até que as doenças dos brancos os alcançaram mais uma vez. Em 1975, os sobreviventes foram transferidos ao Parque Nacional do Xingu criado pelos irmãos Villas-Bôas, a primeira área de proteção para índios no Brasil. Para os Panará, essa tentativa de garantir sua sobrevivência, no entanto, não passou de um desenraizamento: uma nova experiência traumática. Durante 20 anos, eles lutaram para poder voltar à região que ocupavam, junto ao rio Peixoto de Azevedo: em 1996, este sonho se tornou realidade com a fundação de uma Terra Indígena. 250 pessoas voltaram para lá, encarando inclusive possíveis conflitos com a população local. O exemplo dos Panará não representa um destino isolado. Nos últimos 20 anos, houve mais de 50 constatações visuais da existência de grupos indígenas que até o momento não puderam ser identificados: grupos que em razão de experiências traumáticas até agora tentaram evitar contatos com os brancos, mas também com outros grupos indígenas. Supõe-se que mais de 70 grupos semelhantes vivam ainda hoje no Brasil, sobretudo na região da fronteira com o Peru. A política da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) é bem clara desde 1988: o contato sucede apenas quando há um perigo iminente. Este perigo parte sobretudo de madeireiros ilegais e traficantes de drogas. A demarcação das áreas é complexa e demanda muito tempo, uma vez que o número de habitantes, e com isso o tamanho da área a ser estabelecida mais tarde, apenas podem ser determinados através de observações de longo prazo feitas do alto. Até 1988, grupos não contatados eram tidos como não existentes, e com isso não tinham qualquer direito a uma Terra Indígena. Hoje em dia, a seção Índios Isolados leva documentos filmados e fotográficos à FUNAI, que comprovam a existência dos grupos e são o fundamento para a instituição das Terras Indígenas. A existência dos Índios Isolados permite a noção de que também outros grupos, que hoje em dia são tidos como extintos, poderiam ter sobrevivido em regiões remotas das florestas. Mas também para grupos indígenas, que vivem em contato com os neobrasileiros há décadas ou até há séculos, os Índios isolados significam uma esperança: talvez também alguns deles tenham sobrevivido retirados e preservado nossa cultura. Obadias Batista Garcia e Ranulfo de Oliveira, que trabalharam conosco em Viena no âmbito dos preparativos para a exposição “Além do Brasil” (vide o texto a respeito no presente volume), contam de um grupo isolado dos Sateré-Mawé que evita contato inclusive com os eus “parentes”. Até agora, sua existência ainda não foi comprovada junto às instituições brasileiras (José Carlos Meirelles, comunicado pessoal). Independentemente disso, porém, se torna claro, a partir dessa constatação, que mesmo o fato de apenas se imaginar esse grupo como fonte de

saber tradicional para os Sateré-Mawé significa uma inspiração no sentido de manter sua própria cultura e sua própria identidade. Também os Apiaká indicam que já no final do século XIX um grupo deles, em sinal de resistência ao estilo de vida não-indígiena, se retirou para a região de Pontal. Os exemplos dos Apiaká e dos Panará no entanto não devem criar a ilusão de que grupos indígenas – também no Brasil – não continuem sendo aniquilados fisicamente até hoje através de ataques violentos. E nessa situação estão envolvidos grupos sociais de diferentes graus de poder e autonomia (Sodikoff 2012: 10). Em Rondônia, foi cometido um massacre contra um grupo de Índios isolados por parte de madeireiros, ao qual apenas um homem conseguiu fugir. Este homem se recusa a qualquer contato, até mesmo com a FUNAI, e vive sozinho na Terra Indígena instituída para ele (vide, acerca disso, Reel 2011). Com ele morrerá toda uma cultura única, que jamais haveremos de conhecer. A perda através do genocídio não pode mais ser remediada. A perda de soberania e de autonomia linguística, cultural e social são aspectos da extinção de culturas que elucidam, em sua participação diferenciada, a complexidade desse processo, e transformam a definição de uma cultura como extinta também em uma questão de perspectiva e de ideologia. Nisso o conceito se diferencia, em sua aplicação relativa às culturas humanas, de sua aplicação à morte das espécies. A questão se torna ainda mais complexa quando se trata de membros de grupos indígenas que continuam (sobre)vivendo na sociedade híbrida neobrasileira, e em muitos casos mantiveram uma identidade indígena, que no entanto não mais é vinculada a um grupo específico. De modo que se faz necessário questionar se o conceito “extinto” é adequado para ser aplicado a culturas, pois também na presente tentativa de aproximação nem de longe puderam ser discutidos todos os aspectos pertinentes. Tanto que a essa altura, por exemplo, não poderão ser consideradas as ligações existentes entre a morte de espécies e o desaparecimento definitivo de culturas. O filósofo Franz Wusketitis, porém, acerta em cheio quando diz: “O drama do presente é uma perda cada vez maior da variedade – da variedade de espécies, povos e línguas. […] Trata-se de um processo irreversível, irremediável, a perda de algo que é único. Cada espécie de organismo – mesmo a mais “discreta” – é única, toda cultura e toda língua são únicas. Sua perda não pode ser “compensada” por nada. A evolução – no sentido mais amplo de desenvolvimento, transformação – só é possível sobre o fundamento da variedade. Tanto no âmbito dos seres vivos quando no âmbito das culturas, a evolução é um processo da diferenciação, uma ação que cria variedade.” (Wusketitis 2003: 17s.). Mas a manutenção dessa variedade não deveria ser buscada apenas porque se teme que poderiam ser perdidos saberes e recursos que por exemplo poderiam servir de base para o desenvolvimento de algum medicamento contra doenças fatais. A preservação da variedade não deveria ser buscada por motivos “egoístas”, mas sim por respeito aos seres humanos e ao ambiente em que vivem.

109

Seção Catalográfica

Pama, Apiaká, Kayapó meridionais, Panará, Bororo do Cabaçal, população urbana junto ao rio Negro e na província peruana de Maynas

Lâmina de machado de pedra. Pama, rio Madeira, Amazônia Central, Brasil. Em torno de 1830. Pedra, C. 18 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 483 Natterer encontrou a presente lâmina em Borba, junto ao rio Madeira, onde permaneceu por algum tempo. Ali viviam “descendentes” dos Pama, que – na medida em que Natterer pôde observar – falavam apenas a língua franca e o português. (CA)

Cesto. Aroaqui, noroeste da Amazônia, Brasil. Em torno de 1830. Tiras de folha de palmeira, H. 19,5 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.153 Acerca dos Aroaqui, que viviam a leste do baixo rio Negro, pouca coisa ficou conhecida. Existe a suposição de que pertenciam à família linguística aruak.

Sua habilidade artística na confecção de cestos poderia servir de sustentação a essa tese. Em determinada fonte, o nome Aroaqui também é usado como designação histórica para os Taruma. Se isso for correto, eles hoje poderiam ser encontrados entre os Waiwai. O grafismo do cesto representa, provavelmente, o desenho da pele de uma cobra. (CA)

Clava trompete de guerra, atadura de joelho para dança e cesto de transporte, Kayapó meridionais, região da nascente do rio Araguaia, Brasil. Em torno de 1820. Madeira, chifre, bambu, folha de palmeira, tiras de folha de palmeira, cálamos de penas, garras de animal, barbante de ráfia, C. máx. 97,5 cm. Col. Pohl, Nºs de Inv. 651, 652, 657, 658 Adorno de cabeça em penas. Apiaká, rio Arinos, Brasil. Em torno de 1830. Penas, L. 59 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.186 Originalmente Johann Natterer pretendia se juntar à expedição do cônsul-geral russo Georg Heinrich von Langsdorff, que também viajava pela região em que habitavam os Apiaká. Uma vez que esse plano jamais foi levado a cabo, porém, é de se supor que Natterer tenha conseguido de outra fonte esse adorno de cabeça feito de penas. O pintor francês Hercules Florence, que viajava com Langsdorff, documentou de maneira impressionante os trabalhos plumários dos Apiaká, antes de estes serem deixados de lado. A confecção de adornos plumários foi interrompida em alguns grupos, uma vez que os rituais e cerimônias vinculados a eles foram abandonados, sobretudo devido à influência das missões. (CA)

110

Os Kayapó meridionais foram o primeiro grupo indígena com o qual Johann Emanuel Pohl entrou em contato. Ele juntou 31 objetos entre eles e em seu relato de viagem descreveu detalhadamente sua utilização e o modo como os adquiriu. No relato há também uma caracterização impressionante das precárias condições de vida na aldeia, em que elas são comparadas com o “estado selvagem”, o modo de vida tradicional dos índios na floresta. Conforme o relato de Pohl, tornou-se cada vez mais difícil convencer os Kayapó a aceitar a vida na aldeia; muitos deles teriam voltado a fugir de dentro dela depois de pouco tempo. Isso fez com que doenças se espalhassem também em regiões mais distantes, e com certeza contribuiu para que alguns grupos optassem por evitar totalmente qualquer contato como estratégia de sobrevivência. (CA)

111

Adorno de cabeça em penas, adorno de pescoço e labrete. Arara, rio Marmelos, Brasil. Em torno de 1830. Penas, lã vegetal, dentes de macaco, contas de vidro, lã vegetal, resina, C. máx. 42 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.087, 1.089, 1.098–1.100

Ventosa primitiva. Kayapó meridionais, região da nascente do rio Araguaia, Brasil. Em torno de 1820. Madeira, barbante vegetal, ripa de palmeira, tiras de folha de palmeira, quartzo, C. máx. 31,5 cm. Col. Pohl, Nºs de Inv. 661, 662 Na condição de médico, Johann Emanuel Pohl se interessava também pela medicina indígena, conforme é provado por essa rara ventosa primitiva: “Quando têm dor de cabeça, eles esfolam a testa usando um pequeno arco, a partir do qual uma seta de oito polegadas de comprimento é disparada várias vezes contra a parte dolorida. A seta tem na ponta um estilhaço de quartzo com um avanço em forma de botão, que evita que a seta possa penetrar mais profundamente do que o necessário. Com o mesmo instrumento, que é chamado de kutuschná, eles também sabem fazer sangrias muito bem e corretamente.” (JEP) Adorno de cabeça em penas. Panará, Brasil, antes de 1975. Penas, fibra de palmeira, C. 86 cm. Col. Duschl, Nº de Inv. 189.313 O presente adorno de cabeça foi adquirido na década de 1970, pouco após o novo contato com os Panará. Ele não corresponde mais aos tipos utilizados hoje em dia, uma vez que os Panará adotaram outras formas, por exemplo dos Kayapó. (CA)

112

Os Arara extintos já no final do século XIX, que se autodenominavam Kabanae, eram imigrantes vindos do nordeste da Amazônia. Esta tribo pertencente à família linguística caribe vivia junto aos afluentes orientais do rio Madeira, o rio Machado, o rio dos Marmelos (rio Marmelos) e o rio Aripuanã. Labretes são um bom exemplo de como também elementos culturais isolados podem acabar desaparecendo. Seu uso foi abandonado por vários grupos indígenas sob a influência das missões. Hoje em dia a (nova) utilização de labretes nos lábios e no nariz e o ato de arrancar as sobrancelhas voltaram a ser uma vigorosa e visível profissão de fé na identidade indígena. (CA)

Três adornos de peito e um adorno de pescoço. Bororo do Cabaçal, rio Cabaçal, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Dentes de veado (?), concha ou pedra, fibra vegetal, C. máx. 40 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 913, 914, 918 A pequena coleção de objetos dos Bororo do Cabaçal angariada por Natterer é o único acervo documentado de produtos desse grupo indígena, que perdeu sua identidade social ainda no século XIX. A coleção é oriunda de butim de guerra ou de mulheres capturadas em combate que viviam entre os neobrasileiros e contém, além de arcos e flechas, sobretudo adornos corporais. Comparadas com os trabalhos dos Bororo da Campanha, muitas das peças são de feitio mais simples e rude do que as de seus parentes ao norte. Os dois barbantes com pingente de concha e uma pedra triangular eram, segundo Natterer, “pingentes de pescoço para crianças, ao que parece”. (CF)

113

Louças de cerâmica. Barcelos, Rio Negro, noroeste da Amazônia, Brasil. Em torno de 1831. Cerâmica, pintada, H. máx. 22 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.879, 2.342, 2.345, 2.350–2.352, 2.356 Barcelos era, à época de Natterer, uma florescente cidade comercial, na qual viviam numerosos índios, que haviam se adaptado em boa parte ao estilo de vida da população urbana e por lá inclusive ocupavam postos administrativos. As louças de cerâmica ainda apresentam um estilo tradicional, conhecido também de escavações, e que se distingue pelas caneluras, que no entanto foi abandonado pouco tempo depois. (CA)

Camisa de criança. Baré. Marabitanas, rio Negro, noroeste da Amazônia. Em torno de 1831. Lã vegetal, L. 67 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.165

Adornos de pescoço. Bororo do Cabaçal, rio Cabaçal, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1825. Sementes de plantas, fibra vegetal, C. 40 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 920

Cartucho de pavios. Manaós. Rio Negro, noroeste da Amazônia, Brasil. Em torno de 1831. Madeira (pintada), pele de cobra, H. 16,5 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.160

Segundo as anotações de Johann Natterer, trata-se, em ambas as peças, de “correntes de pescoço usadas por meninas de pouca idade, feitas das sementes de uma espécie de gramínea que cresce em lodaçais”. (CF)

O cartucho de pavios lembra, em sua forma, as aljavas para setas de zarabatana. A decoração reflete influências europeias, no entanto. Os Manaó já estavam quase completamente integrados à população urbana junto ao Rio Negro à época de Natterer, mas ao que parece ainda existiam outros grupos que viviam junto aos rios da nascente. Hoje em dia os manaós, pelo que se sabe, desapareceram definitivamente do mapa do Brasil. (CA)

114

Também a camisa de criança da presente ilustração mostra que as mulheres dos Baré usavam técnicas europeias, ainda que adoções artísticas como essa não permitam conclusões acerca do grau em que os Baré se adaptaram, em sua cultura, à população urbana. Hoje em dia eles formam o cerne da população indígena aculturada em vários lugarejos do médio e do baixo rio Negro. (CA)

Colcha. Maynas, Peru. Em torno de 1830. Lã vegetal, pintada, H. 225 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.250 Johann Natterer sempre aproveitava as oportunidades que lhe ocorriam para adquirir também objetos dos países vizinhos ao Brasil. A colcha da província peruana de Maynas apresenta cenas de touradas, e aponta assim para a influência espanhola no Peru. Os grupos indígenas da província de Maynas foram missionados já na fase precoce da época colonial, e à época de Natterer já formavam uma população mista que havia perdido sua identidade social. (CA)

115

Claudia Augustat, Obadias Batista Garcia, Wolfgang Kapfhammer e Ranulfo de Oliveira

Uma visita à Casa do Imperador: sobre o trabalho de cooperação entre museus e source communities Em 2003, com a publicação de Museums and Source Communities, surgiu a primeira obra panorâmica sobre uma nova tendência de pesquisa em museus etnográficos: a cooperação com descendentes dos grupos indígenas dos quais são oriundos os objetos das coleções (Peers e Brown 2003). Esse princípio na verdade não chega a ser uma invenção do século XXI: no começo do século XX, Franz Boas, o fundador da antropologia cultural americana, já buscava a colaboração de conselheiros indígenas ao trabalhar e apresentar acervos colecionados (Fienup-Riordan 2010: 1). Isso não chegou a mudar muita coisa na teia do poder estendida entre representantes de source communities e curadores de museu. Ainda em 1989, o Museum of the American Indian de Nova York negou a um Yup`ik o acesso às coleções de seus antepassados, com a justificativa de que faltavam as referências científicas (idem). Surpreendentemente, o congresso dos Estados Unidos decidiu, ainda no mesmo ano, levantar um novo prédio para o museu em Washington, que foi inaugurado em 2004 com o nome de National Museum of the American Indian. Arquitetura e exposições foram desenvolvidas e colocadas em prática em estreita cooperação com representantes de source communities, e representam um testemunho impressionante no que diz respeito à mudança de orientação ocorrida nas relações entre museus e source communities.1 Museus etnológicos deixam de ser vistos como arquivos da cultura material de culturas desaparecidas ou ameaçadas de extinção, mas funcionam antes como administradores de uma herança cultural conjunta, sempre partindo do pressuposto de que tanto os colaboradores dos museus quanto os representantes das source communities dispõem de um conhecimento específico acerca do assunto. Esse conhecimento foi adquirido em contextos diferentes, mas no trabalho de cooperação tanto o conhecimento de uns quanto o de outros são igualmente valorizados. Não pode se tratar, no caso, da pergunta sobre quem e se alguém tem razão, mas sim do fato de que as diferentes perspectivas ao serem contempladas em conjunto levam a uma compreensão mais profunda das coisas. A cooperação com source communities hoje em dia já se estabeleceu em vários museus etnológicos, e ainda assim está apenas enga1

Exemplos da cooperação entre source communities e museus indígenas podem ser encontrados em Van Bussel e Steinmann 1999.

Imagem 148: Cécile Bründlmeyer, Obadias Batista Garcia, Ranulfo de Oliveira, Wolfgang Kapfhammer e Claudia Augustat conversando sobre os utensílios para inalação de drogas Coleção Natterer. Viena, março de 2012. Foto: Claudia Augustat

Imagem 149: Makuxi diante da exposição fotográfica de objetos de sua cultura provenientes de Viena. Rupununi-Sayane, Guiana. 2005. Foto: Claudia Augustat

tinhando.2 Na Coleção América do Sul do Museum für Völkerkunde de Viena, Claudia Augustat deu os primeiros passos nessa direção em 2005: em uma viagem de coleta às Guianas, ela visitou várias comunidades dos Makuxi; na bagagem, levou uma documentação fotográfica do acervo Macuxi do século XIX, que apresentou nas comunidades visitadas e discutiu com os Makuxi interessados (Imagem 149). Os Makuxi vivem nas regiões de campos na fronteira do Brasil com a Guiana. Com cerca de 9.500 integrantes do lado guianês e quase 30.000 do lado brasileiro, os Makuxi estão entre os maiores grupos indígenas das terras baixas sul-americanas. Sobretudo desde o século XVIII sua cultura foi submetida a influências maciças da sociedade colonial e da sociedade nacional posterior, que acabaram culminando no abandono de várias práticas culturais por parte deles. Isso e a população que diminuía devido às epidemias, levaram a uma dura crise em meados da década de 1940, que atingiu tam2

Um bom panorama acerca da complexidade da cooperação com source communities é oferecido por Van Broekhoven, Buijs e Hovens 2010.

117

bém suas relações com os recursos naturais: para garantir sua sobrevivência física, os Makuxi intervieram de um modo destruidor, inusitado até então, no ecossistema que os alimentava. Estrutura social, língua e festas continuaram a fundamentar sua identidade, no entanto. Um novo crescimento da população através de programas de saúde organizados pelo Estado levou também a um fortalecimento do papel de lideranças tradicionais: os índios voltaram a ganhar influência e exercer controle social, o que resultou em efeitos positivos no uso dos recursos naturais (Forte 1996: 18). Hoje em dia o conhecimento em torno do uso duradouro de seu ambiente é, para os Makuxi da Guiana, um dos mais importantes aspectos formadores de identidade de sua cultura, algo que os une com sua história e ante cujo painel também interpretam as transformações de sua cultura material. De um modo geral, os Makuxi inquiridos contemplaram a documentação fotográfica da coleção com grande interesse. À surpresa e à admiração com a habilidade artística de seus antepassados, no entanto, misturou-se uma sensação de perda cultural e luto. Devido às transformações maciças experimentadas por sua cultura nos últimos 200 anos, muitos dos objetos mostrados não mais fazem parte de sua cultura material, e o conhecimento acerca deles empalideceu ou foi completamente perdido. Seus comentários dizem mais a respeito dos Makuxi do presente do que sobre seus ancestrais do passado. Nesse sentido, pode-se apenas especular se uma explicação racional e positiva para o desaparecimento de objetos da cultura material não estaria destinada a dar conta da sensação de perda que de um modo geral está vinculada à contemplação de objetos históricos. Um outro passo na cooperação com source communities foi a visita, em 2009, de uma delegação dos Kanoê, Makurap, Tuparí e Aruá de Rondônia a Viena (vide, acerca disso, Augustat, Kanoê e Kapfhammer 2011). A cooperação com o etnólogo muniquense Wolfgang Kapfhammer, que desde 1998 trabalha com os Sateré-Mawé no Brasil, levou Claudia Augustat à ideia de incluir representantes desse grupo indígena nos preparativos da exposição Além do Brasil. O motivo imediato da visita de Obadias Batista Garcia e Ranulfo de Oliveira, ambos índios Sateré-Mawé da área indígena Andirá-Marau no Baixo Amazonas,3 era o desejo de confrontá-los com testemunhos de sua cultura na Coleção Natterer, a fim de conseguir informações mais precisas acerca dos objetos, cuja inserção no contexto cultural muitas vezes não pôde ser destrinçada pelos colecionadores de outrora. O resultado de nosso diálogo, do qual se dará notícia a seguir, acabou indo muito além de tais combinações negociadas. Instigados pelos testemunhos ainda nem de longe emudecidos de sua própria cultura, os dois colegas indígenas nos levaram consigo a uma viagem pelas zonas cosmológicas centrais da concepção de mundo dos Sateré-Mawé. 3

118

Os Sateré-Mawé são agricultores praticantes de coivara de língua tupi, habitantes da floresta tropical ao sul da cidade de Parintins, na área indígena AndiráMarau. Eles são conhecidos como os iniciadores do cultivo de guaraná (Paullinia cupana), uma planta de teor cafeínico, de cujos frutos é extraída uma bebida energizante. Wolfgang Kapfhammer agradece à Deutschen Forschungsgemeinschaft (DFG) pelo incentivo generoso à pesquisa (HA5957/6-2) entre os SateréMawé, assim como ao CNPq, no Brasil, por conceder o visto de pesquisa (010581/2009-0) (vide Kapfhammer 2004; 2007; 2009; Wright, Kapfhammer e Braune Wiik, no prelo [publicação online]).

Imagem 150: Ranulfo de Oliveira e Obadias Batista Garcia diante da “Casa do Imperador”, Viena. 2012. Foto: Wolfgang Kapfhammer

mais selvagens e a outros recursos da floresta, que são preservados por uma mãe-animal (miat ehary) em nusoken como uma espécie de protótipos de pedra. Porém, a relação com o “imperador” é ambivalente. Na condição de relação de poder, ela corresponde a ligações materialmente vantajosas com os “avatares” do imperador, na feição das instituições públicas de proteção ao índio ou de políticos locais. O preço pago por tais relações, que procuraram a salvação sempre fora do âmbito habitado pelos índios, no entanto, acaba sendo o de uma alienação crescente em relação ao próprio ambiente florestal. As tentações do mundo urbano dos brancos acabam por erodir os vínculos materiais e afetivos com os próprios recursos e capacidades, e a precariedade onipresente dos mesmos recursos leva a brigas e dissensões. Tanto que o desenvolvimento cheio de crises das estratégias indígenas no sentido de dominar a vida representou de fato o tom principal das explicações dos colegas SateréMawé.

Waraná Nusoken Pontos de contato entre culturas que parecem completamente díspares entre si podem ser encontrados justamente no lugar menos esperado (Imagem 2). Foi exatamente a magnificência real e imperial do Primeiro Distrito de Viena que evocou uma ressonância de caráter especial entre os colegas Sateré-Mawé: o fato de o Museum für Völkerkunde estar instalado no antigo palácio imperial Neue Burg, assim como a história contada de acréscimo, segundo a qual Natterer à época teria feito sua viagem na comitiva da arquiduquesa Leopoldina, que viajou ao Brasil para se casar com o futuro imperador brasileiro Dom Pedro I, acabou concedendo à visita de trabalho uma importância inesperada, uma vez que o imperador – uma pessoa que na reminiscência dos SateréMawé se amalgamou a partir dos dois Dom Pedros – até hoje continua sendo uma das figuras mais importantes na mitologia dos Sateré-Mawé. Segundo a narrativa, os primeiros humanos viviam em um local de origem rochoso chamado nusoken, em um “paraíso” que não deixava de ter lá suas ambivalências, e que aos poucos foi ficando pouco confortável, uma vez que o sol brilhava sem parar. O êxodo do “paraíso” foi conduzido justamente por aquele imperador, que queria levar os índios consigo para “fora”. Com sua atenção desviada por palmeiras carregadas de frutos, os índios no entanto acabaram perdendo a partida do navio do imperador. Este os deixou em seu mundo de florestas com a promessa de voltar a se lembrar deles um dia, demonstrando-o pelo fato de jamais deixar que lhes faltasse materialmente alguma coisa. Esse mito fundamenta duas questões: por um lado explica a divisão desigual dos bens materiais, pois por um lado é o imperador que leva consigo, para fora, para as cidades dos brancos, os cobiçados produtos dos brancos e seus “meios de produção”, e por outro lado resta aos índios, mediado por seus xamãs, o acesso à caça de ani-

A tendência à briga e à separação constitui um dos dilemas fundamentais na convivência de sociedades amazônicas, e isso tanto mais na medida em que o posicionamento como população indígena autônoma diante do mundo em torno exigiria uma apresentação homogênea e fechada. O mito da origem do guaraná, um dos elementos centrais da cultura Sateré-Mawé, pode assim ser lido também como um esboço de harmonia social em uma sociedade que tende a se fragmentar (Imagem 151). Ele representa a conclusão de um ciclo que dá conta de acontecimentos que marcaram o mundo de hoje. E é justamente a feia, mas também cheirosa cobra, que consegue engravidar a Uniawasap’i cobiçada por todos os outros animais. A gravidez de Uniawasap’i lhe deteriora a capacidade de servir a seus irmãos de curandeira perita, de modo que os parentes enciumados acabam matando a criança. Uniawasap’i retira os olhos do cadáver e os planta; do olho direito surge o primeiro arbusto de guaraná. A mãe enlutada enterra seu filho, não sem diante da sepultura lhe profetizar um grande futuro como figura de liderança, que conseguirá organizar uma convivência pacífica e produtiva. Por fim, surge da sepultura o primeiro casal humano: os primeiros Mawés como “filhos do guaraná” (waraná mempyt’in). O consumo ritual de guaraná serve, desde então, ao recolhimento interno, e está destinado a invocar aquelas “boas palavras” (sehay wakuat) que são as únicas capazes de motivar à ação conjunta em uma sociedade sem instituições hierárquicas. Um bastão de guaraná preservada na Coleção Natterer, testemunha não apenas a tradição secular dos Sateré-Mawé no comércio interregional do guaraná como produto, mas também esclarece o papel da “cultura guaraná”, que realmente merece o nome, na concepção de mundo dos Sateré-Mawé. Ao compreender o mito como parábola, Obadias Batista Garcia desenvolve, a partir do uso ritual do guaraná, uma ética complexa, que ele concebe como linha diretiva para toda e qualquer ação

Imagem 151: Dona Mariquinha (†), uma das maiores contadoras de mitos da nação Sateré-Mawé, ralando guaraná. Vida Feliz, Rio Andirá. 1999. Foto: Wolfgang Kapfhammer

política: “Guaraná em nossa cultura, ela tem um grande significado. Para nós é uma Bíblia, para nós é uma lei, uma constituição para o nosso povo. Porque guaraná é como fosse um tuxaua, um grande líder, onde está a profecia da mãe dele, da nossa origem. Guaraná,ela orienta gente, é o orientador do povo. Então é isso o que o povo Sateré-Mawé vem fazendo há séculos, né. Porque guaraná é uma palavra pra nós, é o ‘principio de conhecimento’. Guaraná para nós é onde nasce todo o conheimento, a sabedoria dos Sateré. É o significado do guaraná, o que em nossa língua é ‘waraná’. Por isso, em nossa vida, guaraná se usa em todos sentidos, em todos momentos: seja lá para caçar, seja lá para trabalhar, para pescar, para qualquer coisa nas atividades cotidianas do povo Sateré. Guaraná é usado no primeiro lugar. Como fosse na vida cristã o ‘primeiro Deus’. Tem que pedir á Deus para depois vir as coisas boas, então, hoje entendo guaraná é como fosse a Gênesis, o primeiro livro da Bíblia. Mas só que é contado do nosso jeito, da nossa cultura. Porque na cultura Sateré não existe papel, não existe escrita. Ninguem sabia ler letras ocidentais. Então os nossos antigos contavam a historia do mundo, a historia do origem do mundo, da humanidade, das leis do mundo, do jeito deles, usando guaraná, que é a palavra do inicio do conhecimento, do inicio da sabedoria. Então hoje eu entendo, que os nossos antigos explicam isso. O guaraná. A educação sateré era informal, era contado, do pai para o filho, uma historia.

119

Imagem 152: O puratĩg das comunidades Sateré-Mawé à beira do rio Marau, cacique Evaristo Miquilis, Nova Esperança, com Obadias Batista Garcia, idealizador do Projeto Guaraná. Foto: Obadias Batista Garcia

Na realidade, muitos anos depois, os Sateré começaram a ler e escrever, o que apareceu no puratĩg. Guaraná era mais antigo, que era contado. Ou seja uma política informal passado de pai para o filho. O puratĩg é a mesma política, mas já era formalmente escrita. Então através disso o povo vinha se orientando. Waraná é uma política, e o puratĩg a mesma política. Não é diferente, só que um é informal, outro formal. Uniawasap’i, é uma política, não é formalmente conhecida como uma mulher, não é mulher, mas é poder! […] Porque mulher? Porque mulher é desejada por todos. Seja lá animal, seja humano, mas sempre a fêmea é desejada pelos machos, os homens. É por isso é colocado Uniawasap’i, que é mulher, mas não é mulher. É uma figura de mulher, mas que é

120

política. O homem no mundo todo é obsedado pelo poder; então no mundo dos Sateré também. A mulher é poder, Uniawasap’i é poder. […] Então na medida que a mulher foi prenha por uma cobra. Sempre existiu na historia da humanidade uma cobra, que é o nosso inimigo. Sempre teve essa ligação. Então conseguiu ter essa criança a Uniawasap’i, teve essa criança. Todos os animais desejavam essa mulher Uniawasap’i. Naquele tempo, pau, animais falavam, até hoje falam, só que a gente não sabe a linguagem deles. Se perdeu, mas todos falam, todos se compreendiam. E a partir daquele momento, Uniawasap’i, todos queriam ela. É o significado: todo mundo quer poder, porque o poder não é para qualquer um. Então se entregou e teve essa criança. […] O perfume que a cobra usou, não é ‘perfume’ literalmente, mas sim é o poder de convencimento. É o poder de argumentar, o poder de conquistar, ela se configura como perfume, porque perfume você passa, cheiroso, aí todo mundo acha bom aquele cheiro; ela significa o poder de convencimento, que é o perfume. Então através daquele perfume conquistou a mulher. Então hoje nos temos que orientar através disso. Um bom líder, um bom tuxaua, ele tem que se orientar por isso. Então [havia também] os tios dele, eles são inimigos, literalmente eram inimigos da humanidade, sempre tem um [como] Satanas: ele era anjo da luz do céu, por inveja, por ser demagogo demais houve uma guerra no céu, foi jogado; são parentes, né, se tornou diabo, demonio, da mesma forma, era parente, mas só do lado mal […] Então os inimigos tentaram matar [a criança] e conseguiram matar. Assim como Jesus antigamente foi morto por inveja, assim como Cain foi morto pela inveja do irmão; pior coisa do mundo, se você tiver inveja do seu próximo, pior crime, que existe. Jesus foi matado pela inveja pelos parentes dele. Da mesma forma a [criança] foi morto pela inveja. Mas só que ele ressuscitou como Jesus ressuscitou […] E a mãe profetizou em cima da ressuscitação dele. Disse: ‘Olha, tu seras grande. Tu venceu a morte.’ Como Jesus venceu a morte e trousse a oportunidade de se salvar algum dia. Da mesma forma ele foi morto, ressuscitou, e a mãe profetizou. Porque aquele que se quer guaraná, o que é o principio do conhecimento, será feliz, será um grande líder, será um grande chefe, será reconhecido. Mas por uma questão: tem que ter cuidado com esse poder! Para que você não sirva esse poder para fazer mal ao seu próximo. Então ser líder tem que ser „wará“. Sempre tem que ser waraná para frente. Se não for waraná na frente, você vai ser um grande líder, mas não para o beneficio para o povo, mas para destruir, para você criar problemas entre o teu povo, entre os líderes, não respeitando o espaço os outros para ser líder. Então pode acontecer, se não tiver o wará. Então isso significa waraná para nós. Waraná é a lei, waraná é uma bíblia, waraná orienta. Então é uma constituição par nós” (OBG). De certo modo, essa “cultura do guaraná” é uma utopia, pois os pressupostos estruturais e os desafios históricos de uma sociedade de índios da floresta se opõem à sua realização: “E a mesma coisa a questão do puratĩg [vide abaixo]. No puratĩg que tá no wará, tá lá: seja lá briga, seja lá guerra, seja lá o bem, que você pode fazer. Lá você tem tudo, lá você pode escolher qual cami-

Puratĩg

Imagem 153: O Novo Testamento na língua Sateré-Mawé com uma imagem do puratĩg. Foto: KHM

nho, você é livre de escolher o caminho. Mas tá lá escrito assim como foi informalmente wará como puratĩg. É a mesma coisa. Então ao longo dos anos ela vem trazendo isso, repassado pelo pai para o filho. Hoje os Sateré-Mawé aos mais de 400 anos que nos temos contato, os Sateré nunca perderam essa direção da orientação do waraná. acreditamos muito nisso apesar que hoje tem um grande contato com o mundo branco, de capitalismo – eu não vou condenar todo mundo do branco, mas a maioria dos brancos. Assim como os Sateré, existe uma política que não está dentro do wará, por isso existia muita briga também entre os Sateré. ‘Sateré’ entre aspas, é um povo que tá lá. Mas verdadeiramente ‘Satere’ é um pouquinho de muitas clãs, que tão lá. Tem assaí, tem waraná – no caso eu sou do clã waraná –, tem inambú, tem cutia, tem muitas clãs. Então havia briga entre eles por ciume, por poder. Porque? Sairam totalmente da lei do wará, do puratĩg. Então definiram os seus próprios interesses e houve grande briga. Nesta briga foram, quando os colonizadores também vieram e os índios estavam fracas e divididos e acabaram tendo essa briga entre nós. E com isso for regredindo o nosso povo. Então o nosso povo hoje, politicamente ele está fraco” (OBG).

O objeto de culto puratĩg está estreitamente vinculado ao consumo ritual de guaraná. Na verdade, se trata de uma borduna cerimonial, não muito diferente das peças que também podem ser encontradas nas coleções do século XIX. De qualquer modo, os Sateré-Mawé não compreendem esse objeto, que hoje em dia é guardado por uma família na comunidade de Castanhal, no rio Andirá, como se fosse uma arma, mas sim como uma patente, uma espécie de documento; a decoração riscada é compreendida como “escritura” (Imagem 152). Um grande cacique tinha de ser capaz de ler essa escritura, e as palavras ditas valiam como absolutamente definitivas e pacificadoras. Esse ritual era acompanhado do consumo de um guaraná especialmente forte. “Então primeiro o guaraná para nós é líder. Ele é um grande respeitado. Aquele guaraná é o princípio da conversa, como a mãe dele ordenou na hora que foi matado o seu filho. Quando os tios mataram ele, ela tirou os olhos dele. Na hora de plantar ela ordenou como vai acontecer no futuro. É a mesma coisa como acontece hoje em nossa cultura. E por isso hoje em dia o guaraná é um líder muito respeitado. E o acompanhante dele é o puratĩg. Quando foi lido a escrita do puratĩg, as crianças não eram autorizadas para entrar e ouvir. Na hora da leitura do puratĩg, o guaraná ralado tava em cima do patawí. Também naquela hora uma senhora ralava guaraná muito devagar. Ela não podia ralar de pressa. Ela ralava um guaraná muito pouco e grosso. Depois de ser pronto foi distribuido para as pessoas. Eles tomaram guaraná não por causa do sede. Cada pessoa provou esse sapo. Depois que tomaram todos, colocaram em cima do patawí. Eles respeitaram muito aquele que lia o puratĩg. As crianças não podiam ouvir. Porque no pensamento deles uma criança, que olhou para o puratĩg, sofria tontura. Primeiro os velhos fizeram assim. Também aquele puratĩg em nossa cultura é a Bíblia. Naquela época nós índios moramos no mato. Primeiro não era como agora. Como o meu pai me criou, não era como agora. Naquele tempo a nossa língua ainda não era escrita. Também ninguem sabia escrever a nossa língua. Naquele tempo nem uma criança sabia ler. Também nem os adultos sabiam ler e escrever. Mas um dia em 1960 chegou o missionário dos Estados Unidos. Foi ele que ensinou primeiro a nossa língua na letra. E ele nós ensinou na nossa própria língua. E ele mostrou como escrever (toiwan) em nossa língua. Primeiro ele nós ensinou como ler. Primeiro ninguem sabia ler. Também nós não mas sabiam ler o puratĩg. Mas o puratĩg é a Bíblia verdadeira. Na hora da leitura do puratĩg eles ficaram muito calados e atentos. Prestaram muita atenção para conhecer a sabedoria do puratĩg. Mas aquela nossa língua ninguem sabia ler. Mas naquele tempo ele já escrevia a nossa língua. Uma palavra ‘y’y’ (água), também ‘pay’ (paca). Qual letra, qual letra? Ninguem sabia ainda. Mas ele escreveu no papel. Aí ele ensinava para os adultos. Aí eles já tavam sabendo a leitura. Aí os adultos acharam muito melhor. Depois de aprender ler, eles chegaram a conhecer a palavara de Deus. Depois ele foi aprontar a Bíblia, já todas as crianças sabiam ler. Mas primeiro os adultos não tinham autorizado ouvir o puratĩg, nem olhar. Mas hoje em dia já sabem a palavra de Deus. Hoje em dia ninguem proibe as

121

crianças entrar e estudar […] Desta maneira o guaraná ficou como líder em nossa cultura. Mas porque eles não autorizavam ouvir a leitura do puratĩg? Hoje em dia ninguem mais sabe ler! Não era a culpa de nós, mas do próprio pai e avôs. Porque os nossos avôs nós não autorizavam para ouvir? Mas, se eles tivessem autorizado, ninguem tinha esquecido ler o puratĩg. Nos tinhamos o conhecimento do puratĩg como nos ainda temos o conhecimento do guaraná. Porque hoje em dia nós ainda usamos o patawí, cuia e pedra para ralar. Até agora existe o puratĩg original no Castanhal. Mas ninguem pode olhar, porque está escondido no quarto. Por causa disso ninguem sabe ler no Andirá. Mas da mesma forma a bíblia está com nós” (RdO). Segundo a descrição de Ranulfo de Oliveira, a oralidade criativa de sociedades “sem escrita” não é destruída com a introdução da escrita, mas sim esta muito antes compensa a crise que impera na cultura da memória tradicional. Na iconografia da comunidade eclesial evangélica dos Sateré-Mawé de fato o puratĩg ocupou completamente o lugar da cruz cristã (Imagem 153).

Imagem 154: Dança tucandeira na comunidade indígena Nova América. Rio Andirá. 1998. Foto: Wolfgang Kapfhammer

Waumat Um complexo mitológico-ritual, que talvez esboce uma imagem mais realista de uma sociedade de clãs amazônica internamente diferenciada, e cujo objetivo inclusive é estabelecê-la, é o ritual de iniciação waumat. Essa festa, que em português é chamada de dança da tucandeira, impressiona sobretudo pela prova de dor chocante à qual são submetidos os jovens iniciandos ao ser obrigados a enfiar as mãos em “luvas” tecidas cheias de formigas venenosas (Imagem 154). Essa “impregnação” dolorosa de corpo e espírito protege de doenças e transforma o rapaz em um caçador cheio de sucesso e em um bom marido. Para resumir: em uma pessoa bem íntegra (OBG), ou seja, uma pessoa “completa”. Também Natterer, que conseguiu coletar várias dessas luvas de tucandeira, compreendeu a função do ritual. Natterer escreve: “Apenas a alguns dias recebi de um amigo, o capitão Diogo de Barros Cardozo, de Maué, uma missão junto ao rio Maué (que parece ser o rio Itrupadi de Arrowsmiths) arcos e flechas da nação Maué e 2 mangas duplas, tecidas em palha de palmeira, cujo revestimento os índios enchem de tucanguiras [tucandeiras], uma espécie de formiga venenosa, enfiando depois o braço dentro dessas mangas e assim dançando com elas para, através da superação da dor das muitas picadas, mostrar sua força; ao que parece, isso é uma condição especial para o casamento, e quem não resiste à dor cai em vergonha e não recebe mulher” (Carta a Karl von Schreibers, 29.6.1836). As canções que acompanhavam a dança e as provas de dor se referem à origem mítica da festa, quando o tatu buscou as formigas do reino subterrâneo da mulher-cobra. Um outro gênero de canções se refere a conflitos e acontecimentos violentos do passado e os festeja. Ele instala o candidato, portanto, na posição correta no interior da tessitura social, mas ao mesmo tempo aprofunda as partes frágeis dominadas por conflitos no interior dessa mesma tessitura social: “Ao passar do tempo o povo começou crescer. Então começou conflito entre os paren-

122

tes: Eu sou tratado como parente só quando o meu clã: filho do meu pai, pai da minha filha, meus tios, meu avô [...] esse é o meu clã, esse é waraná, meu parente, esses aqui também [...] Então com tempo virou uma comunidade, virou uma grande comunidade, duas, tres comunidades, aí houve grande conflito, já bastante tempo, já bastante população. Com escassez de alimentação, como tinha muita gente começou escassear alimento. Aí havia conflito de novo, começava briga, guerra entre eles. Então como já havia a tradição do waumat só de um povo, todos usaram waumat, seja lá waraná, seja lá wassa’i, inambú, todos clãs usavam, porque o origem só foi um. Então começavam inversar [inventar versos para cantar, WK], quando mataram nas guerras as pessoas, né? Aí na festa inversar. Aí alguns clãs vinham escutar de longe. Aí quando era sobre o clã deles que tavam inversando, eles pagam um pagé, chegava lá e matava o cantador. Era assim a briga. Esse era a briga do passado” (OBG). As canções de luta do waumat eram portadoras também de recordações de acontecimentos históricos: elas cantavam ações guerreiras da época da revolta da Cabanagem ou então de confrontos com funcionários da FUNAI em tempos mais recentes. Também se pode compreender essas canções como narrativas que expressam resistência, uma resistência oferecida pelos Sateré-Mawé desde que os brancos (wahi kyt’i) apareceram, numerosos como as contas de um colar (wahi), conforme é dito na linguagem poética dessas canções.

Paini As peças mais espetaculares dos Sateré-Mawé na Coleção Natterer são certamente as esculpidas tabuinhas para cheirar a droga paricá dos pajés ou xamãs. O tradicional meio artístico da arte de entalhar madeira hoje em dia desapareceu completamente; mas isso não vale para as mensagens transmitidas por esse meio. Corresponden-

do ao esquema dicotômico da perfeição (moral) original e da posterior decadência, também os dois colegas índios distinguem entre pajés bons e aqueles que abusam de seu poder. Por um lado os pajés eram capazes, devido a suas boas relações com a mãe-animal (miat ehary), de providenciar os cobiçados animais de caça, por outro lado, em sua função de senhores sobre as forças e poderes que trazem a morte, eram também atores decisivos na rede dos conflitos sociais. A capacidade de manipular a substância satek (veneno mortal), encontra sua expressão também nas esculturas de cobras das tabuinhas para inalação. Esses utensílios serviam de repositório a um pó alucinógeno que era inalado (aĩpe); no êxtase da droga, os pajés eram capazes de invocar seus espíritos auxiliares e incorporá-los. Na condição de especialistas em realidades ocultas, eles também eram capazes de decifrar as canções poeticamente intrincadas do waumat: “Então o pajé tinha esse conhecimento, essa interpretação. Então, antigamente, quando havia uma festa, por exemplo, algum pajé ia lá, mas não se mostrava, ficava escondido, ouvindo os cantos deles. Aí, se esse cantou, então fazendo festa, porque geralmente vão à guerra, eles matam, massacram, aí eles inversam, e vão fazer festa, alegria depois da festa, eles vão inversar do que eles fizeram. Festa de vitoria. Aquele que perdeu, pode estár escondido, ouvindo, o que eles estão falando. E muitos desses, como eles são pajés, usaram disto [os utensílios que jazem sobre a mesa diante de nós] para matar o cantor. Fazia pajelança de tal forma, que não precisava chegar lá matar a pessôa, só através da pajelança cortava a garganta dele. Naquele canto elle tosseu assim, já foi: tosse, tosse, tosse, até morrer. Então era assim, que eles fizeram. Então por isso a dança de tucandeira era até proibido nesses tempos!” (OBG). Desenvolvimentos marcados por crise em tempos mais recentes fizeram com que também os mecanismo tradicionais de conflito e regulação de conflito escalassem a ponto de chegar a uma espiral infinita de violência e violência vingando violência. O movimento de conversão evangélica a partir da década de 1960 foi também uma espécie de movimento contra a bruxaria, que desacreditou a figura do pajé: “Antigamente, como Obadias falou, tinha muitos pajés. Também o meu avô, pai da minha mãe, era pajé. Ele contou todas as coisas como foi o serviço do pajé. Tinha pajés, que foram muito respeitados. Tinha pajé, quando aconteceu uma enfermedade, ele descobriu. Ele não descobriu a doença dela, da criança, mas só que ele foi acusar outro. É só para enganar! Mas tem pajé ás vezes que falam a verdade, as vezes que não. O meu avô falou, quando os pajés usam um feitiço,. alguma coisa, escondeu a coisa, a folha; sempre escondido aqui na mão ou debaixo da língua, só para enganar o paciente. Essa coisas ele explicou para nós mesmos! Como eu sou o neto dele! Porque na época ele já foi convertido como evangêlico. Aí ele explica tudinho o trabalho do pajé [...] Eu não tenho mais confiança com os pajés. Porque nós já sabemos que o trabalho era muito para enganar a gente. Mataram muito por causa disso. Tem pajé, mas não como era antigamente. Porque antigamente o pajé era muito respeitado, como médico. Mas hoje em dia, no Andirá, quase não tem mais pajés” (RdO).

Pi’ĩg e hap O desafio de controlar forças e poderes potencialmente fatais não necessariamente desapareceu com o xamanismo, e ainda continuam existindo estratégias de solução comprovadas desde tempos antigos. Conforme nossos colegas indígenas nos explicaram com base nos objetos debatidos, a transferência de motivos decorativos de um meio, a madeira das antigas tabuinhas para inalação, a outro – os cestos necessários para a preparação da mandioca (pi’ĩg e hap) –, não ocorre por acaso: as duas coisas, o trabalho do xamanismo e também o preparo da mandioca brava venenosa, alimento fundamental dos índios das florestas da região amazônica, seriam ao final das contas a mesma coisa: uma espécie de controle sobre substâncias “venenosas” (satek).

Waumat II A noção de se estar submetido a substâncias ambivalentes, “venenosas”, também é visível na simbologia da festa do waumat. O fato de em tempos mais recentes é perceptível uma espécie de revitalização do waumat talvez se deva ao estímulo da realização estética, ao desejo de carregar a autoafirmação cultural não apenas nos lábios para fora, mas de realizar vida indígena também para dentro. Vista desse modo, a festa do waumat pode ser contemplada igualmente como uma espécie de resistência ontológica, como uma estratégia para proteger a própria pessoa das forças que dissolvem sua identidade. Essas forças são representadas metaforicamente nas artes da sedução da mulher-cobra Uniamoire’i, de cuja vagina afinal de contas são oriundas as formigas roubadas pelo tatu. Por isso jovens Sateré-Mawé voltam a se submeter a esse uso ritual extremamente dolorido, e seguem assim uma necessidade de emoção profunda como estratégia de resistência contra a miséria e falta de perspectivas da vida na reserva.

Imagem 155: Reunião para um seminário nas comunidades de Nova Esperança, Rio Marau, na qual foi criado um “Conselho de Anciãos” (nãg nia). Abril de 2012. (www.nusoken.com)

123

Puratĩg II Na condição de ativista político, Obadias Batista Garcia sempre situa suas explicações também no contexto da pressão política por parte justamente de políticos índios locais, aos quais sua fração está exposta. Para agir contra a decadência de mecanismos tradicionais, construtores de consenso que ele esboça, seu grupo aposta cada vez mais na instrumentalização renovada dos mecanismos proporcionados pelo antigo ritual do puratĩg no sentido de construir a harmonia social. Assim, em uma assembleia ocorrida na região do rio Marau logo após a visita dos dois colegas a Viena, foi fundado o grupo dos nãg nia, dos “anciãos”, destinado a conceder mais reconhecimento e validade social à categoria dos antigos “sábios”, aos conhecedores da cultura, à autoridade e ao poder de convencimento dos caciques (Imagem 155).

Waraná global O guaraná não apenas está no centro da cultura material e espiritual dos Sateré-Mawé, mas, na condição de produto principal de uma empresa de fair-trade, o Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé, também faz com que surja automaticamente o contexto para um movimento de revitalização cultural: “Então hoje por exemplo, através desse guaraná, a gente tenta resgatar esse valor, que hoje nos temos. Hoje os Sateré-Mawé, na aldeia, tá em torno de 12.000. 140 comunidades. Fora da Área Indígena deve ter no mínimo de 3.000 Sateré. Entre Manaus, Parintins, Barreirinha. Muitos Sateré se espalharam porque o sistema, ela está trabalhando para que a gente possa sair da Área Indígena. O sistema educacional é integracionista. a gente vai saindo […] Além disso tem a política partidária, que hoje os Sateré-Mawé estão involvidos: tem prefeito índio, tem vereador índio, tem cabos eleitorais índios. Totalmente isso fez com que o povo fica desunido. Totalmente estão esquecendo a lei do waraná, a lei do puratĩg. Então dentro desta política que hoje nos estamos tentando resgatar isso. Através desta política introducido de fora houve grande desunião. Houve grande assistencialismo paternalista, porque o governo dá subvenção para eles através de aposentadoria, através do auxilio de maternidade, através de bolsa familia, em fim. Tantos ‚projetos sociais’ entre aspas o governo cria para buscar o seu eleitorado. Os Sateré também estão nisso. Então isso faz com que a Área Indígena, a floresta, a biodiversidade, a riqueza que está lá, tá menos valorizado pelos Sateré. Acham que é muito melhor receber subvenção do governo do que você cuidar da sua área, a biodiversidade, toda a riqueza que tem lá. Então com isso o povo Sateré-Mawé gradativamente está perdendo essa cultura. Então […] eu estou praticamente 20 anos lutando. Eu fui autor do projeto, em 1993 criei um projeto ao partir deste conhecimento do impacto socioeconómico-cultural, que o meu povo tá sofrendo: desunião das nossas lideranças, o que não conhecem mais a historia, a política do wará, do waraná, a política do puratĩg. Eles deixam de fora pegando a política ocidental. Então faz com que o povo fica desunido. Eu tento resgatar isso. Porque o projeto guaraná não é por acaso, que eu coloquei o nome ‚Projeto Guaraná. Etnodesen-

124

volvimento do povo Sateré-Mawé da Terra Indígena Andirá-Marau’. Não era por acaso, mas sim baseado no wará. [Quando Uniawasap’i] enterrou [o seu filho], ela falava a profecia onde disse: ‘Meu filho, tu pensas, que era de você ser coitado e matado, sim? Pelo contrário! Tu serás grande, tu serás reconhecido mundialmente. Tu serás procurado mundialmente. Tu vais sentar na cadeira de autoridade, tu serás autoridade do teu povo. Tu vais emancipar o teu povo!’ Então por estas profecias ela enterrou essa criança. Então por isso que hoje nos estamos aqui falando do waraná em Austria, muito longe de lá, é a guaraná que tá trazendo por aqui, não é outra coisa. Então o projeto guaraná surgiu a partir daí. Em 1993 começamos a trabalhar, o que era política verdeiramente construido para o povo. Respeitando a cultura. Porque nos vendemos na verdade com projeto guaraná […] não é guaraná em si, mas a cultura do guaraná. É a nossa cultura. É o conhecimento Sateré. Não é somente você meter a mão na tucandeira, ou você aprender fazer tipití, paneira, qualquer artesanato, não é isso. A cultura Sateré é como viver bem, que não serve só para Sateré, mas para todo mundo: respeitar meio ambiente, respeitar ecologia, trabalhar com autosustentabilidade, geração de renda e emprego, ter uma educação diferenciada nas aldeias. Produzir sem destruir. A produção, aquilo que estou produzindo hoje, mas os meus netos e bisnetos possam trabalhar a mesma produção, que estou trabalhando [hoje]. Isso chama-se sustantabilidade. Então, essa é a política, a educação, que estou trazendo através do projeto guaraná […] Então o projeto guaraná não é simplesmente comércio, mas é uma forma de construir uma política dentro da poítica do wará, do guaraná […]. Então hoje é só seguir, respeitar e a partir daí fazer acontecer essa profecia. Então um caminho longe ainda a percorrer! Mas não existe outro caminho“ (OBG). O referido projeto hoje em dia é uma empresa que fatura cerca de 800 mil reais por ano. Além dos contratos com distribuidores europeus de produtos fair-trade, a vinculação ao movimento muito presente na mídia da slow-food também acaba favorecendo o projeto, sem contar que os Sateré-Mawé são o primeiro grupo indígena do Brasil (e o terceiro grupo no Brasil como um todo), que pode usar o cobiçado selo Denominação de Origem Controlada.

muito marcante por todos presentes e solicitaram que a partir desta Assembleia se fizesse o conto antes da Assembleia começar para todos possam saber que é de grande importância para as novas gerações. Porque não existe outro caminho de desenvolvimento. Portanto foi assim que criamos o Grupo de nãg nia. Por isso podemos trabalhar com essas pessoas” (OBG). Conforme foi dito, portanto, o Imperador levou o dinheiro e os bens de nusoken para fora, ao mundo dos brancos; os meios de sobrevivência dos índios da floresta, no entanto, ficaram com os SateréMawé. Ao final das contas, o conhecimento mitológico de que esses fundamentos estão ancorados no lugar de origem chamado nusoken proporcionou o ensejo de usar essa palavra carregada de significado como nome da marca e como web-domain do consórcio. Com isso se expressa que os “produtos dos Sateré tenham um valor agregado acima daquele do mercado”.5 Ruptura e continuidade, perda cultural e esforços de revitalização marcam a vida da população indígena do Brasil hoje em dia. Em primeiro lugar sem dúvida nenhuma está a garantia da sobrevivência física. O etnólogo inglês Peter Gow (1991) escreveu certa vez que os índios não pensam sobre a manutenção de sua cultura enquanto não souberem como e se os seus filhos sobreviverão. O reconhecimento dos direitos à terra foi um passo importante do governo brasileiro no sentido de garantir a sobrevivência dos grupos indígenas. Mas o que vem depois da vitória na batalha política? Processos de revitalização se estendem a outros âmbitos da cultura, tentando voltar a dar à vida um sentido que vá além da sobrevivência meramente física. Neste ponto, os museus com suas coleções etnográficas podem servir de fonte para investigar os rastros da própria história. 5

A cooperação com Obadias Batista Garcia e Ranulfo de Oliveira mostra, no entanto, que é possível fazer muito mais: o que deve surgir é um diálogo produtivo para ambos os lados, um diálogo que olhe para o futuro: “Quando cheguei [em Viena] eu não percebia o que era o trabalho aqui. Eu não percebia a pesar da experiência que eu já tenho, mas uma coisa que ainda não havia percebido: o que é o trabalho de antropologia, naturalista? O que é o trabalho daquelas pessoas que se preocupam do material que já se foram. Para mim era […] simplesmente colocar uma exposição como se fosse um troféu, uma questão que fosse lembrado. Para mim um museu é isso. Mas aqui aprendei com vocês, que não é isso. É fazer com que nos passamos entender o mundo de hoje. Mas pra isso nos precisamos entender o mundo do passado. Para poder a gente descubrir os problemas do passado para compreender o problema do presente. Para poder construir o nosso mundo no futuro. Então esse é uma coisa que aprendi. A cultura não se pode ser trancada, a cultura não se pode esconder, não se pode trancar em sete chaves, por assim dizer, porque a cultura não é uma coisa que se pode pegar e colocar num outro lugar, ou se pode roubar. A cultura é saber, é isso a definição que faço. É saber, e o conhecimento, aquele que tu sabe. A cultura se perde não no momento, em que se vende seu artesanato, a cultura se perde, quando se esquece o conhecimento do seu povo, a sabedoria, isso o que perde, não se rouba. Então o valor que tem esse museu, todo acervo, todo mundo aqui estão. Então através disso podemos aprender muita coisa. Então para mim é isso uma educação: de você conhecer o mundo para entender o presente para poder construir o futuro” (OBG).

E-mail de Mauricio Fraboni, ACOPIAMA, a Obadias Batista Garcia e Wolfgang Kapfhammer, datado de 24.1.2012. A ACOPIAMA trabalha na interface entre consórcio indígena e mercado internacional para produtos fair-trade.

Nusoken.com A renda do Projeto Guaraná também não deixa de ser, ao final das contas, o cumprimento daquela promessa que o Imperador fez aos índios que ficaram para trás, na floresta. Em um e-mail de 18 de abril de 2012, Obadias nos escreveu sobre a assembleia às margens do rio Marau: “Mas essa história da cartilha4 foi um assunto muito importante, porque teve muito a haver com o Imperador quando levou os Brancos chamado (kãikãiasig) e que hoje está retribuindo com os Satere-Mawe com a compra de guarana. E foi um argumento muito forte de constituir o Grupo de nãg nia (sábios), porque pela primeira vez que uma Assembleia se iniciou com o conto de Origem de warana, onde é o princípio de conhecimento. Isso foi 4

Uma breve descrição da Coleção Natterer escrita em sateré, assim como os os objetos Sateré-Mawé contidos nela, que elaboramos em conjunto durante a visita.

125

Seção Catalográfica

Makuxi, Sateré-Mawé

Clava. Makuxi, Guiana. Em torno de 1830. Madeira, algodão, pedra, C. 36 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.058 Clavas quadrilaterais eram as armas típicas do duelo entre os Makuxi no século XIX. Hoje em dia,os Makuxi não mais os reconhecem como parte de sua cultura material. Na condição de símbolo de conflitos intertribais, as clavas acabaram esquecidos em favor de uma identidade pan-americana. No esforço de impor suas reivindicações diante do Estado nacional, é postulada uma coexistência pacífica entre todos os grupos indígenas que vivem na Guiana. A negação das clavas é o exemplo mais impressionante de como os Makuxi reconstroem sua história a fim de colocá-la a serviço das demandas do presente. (CA)

Tanga. Makuxi, Guiana. Em torno de 1830. Pérolas de vidro, lã vegetal, L. 30 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.083 A mulher do xamã na comunidade Surama ainda se lembra que no passado todas as mulheres usavam apenas tangas como estas. Mas ela vincula a isso também a recordação de ataques sexuais e raptos intertribais de mulheres. Será que as mulheres inclusive teriam aceitado com gosto as vestimentas de estilo ocidental por que se sentiram melhor protegidas com elas? O encontro com pessoas que,ao vê-los, consideravam que os índios estavam nus, certamente influenciou a relação sobretudo das mulheres índias com seu corpo. Os corpos socializados através de tangas, objetos de adorno e pinturas corporais experimentaram uma sexualização vinda de fora que por fim também atuou sobre sua autoimagem. (CA)

126

Cocar. Makuxi, Guiana. Em torno de 1830. Penas, fibra vegetal, C. 90 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.059

Adorno de cabeça. Makuxi, Guiana. Em torno de 1830. Dentes de pecari, lã vegetal, partes de pássaros ressecados com restos de ossos, pérolas de vidro, metal, C. 76 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.066

Também os adornos de pena para a cabeça confeccionados com grande arte fazem parte do passado. Do lado dos Makuxi, argumenta-se que devido à proteção das espécies se gostaria de abrir mão de matar pássaros para usá-los em trabalhos em penas. Com isso, a perda cultural é interpretada sob um ponto de vista positivo e integrada na autocompreensão dos Makuxi como seres humanos que usam seu espaço vital de modo duradouro. Isso contudo está em visível contradição com o fato de os pássaros continuarem fazendo parte do cardápio dos Makuxi, e de ser creditado a alguns deles um efeito benfazejo sobre a saúde. No entanto garças, por exemplo, cujas penas foram usadas também na presente peça, jamais foram consumidas pelos Makuxi. (CA)

No caso do presente adorno foram usados os dentes do pecari, uma espécie de porco selvagem (queixada). Também aqui os Makuxi seguem uma interpretação de orientação ecológica: era necessário matar um número demasiado grande de pecaris para fazer um adorno como este. Ainda assim, varas inteiras de pecaris que por vezes aparecem nas proximidades das aldeias são cercadas e mortas. A discrepância entre palavras e ações mostra que a relação dos Makuxi com os animais da floresta mudou: eles continuam tendo conhecimentos precisos acerca do comportamento dos animais e os caçam, sem no entanto colocar em risco a disponibilidade da espécie. A relação espiritual com os animais, que se expressa também no uso de seus dentes, penas e ossos, praticamente acabou, no entanto. (CA)

127

Chocalhos de xamã. Makuxi, Guiana. 2005 e em torno de 1830. Cabaça, sementes, algodão, penas, madeira, borracha, pedras, C. máx. 55 cm. Col. Augustat, Nº de Inv. 184.201; Col. Natterer, Nº de Inv. 2.096 A tarefa mais importante dos xamãs consiste em curar doenças. A doença é, com frequência, o resultado de um rapto da alma por parte de seres espirituais. Esses seres ficam à espreita dos humanos na floresta, nas montanhas, junto a quedas d’água e no fundo do rio. Apenas os xamãs são capazes de ver os raptores e dispõem de armas eficazes contra eles. Os xamãs podem livrar a alma e conduzi-la de volta ao corpo de seu proprietário. O processo de cura é acompanhado de cantos e do som rítmico do chocalho do xamã. Com a chegada das doenças no período colonial e o acesso à medicina ocidental, a importância dos xamãs diminuiu bastante. Em consequência da recente valorização do saber indígena, no entanto, o número de jovens que se interessam pela longa e dificultosa iniciação ao xamanismo é cada vez maior. (CA)

Utensílios domésticos. Makuxi, Guiana. Em torno de 1830. Fibras vegetais, tiras de folhas de palmeira, madeira, casca de palmeira, algodão, pigmento, ripas de palmeira, tiras de folhas, C. máx. 58 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 2.091, 2.092, 2.106, 2.109, 2.111, 2.112, 2.674 Os utensílios domésticos da Coleção de Johann Natterer são aqueles com os quais os Makuxi mantêm a relação mais familiar, uma vez que muitos deles ainda hoje são utilizados. Assim, os desenhos usados no trançado de cestos puderam ser identificados nominalmente, entre eles o desenho da peneira de mandioca, cuja designação é peixe-diamante. (CA)

Utensílios domésticos. Makuxi, Guiana. 2005. Fibra vegetal, tiras de plantas, barbante, madeira, ráfia, caucho,C. máx. 263 cm. Col. Augustat, Nºs de Inv. 184.192, 184.195, 184.198, 184.199, 184.200 No âmbito dos utensílios domésticos ainda pode ser percebida uma continuidade na cultura material dos Makuxi. Cestos argueiros, abanos para ativar o fogo e demais instrumentos para o processamento da mandioca ainda hoje são confeccionados para o uso próprio. Chama a atenção sobretudo o grande vaso de água feito de caucho. (CA)

Rede. Makuxi, Guiana. 2005. Algodão, C. 263 cm. Col. Augustat, Nº de Inv. 184.186 Redes de algodão, são produzidas ainda hoje sobretudo para a venda, uma vez que sua confecção é bastante dispendiosa. A algodão é colhida e trabalhada com um fuso manual até se transformar em linha; em seguida a rede é tecida com a ajuda de um tear. Além de todas as suas outras tarefas, uma mulher talvez consiga confeccionar duas redes por ano. Encontrar um comprador, porém, não é nada fácil: com um preço em torno de 200 dólares, as redes são demasiado caras como suvenir de turista, uma vez que, desconhecendo o dispendioso trabalho manual, estes sempre compararão o preço com o de um exemplar muito mais barato da confecção industrial. (CA)

128

Figuras animais. George Tancredi e Rufina da Silva, Makuxi, Guiana. 2005. Caucho, corante, C. máx. 23,2 cm. Col. Augustat, Nºs de Inv. 184.205, 184.206, 187.265, 187.266, 187.267, 187.268 George Tancredi vive na comunidade Nappi, na savana Rupununi,centro da confecção de esculturas feitas de caucho. Além de modelos de ocas, que encenam os aspectos tradicionais da vida dos Makuxi, George Tancredi e sua aluna Rufina da Silvaconfeccionam sobretudo animais. Trata-se tanto de animais que servem de alimento, como por exemplo peixes, quanto de animais como a harpia, que são tidos como seres espirituais. George Tancredi está representado com alguns de seus trabalhos na National Art Gallery, em Georgetown. (CA)

129

Set de objetos para aspirar entorpecentes. Sateré-Mawé, Baixo Amazonas, Brasil. Em torno de 1830. Guaraná, sementes de paricá, cascas de noz, madeira, cálamos de penas, penas, C. máx. 58 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.369, 1.371, 1.374, 1.375, 1.379, 1.382, 1.384 Aqui é apresentado o serviço completo dos utensílios que o xamã dos Sateré-Mawé necessita para aspirar o pó alucinógeno do paricá (pilão e mão de pilão para transformar as sementes de paricá em pó, uma tábua serpentiforme para depositar o pó, um tubo para aspirar feito de cálamos de penas de harpia, uma rede em forma de saco). Entre os Sateré-Mawé podem ser reconhecidas duas técnicas de xamanismo: por um lado temos o xamã como manipulador ambivalente da vida e da morte, que sabe lidar com o veneno mortal da grande serpente moi ok; também é ele que ante uma doença diagnostica erros e usos inadequados na alimentação ou revela a motivação da doença como sendo um ato da magia danosa de um contemporâneo invejoso. Por outro lado, a pessoa do xamã também se apresenta como provedor bondoso e altruísta de caça, que usa suas boas relações com a “mãe animal” para o bem de sua clientela. (WK)

Pranchetas de aspirar entorpecentes. Sateré-Mawé, Baixo Amazonas, Brasil. Em torno de 1830. Madeira, pigmento, C. máx. 26,5 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.376, 1.377 As pranchetas de aspirar entalhadas representam um ponto alto da arte dos Sateré-Mawé, uma arte que no entanto desapareceu completamente no século XX. Muitas vezes o cabo desses objetos tem a forma de uma serpente. A grande serpente moi ok impera sobre a época das chuvas, uma época em que o perigo de adoecer fica mais elevado, e que portanto necessita do emprego mais intensivo do poder xamânico. A decoração da outra prancheta, feita de flores, borboletas e libélulas copulando, se encontra, com sua programação imagética, em relação de complementaridade com a prancheta que apresenta a figura da serpente. O jogo entre os insetos conota a época quente e ensolarada da seca, na qual os humanos deixam para trás suas contínuas hostilidades no interior da comunidade tribal e “florescem” na pequena união familiar em suas plantações espalhadas na floresta. A iconografia das tábuas de aspirar entorpecentes mostra a forte inserção contextual do consumo ritual de drogas no ciclo das estações do ano. (WK)

130

Conjunto para fazer guaraná. Sateré-Mawé, Baixo Amazonas, Brasil. Em torno de 1830 e 2012. Cuia, ratã, língua de peixe, guaraná, plástico. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.367; Col. privada Em razão de seu teor de cafeína, o guaraná possui um efeito energizante. Seu cultivo é a conquista cultural ancestral própria dos Sateré-Mawé. A colheita dos frutos e a fabricação dos bastões é trabalho dos homens. A bebida é preparada pelas mulheres ao esfregar os bastões em uma pedra molhada ou uma língua de peixe sobre uma cuia cheia de água. Durante as assembleias rituais na casa do cacique a cuia com a bebida repousa sobre um pedestal com a simbologia do eixo do universo. Já no século XVII o guaraná era comercializado em boa parte da Amazônia, e hoje em dia ele é um dos produtos mais importantes da indústria agrária da Amazônia. (WK) Objetos rituais. Sateré-Mawé, Baixo Amazonas, Brasil. Em torno de 1830. Madeira, ossos de cervo, pelos de tamanduá-bandeira, bambu, barbante, pigmento, C. máx. 33 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.363, 1.372, 1.373, 1.381 O xamã dos Sateré-Mawé contava com espíritos auxiliares de diferentes domínios cosmológicos a seu lado para ajudá-lo em seu trabalho. Os objetos rituais aqui apresentados e a flauta serviam para invocar personagens espiri-

tuais específicas. Dos materiais animais usados podiam ser deduzidas as personagens espirituais: o adorno de penas, por exemplo, alude ao tucano. Este gosta de comer frutas da palmeira-açaí, engolindo junto seus grãos para em seguida tornar a vomitá-los. Como personagem espiritual ele domina, assim, a mesma técnica de um xamã atuando na cura de uma doença, já que este também chupa o mal causador da doença para fora do corpo do paciente e em seguida – o que é visível para todos – torna a vomitá-lo. (WK)

131

Espremedores de mandioca. Sateré-Mawé, Baixo Amazonas, Brasil. Século XXI. Ripas de palmeira, fibra vegetal, madeira, corante. Col. privada Wolfgang Kapfhammer, John D. Marshall A preparação da mandioca-brava, que contém ácido cianídrico e constitui o alimento fundamental dos índios da floresta amazônica, em última instância é – assim como o trabalho dos xamãs – uma espécie de ato de controle sobre as substâncias “tóxicas”. Também no mito de origem da mandioca foi necessária uma longa fase de experimentação de efeitos fatais até que se tornou possível processar a nova planta a ponto de conseguir um licor de mandioca benfazejo. Dessa capacidade de dominar a vida dão testemunho não apenas as histórias contadas, mas também o trabalho encaminhado no cotidiano: os utensílios trançados por jovens homens concedem a tecnologia necessária para a manutenção da vida e instituem vida social, na medida em que o trabalho do homem possibilita o trabalho da mulher. Espremedores para mandioca (aqui como modelos) são utilizadas em diferentes estágios do complicado processo de tratamento da mandioca necessário para que o veneno mortal seja separado do alimento. (WK)

Luvas para a prova das formigas. Sateré-Mawé, Baixo Amazonas, Brasil. Em torno de 1830 e 2012. Folha de palmeira, fibra vegetal, corante, C. máx. 60 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.366; Col. privada John D. Marshall Os rituais dos índios da Amazônia concentram variegadas marcas significativas que levam, todas elas, ao mesmo ponto: em uma experiência de dor que sacode corpo e espírito, os rapazes dos Sateré-Mawé são introduzidos na

132

sociedade de clãs dos homens adultos, preparados para uma vida como guerreiros, caçadores e esposos e imunizados contra doenças e iniquidades. Eles são “vacinados” com o veneno das formigas tucandeiras, cujas picadas são obrigados a suportar durante as danças festivas. As formigas se encontram em “luvas” trançadas cujo tratamento estético alude à origem mítica da festa: no passado o tatu foi buscar as formigas do mundo dos ínferos, tirando-as da sedutora mulher-serpente. (WK)

Luvas para a prova das formigas. Sateré-Mawé, Baixo Amazonas, Brasil. Século XXI. Tiras de folha de palmeira, ripas de folha de palmeira, fibra vegetal, ráfia, corante, C. máx. 52 cm. Col. de Estudos da Universidade de Marburg Os objetos trançados que são colocados nos rapazes durante o ritual de iniciação se diferenciam pela forma, pelo desenho e pelo efeito de dor desejado. Cada um dos rapazes pode escolher, ele mesmo, as luvas que irá calçar. Quanto mais variegados os tipos usados, tanto mais bela é a festa. Fundamentalmente se pode distinguir um tipo redondo e outro plano, sendo que as designações indígenas aludem a símbolos da natureza que muitas vezes têm a ver com a sorte na caça. A maior parte dos tipos de luvas apresenta um adorno de penas como aplique: na parte de baixo uma coroa de penugens brancas de harpia, em cima longas e balouçantes penas de rabo de arara, cada uma delas terminando em um disco de pena de corte arredondado, mais uma vez de harpia. Esse adorno em penas alude ao significado mítico da harpia: depois de uma campanha de vingança contra a tartaruga, assassina de seu pai, a harpia promove a primeira festa tucandeira. (WK)

Luvas para a prova das formigas. Sateré-Mawé, Baixo Amazonas, Brasil. Em torno de 1830. Folha de palmeira, fibra vegetal, corante, C. 135 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.365, 1.364 A prova das formigas simboliza o encontro sexual com a mulher-serpente: a dor física torna perceptível o dilema social de um casamento entre clãs potencialmente inimigos. Os dois exemplares redondos de luvas da Coleção Natterer formam um casal masculino-feminino. Eles se distinguem – coisa que apenas o especialista consegue ver – na técnica do trançado. (WK)

133

Gabriele Herzog-Schröder

“Acerca da selvageria dos guaaribo se escreveu um bocado …”. Sobre a história do descobrimento e do contato com os Yanomami “Acerca da selvageria dos Guaaribo se escreveu um bocado e ainda hoje se conta muito a respeito às margens do Orenoco.” Essa citação de Koch-Grünberg, do ano de 1923, adquire contornos quase visionários quando se cogita os discursos contemporâneos sobre os Yanomami do norte da Amazônia. Ainda há 30 anos praticamente desconhecida, essa etnia entrementes está entre os “povos indígenas” mais populares da face da terra. Em várias representações científico-populares os Yanomami encarnam os índios amazonenses de forma por assim disser prototípica, muito embora em numerosos aspectos se distingam significativamente das culturas indígenas que os cercam. Sua popularidade se deve por um lado ao nimbo de “bons selvagens” contemporâneos, que permanecem fiéis a modos de vida ancestrais e antigas tradições. Por outro lado, eles foram estudados e debatidos em círculos acadêmicos, e inclusive além deles na condição de atingidos diretamente pela sede incontrolável da corrida ao ouro e como vítimas das maquinações de antropólogos inescrupulosos. Aqui se pretende esboçar, pois, a história da descoberta e da investigação dos Yanomami, destacando alguns objetivos específicos de pesquisa.

Os Yanomami das terras entre os rios Orenoco e Amazonas Nos tempos em que Johann Natterer chegou à América do Sul e viajou também pela região amazônica em sua missão, os Yanomami de fato viviam, ainda quase desconhecidos, no norte da Amazônia, na fronteira com as montanhas da Guiana.1 Demoraria mais cem anos até que aos poucos passasse a se impor a certeza acerca da homogeneidade de numerosas pequenas tropas e agrupamentos que em seu conjunto são chamados de Yanomami. Os numerosos subgrupos e frações dos Yanomami vivem na região fronteiriça dos Estados brasileiros de Roraima e do Amazonas e no Estado venezuelano do Amazonas, localizado no sudeste do país, a oeste da Guiana. No centro desse território de quase 200.000 km2 1

ficam as terras montanhosas da Serra Parima, e ao sul dali as terras altas do Siapa. Sobre a Serra Parima e nas terras altas do Siapa, corre a fronteira entre os dois países sul-americanos e o Brasil. Ela é formada pelo enclave aquático entre o Orenoco de um lado, e pelo amazonense Rio Negro e seu grande afluente, o Rio Branco, do outro lado. Não contadas algumas savanas ao norte do território, essa grande região é encoberta por uma densa floresta tropical, e portanto de clima úmido e quente. A língua dos Yanomami não apresenta nenhum parentesco com outras línguas indígenas da América do Sul; internamente, o Yanomami se divide em quatro regioletos em parte bastante divergentes. De acordo com esses diferentes dialetos, os Yanomami se dividem espacialmente nos quatro subgrupos conhecidos dos Sanema (Sanuma, Sanïma), Yanam (Ninam), Yanomami e Yanomam (Yanomae, Yanomamë).2 Nos primeiros relatos de viagem sobre os Yanomami, eles recebem nomes diferentes; o conceito “Yanomami” ou também uma das mutações desse termo – Yanomami, Yanoama, Yanomama, Yanomamö etc. – ainda não era utilizado. Essas fontes precoces falam, muito antes, dos Guaaribo, Xhiriana, Shiriana, Shirishana, Waika, Guaika, para mencionar apenas algumas das variantes mais famo2

A autora do presente texto fez, ela mesma, estudos etnológicos na Venezuela, no alto Orenoco. Desde 1983, visitou sobretudo os Patanowëtheri repetidas vezes. Por isso, sua representação dos Yanomami certamente enfatiza mais as formas culturais dos Yanomami estabelecidos ao sul do curso superior do rio.

Vide a divisão etnográfica estabelecida por Kästner 2009.

Imagem 173: Colheita de bananas. Foto: Gabriele Herzog-Schröder, 1993 A banana é cultivada em numerosas variedades. Ela serve ao abastecimento básico e é um alimento rico em amido. Também na vida ritual a banana tem um papel fundamental. No funeral endocanibal, a cinza dos ossos é despejada em uma compota de banana de consistência rala e consumida comunitariamente. (GHS)

Abb. 174: Região de colonizaçao dos Yanomami no sul da Venezuela e norte do Brasil. (Conforme: Ferguson 1995: Map 1)

135

Imagem 175: Aldeia na neblina matinal. Foto: Gabriele Herzog-Schröder, 2012 Há dez anos, ainda, esta comunidade habitava um círculo quase fechado de telhados de uma água – o tradicional “xapono” – na hinterlândia do alto Orenoco. Hoje em dia, as famílias individuais e ampliadas moram, na maior parte das vezes, em unidades de moradia fechadas em si. Várias das cabanas ordenadas em círculo são cobertas por telhados de duas águas, algumas também por telhados de uma água. Em diversos aspectos, como espiritualidade, vínculo social e economia de subsistência, comunidades distantes do rio como esta continuam vivendo de forma ainda bem tradicional. (GHS)

sas. Nessas menções, trata-se, em alguns casos, de subgrupos isolados, mas de quando em vez também de denominações estrangeiras depreciativas.3 Para designar o conjunto da etnia, entrementes se impôs o conceito Yanomami, que em na própria língua Yanomami significa algo como “ser humano”, ou “os homens”. “Tradicionalmente” – e com isso quer se referir a época que vai até cerca de 100 a 120 anos – os Yanomami praticamente não se estabeleciam ao longo das grandes correntes de rios, mas quase sempre habitavam regiões montanhosas distantes desses grandes rios, que apenas emolduravam o espaço de suas moradias e as áreas de caça e de coleta: deles fazem parte, ao norte, o rio Erebato, um afluente do Caura, a noroeste o rio Padamo, afluente da margem direita do Orenoco, que desemboca no Matacuni, a oeste o próprio Orenoco, a sudeste e ao sul os afluentes do Rio Negro – Cauaburi, Marauiá, Padauiri, Araçá e Demini –, a leste os afluentes do Rio Branco – Catrimani, Ajarani, Apiau e Mucajai – assim como a nordeste, por fim, o rio Uraricoera com seus afluentes Parima e Auaris. No interior dessa moldura constituída por correntes fluviais maiores ficavam as regiões habitadas pelos Yanomami nos tempos anteriores ao contato, provavelmente ao longo dos cursos superiores e intermediários dos afluentes do Orenoco – Matacuni, Ocamo, Mavaca e Manaviche –, e mais longinquamente na região de ocu3 Guaharibo, ou guaaribo, designa o bugio. Migliazza, entre outros, também deduziu a respeito que se tratava de um significante depreciativo usado como conceito para os pertencentes a uma “tribo atrasada” (Migliazza 1972: 6).

136

pação do Siapa superior. O rio Siapa se junta, após 300 quilômetros, em direção leste-oeste, ao rio Casiquiare, o lendário canal natural entre os dois importantes sistemas fluviais: o do Orenoco e – pelo Rio Negro – o do Amazonas. Na região da Serra Parima, ao norte, puderam ser constatadas povoações junto aos rios Parima e Auaris, que correm para leste em direção ao Rio Uraricoera. Essa vasta região entre os dois grandes rios, perpassada por numerosos riachos, que a oeste correm para o Orenoco e ao sul e ao leste para o Rio Negro e para o Rio Branco, é tida como a região tradicionalmente povoada e explorada pelos Yanomami. Por quanto tempo a região da Serra Parima e das terras altas do Siapa realmente serviu de pátria a esse grupo populacional específico, que se distingue linguisticamente, e em vários aspectos também culturalmente dos agrupamentos vizinhos, os Yanomami, portanto, pode ser apenas especulado. Geograficamente essa zona inóspita e de difícil acesso forma uma espécie de “ângulo morto” entre as grandes correntes do Orenoco, do Siapa e do Uraricoera, em cujas margens contudo já em tempos pré-colombianos corriam importantes rotas de comércio e de trânsito do Caribe ao Amazonas (Ferguson 1995: 62ss.). Pode ser admitido como provável o fato de que o grupo populacional a partir do qual surgiram os Yanomami de hoje havia povoado regiões mais baixas em tempos pré-colombianos. Além disso é perfeitamente imaginável que esses ancestrais dos Yanomami foram atingidos pelo mesmo destino que atingiu também numerosos grupos de índios amazonenses: ondas desastrosas de epidemias que se espalharam vertiginosamente, que se anteciparam aos europeus invasores na América do Sul, e sobretudo nas terras baixas em bem pouco tempo dizimaram boa parte da população original. Devido a isso, um grupo relativamente pequeno de sobreviventes dessa catástrofe – é bem possível que inclusive sem ter tido contato direto com os estrangeiros – provavelmente tenha sido levado a fugir para as regiões distantes e inóspitas das terras altas em torno das nascentes do Orenoco (vide Lizot 1988: 496; Ferguson 1995: 69). Parece ser uma consequência lógica desse cenário que os grupos que restaram após o referido drama humanitário nas décadas seguintes puderam se estabilizar demograficamente nas regiões retiradas entre os rios maiores, principiando uma “convalescença social” que duraria um punhado de gerações, e implicou um crescimento populacional a partir do qual os Yanomami puderam sedimentar ainda mais suas peculiaridades culturais.

Primeiras conjecturas acerca dos Yanomami Quando, no século passado, o interesse etnográfico se dirigiu às culturas das terras baixas sul-americanas, tais ponderações históricas mal chegaram a ser feitas no princípio. Imperavam, muito antes, especulações acerca da posição das sociedades indígenas no sentido de um modelo de camadas ou estratos culturais ordenadas cronologicamente. Um indicador importante para essa sistemática histórico-cultural foi a “forma econômica”. Até as décadas de 1950 e 1960, os Yanomami eram tidos como caçadores e “plantadores em fase inicial”, que no entanto apenas em tempos recentes teriam “superado” o estágio primitivo da caça e da coleta e assumido a horticultura simples (Zer-

Imagem 176: Uma família voltando para casa. Foto: Gabriele HerzogSchröder, 2012 Uma família retorna de uma excursão de coleta com um rico butim. As vagens de krêpo, ou ingá (Inga edulis Mart.) possuem grãos duros, envolvidos por uma massa doce e algodoada: uma cobiçada guloseima da floresta. As espingardas substituem com frequência cada vez maior o tradicional arco e flecha, que no entanto continuam sendo as armas mais usadas na maior parte das comunidades Yanomami do alto Orenoco. (GHS)

ries 1955: 73; Steward und Faron 1959: 434; Wilbert 1963: 187–188). A hipótese de terem assumido recentemente a agricultura, que os primeiros antropólogos culturais atestaram aos habitantes dessa região, se fundamentava sobretudo no relato do botânico de ascendência alemã Robert Schomburgk, que entre os anos de 1838 e 1839 percorreu as terras montanhosas da Guiana no nordeste da Amazônia. Ele foi, provavelmente, o primeiro europeu a avançar à região do Uraricuera superior, quando encontrou alguns Xiriana, que ele chamou de Kirishana. Na época, Schomburgk constatou o seguinte acerca dos Xiriana: “Os Kirishana formam […] uma tribo nômade que vive em estado completamente natural. Eles andam sem qualquer cobertura sobre o corpo e vivem da caça nas montanhas ou, caso esta não lhes renda butim suficiente, dos peixes, tartarugas e jacarés dos rios (Schomburgk 1841: 417, citado cf. Koch-Grünberg 1923: 285). As experiências angariadas pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg há cem anos correspondem ao relato de Schomburgk, que ele internalizou. Em dois encontros com representantes isolados dos Yanomami cerca de 70 anos depois de Schomburgk, Koch-Grünberg observa acerca dos “Shirishana”, que eles seriam “indubitavelmente um povo nômade largamente espalhado” (Koch-Grünberg 1923 III: 287). O escasso sedentarismo era para ele um indício importante de sua forma econômica fundamentada na caça e na coleta. E, assim, Koch-Grünberg os etiquetou como “caçadores e coletores”, ainda que cite Schomburgk quando esse refere uma “lavoura”, e com isso pelo menos tenha documentado, ele mesmo, uma forma de cultura agrária simples: “De quando em quando, eles ao que parece também limpam um pequeno trecho de solo na floresta e plantam kàpsicum e raízes de cassada nele, para mais tarde, caso as ocupações restantes lhes permitam, retornar e coletar a colheita”4 (idem 1923: 285). 4

Kàpsicum ou capsicum está para páprica, chili ou pimentão; as raízes de cassada correspondem à mandioca ou à iúca.

Essas primeiras indicações são, portanto, contraditórias em si; elas correspondem ao modelo interpretativo de uma estratificaçao cultural da escola histórico-cultural, que imprimiu seu selo teórico à etnologia em língua alemã da primeira metade do século XX. A imaginação de ter chegado ao princípio do desenvolvimento cultural com os caçadores e coletores em estado puro, ou pelo menos quase puro, e de ter encontrado representantes da “forma de cultura” mais antiga, pode esclarecer porque a fonte assaz precoce de Schomburgk acerca da agricultura dos chamados “Shirishana” na maior parte das vezes tenha sido apresentada de modo relativizante na recepção etnográfica da primeira metade do século XX. Indícios que comprovam que os Yanomami pertencem a um “estágio econômico apropriador” foram buscados, e sinais para tanto aceitos com agradecimentos e recepcionados com zelo. Indícios da prática do plantio, ao contrário, foram enfraquecidos ou completamente ignorados (vide Chaffanjon 1889: 302, 305; Spruce 1908 I: 355–356.; Hamilton Rice 1921: 322, 341; Métraux 1948: 861–862). Assim foi consagrada aos Yanomami – no princípio ainda sob a designação de Waika e Shiriana ou Xiriana –, nas publicações que por muito tempo foram tidas como as mais competentes acerca das áreas culturais da América do Sul, a posição histórico-cultural de “povos marginais”, que ainda viviam da caça e da coleta (Cooper 1942: 150–151; Steward 1948: 883–889).

Primeiras pesquisas científicas A primeira pesquisa etnológica de campo de maior abrangência junto aos Yanomami foi encaminhada em meados do século XX por Otto Zerries e Meinhard Schuster na corrente superior do Orenoco, junto aos Mahekodotedi (Mahekototheri). O Frobenius-Institut de Frankfurt, de orientação morfológico-cultural, confiou aos cientistas a missão de determinar a posição econômica – e com isso também a posição histórico-cultural – dos Yanomami no âmbito do esquema de uma estratificaçao cultural. Indubitavelmente, a concepção desse empreendimento investigativo foi muito estimulada pela perspectiva de conhecer mais exatamente o “estágio cultural dos caçadores e coletores”. Depois de sua estadia de pesquisa no sul da Venezuela, Otto Zerries contradiz com palavras claras a avaliação dos Yanomami, ou Yanoama, como caçadores e coletores: “Quase todos os grupos dos assim chamados Yanoama já deixaram o status exclusivo de caçadores e coletores; na maior parte deles, a plantação no entanto ainda se encontra nos primórdios, e na maior parte das vezes pode ser reconhecida como uma importação estrangeira recente, embora já tenha levado inclusive à propriedade de terras. A economia coletiva é, além disso, de grande importância, e a caça e a pesca estão diminuindo em relação a ela” (Zerries 1964: 285). Com relação às avaliações das dimensões temporais e das noções de uma sequência cronológica nas quais a mudança cultural se completa – isto é, como ela pôde ser encaminhada no caso dos Yanomami –, Zerries fica preso à sua época e aos conceitos teóricos típicos dela. Porém no trabalho de campo, como também na análise de fontes etnográficas estranhas, ele se mostra um observador

137

extremamente atento. Declarações precoces de sua parte dão testemunho de uma avaliação bastante clara dos elementos primitivos ante os quinhões agrários do modo econômico dos Yanomami. Zerries esclarece, aludindo à compreensão enganosa de uma economia puramente primitiva de caça e coleta entre os Yanomami: “Através do contato apenas fugidio que esses viajantes primevos tiveram com os Guaaribo, ou os Waika do alto Orenoco, surgiu a impressão de uma economia puramente primitiva de caça e coleta, que segundo minha opinião esses índios já não encarnavam mais há cem anos, pois a introdução da plantação entre os Waika no espaço de El Platanal e região, conforme os missionários da ‘New Tribes Mission’ constataram, provavelmente já tenha existido antes. Os relatos que dão conta de outra situação, feitos por nossos antecessores, provavelmente se devam em parte ao hábito dos Waika de por um lado estabelecer suas plantações às vezes em lugares bem distantes da aldeia, por outro lado ao fato de regularmente abandoná-las, assim como também o plantio, para incursões de caça e de coleta de orientação nômade” (Zerries 1964: 53). De todo modo é indiscutível que a maior parte dos Yanomami até hoje dependem fortemente da caça, da pesca e da atividade coletora para seu abastecimento, mas também que sempre complementaram suas atividades apropriadoras com a agricultura simples, e que essa combinação inclusive representa uma antiga tradição. E nisso a banana, com suas numerosas variedades, foi a planta decisiva dos Yanomami, e não – como no caso de muitas etnias vizinhas do Caribe – a mandioca. Uma vez que a banana é uma planta que veio da África para a América, e ainda não existia por ali em tempos pré-colombianos, as considerações históricas aqui estabelecidas dizem respeito apenas à época posterior ao contato com o “Velho Mundo”. Quando, exatamente, e por que caminhos a banana chegou aos Yanomami não pode ser comprovado. É óbvio, contudo, que com a maior disponibilidade de instrumentos de metal a partir de meados do século XIX, a assaz trabalhosa roçada com fogo, encaminhada primariamente até então para limpar os campos, passou a se tornar bem mais rara. Ainda que machados e machetes tivessem passado por muitas mãos até chegar – na maior parte das vezes apenas como cacos ou fragmentos – aos Yanomami em suas regiões remotas, eles ainda podiam servir para abrir áreas de horticultura maiores e aumentar a receita agrária. A melhora no abastecimento de alimentos provavelmente tenha levado então àquele aumento populacional repentino que já foi mencionado. Ele por sua vez desencadeou excursões expansionistas por parte de alguns grupos de Yanomami, que deixaram a região que então ocupavam, a cordilheira da Serra Parima e as terras altas em torno das nascentes do Siapa, e avançaram para os grandes rios. Sem dúvida alguma esses movimentos itinerantes foram motivados pela exigência de utensílios de metal que facilitassem o trabalho: afinal de contas, era mais fácil conseguir as ferramentas junto aos rios, pois ali os Yanomami encontravam com mais frequência madeireiros, seringueiros ou regatões. Contudo é preciso dizer com clareza que a mobilidade caracteriza, fundamentalmente, o modo de vida dos Yanomami, e que excursões às regiões mais próximas, mas também marchas mais longas a lugares distantes da hinterlândia até hoje fazem parte de sua rotina cultural.

138

Imagem 177: Garotos dançando. Foto: Gabriele Herzog-Schröder, 2012 Crianças e adolescentes vão à escola para aprender tanto a escrever e calcular como também alguns rudimentos da língua espanhola com a ajuda da missão católica Dom Bosco. Através dos professores, que viajam muito para encontros interregionais, eles também conhecem a moda atual e os mais novos cortes de cabelo. Nas muitas festas em suas aldeias, eles cantam e dançam à maneira antiga. É isso que apresentam aqui aos visitantes europeus. (GHS)

Imagem 178: Um homem faz uma flecha. Foto: Gabriele Herzog-Schröder, 2012 Sentado debaixo de seu telhado de uma água, um homem trabalha na feitura de uma flecha. As canas para a flecha são plantadas no jardim, mas também são cobiçados objetos de troca. As redes para proteger dos mosquitos são relativamente novas entre os Yanomami do alto Orenoco. Desde sua introdução, o número de casos de malária diminuiu significativamente. O material de nylon de fácil combustão, no entanto, obrigou a um afastamento das redes de dormir, que antes eram penduradas bem mais próximas umas das outras em torno da fogueira. (GHS)

Em seus avanços, alguns grupos alcançaram, ao norte, os rios venezuelanos Erebato e Paragua, assim como a corrente superior do Ventuari. A oeste, chegaram pelo rio Mavaca até bem adiante na região que é cruzada pelo canal Casiquiare; grupos isolados avançaram ao sul ao longo dos afluentes Cauaburi, Marauiá, Padauiri, Araçá e Demini abaixo até o Rio Negro, e a leste até os afluentes do Rio Branco: Uraricoera, Mucajai, Ajarani e Catrimani. Enquanto os Yanomami, portanto, ainda se estabeleceram até o século XX adentro sobretudo junto aos menores afluentes, hoje em dia se encontra um número bem maior de comunidades junto aos rios que podem ser percorridos por canoas, sobre as quais eles conseguem um contato melhor com os “criollos”– conforme são chamados os não-indígenas na Venezuela – e com isso também acesso a seus bens tão estimados. Entrementes, a formação escolar, o abastecimento médico e a participação em decisões políticas dos respectivos Estados em que eles vivem se tornaram importantes; eles falam cada vez mais em seu próprio nome acerca dos assuntos que lhe dizem respeito e aos poucos se libertam da dependência de missões cristãs ou de ONGs. Contudo, a maior visibilidade dos “Yanomami dos rios”, conforme é apresentada nos meios de comunicação, não deve iludir acerca do fato de que o número de aldeias Yanomami no interior, que dizer, nas terras montanhosas de difícil acesso, é bem maior do que o das povoações localizadas junto aos rios. Mas prossigamos, antes de mais nada, na história dos primeiros contatos.

Theodor Koch-Grünberg segue o rastro de Alexander von Humboldt e outros viajantes dos primórdios No relato sobre sua viagem pela Guiana nos anos de 1838 e 1839, Robert Schomburgk conta que os Xiriana são muito temidos entre as etnias vizinhas, nomeadamente os Ye’kuana (também Maionkong ou Maquiritare). Sua fama de guerreiros sempre dispostos ao ataque atrapalhou sensivelmente os planos de viagem de Schomburgk: quando entrou com sua tropa em uma aldeia dos Ye’kuana localizada bem longe, ao sul, imperava por lá um temor agudo ante ataques dos “Kirischana” das cordilheiras de difícil acesso de Parima, mais ao norte. O “medo genuinamente pânico” desencadeado por essa notícia tomou conta também dos viajantes, guias e carregadores indígenas que seguiam com Schomburgk; eles lhe negaram lealdade, obrigando assim a expedição ao retorno (KochGrünberg 1923: 285). Esses Kirischana (Xiriana) estabelecidos mais ao sul, na região entre o Orenoco e o Ocamo, seu afluente à margem direita, levou Schomburgk já na época a entrar em contato com os igualmente temidos “Guaharibo e Guaica” estabelecidos nos rios-nascentes do Orenoco, que “em seu tempo impediram Alexander von Humboldt de chegar às nascentes do Orenoco” (Koch-Grünberg 1923: 285). O embate entre uma comissão de fronteira e os Yanomami no “raudal de los Guaharibo“, que intimidou Humboldt no ano de 1800, teria acontecido já em 1764; ao final das contas, porém, ele acabou se revelando meramente um boato (Zerries 1964: 8; Ferguson

1995: 385 com Obs. 6). Alexander von Humboldt viajou pelo Orenoco – assustado com essa antiga história –, chegando apenas até La Esmeralda. Nessa cidadezinha avançada do Orenoco, ele contudo encontrou “Guaica” e “Guaharibo”, portanto Yanomami: “Quero apresentar aqui algumas explicações acerca das tribos indígenas ananzadas e esbranquiçadas que segundo antigas tradições há anos foram deslocadas às proximidades das nascentes do Orenoco. Tive oportunidade de ver indivíduos tais como eles em Esmeralda, e posso garantir que a baixa constituição física dos guaicas, assim como a brancura dos Guaharibo [...] foi exagerada de modo equivalente” (Humboldt 1980: 491). Humboldt refere aqui mapas ou relatos do século XVIII tardio, que remontam a tropas de exploração espanholas e portuguesas às correntes superiores dos rios Siapa, Mavaca, Padauiri, Araçá ou do rio Demini. Nestas podem ser encontradas várias referências a “Guahariba blancos” ou “Guahiba blancos” em razão da cor da pele relativamente mais clara de muitos Yanomami se comparada a de suas tribos vizinhas. (Cocco 1972: 35–36; Migliazza 1972: 6). Descrições de ataques guerreiros são características da história dos contatos com os Yanomami. Mas também há relatos de encontros pacíficos desde os primeiros tempos em que os mesmos passaram a suceder. O naturista e pesquisador francês da bacia do Orenoco Jean Chaffanjon, que no ano de 1886 imaginava ter descoberto as nascentes do grande rio – coisa que se revelou um engano, posteriormente –, conta de encontros amistosos com Yanomami acima das correntezas chamadas “raudal de los Guaharibo”. Ao mesmo tempo ele também ouviu acerca de boatos sobre sua suposta hostilidade em grupos indígenas vizinhos. Koch-Grünberg se expressa de modo igualmente cético sobre os relatos de ataques de Yanomami a brancos ou viajantes indígenas: “Acerca da selvageria dos Guaaribo se escreveu um bocado e ainda hoje se conta muito a respeito às margens do Orenoco. Entretanto há toda uma série de indicações de diferentes épocas que acentuam e demonstram a inofensividade desses índios, assim como de que a culpa por embates eventuais habitualmente deve ser buscada do lado dos assim chamados “civilizados”, índios ou mestiços” (Koch-Grünberg 1923: 296). Nesse sentido, quem conta de verdadeiras caças de “índios semicivilizados” aos “Guaharibo” e de ataques aos grupos Yanomami da hinterlândia é o botânico e naturalista britânico Richard Spruce, que em 1853, portanto ainda antes de Chaffanjon, percorreu a região do Orenoco. Também ele contou, porém, que não eram raras as vezes em que os Guaaribo compreensivelmente se defendiam contra esses índios do Casiquiare, o que podia ser constatado nas cicatrizes em seus corpos (Spruce 1908: 356). De quando em quando, de fato também podem ser lidos relatos sobre a “selvageria” dos Yanomami, como invocações de uma profecia autorrealizadora. Por fim, no ano de 1920 chegou-se ao episódio fatídico que fundamentaria a fama guerreira dos Yanomami. Mais uma vez o objetivo consistia em buscar as nascentes do Orenoco. Dessa vez o geógrafo norte-americano Alexander Hamilton Rice viajou com uma tropa de acompanhantes – entre eles também alguns de origem indígena – do Rio Negro, vindo do Casiquiare, pelo Orenoco superior acima. Junto ao “raudal de los Guaharibo” a expedição descarregou a bagagem à margem sul do Orenoco, a fim de fazer o bote

139

Imagem 179: A comunidade durante o funeral. Foto: Gabriele HerzogSchröder, 1991 Os Yanomami conduzem o funeral de seus mortos em diversos passos. Depois de queimá-los, eles socam os ossos do cadáver em uma cerimônia até estes virarem “cinza”. A cinza é misturada a uma bebida de banana em vários encontros festivos e consumida comunitariamente. Todos os habitantes da aldeia e também amigos e aliados de outras comunidades se reúnem para esse ofício fúnebre. (GHS)

subir a queda d’água. Foi então que a expedição se aproximou de um grupo de cerca de 60 ianomamis.5 Os ianomamis e o grupo de pesquisa provavelmente tenham se mostrado igualmente surpresos e assustados com o encontro inesperado. Uma divisão dos índios avançou sobre os estranhos, e, segundo Zerries, quatro entre eles mantinham arco e flecha apontados. Essa postura, que corresponde a um hábito dos Yanomami mesmo em encontros entre si e que demonstra cautela – mas não necessariamente hostilidade –, deixou os membros da expedição visivelmente em pânico. Hamilton Rice disparou “tiros de advertência” (vide Hamilton Rice 1921), que no entanto atingiram vários Yanomami e os derrubaram. Os brancos fugiram com seus acompanhantes debaixo de uma chuva de flechas desencadeada pela ação sangrenta – deixando para trás muitas de suas peças de bagagem – rio abaixo, em seu bote. Esse episódio resultante da ignorância e da irracionalidade dos viajantes estranhos sedimentou a imagem dos Yanomami agressivos e levou, segundo Zerries, a que “para quase uma geração a região do Orenoco superior [se tornasse] praticamente intocável para os brancos, em razão da postura agora nitidamente hostil dos índios Waika” (Zerries 1964: 9; vide também Cocco 1972: 60). As visadas na história precoce dos encontros com os Yanomami aqui esboçadas não devem ser concluídas sem mencionar uma suposição sobre contatos primevos com grupos Yanomami nos quais 5 Mais tarde foi possível reconstruir que se tratava de uma comunidade dos Hasupïwëtheri, que se encontrava em expedição.

140

a atividade de pesquisa de Johann Natterer no norte da Amazônia tem uma papel fundamental: “[…] Koch-Grünberg […] também ouviu junto ao Casiquiare acerca de ‘índios selvagens, talvez Guaharibo’ na região das nascentes do Siapa. Que de fato poderia se tratar de Waika ou Schiriána se torna mais provável através de uma indicação na lista de Johann Natterer de suas provas linguísticas coletadas na América do Sul entre 1817 e 1835 publicada por Nowotny (1949: 160/164). Lá são mencionados, sob o nr. 39 […] os Mainatari junto ao Castanhaparaná, que desembocaria no Orenoco. No mapa do território do Amazonas da Venezuela do ano de 1936 […] é registrado um Río Castaño como nascente do Río Siapá, que por sua vez desemboca no Casiquiare. Esse Río Castaño é muito provavelmente idêntico ao Castanhaparaná de Natterer. As sílabas finais ‘tari’ em Mainatari são, no entanto, o conhecido sufixo de vários grupos locais do povo Yanoama, em cujo terreno habitado também corre o Río Castaño” (Zerries 1964: 8). Essa indicação do texto de Zerries intitulado Waika parece sugerir que Johann Natterer – ao qual o presente texto de certo modo parece ser dedicado – poderia ter tido contato periférico com esses indígenas. Ao contrário da suposição de Zerries, a lista de palavras dos Mainatari entrementes acabou sendo reencontrada; ela hoje em dia está no setor de manuscritos da Biblioteca Universitária de Basel (Kann 1989: 101). A autora não pôde constatar semelhanças com o vocabulário dos Yanomami do Orenoco superior. Tão-somente o fato de que todos as partes do corpo em Mainatari começarem com o prefixo “no” poderiam apontar, no que diz respeito a um sistema de classificadores morfológicos, ou seja lexemáticos, a uma semelhança estrutural com o Yanomami. Também no Yanomami é anteposta a todas as partes do corpo um morfema específico, contudo não o classificador nominal “no”, e sim “pei”. O único par de palavras no qual se pode construir foneticamente uma certa concordância é “machado – shipala”: em Yanomami “sipara” significa machete. A pronúncia de “shipala” é próxima de “sipara”, e uma confusão de ambas as ferramentas de metal altamente valorizadas machete e machado também não deixa de ser bastante plausível. Uma vez que em uma análise dos 50 pares conceituais dos Mainatari desconhecidos que nos chegaram através de Natterer este é o único em que pode ser constatada uma certa concordância, mais especulações serão deixadas de lado aqui, e primeiramente se partirá de um contato em todo caso indireto de Natterer com os Yanomami.

A pesquisa Yanomami a partir de meados do século XX Depois dessas visadas na história dos primeiros contatos, pretende-se agora fazer um panorama geral dos trabalhos etnológico-antropológicos e inclusive linguísticos dos últimos 60 anos. Este poderá contemplar apenas alguns autores importantes, que passaram mais tempo junto a grupos locais dos Yanomami. As primeiras pesquisas etnológicas abrangentes foram encaminhadas nos anos de 1954 e 1955 pelo já várias vezes mencionado Otto Zerries do Frobenius-Institut da Universidade de Frankfurt e seu

assistente de então, Meinhard Schuster. Esses dois cientistas passaram quase um ano na aldeia Mahekodotedi (Mahekototheri, conforme se convencionou escrever hoje), que na época, assim como hoje, fica nas proximidades da estação missionária El Platanal. O objetivo de sua expedição era investigar a “posição histórico-cultural dos índios waika do Orenoco superior no âmbito da etnologia sul-americana”. Com Mahekodotedi, od dois cientistas apresentaram uma “Monografia de uma aldeia dos índios Waika (Yanoama) no Orenoco superior (Venezuela)”. A documentação abrangente e assaz conscienciosa dos dois etnólogos é altamente informativa, apesar do acabouço teórico entrementes superado (Zerries 1964; Zerries e Schuster 1974). Os primeiros estudos linguísticos sobre o Yanomami foram encaminhados no princípio da década de 1970 por Ernesto C. Migliazza. A tentativa precoce de um léxico foi apresentada pelo etnólogo francês Jacques Lizot do Laboratoire d’Anthropologie Social em Paris. Em 2007. esse léxico foi substituído pelo mais abrangente e fartamente ilustrado dicionário Lengua y Cultura Yanomamï de Marie-Claude Mattéi-Muller, que surgiu depois de um trabalho de pesquisa de vários anos, e em parte em cooperação com a autora. Jacinto Serowë da aldeia Mahekototheri assina como co-escritor da obra.6 Para os estudos linguísticos na parte brasileira da região Yanomami é preciso referir os nomes de Henri Ramirez e Gale Goodwin Gómez. Jacques Lizot viveu de 1968 ao princípio da década de 1990, com poucas interrupções mais longas, na região dos Yanomami, nas proximidades da aldeia Karohi, junto ao rio Manaviche. A longa permanência no campo de pesquisa lhe concedeu a fama de pesquisador “who goes native”, que apenas aumentou com a publicação de sua narrativa poética No círculo dos fogos (1976). Esse livro apresenta, com sua atmosfera sombria e melancólica, um exemplo interessante de etnografia literária. Outras publicações de Lizot nas décadas de 1980 e 1990 se ocupam de temas como cultura material, economia e estrutura social. A partir de meados da década de 1990, a reputação de Lizot passa a ser avaliada de maneira crítica. Ele sempre se recusou a fazer qualquer comentário acerca das acusações de abuso sexual de jovens garotos Yanomami. Os trabalhos de Lizot sobre a mitologia dos Yanomami (1973; 1989; 1993), que em parte foram escritos junto com o missionário salesiano Juan Finkers, também merecem ser mencionados (Lizot 1973; Lizot, Cocco e Finkers 1993). Um dos mais conhecidos e controversos pesquisadores dos Yanomami é Napoleon A. Chagnon. Ele principiou suas pesquisas em 1964 na região do Orenoco superior e junto ao Mavaca. Mais tarde percorreu também a parte brasileira das terras Yanomami. Seu interesse principal é a investigação da agressão e da guerra entre os Yanomami. Chagnon tenta alcançar uma síntese entre princípios ecológico-culturais e teorias biológico-evolucionistas. Em sua obra principal, várias vezes editada, Yanomamö – The Fierce People, e em numerosas outras publicações, Chagnon situa o ideal Yanomami da autorrepresentação destemida e dos duelos rituais no contexto da hombridade violenta. Contudo, apenas uma noção exata da ideia indígena de força, vida e morte no sentido de uma consideração êmica, ou seja, culturalmente 6

A menção dos autores na capa do livro é a seguinte: “Marie Claude Mattei M. con la cooperación muy especial de Jacinto Serowë”.

Imagem 180: Princípio de um ritual xamânico. Foto: Gabriele HerzogSchröder, 2012 Rituais xamânicos também têm um papel importante no cotidiano de uma comunidade Yanomami. Em quase todas as tardes, homens, iniciados e não-iniciados, se reúnem para cerimônias xamânicas. Os homens se transportam a um estado de transe com a ajuda da droga de cheiro epena (Virola elongata; Anadenanthera peregrina), que sopram aos narizes uns dos outros. Os xamãs sedimentam o contato com a realidade espiritual. Cantando e dançando, eles interpretam os procedimentos nas diferentes esferas da realidade. (GHS)

imanente, tornam compreensíveis essas cerimônias e lutas imponentes. As declarações de Chagnon acerca das dimensões de casos de morte violenta aliás, parecem exageradas a conhecedores dessa região. Seu paradigma central, que se fundamenta em poder e gender, é o da concorrência masculina pelas mulheres a fim de alcançar vantagem reprodutiva. Nesse sentido, a prontidão à violência dos Yanomami invocada há tanto tempo, assim como suas regras de casamento correspondem para ele ao princípio da seleção cultural.7 A crítica a sua orientação sociobiológica deixou a Cultural Anthropology dos Estados Unidos mas também alguns setores da pesquisa etnológica na Europa em grande alvoroço. Um primeiro clímax do confronto com sua abordagem científica foi representado pela publicação do jornalista Patrick Tierney, Darkness in El Dorado – How Scientists and Journalists Devastated the Amazon, no ano de 2000. Entre outras questões, Tierney acusa Chagnon de ter usado métodos pouco limpos em sua pesquisa. Ele teria, sobretudo, motivado e instigado os resultados visados por sua pesquisa acerca da agressividade dos Yanomami através de seu próprio comportamento. O documentarista brasileiro José Padilha faz uma interpretação semelhante dos desígnios de pesquisa de Chagnon com seu filme Secrets of the tribe (2010), que usa os debates de círculos acadêmicos sobre os trabalhos de Napoleon Chagnon, sobre seus dados materiais e sobre o modo como apresentou os Yanomami para o conteúdo de sua reportagem. Padilha deixa seus entrevistados expressar sua opinião sobre em que medida Chagnon – assim 7

Vide, acerca dessa crítica, também Herzog-Schröder 2000.

141

como outros pesquisadores dos Yanomami que ele também bota em sua alça de mira – teria ultrapassado fronteiras éticas em sua pesquisa antropológico-cultural.8 Assim como já fizera Patrick Tierney, José Padilha considerou criticamente, ao lado de Napoleon Chagnon, também a práxis científica e a práxis de vida de Jacques Lizot, e inclusive a de Kenneth Good; o antropólogo cultural americano Good causou sensação com seu casamento com uma jovem mulher Yanomami (vide Good 1991). Ao lado dos personagens problemáticos entre os pesquisadores dos Yanomami, um número entrementes quase inabarcável de cientistas corre risco de não ser mais percebido, ainda que algumas personalidades, que em parte fizeram pesquisa de campo por um bom tempo, ainda mereçam ser mencionadas sem falta. Para concluir, primeiramente, a ciranda dos pesquisadores de língua alemã, mencione-se o biólogo Irenäus Eibl-Eibesfeldt, que no âmbito de um projeto cinematográfico de orientação etnológica e comparação cultural visitou os Yanomami – no princípio a partir da década de 1960 no Ocamo superior, depois a partir do princípio da década de 1980 no Orenoco superior – diversas vezes, documentando cinematograficamente de forma abrangente tanto a vida cotidiana como numerosos rituais. Esse amplo compêndio de gravações cinematográficas, que são administradas no Humanethologischen Filmarchiv (Andechs), mostra tanto a continuidade quanto a transformação na vida cultural dessa sociedade que por tanto tempo permaneceu quase absolutamente isolada (Eibl-Eibesfeldt et al. 2000). Há alguns anos a coleção de objetos etnográficos que Eibl-Eibesfeldt conseguiu reunir no decorrer de suas numerosas visitas pôde ser adquirida pelo Museum für Völkerkunde de Viena. A autora do presente texto, que na condição de cientista da cultura há um bom tempo mantém vínculos com o Humanethologischen Filmarchiv trabalhou, em suas pesquisas etnológicas, entre outros com princípios de teoria corporal e dos gêneros (Herzog-Schröder 2000; 2003).

Etnologia em tempos de destruição Uma representação do trabalho etnográfico no Brasil não se faz possível sem antes lembrar os acontecimentos dramáticos da década de 1970 a 1990 que marcaram a região ocupada ancestralmente pelos Yanomami. Após encontros esporádicos nos séculos anteriores, no princípio da década de 1970 começou a migração de algumas dúzias de garimpeiros de ouro. Em 1974, por sua vez, principiou a construção da Perimetral Norte (BR-210), uma estrada que deveria cortar o território dos Yanomami. Com os operários da construção, chegaram ao lugar também a gripe, o sarampo, a tuberculose, a hepatite e a malária. Depois que análises mineralógicas apontaram a existência de ouro, urânio, diamantes e cassiterita, a situação piorou ainda mais. Já no ano seguinte, centenas de garimpeiros se lançaram sobre o território, no princípio à procura de cassiterita, usada para a fabricação de alumínio. A partir de 1980, duas empresas de 8

142

As acusações feitas diversas vezes de que Chagnon teria submetido os Yanomami a experimentos genéticos em conexão com uma epidemia de sarampo não puderam ser confirmadas em investigações abrangentes da AAA (American Anthropological Association).

mineração receberam permissão oficial para a exploração de minério de titânio nas terras Yanomami. A partir de 1981, bandos de aventureiros em busca da sorte invadiram a região de forma descontrolada: desta vez à procura de ouro. Uma epidemia de sarampo acabou com a vida de dezoito Yanomami logo no começo; depois o número das perdas não pôde mais ser avaliado. Já em 1978, ativistas preocupados, entre eles os etnólogos Alcida Ramos, Ken Taylor e Bruce Albert, assim como a fotógrafa Claudia Andujar, fundaram a Organização Não-Governamental independente “Comissão pela Criação do Parque Yanomami”, que se tornou conhecida pela sigla CCPY. No final da década de 1980, no auge da invasão, todos os potenciais testemunhas das circunstâncias, que entrementes haviam assumido a dimensão de um genocídio, foram expulsos da região: equipes de socorro médico, os missionários da ordem Consolata, etnólogos... Dezenas de milhares de garimpeiros de ouro, no entanto, puderam continuar, sem serem perturbados, suas atividades, que acabaram destruindo grandes trechos do território e levando a população às margens da extinção. Nas proximidades dos rios Catrimani e Apiau, Yanomami caíram vítimas de assassinatos planejados, e doenças desconhecidas até então se espalharam. Em 1988, havia cerca de 20 mil exploradores de ouro no local. A população indígena era inferior, na mesma época, a 9 mil indivíduos. Mais de 100 pistas de decolagem ilegais podiam ser constatadas na fronteira venezuelana. Apenas em 1990 o governo fez tentativas de diminuir a invasão; ativistas da CCPY tiveram a entrada na região permitida para a instituição de um plano de emergência. Os que voltaram foram obrigados a constatar com horror que – por doenças e assassinatos – cerca de 15% dos Yanomami brasileiros haviam tombado vítimas da invasão.9 Depois de forte pressão internacional, o então presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello, decidiu-se a assinar, em 1992, o decreto que garantia uma reserva de 192.000 km2 aos Yanomami. Desde a mudança de seu nome para “Pro-Yanomami Commission-CCPY”, a organização continuou trabalhando sem parar no sentido de melhorar as condições de vida e de saúde dos Yanomami. No ano de 2000, a organização abriu um escritório na capital, Brasília, a fim de poder influenciar diretamente projetos e processos que digam respeito aos direitos territoriais e do uso da terra dos Yanomami. Também o abastecimento médico, medidas de formação e questões agrário-florestais puderam ser melhor levadas a cabo no centro político do Estado. Alcida Rita Ramos, professora da Universidade de Brasilia, já fizera, no final da década de 1960, pesquisas de campo estendidas junto a diferentes grupos Yanomami, sobretudo os Sanïma. Seu livro Sanumá Memories. Yanomami Ethnography in Times of Crisis10 publicado em 1995 espelha modelos e estruturas sociais e suas transformações sob a influência do violento processo ao qual os Sanumá foram submetidos nos anos anteriores. Ramos já há décadas está engajada tanto na defesa dos Yanomami quanto de outras comunidades indígenas do Brasil e da América Latina. Seu interesse cientí9

Vide: [email protected]; Cimi – brasilianischer Indianer Missionsrat 27. August 1993.

10 O original português leva o título de: “Memórias Sanumá – espaço e tempo em uma sociedade Yanomami“.

fico está voltado, entre outros, ao complexo ideológico do “indigenismo”. Nele se encontram as imaginações que atuam umas sobre as outras do “ser-índio” de brasileiros de origem europeia e africana, como também de brasileiros índios, e os efeitos concretos dessas noções e autointerpretações na política de orientação étnica das minorias praticada no país. O francês de nascimento Bruce Albert trabalha há mais de 35 anos com os Yanomami; ele já se empenhava bem cedo, ao lado de sua atividade científica no âmbito da CCPY, em favor da sobrevivência física e cultural dos grupos no Brasil. Há alguns anos, Albert – na maior parte das vezes junto com o xamã mundialmente conhecido Davi Kopenawa (ou Kopenawe) – desenvolve projetos na confluência entre antropologia cultural e arte. Assim surgiu, em 2002, na Fondation Cartier, em Paris, a exposição “The Spirit of the Forest”. Para a Bienal da Ópera de Munique, em 2010, Albert e Kopenawa orientaram a produção do teatro musical “Amazonas”. Os esforços de Bruce Albert no sentido de estabelecer uma reviravolta no olhar etnológico – e olhar com os olhos dos indígenas para o mundo dos europeus e seus descendentes nas Américas – culminou no livro, escrito em colaboração com Davi Kopenawa, intitulado La chute du ciel: Paroles d’un chaman Yanomami (2010). Essa obra abrangente oferece um olhar profundo à cosmologia e à sabedoria filosófica dos xamãs Yanomami, conforme ele certamente só é possível na interação respeitosa de representantes de ambas as culturas. A linguista Gale Goodwin Gomez se ocupa, desde o princípio da década de 1990, com o registro escrito do Yanomae (Yanomam) falado no Brasil, e no momento trabalha também com o regioleto Yanoam/Ninam dos Xiriana, ao norte. Sua ocupação científica desde o princípio sucedeu em estreita colaboração com as necessidades humanitárias constatas in loco. Por primeiro, ela colocou sua competência linguística a serviço de um atendimento médico adequado aos Yanomami e participou do desenvolvimento de um manual que as equipes médicas passariam a usar. Essa espécie de apoio desembocou em mais projetos que vão bem além do abastecimento emergencial após os ataques catastróficos dos quais os índios foram vítima. De modo que entrementes se constata que os Yanomami são capazes, sobretudo através da capacidade adquirida de ler e escrever, de participar de processos políticos que dizem respeito à sua existência. Especialmente no que tange à defesa de seus direitos sobre a terra, a melhora do atendimento à saúde e à concepção autônoma da oferta de ensino específica a sua cultura nas escolas, eles se mostram, cada vez mais, agentes fortes e conscientes na política indígena do Brasil (vide, a respeito disso, Goodwin Gómez 2007).

Davi Kopenawa e uma perspectiva para o futuro Um capítulo sobre “os Yanomami” não pode ser concluído sem mencionar honrosamente a pessoa de Davi Kopenawa, o xamã e cacique da aldeia Watoriki. Kopenawa aprendeu português, quando adolescente, com missionários cristãos, e experimentou o modo de vida dos não-indígenas, voltando a suas próprias tradições mais tarde, porém, e iniciando-se no xamanismo. Desde a década de 1980, ele viaja muito e chama a atenção do mundo inteiro para os

Imagem 181: Discussões de homens. Foto: Gabriele Herzog-Schröder 2012 Nos encontros vespertinos durante a invocação dos espíritos xamânicos são discutidas e tomadas decisões tanto acerca de questões cotidianas, como também de assuntos políticos da maior importância para o grupo. Os oradores usam de habilidade retórica e poder de convencimento, alcançando grande eficácia em seus discursos. (GHS)

perigos que ameaçam seu povo, mas, devido à destruição da natureza, e sobretudo das florestas, também o restante do mundo. Davi Kopenawa mereceu numerosas distinções por seu engajamento humanitário. Tanto a fotógrafa Claudia Andujar como o etnólogo Bruce Albert muitas vezes o apoiaram em seus esforços. Os representantes dos Yanomami, sobretudo Davi Kopenawa, aprenderam, com os ataques violentos das décadas passadas, que precisam se mostrar presentes e visíveis para o mundo, e que necessitam de aliados entre a população citadina de seus países, mas também de outros lugares do mundo. Apenas assim poderá ser mobilizado um protesto internacional no caso de haver um retorno maciço de intrusos. A constituição de redes através de meios modernos do mundo globalizado é censurada com frequência. No entanto, para os Yanomami – assim como para a maior parte das comunidades indígenas da Amazônia –, uma sobrevivência tanto em sentido físico quanto cultural parece possível apenas se alcançar sucesso a construção de pontes entre o modo de vida tradicional (com seu vínculo estreito com os espíritos da floresta) de um lado, e de outro lado os amigos e apoiadores nos centros modernos deste mundo, que os Yanomami e outros indígenas podem convocar através do espaço cibernético.

143

Seção Catalográfica

Penas decorativas de arara (ara shina) com friso de conservação. Yanomami, alto Orenoco, Venezuela. Penas, madeira, ráfia, C. 66 cm. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nº de Inv. 185.204

Yanomami, Guaianas

Uma matéria-prima valiosa como essa deve ser guardada dentro de casa, acima do local em que fica o fogo, pois do contrário pode se deteriorar facilmente devido à umidade. Longas penas de rabo de arara são enfiadas nas braçadeiras pelos homens e usadas assim durante as visitas de outras comunidades e em festas de dança. (GHS)

Rede (yïï këkï), faixa de carregar criança (waremashi) e cesto de cargueiro (yorehi). Yanomami, alto Orenoco, Venezuela. Em torno de 1983. Mamure (Araceae; Heteropsis spruceana), entrecasca, resina, tecido de casca de árvore, fio de algodão. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nºs de Inv. 185.268, 185.274, 185.289 A rede é o único móvel dos Yanomami; as redes de uma família estão penduradas em organização triangular em torno do local em que fica o fogo, no qual também é preparada a comida. Crianças de mais idade dormem, na maior parte das vezes, em uma rede, que fica acima de um dos pais, ou junto com os avós. Quando se sai para viajar, as redes são levadas junto, dobradas ou enroladas. Tradicionalmente elas eram feitas de mamure (raízes aéreas), fios de algodão ou casca de árvore. Hoje em dia na maior parte das vezes são confeccionadas a partir de tecido de algodão ou fios de nylon. A criança é carregada por tanto tempo até que consiga andar sozinha nos caminhos que levam ao jardim e ao local em que fica a água. No contato físico constante com a mãe, ela pode beber quando quiser. Para carregar o cesto, a mulher coloca a tira de casca de árvore sobre a testa. Assim, ela traz lenha para o fogo e também os produtos das excursões de coleta à floresta para a aldeia ou para o acampamento. O cesto é confeccionado com rapidez. Dentro dele também são distribuídos, durante as festas, carne, frutos de palmeiras e bananas de cozinhar como presentes aos convidados. (GHS)

Adorno de orelha (paushi), corante do arbusto de anato (nara) e feixe de fibra decorativo (hoko sikï). Yanomami, rio Putaco ou alto Orenoco, Venezuela. Partes de peles de pássaro ressecadas (Cotinga?), onoto ou urucu (Bixa Orellana), tecido, fibra do palmito (Arecaceae, Oenocarpus bacaba), fio de algodão, C. máx. 6,5 cm. Col. Trupp, Nºs de Inv. 170.773ab, 170.794ab, Col. Eibl-Eibesfeldt, Nºs de Inv. 185.094ab Em suas cerimônias, que acontecem diariamente, os xamãs muitas vezes usam os pingentes de orelha feitos de penas de cotinga. Os espíritos invocados pelos xamãs gostam desse adorno de orelha cintilante. Para pintar seu corpo, os mesmos xamãs usam o urucu para a cor vermelha, assim como o carvão ou a fuligem para o preto. O corante do urucu é usado cru e em forma de tinta comprimida, que fica mais escura ao ser cozida. Além de servir para pintar o corpo, a tinta vermelha ou marrom também serve para a decoração de cestos, pontas de flechas, ou cabaças (porongos). No ritual de passagem da menina que se torna mulher, a inicianda usa feixes de fibra do coração do palmito seje como adorno de orelha e como braçadeira. Quando frescos, os feixes de fibra são luzidiamente brancos. (GHS)

Adornos em pena (paushi). Yanomami, alto Orenoco, Venezuela. Penas, cálamos, fios de ráfia, peles de pássaros ressecadas com penas (tucano, cotinga e mutum-de-penacho), fibra de algodão, entrecasca, madeira, ráfia de casca de árvore, C. máx. 37 cm. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nºs de Inv. 185.100, 185.154–185.157, 185.183, 185.237–185.239 Feixes de penas e partes de peles de pássaros ressecadas são atados em forma de adornos e presos a barbantes; eles são fixadas tanto na bandana quanto na braçadeira. Homens e mulheres se enfeitam com eles sobretudo para encontros festivos, mas também por ocasião de cerimônias xamânicas. Adornos em penas, no entanto, são reservados sobretudo aos homens no alto Orenoco. (GHS)

Abanos para ativar fogo (shuhema) e molinilho (yõhõra). Yanomami, alto Orenoco, Venezuela. Década de 1970 e em torno de 1983. Folha de palmeira (Geonoma baculifera), mamure (Araceae; Heteropsis spruceana), madeira, C. máx. 58 cm. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nºs de Inv. 185.337, 185.472 Um fogo raramente é reacendido. Na maior parte das vezes, um cavaco ainda arde no local do fogo e a brasa é atiçada com um leque assim que o fogo voltar a se fazer necessário. Durante a noite, o fogo esquenta os corpos que dormem nas redes, e nas cinzas quentes são cozidas bananas. Bananas maduras amassadas em água são transformadas em uma mingau ralo com o uso do molinilho. (GHS)

144

145

Canudo para inalar drogas (epena), peneira para secar cascas de yopo e matéria crua de epena em trançado hexagonal. Yanomami, alto Orenoco, Venezuela. Caule usado para a confecção de flechas (Gramineae), noz de palmeira (Cucuríto Maximiliana regia Mart.), resina, madeira, ráfia de casca de árvore, epena, tiras de folha de palmeira, ráfia, mamure (Araceae; Heteropsis spruceana), C. máx. 64 cm. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nºs de Inv. 185.478, 185.480, Col. Trupp, Nº de Inv. 170.763 Com o canudo feito do caule de junco, os xamãs sopram o pó alucinógeno epena uns nos narizes dos outros. Em transe, eles se transformam a si mesmos em espíritos auxiliares (hekura), e podem assim reconhecer e combater as forças transmissoras de doenças. A droga de inalar epena ou yopo é produzida a partir das sementes raladas da Anadenanthera peregrina (também Piptadenia peregrina Benth.) e da cinza de uma casca de árvore (Elisabetha princeps). A casca da árvore conhecida como yopo é secada sobre o fogo antes de ser moída; em parte são acrescentadas ainda outras substâncias. A droga causa, após ingerida, alucinações breves, mas violentas. (GHS)

Pontas de flecha feitas de ossos (ãtãri ãhi hetho) e pontas de flecha feitas de bambu (rahaka). Yanomami, alto Orenoco, Venezuela. Madeira de palmeira, ossos de macaco, fios de ráfia, resina, bambu, C. máx. 31,3 cm. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nºs de Inv. 185.442–185.444 A ponta de flecha feita de bambu está enfiada na parte superior da aljava; ela pode ser perdida com facilidade e quando isso acontece é substituída. A ponta de gancho invertido é fixada com firmeza na extremidade da flecha. Se a resistência for demasiado forte, a haste da flecha se quebra. Pontas de flechas, sobretudo as pontas de bambu rahaka, muitas vezes são trocadas entre homens de diferentes comunidades durante visitas festivas. (GHS)

Boneco zoomórfico de folha de palmeira. Yanomami, alto Orenoco, Venezuela. Folha de palmeira, tiras de mamure (Araceae; Heteropsis spruceana), C. 38 cm, L. 29 cm. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nº de Inv. 185.490 Às vezes tenta-se controlar doenças que são creditadas à perda da alma pendurando um boneco em forma de animal sobre a rede da pessoa acometida. Assim, a alma errante, que é representada em figura animal, deve reencontrar o caminho de volta ao corpo. (GHS)

146

Cocar em formato de pantalha, feito de folha de palmeira (watoshe). Yanomami, alto Orenoco, Venezuela. Folha de palmeira, ráfia, corante, D. 34 cm. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nº de Inv. 185.485

Colar como amuleto protetor para crianças. Yanomami, alto Orenoco, Venezuela.Barbante de fibra vegetal com 26 dentes de macaco, C. simples 27 cm. Col. Trupp, Nº de Inv. 170.788

A coroa watoshe é parte do traje do candidato a xamã ao concluir a iniciação. Ela representa o espírito da onça, o mais alto entre todos os espíritos. O espírito da onça representa ainda todas as forças espirituais que são transferidas ao iniciando por seus mestres. (GHS)

Todas as crianças usam correntes como amuletos de proteção. Na maior parte das vezes são objetos vegetais como sementes ou pedaços de raízes que são usados como contas decorativas, mas por vezes, como acontece na presente ilustração, as correntes são adornadas também com dentes de macaco. (GHS)

147

Cordões de arco (hahitha), carimbo colorido e um grumo de resina envolvido por uma folha, e rolo de folha. Yanomami, alto Orenoco, Venezuela. Fibra vegetal, mamure (Heteropsis spruceana), resina, folha, ráfia, D. 15 cm. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nºs de Inv. 185.446–185.449 A resina em parte é misturada com cera de abelha e carvão em pó e usada como cola ou produto para endurecer misturas. Barbantes e cordões de arco também são impregnados com ela, a fim de torná-los mais resistentes e duráveis. O carimbo colorido é pintado com corante de urucu (Bixa orellana) e deixa sobre a pele os rastros do trançado hexagonal. (GHS)

Clava, guerra e prestígio. Pauxiana, Wapixana. Guaianas, região de fronteira Brasil/Guiana. Em torno de 1830. Madeira, lã vegetal, partes de pele de tucano ressecadas, C. máx. 79,5 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.939, 1.991, 1.992

Pontas de seta com curare (husu namo). Yanomami, Venezuela, alto Orenoco, Mahekototheri. Madeira de palmeira, curare, H. 25 cm. Col. Eibl-Eibesfeldt, Nº de Inv. 185.445a–e

Zarabatanas, aljava de setas e cabaça com veneno para as mesmas. Maioruna, Jucuna, Uirina, Mainatari, Porocoto. Guaianas, Brasil. Em torno de 1830. Madeira, junco, tiras de juncos, cascas de ovo de crocodilo, tiras de casca de árvore, madeira de palmeira, pele de macaco, mandíbula de peixe, lã, cabaça, tiras de plantas, C. max. 312 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.456, 1.564, 1.909, 1.919, 1.958 O uso de zarabatanas era difundido sobretudo na região ao norte do Amazonas, que também é designada como Guaianas e inclui tanto as três Guianas como também o norte do Brasil e o sul da Venezuela. As pequenas setas recebiam um envoltório de algodão na extremidade superior e as pontas eram embebidas no veneno de setas curare. De alguns grupos indígenas se sabe que consideram a zarabatana um objeto que transforma a energia negativa em energia positiva, ao fazer com que a caça vire alimento. (CA)

148

Muitos Yanomami são habilidosos fabricantes de curare. O veneno para setas, de teor alcaloide, age no ponto de passagem entre nervo e músculo. Ao penetrar na circulação sanguínea, ele leva à paralisia da musculatura respiratória, e com isso à morte. O curare é extraído das raízes e cascas de diferente espécies de Strychnos (Loganiaceae) e também de diferentes espécies de Chondodendron (Menispermaceae). As pontas de setas embebidas em curare são usadas sobretudo na caça a macacos; através da ação relaxadora sobre os músculos, os animais feridos deixam de se segurar com a firmeza necessária no alto das árvores e acabam caindo ao chão. O consumo de um animal morto pelo curare não representa nenhum perigo. (GHS)

As clavas eram, nas Guaianas, tanto armas de guerra quanto objetos cerimoniais. Na batalha homem contra homem, eles eram usados como arma para golpear; sua extremidade, que muitas vezes era em forma de ponta, servia para dar o golpe fatal no oponente. Um envoltório e uma presilha de algodão garantiam a firmeza ao segurar seu cabo em meio à confusão da batalha. Clavas com frinchas decorativas e pingentes de partes de peles de pássaros eram reservados a personalidades de liderança, que os apresentavam como objetos de prestígio em assembleias e festas. (CA)

Clava. Guiana. Em torno de 1838. Madeira, lã vegetal, pigmento, C. 91 cm. Col. Schomburgk, Nº de Inv. 2.639 O comerciante alemão Robert Schomburgk viajou a serviço da coroa britânica de 1835 a 1839, percorrendo a então Guiana Britânica. Ele também organizou coleções etnográficas, e em 1838 presenteou – provavelmente inspirado pelo anúncio das viagens de Johann Natterer no Brasil – o imperador austríaco com exatamente 100 objetos, entre os quais também a clava aqui apresentado. Trata-se de una clava de folha de remo típico da região, que é adornado com um motivo de formas losangulares e curvilíneas, que pode ser constatado já no século XVII. (CA)

Adorno de cabeça. Makuna-ui, Guaianas, região de fronteira Brasil/ Venezuela. Em torno de 1830. Penas, fibra vegetal, C. 54 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.929b O adorno de cabeça é constituído de 15 bandanas com penas vermelhas e negras de rabo de tucano e 10 penas de asa de jacutinga. O modo exato de usá-lo não aparece documentado, mas provavelmente essas bandanas com penas também fossem presas a um anel de cabeça trançado. (CA)

149

Adorno de cabeça com cobertura de nuca. Makuna-ui, Guaianas, região de fronteira Brasil/Venezuela. Em torno de 1830. Penas, peles ressecadas de pássaros, fibra vegetal, C. 96 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.923 Adornos em pena são usados nas Guaianas sobretudo, e em alguns grupos indígenas exclusivamente, por homens e em contexto ritual. No contexto xamânico, penas e peles ressacadas de pássaros permitem visualizar a estreita ligação com seres espirituais de feição passariforme, os espíritos auxiliares preferidos dos xamãs. Esse adorno de cabeça feito de um anel ao qual é preso o cocar com pena e uma cobertura de nuca feita de partes de pele de pássaro ressecadas é típico da região fronteiriça entre o Brasil e a Venezuela. A atribuição étnica a um grupo chamado Makuna-ui permanece pouco clara, no entanto: embora existam os Makuna no sul da Colômbia, os adornos em pena que eles usam hoje em dia correspondem aos dos grupos Tukano, e se diferenciam estilisticamente com bastante clareza da presente peça. (CA)

150

Adorno de cabeça com cobertura de nuca. Porocoto, região da nascente do rio Branco, fronteira Brasil/Venezuela. Em torno de 1830. Penas, partes de peles de pássaro ressacadas, fibra vegetal, C. 60 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.961

151

Instrumentos musicais. Pauxiana, Porocoto, Wapixana, Guaianas, região de fronteira entre o Brasil e a Guiana. Em torno de 1832. Madeira, pele de animal, corante, fibra vegetal, pedúnculo de cipó, osso de onça, penas, ráfia, cabaça. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.940, 1.976, 1.993 A música tem papel central na cosmologia de comunidades indígenas. No ritual, ela estrutura acontecimentos e vivências, e facilita o contato com seres espirituais. O trompete de cabaça (ou porongo) dos Wapixana não apenas imita o grito da onça para atraí-lo, mas inclusive possibilita uma comunicação na qual o caçador faz a corte à onça, para ao fim abatê-la com a permissão do animal. Sobretudo a utilização de ossos e peles de animal pode indicar a um instrumento musical um papel específico na relação com espíritos animais. (CA)

Adorno de cabeça. Wapixana, Guaianas, região de fronteira Brasil/Venezuela. Em torno de 1830. Penas, fibras vegetais, H. 48 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.994

Adorno de nuca. Mainatari, Guaianas, Brasil. Em torno de 1830. Penas, partes de peles de pássaro ressecadas, madeira, fibra vegetal, C. 67 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 1.922 Segundo o etnólogo francês Philippe Descola, o uso de adornos em pena também é uma maneira de os homens, que pertencem a diferentes grupos indígenas, poderem se diferenciar uns dos outros. Ao contrário do que acontece com os animais, no corpo humano em princípio há apenas algumas diferenças. Adornos em pena, adornos para o corpo feitos de dentes de animais, mas também a pintura do corpo em si fazem com que surjam diferenciações externas, que se transformam em sinal de identidade étnica. (CA)

152

Vestimentas. Pauxiana, Porocoto, Wapixana, Guaianas, região de fronteira Brasil/Guiana. Em torno de 1832. Fibra vegetal, penas, algodão, cabelos humanos, contas de vidro, C. máx. 71 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.943, 1.966, 1.967, 1.973, 2.007, 53.538 Panos em torno dos quadris, que são fixados por um cinto de algodão, para os homens, e tangas feitas de contas de vidro, para as mulheres, eram a vestimenta típica de vários grupos indígenas nas Guaianas. Os adultos demonstravam com isso o controle sobre sua própria sexualidade, na qual a observação das prescrições matrimoniais tinha um papel fundamental. Com frequência o primo ou a prima em primeiro grau era tido como o parceiro preferido para o casamento, mas apenas quando os pais, a partir dos quais se definia o parentesco, eram de sexo diferente. Variações no material usado na confecção podiam conter declarações acerca de seu usuário. Assim, por exemplo, cintos dos cabelos humanos de inimigos abatidos eram reservados ao guerreiro bem-sucedido. (CA)

153

Os Yanomami na fotografia de Claudia Andujar Claudia Andujar nasceu em 1931, em Neuchâtel, na Suíça, e se mudou para os Estados Unidos após da II Guerra Mundial. Estudou no Hunter College, em Nova York, e chegou ao Brasil em 1956. Ali começou a carreira de jornalista fotográfica e desenvolveu um intenso interesse pelas culturas indígenas de sua nova pátria. No princípio da década de 1970, Claudia Andujar se encontrou com um grupo dos Yanomami no norte do Brasil. A cultura desses indígenas exerceu grande fascínio sobre ela e se tornou tema determinante de seu trabalho e de sua vida. Seus ensaios fotográficos mostram a profunda intimidade com os indígenas e seu modo de vida, mas também tão conta das rupturas e mudanças que sua cultura vivenciou e continua vivenciando através do contato com o mundo exterior. Claudia Andujar sempre usou suas fotografias no sentido de chamar a atenção para a situação precária dos Yanomami, e assim apoiá-los em sua luta por seu espaço vital e sua autonomia política e cultural. Claudia Andujar vive em São Paulo e em Roraima. Hoje em dia se engaja em favor da fundação de um Centro Cultural dos Yanomami. Suas fotografias são homenageadas em exposições internacionais e estão presentes, entre outras, na coleção do Museum of Modern Art de Nova York. (CA)

Chasse. Village de Wakathatheri. 1974. (Caça. Aldeia de Wakathatheri. 1974.) Foto: Claudia Andujar

Cueillette de fruits. Village de Wakathatheri. 1974. (Colheita de Frutas. Aldeia de Wakathatheri. 1974.) Foto: Claudia Andujar

Davi Kopenawa Yanomami, chaman, président de Hutukara (HAY), organisation non-gouvernementale Yanomami, principal porteparole des droits territoriaux et de la culture Yanomami. 1986. (Davi Kopenawa Yanomami, xamã, presidente da Hutukara [HAY], uma Organização Não-Governamental dos Yanomami, principal porta-voz dos direitos territoriais e da cultura dos Yanomami. 1986.) Foto: Claudia Andujar

155

Machadão. Wakathatheri. 1976. (O xamã Machadão. Wakathatheri. 1976.) Foto: Claudia Andujar

Repos au foyer. Village de Wakathatheri. 1974. (Repouso junto à fogueira. Aldeia de Wakathatheri. 1974.) Foto: Claudia Andujar

156

157

Geste d’amitié entre deux hommes dansant ensemble et s’embrassant durant les rituels. Village de Wakathatheri. 1974. (Gesto de amizade entre dois homens dançando juntos e se abraçando durante o ritual. Aldeia de Wakathatheri. 1974.) Foto: Claudia Andujar

Chamans Noë et Davi Kopenawa avec le peintre Glauco Pinto de Moraes, alors malade, pendant la première assemblée Yanomami. Village de Watoriktheri. 1986. (Os xamãs Noë e Davi Kopenawa com o pintor Glauco Pinto de Moraes, doente,durante a primeira assembleia Yanomami. Aldeia de Watoriktheri. 1986.) Foto: Claudia Andujar

158

159

Village des Opiktheri, atteint par la Perimetral Norte, route BR211. 1982. (Aldeia dos Opiktheri, atingida pela construção da Perimetral Norte, Rota BR-211. 1982.) Foto: Claudia Andujar

Piste d’avion de la FAB (Force aérienne brésilienne) à Surucucus. Près du village des Aykamtheri. 1983. (Pista de pousoda FAB [Força Aérea Brasileira] em Surucucus,nas proximidades da Aldeia dos Aykamtheri. 1983.) Foto: Claudia Andujar

Dans le village d’Érico. 1983. (Menina na Aldeia de Érico. 1983.) Foto: Claudia Andujar

160

161

Klaus-Peter Kästner

Classificação histórico-cultural das etnias representadas na Coleção Natterer Introdução A Coleção Natterer de Viena, à qual pertencem também as coleções de J. E. Pohl e H. W. Schott do Leste e do Sudeste do Brasil (Augustat 2012: 1–11), é, ao lado da Coleção Spix-Martius de Munique, a mais importante coleção etnográfica de indígenas brasileiros e das regiões fronteiriças da primeira metade do século XIX. Os objetos etnográficos dessa coleção são classificados em 78 etnônimos. No texto que segue, essas tribos1 ou grupos étnicos serão classificados em termos histórico-culturais segundo pontos de vista econômico-culturais, linguístico-culturais e geográfico-culturais. A terminologia de um sistema classificatório histórico-etnográfico usada para tanto será explicada em um glossário ao fim do trabalho. Alguns etnônimos primeiramente tiveram de ser determinados com mais precisão ou até mesmo identificados. Para as investigações necessárias foram usadas tanto fontes escritas (material de arquivo do Museum für Völkerkunde de Viena e literatura especializada), quanto alguns objetos colecionados. As armas são grupos de objetos especialmente adequados para uma comparação cultural, muito presentes em coleções antigas. Por isso elas são usadas preferencialmente como exemplo, a seguir. Também se mostrou bastante informativa a comparação entre a Coleção Natterer de Viena, a Coleção Spix-Martius de Munique e a Coleção Poeppig de Dresden,2 que são igualmente oriundas da primeira metade do século XIX. No panorama histórico-cultural que se segue, os 78 etnô1

O conceito tribo (Stamm, em alemão) é usado com diferentes significados na etnologia. Para as tribos de gentios da América do Sul é acertada a seguinte definição: uma “tribo” é um grupo étnico que povoa determinado território, possui uma língua e um cultura conjuntas e desenvolveu um sentimento de afinidade étnica ou alguma naturalidade nesse sentido, que via de regra é expressa através da autocaracterização do grupo. Com isso, são delimitadas as fronteiras em relação a outros grupos étnicos. Por vezes, uma tribo é constituída de diversos subgrupos. A forma de organização social da tribo se baseia no princípio da consanguinidade.

2

Eduard Poeppig foi um viajante e pesquisador alemão que, com o apoio da Sociedade de Pesquisas Naturais de Leipzig percorreu a América do Sul entre 1827 e 1832. Entre 1830 e 1832, Poeppig permaneceu na região amazônica peruana e brasileira. Lá principiou, além de coleções de ciências naturais bastante abrangentes, também uma coleção etnográfica.

Imagem 214: Machado-âncora (coi). Porecramecan, Brasil. Em torno de 1820. Sienita, madeira, lã vegetal, barbante, tiras de folhas, sementes, conchas, penas, C. 109 cm. Col. Pohl, Nº de Inv. 475 O machado-âncora, do qual existe um exemplar na Coleção Pohl, é uma arma de guerra e também arma cerimonial característica das tribos timbiras e outras tribos gês. O cacique dos Porecramecan e seu subalterno usavam armas semelhantes debaixo do braço, presas ao ombro por uma faixa. (CA)

nimos (destacados em itálico) são reunidos em sete seções, seguindo pontos de vista geográficos. Não será contemplada, neste momento, uma contextualização histórica, que aborde as variegadas relações dos grupos indígenas com o poder colonial e com o Estado nacional brasileiro (vide, para tanto, a contribuição de Kapfhammer neste mesmo volume).

1. Leste e Sudeste do Brasil Essa região geográfica é marcada pela presença das tribos do tronco linguístico Macro-Gê e da família linguística Tupi-Guarani do tronco linguístico Tupi. O tronco linguístico Macro-Gê envolve a grande família linguística Gê e várias pequenas famílias linguísticas (Rodrigues 1986: 47–56), oriundas de uma antiga camada populacional, cujas culturas tribais se enraízam em um antigo substrato cultural do leste brasileiro. A família linguística Gê se subdivide nos Gê do noroeste, nos Gê centrais e nos Gê do sul. Além disso os jaicós extintos do nordeste do Brasil também fazem parte dessa família linguística. A área principal povoada pela família linguística Gê respectivamente familia histórico-etnolinguística Gê são as regiões de savanas do leste do Brasil. Essas tribos encarnam o tipo econômico-cultural dos “caçadores/coletores [em alemão “Wildbeuter”] e agricultores semisedentários das regiões de savana tropicais”: nos tempos de seca percorrem a savana e se alimentam dos produtos da caça e da coleta. Nos tempos de chuva vivem em aldeias de limites definidos, de forma circular, e se alimentam sobretudo de plantas alimentícias cultivadas. É possível cultivar o solo apenas nas florestas de galeria, que margeiam o fluxo dos rios. As plantas cultivadas mais importantes são a batata-doce, o inhame, o milho e o cissus (uma planta-trepadeira rica em amido). A mandioca-mansa e a mandioca-brava também são cultivadas. Ao contrário do que acontece com a cultura material bastante simples dessas tribos, sua estrutura social é extremamente complexa. Ela é marcada por um sistema dual de classes etárias e sociedades cerimoniais. Na Coleção Pohl podem ser encontrados objetos das tribos Gê Krahô (Crahão), Porecramecan (Poracramecan), Apinayé (Apinagé), Shavante (Xavante), Sherente (Xerente) e Kaiapó do sul. Dos Camehs (subgrupo dos Kaingang) Natterer também colecionou alguns objetos. A região entre o Tocantins e o interior costeiro é povoada por um grupo de tribos Gê estreitamente aparentadas linguística e culturalmente, que formam a área histórico-etnolinguística “Timbira”. Esta surgiu do estilhaçamento de uma “tribu materna” ou de várias “tribus maternas”. Na mitologia de algumas tribos Timbira a responsabilidade por isso é creditada a uma série de desavenças. As

163

tribos Timbira pertencem aos Gê do noroeste. Elas se dividem em Timbira Ocidentais e Orientais. Os únicos representantes da primeira são os Apinayés, que povoaram a região entre o baixo Tocantins e seu afluente, o rio Araguaia. Eles mostram influências culturais dos vizinhos Kaiapó do norte (família linguística Gê) e Xambioá (Shambioá) (família linguística Karajá do tronco linguístico Macro-Gê). Também são parte dos Timbira Orientais os Krahô que vivem a leste do Tocantins. Os Macamecra são uma subtribo dos Krahô. A margem ocidental do Tocantins foi povoado pelos hoje não mais existentes Porecramecan (Pohl 1837. II. Parte: 187–217; Nimuendajú 1946: 22–28; 1967: 1–10) (Imagem 214).3 À região povoada pelas tribos Timbira se junta, ao sul, a região das tribos Gê centrais, que originariamente eram constituídas das tribos Akwé e das tribos Acroá extintas no século XIX. Às tribos Akwé pertencem os culturalmente estreitamente aparentados Xavante e Xerente, assim como os extintos Xacriabá. Segundo Pohl (1837. II. Parte: 165) no princípio do século XIX os Xavante viviam em ambas as margens do Tocantins. Eles teriam subjugado os vizinhos Xerente, que a partir de então teriam se fundido com a tribo vencedora. Na literatura mais antiga eram frequentes as confusões e desinformações relativas a essas duas tribos (Nimuendajú 1942: 1–9). Os Xerente existem ainda hoje como tribo autônomo a leste e a oeste do alto Tocantins. Os Xavante ultrapassaram o rio Araguaia: eles vivem junto a seu afluente, o rio das Mortes, e se espalharam até as correntes superiores das nascentes do Xingu, onde formam um grupo oriental e um grupo ocidental. As estepes da região da nascente do rio Araguaia, na parte sul do Estado de Goiás, eram, no princípio do século XIX, à época da visita de Pohl, a região palmilhada pelos Kaiapó do sul (Pohl 1837. II. Parte: 398–406). Essa tribo Gê é linguística e culturalmente aparentada das tribos dos Kaiapó do norte, que vivem na região entre o Araguaia e o Xingu. Mas há também algumas diferenças culturais. Os Kaiapó do sul foram considerados extintos por um bom tempo. Mas ao que parece, no entanto, os Panará (Krenn-Akarore), contatados apenas em 1973 na região do alto Xingu, seriam uma parte restante dessa tribo dispersada ao norte. Fazem parte dessas tribos Gê do sul, além dos Xokléng (Aweikoma), os Kaingang (Coroado) (Rodrigues 1986: 56). O etnônimo Kameh introduzido por Natterer é a designação de uma subdivisão dessa tribo (Métraux 1946b: 446s.). À época da visita de Natterer a Curitiba, essa subdivisão vivia nas estepes de Guarapova, localizadas a oeste e a noroeste dessa cidade, que se estendiam a oeste até o rio Paraná e ao sul até o Iguaçu. Em razão de sua tonsura craniana, eles também eram chamados de Coroado (Carta de Natterer a Carl von Schreibers 2.3.1821, Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Kann 1989: 108). Diversas tribos receberam esse nome devido a seu ornato capilar. Na coleção estão representadas ainda algumas tribos Macro-Gê do sudeste do Brasil. Trata-se de coleções menores dos Coroado 3

164

Uma arma guerreira e cerimonial característica das tribos Timbira, assim como de outras tribos Gê, é o machado de pedra semilunar (em alemão “Ankeraxt”). Na Coleção Pohl há uma dessas armas dos Porecramecan, que era carregada debaixo do braço, presa por uma faixa ao ombro, pelo cacique e seus subchefes (Pohl 1837. Parte II: 195).

(Coleção Schott) e Puri (Presente da Princesa-Herdeira e Arquiduquesa Leopoldina) assim como dos Botocudo e Maxacali (Coleção Pohl). Essas tribos habita(va)m as montanhas cobertas de florestas da costa interior do sudeste do Brasil. Os Puri e os Coroado, que no passado formavam com eles uma tribo conjunta, viviam no Estado do Rio de Janeiro no princípio do século XIX e na parte norte do Estado do Espírito Santo. Ambos formavam, junto com os coropós, uma pequena família linguística. Os Coroado receberam esse nome – assim como os acima mencionados Kaingang – dos portugueses, em razão de sua tonsura craniana (Métraux 1946c: 523s.; Rodrigues 1986: 49). Os Botocudo ou Aimoré viviam à mesma época na parte norte do Estado do Espírito Santo e nos trechos fronteiriços dos Estados da Bahia e de Minas Gerais. Rodrigues (1986: 49, 56) reúne sob o conceito “família linguística dos Botocudo”, os dois subgrupos Botocudo Krenak e Nakrehé. Esses Botocudo não devem ser confundidos com os assim chamados Botocudo de Santa Catarina (Xokléngs da família linguística Gê ) e os do Paraná (xetás da língua Tupi) (Métraux 1946d: 531s.; Nimuendajú 1981: 50, 54s., 61). Os Botocudo, Puri e originariamente também os Coroado, que no princípio do século XIX já praticavam um pouco de agricultura, eram representantes do tipo econômico-cultural “caçadores/coletores [em alemão “Wildbeuter”] nómades das regiões florestais tropicais”. O nome Botocudo se origina da palavra portuguesa “batoque” (espécie de rolha de barril), com a qual os portugueses designavam o adorno do lábio inferior dos Botocudo. Esse adorno facial deformante em forma de grossas rodelas de madeira leve para os lábios inferiores e/ou orelhas pode ser constatado em várias tribos Macro-Gê, e ao que tudo indica é oriundo de um antigo substrato cultural do leste brasileiro. Os Maxacali vivem na região nordeste de Minas Gerais e fazem parte da pequena família linguística Maxacali à qual deram o nome (Métraux 1946e: 541s.; Nimuendajú 1982e: 209–218; Rodrigues 1986: 56). Diferentemente dos caçadores/coletores nómades mencionados acima, os Maxacali são representantes do tipo econômico-cultural dos “agricultores usuários de bastão de plantio das regiões florestais tropicais”. Este se baseia em uma forma econômica complexa, composta dos componentes econômicos da agricultura, da caça, da pesca e da atividade da coleta. A base alimentícia é constituída pela agricultura (sobretudo tubérculos e milho), que é praticada com um simples bastão de plantio como instrumento universal de plantação e colheita. Os Maxacali plantavam originariamente sobretudo batata-doce e milho. Ao lado de numerosas tribos Macro-Gê se estabelece, no leste do Brasil, também toda uma série de tribos da família linguística Tupi-Guarani do tronco linguístico Tupi. A grande família linguística Tupi-Guarani que faz parte desse tronco linguístico se espalhou da região amazônica central em direção ao leste, e mais tarde ao longo da costa, assim como no interior costeiro. Uma nova expansão se seguiu ao sul e ao sudeste. Com isso, os ancestrais das tribos Guarani (ramo sulino da família linguística Tupi-Guarani) chegaram às regiões que hoje em dia povoam. Na coleção podem ser encontrados apenas alguns poucos objetos de tribos Tupi-Guarani do leste do Brasil. Trata-se dos Canoeiro (Co-

leção Pohl), Tembé e Carijó (Coleção Natterer). Sobre a indicação de proveniência Vuai-ai-já para alguns objetos colecionados por Natterer pode-se apenas presumir. Os Tembé, assim como os Guajajara estreitamente aparentados linguística e culturalmente com eles, muitas vezes são reunidos sob a designação Tenetehara. A região povoada pelos Tembé se estende no interior costeiro coberto de florestas do leste brasileiro ao longo do rio Capim, que em Belém deságua no Amazonas, do rio Guamá (afluente do Capim) e do rio Gurupi, que deságua no Atlântico (Wagley e Galvão 1948: 137s.). Natterer, que não chegou a visitar essa região, diz que a área povoada pelos Tembé corresponde às nascentes do rio Capim. É a mesma a região que ele diz ser a região dos Vuai-ai-já. Este etnônimo, no entanto, não pode ser constatado na literatura especializada. Natterer usa, em alguns dos etnônimos que apresenta, as consoantes “g” e “v” em seu som inicial como modos de escrever alternativos (por exemplo guató e vuató). Caso se leia Guaiaijá em vez de Vuaiaijá, pode-se concluir que se trata de uma versão distorcida do etnônimo Guajajara. A área povoada por essa tribo fica justamente a sudeste da dos Tembé e se estende entre os rios Pindaré e Mearim, que deságuam, ambos, no Atlântico. Seja mencionado ainda que no século XVII, no sudoeste da ilha de Marajó, na foz do Amazonas, vivia uma tribo com o nome semelhante de Guajará (Nimuendajú 1981: 51). Contudo é de se supor que as designações Vuai-ai-já e Guajajara sejam idênticas.4 As tribos Tupi-Guarani do interior costeiro são, com exceção dos Guajá caçadores-coletores, representantes do tipo econômico-cultural “agricultores usuários de bastão de plantio das regiões florestais tropicais”. Rodrigues subdivide a família linguística Tupi-Guarani em oito subgrupos. Ele inclui no subgrupo IV, ao lado de Tembé e Guajajara, as tribus seguintes que povoam a região fluvial do Tocantins-Araguaia: Asurini do Tocantins, Parakaná, Surui do Tocantins, Tapirapé e Avá-Canoeiro (Rodrigues 1984/1985: 39s.). A designação Canoeiro (= pessoas que andam de canoa) é usada para diversas tribos na literatura especializada. Na indicação de proveniência “Canoeiro” para um cinto de dança na Coleção Pohl, trata-se dos Avá-Canoeiro. Pohl designa como região povoada pelos Canoeiro a margem ocidental do alto Tocantins e os caracteriza como índios temidos, hábeis no manejo de seus botes de troncos de árvores e no roubo de gado (Pohl 1837. Volume II: 106ss.). Em meados do século XIX, uma parte da tribo se mudou para junto do rio Araguaia. Os Avá-Canoeiro do Tocantins e do Araguaia se desenvolveram de modo diferente. Os primeiros foram e são representantes do tipo econômico-cultural “agricultores usuários de bastão de plantio das regiões florestais tropicais”, sendo que os componentes econômicos caça e coleta são assaz 4

Na Coleção Natterer se mantiveram várias flechas dos Tembé e Vuai-ai-já (Guajajara) de emplumação tangencial. Essa emplumação típica das tribos Macro-Gê pode ser encontrada também entre muitas tribos Tupi-Guarani. Entre os Tembé e Guajajara também pode ser encontrada a emplumação costurada. Trata-se de um tipo antigo de emplumação, típico dos Tupi, cuja difusão pode ser constatada até o alto Madeira, incluindo o Guaporé (Kästner 2006: 121–123, 129, 131s., 135). Uma flecha dos Vuai-ai-já (Gajajara) possui um ponta de ferro em forma de lanceta, coisa que aponta para influências da civilização europeia.

importantes para angariar alimento. Os grupos localizados junto ao Araguaia abandonaram, em razão de pressões exteriores, a agricultura e parte de sua cultura material (“primitivismo secundário”). Eles encarnam hoje o tipo econômico-cultural de “caçadores/coletores nómades das regiões florestais tropicais”. Presentemente ainda existem Avá-Canoeiro junto aos rios Araguaia e Tocantins, incluindo alguns grupos que ainda vivem isolados (Nimuendajú 1942: 4; Povos Indígenas no Brasil 2000: 662s., 665, 677–679; Toral 2011). No sul do Brasil, na então capitania de São Paulo, Natterer adquiriu alguns abjetos de Carijó fortemente aculturados, que caracterizou como “índios mansos”. Segundo Métraux (1948a: 69s.) na designação Carijó trata-se, na verdade, de um nome antigo para Guarani. Rodrigues (1984/1985: 37s.) inclui os Guarani no subgrupo I da família linguística Tupi-Guarani do tronco linguístico Tupi.

2. Mato Grosso do Sul e Gran Chaco Na presente seção serão contempladas as indicações de proveniência da Coleção Natterer das áreas fluviais do alto rio Paraguai e da região geográfica do Gran Chaco. Na área do alto Paraguai e seus afluentes, onde hoje se localiza o Estado brasileiro do Mato Grosso do Sul, vivem tribos da pequena família linguística Bororo, que pertence ao tronco linguístico Macro-Gê. A família linguística Bororo é constituída de duas subdivisões, os Bororo em si e os hoje em dia não mais existentes otukés. Os Bororo se subdividem nos Bororo Orientais (orarimugudoges), que povoam a margem leste do rio Paraguai, os Bororo da Campanha (Bororo Biriboconné), que viveram nas estepes a sudoeste do baixo rio Iaurú (Jaurú), um afluente do rio Paraguai, os Bororo do Cabaçal (Bororo cabaçaes, Bororo aravirás), cujas regiões palmilhadas se localizavam ao norte dali, junto ao rio Cabaçal, e os Umutina (Barbados) do alto rio Paraguai. Além destes, havia ainda dois pequenos grupos Bororo que acabaram extintos. Os Bororo da Campanha e os Bororo do Cabaçal também são reunidos sob o conceito de Bororo Ocidentais. Uma divisão entre Bororo Orientais e Bororo Ocidentais acabou acontecendo em virtude do avanço dos garimpeiros de ouro no século XVIII. Os Bororo da Campanha, com os quais Natterer entrou em contato, haviam se estabelecido já no princípio do século XIX. À época de Natterer, os Bororo do Cabaçal ainda se comportavam de modo defensivo e guerreiro. Hoje em dia continuam existindo apenas os Bororo Orientais e os Umatina (Lowie 1946a: 419s.; Rodrigues 1986: 56). Com exceção dos últimos, as tribos Bororo são habitantes típicas da estepe. Pelo menos desde o final do século XIX, a agricultura já é um pouco praticada entre elas. São plantados sobretudo milho, mandioca-mansa e batata-doce. Elas são representantes do tipo econômico-cultural “caçadores/coletores semisedentários das regiões de savana tropicais”. Possivelmente tivessem sido caçadores-coletores de hábitos nômades no passado. Na Coleção Natterer se encontram objetos dos Bororo da Campanha e dos Bororo do Cabaçal. Ainda que a cultura e o modo de vida das tribos Bororo seja

165

bastante homogeneidade, também há diferenças linguísticas e culturais, o que em parte deve ser creditado a diferentes influências culturais.5 Na Coleção Natterer podem ser encontrados também objetos de tribos que vivem ao sul das tribos Bororo. Elas no entanto não chegaram a ser visitadas pelo próprio Natterer. A área de povoação dos Guató (Vuató) se encontra nas regiões alagadiças do alto rio Paraguai, na foz do rio São Lourenço. Rodrigues (1986: 56) inclui sua língua, como língua isolada, no tronco linguístico Macro-Gê. As vigorosas barbas apontam para o fato de eles serem oriundos de uma camada populacional paleo-indígena. Os Guató encarnam o tipo econômico-cultural “pescadores/caçadores/coletores [em alemão “Wildbeuter”] e agricultores semisedentários das águas interiores tropicais”. Sua base alimentar é constituída sobretudo da pesca e da caça aos mamíferos aquáticos, assim como, durante a época das cheias, de arroz selvagem, que eles colhem em grandes quantidades de suas canoas. Esporadicamente também se planta, às margens dos rios, um pouco de milho e mandioca. Importantes para os Guató são os estoques de palmeira acuri; essa palmeira é plantada sobre montes de terra formados artificialmente por habitantes mais antigos dessa região. São coletadas não apenas as frutas da palmeira acuri. Do suco dos troncos furados da palmeira se extrai também um vinho de poder inebriante. A cultura material desses moradores ribeirinhos semisedentários é bastante simples (Schmidt 1912: 131–146; Kann 1989: 110s.; Höldrich 2002: 93–98). Mais ao sul viviam, no princípio do século XIX, os Guaná (Vuaná), nas guarnições de Albuquerque e Miranda, em ambas as margens do rio Paraguai (em território brasileiro e boliviano). Já na época pré-colombiana populações de Aruaks se estabeleciam às margens nordeste e noroeste do Gran Chaco. No noroeste, esses representantes da família linguística Aruak (Maipure) do tronco linguístico Aruak eram chamados, na época pós-colombiana, de Chané, e no nordeste de Guaná (Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Métraux 1946a: 238–241). A região geográfica do Gran Chaco (“região de caça” na língua Quechua) se estende entre o platô do Mato Grosso, ao norte, e a região do Pampa ao sul, assim como entre o pé dos Andes, a oeste, e o rio Paraguai, a leste. Essa região coberta de mata seca e caatinga, assim como de paisagens pastoris, pertence, politicamente, à Argentina, ao Paraguai , à Bolívia e ao Brasil. Múltiplas influências culturais das regiões florestais tropi5

166

Um exemplo disso são os arcos e flechas dos Bororo (Anotações de J. Natterer [1825–1829], Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Kann 1989: 108s.; Steinle 2002: 54–56). Os arcos e flechas dos Bororo Orientais correspondem certamente aos tipos de armas originais das tribos Bororo, enquanto os das tribos Bororo Ocidentais apresentam tanto influência do norte quanto do sul, dos Guató do alto rio Paraguai. Os arcos dos Bororo Orientais tem um corte transversal quase quadrangular. Os dos Bororo do Cabaçal mostram um corte transversal raso-elíptico, e os dos Bororo da Campanha têm, assim como o dos Guató, um corte transversal arredondado e são envolvidos por amarras de cipó. As hastes das flechas dos Bororo da Campanha são, assim como as dos Guató, de cana de ubá, ao passo que os Bororo Orientais usam para suas flechas a cana mais fina da cambaiúva e a emplumação tangencial típica das tribos Macro-Gê. Ao lado da emplumação tangencial foi usada por ambas as tribos dos Bororo Ocidentais também a emplumação costurada (Meyer 1895: 40–50). A última é um tipo usado entre os Tupi antigos, que tem sua origem ao que tudo indica na região superior do Madeira-Tapajós (Kästner 2006: 121s.).

Imagem 215: Camisa. Guaná, Mato Grosso, Brasil. Em torno de 1830. Fibra vegetal, contas de vidro, L. 56,3 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 933 Camisas como essa eram usadas entre os Guaná tanto por mulheres quanto por homens, em combinação com um pano atado em torno da cintura. Viajantes europeus do século XIX, como por exemplo o artista francês Hercules Florence, falaram sobre a beleza, resistência e originalidade desses trabalhos têxteis. O barão von Langsdorff, um botânico russo que participou da Expedição ao Brasil na mesma época que Johann Natterer, conta em uma carta que os tecidos dos Guaná também seriam à prova d’água, e por isso muitas vezes eram estendidos sobre os objetos levados na expedição, a fim de protegê-los da chuva. (CB)

cais e subtropicais no norte e no leste, dos Andes, a oeste, assim como do Pampa, ao sul, e processos de aculturação intertribais no interior da região levaram ao surgimento da província histórico-etnográfica do Gran Chaco. Dela fazem parte também os Guaná e seus descendentes de hoje, os Tereno. Os Guaná (Tereno) e Chane de língua Aruak que vivem na fronteira norte do Gran Chaco, assim como os Chiriguano de língua Tupi – todos habitantes das regiões florestais tropicais – são agricultores sedentários. Eles plantam sobretudo milho, feijão, batata-doce e também um pouco de mandioca-mansa. Em vez do bastão de plantio usado nas regiões florestais tropicais, usa-se pás de madeira em forma de remo para cultivar a terra, coisa que fica sobretudo ao encargo dos homens. Estes traços culturais são influências culturais das regiões andinas. Os Guaná se encontravam em uma relação de vassalagem com os Mbayá, uma tribo da família linguística Guaicuru. Os últimos faziam parte das tribos guerreiras de cavaleiros do Gran Chaco. Essa relação tinha um caráter simbiótico. Os Mbayá lucravam com o produto da agricultura e com a cultura mais desenvolvida dos Guaná, e estes eram protegidos dos ataques de outras tribos pelos Mbayá dominadores. Descendentes dos Mbayá são os Cadueo de hoje. Na Coleção

existem algumas peças de vestuário dos Guaná tecidas em algodão (Imagem 215), que são testemunhas das influências andinas (Höldrich 2002: 98–107). Três objetos da Coleção Natterer são apresentados com a indicação de proveniência “Lilei/Enima(ga)”. Eles foram capturados por um Guaná. Segundo as indicações de Natterer, os Lilei também eram chamados de Enima(gas) e viviam ao norte do Fort Bourbon, junto ao rio Paraguai (na Bolívia), mas também mais ao sul, no Paraguai. Segundo as informações que Natterer teria recebido, eles eram selvagens e cavaleiros e se encontravam em estado de guerra com os espanhóis. Na indicação introdutória de 1827 ainda está anotado que talvez se trate da horda de uma já conhecida nação (Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Kann 1989: 110). Em relação ao etnônimo Lilei não pode ser encontrada nenhuma indicação na literatura especializada. Provavelmente se trate, no que diz respeito aos Lilei de Natterer, dos lenguas (lengua-cochaboth, lenguas antiguos) pertencentes à família linguística Mataco. Estes eram chamados de Enimagá pelas tribos Guaicuru. Schindler sugere que seja usada, para essa única tribo de cavaleiros da família linguística Mataco, a designação lengua-cochaboth e inimacá. Seus descendentes são os macás de hoje. Desde o século XVII, os Inimacá (Enimaga) vivem entre o rio Pilcomayo e o médio rio Verde. Depois de adotar o cavalo, eles estenderam sua área palmilhada até o nordeste do Gran Chaco. Ali eles se tornaram inimigos temidos dos igualmente cavaleiros e guerreiros Mbayá e dos colonizadores espanhóis situados à margem oriental do rio Paraguai. Exemplo de como é difícil a identificação de alguns etnônimos no Gran Chaco fica evidente no caso dos Lengua/Enimagá. É designada como lengua também uma tribo da família linguística Mascoy na parte do Gran Chaco pertencente ao Paraguai. Assim como os lenguas de língua Mataco, eles receberam esse nome (lengua = língua) dos colonizadores espanhóis em razão da forma de seus adornos labiais. Segundo Mason, enimaga também é uma antiga designação para a família linguística Mascoy (Mason 1950: 203s.; Schindler 1983: 35–39, 86, 97). Assim como a maior parte das tribos do Gran Chaco, os Inimacá (Enimagá) eram originalmente “caçadores/pescadores/coletores [em alemão “Wildbeuter”] e agricultores semisedentários das florestas secas/caatingas e das paisagens relvadosas do Gran Chaco”. Em relação ao tipo econômico-cultural, a caça, a pesca e a atividade coletora têm importância substancialmente maior do que a agricultura, para a qual o solo é pouco adequado na maior parte do Gran Chaco. Meramente na área das cheias do Paragua-Paraná é que há pastagens produtivas, palmeiras e mata úmida. Depois da adoção do cavalo introduzido pelos espanhóis, houve mudanças na cultura e no modo de vida de uma série de tribos do Gran Chaco. Elas passaram a se alimentar sobretudo da caça e do gado que pilhavam nos ataques a proprietários de terra espanhóis, assim como do que resultava da atividade coletora. Parte da atividade coletora são os frutos do algarrobo e do chañar. Produtos da agricultura eram adquiridos de outras tribos (Métraux 1946a: 246– 267; Schindler 1983, 75–81, 199–202). Assim surgiu, no princípio do século XVII, o tipo econômico-cultural dos “caçadores a cavalo e coletores das florestas secas/caatingas e paisagens relvadosas do

Gran Chaco”. Faziam parte dessas tribos cavaleiras e guerreiras sobretudo as tribos da família linguística Guaicuru. Um desenvolvimento semelhante sucedeu com as tribus das regiões de estepe do Pampa e da Patagônia. Os Chamacoco (Schamucoco, Xamucoco), com suas subtribos Ebidoso, Horio (Ishira) e Tumerehá, pertencem à família linguística Zamuco e habitam a região nordeste do Gran Chaco (Métraux 1946a: 244; Schindler 1983: 44). Eles são representantes do tipo econômico-cultural “caçadores/pescadores/coletores e agricultores semisedentários das florestas secas/caatingas e paisagens relvadosas do Gran Chaco”. Entre as tribos da província histórico-etnográfica do Gran Chaco, os Chamacoco possuem os mais ricos adornos plumários, o que aponta para influências das regiões florestais tropicais.6

3. Índios aculturados (“civilizados”) do leste da Bolívia e do leste do Peru Durante sua viagem pelo rio Guaporé, o rio fronteiriço entre o Brasil e a Bolívia, Natterer conseguiu alguns objetos que foram fabricados por índios aculturados das antigas províncias espanholas de Mojo (Moxo) e Chiquito, hoje no leste da Bolívia. Estes objetos são testemunhas do artesanato indígena, que em sua maior parte foram criados segundo noções e modelos europeus. Antes da colonização e da missionação pelos espanhóis e jesuítas no século XVII, existiram culturas tribais altamente desenvolvidas nessa região em que hoje fica a Bolívia. A província de Mojos, que se estende do rio Guaporé até o pé dos Andes, era marcada por culturas Aruak. Descobertas arqueológicas de cerâmica testemunham uma sequência histórica contínua de culturas barrancóides (proto-Aruak) sobre descobertas de cerâmica do estilo horizontal policromárico de culturas Aruak mais tardias até culturas tribais Aruak pós-colombianas. Nas savanas úmidas anualmente inundadas de Mojos uma agricultura intensiva com canais de irrigação e campos mais elevados praticada já na época pré-colombiana permitiu uma densidade populacional relativamente alta. Acabaram surgindo aldeias grandes e bem fortificadas, que eram regidas por caciques. Plantava-se mandioca-mansa, milho, batata-doce, feijão e outros plantas alimentícias. Através do comércio intertribal, pelo qual chegaram à região inclusive influências andinas, surgiu uma grande área de aculturação intertribal. Depois da colonização por parte dos espanhóis e da decadência das antigas culturas de tribo, a agricultura intensiva foi abandonada. Os Mojo do rio Mamoré e outras tribos Aruak, mas também as tribos de outras línguas dessa mesma região, foram reunidos em diversas estações missionárias dos jesuítas, nas quais foi introduzida a língua dos mojo de ascendência Aruak como língua franca. Esse processo levou a uma fusão das diferentes tribos, da qual sobressaiu a etnia dos Mojo de hoje de língua Aruak. Sua cultura é uma cultura mista 6

Entre os objetos da Coleção Natterer há um cachimbo de tabaco dos enimagás (inimacás), de forma cilíndrica e feito de diferentes madeiras, que se assemelha a uma piteira de charuto. Em relação ao único objeto dos chamacocos, trata-se de um cachimbo de tabaco do mesmo tipo, difundido sobretudo no norte do Chaco (Stahl 1926: 108; Métraux 1946a: 347s.).

167

Imagem 216: Sobrecamisa. Itonama, Mojos, Bolívia. Em torno de 1830. Ráfia, C. 110 cm. Col. Natterer, Nº de Inv. 2.185 À época de Natterer, as crianças tradicionalmente não vestiam roupas entre os Itonama. Apenas após a puberdade é que as moças atavam tangas de lã vegetal em torno da cintura, e os rapazes passavam a usar sobrecamisas como essas, feitas de ráfia. Em combinação com o chapéu de palha, o traje marcou a imagem pela qual os índios da região de Mojos se tornaram conhecidos. (CB)

168

composta de elementos culturais indígenas e europeus (Métraux 1948b: 408–424; Lathrap 1970: 158–163). Os Bauré da província de Mojos, que também fazem parte da família linguística Aruak, tiveram da mesma forma uma cultura tribal altamente desenvolvida, fundamentada na agricultura intensiva. Hoje em dia eles se encontram, assim como os Mojo, fortemente aculturados (Métraux 1948b: 409). Os Itonama de língua isolada localizados junto ao rio de mesmo nome (Itonama) eram também uma grande tribo que foi missionada pelos jesuítas na primeira metade do século XVIII. Apesar das fortes influências europeias, partes de sua cultura tradicional ainda haviam se preservado na primeira metade do século XIX (Anotações de Natterer 1823–1830, Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Métraux 1948b: 428–430). Isso é comprovado na Coleção Natterer por peças de vestuário semelhantes a camisas e feitas de entrecasca e algodão entretecido, que segundo Natterer eram usadas por homens. As primeiras são pintadas com desenhos geométricos simples (Imagem 216). A maior parte dos objetos colecionados foram feitos pelos índios da Missão Caiová. Desenvolvimento semelhante ao da província de Mojos aconteceu na província de Chiquitos. A colonização pelos espanhóis sucedeu ali já a partir do século XVI; e logo em seguida veio a missionação pelos jesuítas. Era sobretudo da agricultura que se alimentavam as numerosas tribos dessa região. As línguas da maior parte das tribos faziam parte da família linguística Chiquito, que hoje é classificada no tronco linguístico Macro-Gê (Fabre 2005: 1). A língua Chiquito foi assumida em dez estações missionárias dos jesuítas, nas quais se encontravam respectivamente membros de várias tribos diferentes, como língua franca (Métraux 1948b: 381–388). Natterer registrou provas linguísticas da língua Chiquito no lugarejo chamado Santa Anna, e escreve que esta seria a língua dos Guasoroca (Guasaroka) (Kann 1989: 111). Na literatura especializada não pôde ser encontrada nenhuma indicação acerca deste etnônimo. No norte do Gran Chaco havia uma tribo da família linguística Zamuco com o nome de som semelhante guarañoca. Uma parte da tribo foi estabelecida pelos jesuítas na estação missionária Santiago de Chiquitos na primeira metade do século XVIII (Métraux 1946a: 243). Se esses guarañocas são idênticos aos guarasokas que Natterer encontrou na primeira metade do século XIX e que possivelmente no decorrer do tempo assumiram a língua chiquito, ainda não pode ser respondido. As outrora numerosas tribos da província de Chiquitos se fundiram em uma única etnia que hoje é chamada de Chiquitano (Riester 1971: 143s.). Alguns objetos da coleção são oriundos, segundo os registros do inventário, dos índios Chacapoia (Chachapoia) de Moyobamba, na província de Maynas, no leste do Peru. Na primeira metade do século XIX, o distrito de Moyobamba, com a cidade de Moyobamba, a oeste do rio Huallaga, pertencia à província de Maynas. Antes disso ele era parte da província de Chachapoyas, localizada a oeste dali, com sua cidade chamada também de Chachapoyas, localizada por sua vez a leste do rio Marañón (Poeppig 1960: 385s., Mapa). Chachapoya(s) não é, portanto, uma designação de tribo, mas sim o nome de uma província e de uma cidade homônima localizada no leste do Peru. Mas há também a cultura arqueológica chachapoya, que existiu do século VIII ao século XV ao sul da dobradura

do Marañón. Esses moradores das florestas nebulosas à margem leste dos Andes, chamados de “guerreiros das nuvens”, eram inimigos ferrenhos dos incas (Zetzsche 2009: 88–94). As tribos do alto Marañón e da região que começa a leste, sobre cuja língua e cuja cultura pouco se sabe, eram representantes do tipo econômico-cultural “agricultores usuários de bastão de plantio das regiões florestais tropicais”. Suas culturas tribais faziam parte da província histórico-etnográfica de Montaña e mostram nítidas influências andinas. Essas tribos foram missionadas já nos primórdios da época pós-colombiana, em pouco perderam sua identidade étnica e se dissolveram na população indígena miscigenada de língua quéchua da região (Steward e Métraux 1948: 614– 617). Os objetos da Coleção Natterer mencionados acima foram feitos por membros dessa população indígena miscigenada da província de Chachapoyas.

4. Amazônia Central Esta região se estende entre os dois grandes afluentes meridionais do Amazonas, os rios Tapajós e Madeira. É coberta por florestas-virgens e savanas. As últimas se localizam especialmente ao sul. A região é marcada sobretudo por tribos do tronco linguístico Tupi, ou mais especificamente da família histórico-etnolinguística Tupi-Guarani, cuja origem ao que tudo indica deva ser procurada na região entre o alto Madeira (com o rio Guaporé) e o alto Tapajós, onde existem ainda hoje numerosas pequenas famílias linguísticas do tronco linguístico Tupi. A oeste, na região fluvial do Madeira, vivem, com os representantes da pequena família linguística mura, descendentes de uma antiga camada populacional, assim como representantes de outras famílias linguísticas menores e de tamanho médio. Populações dos Karíb atravessaram o Amazonas já na época pré-colombiana e se estabeleceram na Amazônia Central. Ainda mais cedo, representantes da família linguística Aruak do tronco linguístico Aruak chegaram à Amazônia Central em sua difusão norte-sul. Representantes isolados do tronco linguístico Macro-Gê se deslocaram para oeste até o Tapajós. Através de variegadas relações intertribais amistosas e hostis entre as tribos de diferentes línguas de origem e de diferentes culturas surgiu uma grande região intertribal de aculturação, a província histórico-etnográfica do Madeira-Tapajós.7 Com exceção dos representantes das pequenas famílias linguísticas mura junto ao Madeira, e Nambikwára ao sul da região do Madeira-Tapajós, todas as tribos que por ali vivem são representantes do tipo econômico-cultural “agricultores usuários de bastão de plantio das regiões florestais tropicais”. 7

Um exemplo da influência cultural mútua entre essas tribos é a constatação da existência paralela de vários tipos de emplumação para as flechas nessa região, e de quando em quando também no interior de uma mesma cultura tribal (Meyer 1895: 14). A emplumação costurada é um elemento cultural (proto-)Tupi antigo, a emplumação tangencial é típica das tribos Macro-Gê e Tupi-Guarani. Enquanto a emplumação com ligação intervalar é de origem Karíb, a emplumação com ligação espiral contínua e cobertura escura de resina ou de cera (a assim chamada “emplumação de piche”, em alemão “Pechfiederung”) tem sua origem na área oriental subandina (Kästner 2006: 120–126, 132–135).

O desenvolvimento cultural na região do Madeira-Tapajós foi influenciado de modo fundamental pelos Tupi da costa leste brasileira. No princípio do século XVII, parte dos Tupinamba por lá estabelecidos subiu o Amazonas e mais tarde o Madeira, para ao final, no término de sua migração, se estabelecer na ilha que deles recebeu o nome, na região da foz do Madeira. Essa etnia, também chamada de Tupinambazes, subjugou as tribos ao sul do Amazonas e as influenciou linguística e culturalmente. As últimas tribos, designadas como Tupinambarana, às quais pertenceram também os Munduruku e Sateré-Mawé, foram rechaçadas às margens do Tapajós no século XVIII, onde influenciaram culturalmente as tribos que por lá viviam. Por isso podem ser encontrados nas tribos do Tapajós elementos culturais que lembram os Tupi da costa. Disso fazem parte os suntuosos adornos plumários dessas tribos. A cultura tribal dos Sateré-Mawé apresenta ainda influências dos Karíb ao norte do Amazonas (Menéndez 1984/1985: 274–283). A partir destas é que podem ser esclarecidos por exemplo os entrançados para os martírios com formigas e as bandejas com canudos para aspirar paricá. Natterer escreve que os Munduruku (Uaindaié) vivem em ambas as margens do Tapajós e na região de savanas entre Tapajós, rio Abacaxi e rio Canomá até o rio Madeira (Kann 1989: 114). Abacaxi e Canomá desembocam no braço do Amazonas que separa a ilha Tupinambarana da terra firme. Segundo a classificação linguística de Rodrigues (1986: 46) trata-se, no que diz respeito à língua dos Sateré-Mawé, de uma língua isolada do tronco linguístico Tupi, enquanto os Munduruku, junto com os Kuruáya (Curuaia), formam a pequena família linguística Munduruku do tronco linguístico Tupi. Mais ao sul estão estabelecidos os Apiaká, junto aos rios Arinos e Juruena, afluentes do alto Tapajós (Kann 1989: 116). Rodrigues (1984/1985: 40s.) os inclui (com ressalvas), junto com as tribos Kawahib no subgrupo IV da família linguística Tupi-Guarani do tronco linguístico Tupi. Eles pertencem às tribos da região do Tapajós, que ficaram sob a influência das tribos Tupinambarana. Por isso sua cultura material (inclusive os adornos plumários) se assemelha muito a dos Munduruku e Sateré-Mawé. Natterer recebeu os objetos etnográficos das tribos da região do Tapajós do oficial brasileiro, seu amigo, capitão Antonio Peixoto de Azevedo. Natterer não chegou a viajar, ele mesmo, pelo Tapajós. Entre os objetos que Peixoto adquiriu dos Munduruku do rio Canomá por meio de trocas, encontram-se alguns dos Parentintin, que foram conseguidos sobretudo durante uma excursão guerreira no ano de 1832. Natterer escreve, acerca disso, que os Parentintin vivem junto ao rio Madeira e rio dos Marmelos, e que seriam apenas uma horda especial dos Apiaká do rio Tapajós. O etnônimo Parintintin (Parentintin) faz parte das designações tribais da Amazônia Central que causaram grande confusão na literatura etnográfica. Na região do rio Madeira e de seus afluentes vivem diversas tribos da família linguística Tupi-Guarani, cuja autodesignação é “Kawahib” ou “Kawahywa”. Essas tribos surgiram da tribo dos Cavaíba (Cawahyba) que vivia a oeste do Tapajós nos séculos XVIII e XIX. Os Cavaíbas eram aparentados linguisticamente com os Apiaká, seus vizinhos. Sob a pressão dos Munduruku, seus vizinhos ao norte, eles se fragmentaram em diversas tribos que se espalharam entre Tapajós e Madeira. Entre estas tribos estavam os Parintintin (autode-

169

nominados Kawahib) da região do médio Madeira (Nimuendajú 1948c: 283–285, 294–297). De dissidências deles surgiram, por volta do final do século XIX, as tribos Urueuwauwau na região em que hoje fica o Estado de Rondônia (Kästner 2005: 100–104). No entanto, nem todo o grupo étnico chamado Parintintin remonta aos antigos Cavaíba. Parintintin (Parentintin) é a designação dos Munduruku para tribos inimigas. Os objetos dos Parentintin que podem ser encontrados na Coleção Natterer – pelo menos em sua maioria – por certo não são oriundos dos Parintintin (Kawahib). Para melhor diferenciação, a ortografia Parentintin e Parintintin a partir de agora será usada para diferentes tribos. Das 16 flechas emplumadas parentintins da Coleção Natterer, 13 têm emplumação do tipo “ligação espiral contínua com cobertura escura de resina ou cera”; duas flechas têm emplumação com ligação intervalar e uma flecha possui emplumação tangencial. Flechas muito semelhantes do primeiro tipo mencionado podem ser encontradas também entre as flechas dos Apiaká e Munduruku da coleção. Os Parintintin (Kawahib), ao contrário, usam, para suas flechas, somente emplumação tangencial e emplumação com ligação intervalar (Nimuendajú 1948c: 289). As lanças ricamente decoradas dos Parentintin também se assemelham muito às dos Munduruku (Zerries 1980: 199s., Quadro 78) e dos Apiaká (von den Steinen 1899: 31s.; Imagem 217). Também os adornos plumários dos Parentintin se assemelham aos das tribos acima mencionadas do Tapajós (Schlothauer 2012: 65–81). Essas culturas paralelas certamente têm suas raízes históricas na cultura das tribos Tupinambarana. Bastante informativos, nesse sentido, são dois troféus cranianos Munduruku dos Parentintin na Coleção Natterer de Viena e na Coleção Spix-Martius de Munique. Os penteados dessas cabeças mumificadas correspondem não aos dos Parintintin (Kawahib) e também não aos dos Apiaká, mas sim ao penteado dos Munduruku com sua tonsura peculiar (von den Steinen 1899: 34s.). Martius escreve, com respeito à situação na primeira metade do século XIX, que os Munduruku, combateram de modo tão inclemente os Juma, Parentintin e Arara estabelecidos junto às fontes dos rios Mauhé, Canomá e em direção ao Madeira, que as duas primeiras tribos em pouco estariam completamente desfeitas. (Spix e Martius 1823–1831. Bd. 3: 1313). Conforme já foi mencionado, as peças de butim dos Parentintin da Coleção Natterer e da Coleção Spix-Martius são oriundas dos Munduruku estabelecidos no baixo rio Canomá. Presumivelmente os Parentintin sejam, portanto, um grupo étnico que se dissociou dos Munduruku. Contribuiu para essa suposição também uma tradição oral dos Munduruku, segundo a qual em razão da rivalidade de dois caciques uma parte da tribo acabou se separando. A tribo chamada Parintintin [Parentintin] surgida desse processo foi perseguida cruelmente pelos Munduruku (Menéndez 1984/1985: 277). Natterer menciona, em conexão com os Parentintin, também o etnônimo Marauá (Maraúa, Marauiá). Os Marauá viviam supostamente em ambas as margens do rio Madeira e junto a pequenos afluentes, ou então nas proximidades do Canomá, nas florestas. Eles seriam, ao que parece, apenas uma horda destacada dos Parentintin. Ao mesmo tempo, no entanto, Natterer menciona também a existência dos Marauá (Marauiá) na foz do rio Juruá ou então junto ao rio Jutaí, afluentes meridionais do Amazonas (Museum

170

für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Kann 1989: 115, 117, 151). O aparelho de aspirar narcóticos que mostra essa indicação de proveniência na Coleção Natterer provavelmente seja oriundo dos últimos mencionados (vide 5. Amazônia Ocidental). Na literatura especializada não pode ser encontrada nenhuma indicação a um grupo étnico com esse nome no baixo Madeira, e nada indica também a existência de um nexo com os Parentintin ou Parintintin (Kawahib). A menção da região em que estariam estabelecidos, junto ao rio Canomá, talvez pudesse ser uma indicação de que se trata dos Maraguá. Os Maraguá (Maraguaz) viviam, no século XVII e princípio do século XVIII, na região entre o baixo Tapajós e o Madeira. Possivelmente se tratasse de uma tribo Tupi, ou então de uma tribo sob a influência dos Tupinambazes (Tupinamba). Esses índios no entanto mantinham também relações com os poderosos tapajós da região do baixo rio Tapajós (Menéndez 1981/1982: 311, 315s. 318, 323s.; 1984/1985: 274s.). Não esclarecida permanece a indicação de proveniência Maraúa para lâminas de machados de pedra na Coleção Natterer. A suposição de que possa existir um nexo com os antigos Maraguá não pode ser comprovada. A leste do Tapajós viviam, segundo as indicações de Natterer, os Uauirivait (Ouauirivait), inimigos dos Munduruku (Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Kann 1989: 115). Segundo Martius (1867: 395) os Munduruku combatiam, além de outras tribos, os Parentintim [Parentintin], Parintin (Parárauát ou Uauvrivait). Nimuendajú (1982a: 52s.) reconhece nos Parárauát a designação Parawawát (= índios Arara) dos Kuruáya da bacia do Xingu para os Jurúna e Xipáya de língua Tupi, seus vizinhos a leste. Para a designação Uauvrivait (ao que tudo indica uma repetição falha da palavra Uauirivait), ele não tem nenhuma explicação. Em outro trecho, Nimuendajú (1948c: 296s.) prova de forma conclusiva que os assim chamados “Parintintin” eram os grupos Kuruáya situados junto aos afluentes da margem direita do médio Tapajós, inimigos dos Munduruku. Nenhuma outra tribo vivia nessa região. Conforme já foi mencionado, os Kuruáya (Kuruahé) são estreitamente aparentados linguisticamente dos Munduruku. Culturalmente, eles tem algumas coisas em comum com os Xipáya e Jurúna – superiores a eles – das regiões média e central do Xingu (Snethlage 1921: 395–427; Nimuendajú 1948a: 213s., 221s., 225–243).8 Provavelmente se trate, no caso dos Uauirivait, de Kuruáya ou talvez de um subgrupo dessa tribo. É provável, portanto, que o trompete com corpo de ressonância de cabaça, uma peça de butim Munduruku dos Uauirivait que pode ser encontrado na coleção, seja oriundo dos Kuruáya. Também os Bakairi estabelecidos junto ao rio Paranatinga, um afluente oriental do alto Tapajós, que pertencem à família linguística Karíb (Rodrigues 1986: 63), eram inimigos dos Munduruku (Kann 1989: 116). Mais ou menos por volta de meados do século XIX uma parte da tribo dos Bakairi se deslocou para o leste, à região das nascentes do Xingu, e se adequou à paisagem cultural dessa região histórico-etnográfica. Na primeira metade do século 8

Os Kuruáya são chamados de “kiriwai” (kiri = periquito; awai = comunidade dos membros masculinos da tribo) pelos Shipáya (Xipáya) (Nimuendajú 1921/1922: 397, 400s.). A autodenominação dos Munduruku é, segundo Natterer, “Uaindaié” (Kann 1989: 114). Presumivelmente haja um nexo entre as designações Uauirivait, Uaindaié e Kiriwai.

Imagem 217: Tanga (detalhe). Paresí, rio Juruena (Campos dos Paresí), Brasil. Em torno de 1830. Penas, varinhas de bambu, corante. Col. Natterer, Nº de Inv. 988 Antigo trabalho em mosaico de penas (tanga) dos Paresí na região da nascente do rio Juruena (Campos dos Paresí). Diversas varinhas de bambu enfileiradas apresentam penas pequenas de cor vermelha e amarela, formando padrões. O meio da tanga é adornado por uma figura biomorfa de penas negras. Natterer escreve em 1827 que teria recebido a presente peça da casa do padre Taoares, que estava com quase cem anos de idade à época. Ela seria herança de sua bisavó, uma Paresí. (KPK)

XX, eles voltaram a se deslocar em direção ao lugar em que estavam os membros de sua tribo, junto ao Paranatinga. A oeste do alto Tapajós, na região da nascente do rio Juruena, nos Campos dos Pareci cobertos de savanas, vivem os Paressi (Pareci), incluídos na família linguística Aruak do tronco linguístico Aruak (Rodrigues 1986: 72). São testemunhas da habilidade artística dessa tribo agricultora sedentária alguns trabalhos em pena assaz antigos da Coleção Natterer (Imagem 217). Os Paressi eram, no passado, uma tribo poderosa e guerreira, que combatia sobretudo os vizinhos Nambikwára (Nambicuara). Estes eram chamados, até o princípio do século XX, de Cabixi (Kabischi). Depois do contato com grupos Cabixi no ano de 1907, o marechal Cândido Rondon, fundador do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), introduziu a designação equivocada de Nambicuara aos Cabixi (Lévi-Strauss 1948: 361). Esse etnônimo era usado no passado para os hoje chamados Erikbaktsa (tronco Macro-Gê ) da região do alto Tapajós. O nome Nambicuara (= grandes orelhas), oriundo do Tupi, se referia aos grandes discos que esses indígenas usavam nas orelhas. Os Cabixi hoje chamados Nambikwára (Nambicuara) não usam esses adornos auriculares. Diferentemente das tribos vizinhas, os Nambikwára são representantes do tipo econômico-cultural “caçadores/coletores e agricultores semisedentários das regiões

de savana tropicais”. Rodrigues (1986: 74–76, 81) divide a pequena família linguística Nambikwára em três línguas: Sabanê, Nambikwára do norte e Nambikwára do sul. As duas últimas são constituídas respectivamente de vários dialetos, e portanto de vários subgrupos. Os Cabixi do rio Galera (afluente do Guaporé) representados na Coleção Natterer fazem parte dos Nambikwára do sul. Uma parte dos Nambikwára (Cabixi) foi subjugada pelos Paressi e assumiu sua cultura e sua língua. Schmidt (1912: 146–174) chamou a esse grupo de Paressi-Kabischi. A leste das quedas d’água do alto Madeira viviam os Karipuna (Caripuna).9 Conforme Natterer, eles chamam a si mesmo de Jaũn Àvo (jacares, jacaires). Ao sul dali estavam estabelecidos os Schenàbo (Saunávo), que ele caracteriza como sendo uma horda dessa mesma nação (Kann 1989: 113). Com relação aos últimos, trata-se, ao que tudo indica, da tribo dos Sinabo. Os Sinabo, chácobos e pacaguaras estreitamente aparentados linguística e culturalmente, e estabelecidos todos na região do alto Madeira e do baixo Mamoré, e que, com exceção dos primeiros, habitavam um território que hoje é boliviano, formam uma área histórico-etnolinguística – o pequeno grupo sudeste da família linguística Pano. Karipuna e Sinabo não existem mais. Esses Karipuna de língua Pano não devem ser confundidos com os Caripuna (Caupuna) de vinculação linguística desconhecida, que se estabeleciam entre as regiões da foz do Purus e do Madeira no século XVII (Zerries 1970: 47), e também não com os Karipuna(-Kawahib) de língua Tupi. Os últimos, depois de serem contatados no ano de 1950 pela Fundação Nacional do Índio no Brasil (FUNAI), foram designados Karipuna, porque se considerava que haviam sido reencontrados os Karipuna de língua Pano que viviam nessa mesma região no passado (Leonel 1995: 40–45, 56–68, 127). Também ao norte do Amazonas esse etnônimo é mencionado (vide 7. Guianas). Nas corredeiras do alto Madeira, nas vizinhanças dos Karipuna, viviam no passado os hoje extintos Pama (Pamma). Eles foram combatidos pelos Karipuna e expulsos às regiões fluviais do rio Purus. À época de Natterer, alguns membros restantes dos Pama viviam junto ao rio Machado, um afluente oriental do rio Madeira. Em uma carta a seu irmão Josef (21.12.1829, Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo), Natterer escreve que os habitantes de Borba, no baixo Madeira, eram em sua maior parte descendentes dos Pama. Eles falavam a “língua geral”, mas também o português (Kann 1989: 136). Sobre a língua indígena dos Pama não existem informações exatas. Mason (1950: 216s.) os inclui, com ressalvas, na família linguística Arawá. A região colonizada pelas tribos dessa família linguística do tronco linguístico Aruak se localiza na região vizinha a oeste, na região do Juruá-Purus (vide 5. Amazônia Ocidental). Sobre a cultura dos Pama também mal se conhece alguma coisa. Na Coleção Natterer se conservou um grande arco raso dos Pama, feito da madeira escura de uma palmeira. Esse tipo de arco é típico das tribos da região leste subandina e da Amazônia Ocidental. 9

Na Coleção Natterer podem ser encontrados alguns objetos dos Karipuna, entre outros duas kushmas de entrecasca, assim como um arco raso de palmeira paxiúba e flechas com emplumação do tipo “ligação espiral contínua com cobertura escura de resina ou de cera”. Elas apontam para a origem dos Karipuna na região da encosta leste dos Andes.

171

Não puderem ser encontradas na literatura especializada indicações mais precisas acerca da tribo dos Guatiá (Guatihiá, Quatia), que segundo as indicações de Natterer viviam a oeste das quedas d’água do alto Madeira, do lado espanhol (boliviano). Os Guatiá eram inimigos dos Karipuna que habitavam o outro lado brasileiro do Madeira (Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Kann 1989: 113). Presumivelmente, os Guatiá são idênticos aos Guacia. O capuchinho José Maria de Macerata menciona, no final do ano de 1843, em seu escrito, os Guacia e Pamá nas proximidades do Salto Theotonio, uma queda d’água do alto Madeira. As duas tribos teriam sido completamente desbaratadas pelos Karipuna (Hugo 1991: 342–344). Os Tora viviam, à época de Natterer, junto ao rio Jamari e ao rio Machado, portanto junto a afluentes orientais do Madeira. Eles são os representantes mais ao norte da pequena família linguística Chapacura (Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Nimuendajú 1981: 64; 1982: 111–113; Rodrigues 1986: 81). Os arcos e flechas dos Tora na Coleção Natterer apontam para influências culturais do norte. Seus arcos de madeira marrom-avermelhada tem um corte transversal plano-convexo. Essa presença do “tipo de arco do norte brasileiro” (conforme Meyer 1895: 8, Mapa) se localiza na fronteira sul de sua região de difusão. A “emplumação com ligação intervalar” (emplumação “arara” segundo Meyer 1895: 9, Mapa) das flechas tem sua origem ao que tudo indica nas tribos Karíb das Guayanas e provavelmente tenha sido introduzida e difundida pelos Arara (tribo Karíb) na região do Madeira-Tapajós (Kästner 2006: 124s., 134). Os Mura viviam sobretudo na região do baixo Madeira e se espalharam abaixo e acima da foz do Madeira no século XVIII, às margens do Amazonas. Em razão do comportamento guerreiro, eles eram temidos inclusive pela população mestiça da região. Mas sofriam também, eles mesmos, sob os ataques dos Munduruku. Natterer menciona além dos ainda selvagens muras, os Piriahaẽ, junto ao rio Marmelos (Kann 1989: 113). Com relação aos últimos, trata-se dos Pirahã, que ainda hoje vivem na antiga região que habitavam, junto ao rio Marmelos e sobretudo junto a seu afluente, o rio Maici. Eles foram os que melhor conservaram a cultura indígena da pequena família linguística Mura, constituída dos Mura (Bohũra), Pirahã e dos já extintos Yahahi. Os Mura assumiram, eles mesmos, muitas influências estrangeiras em sua cultura. Essa pequena família linguística se originou de uma antiga camada populacional, coisa que pode ser reconhecida também no tipo antropológico. O cabelo é ondulado e alguns homens têm barbas vigorosas. Suas línguas tonais mostram algumas peculiaridades (Nimuendajú 1948b: 255–269; Rodrigues 1986: 81; Everett 2010: 55s., 270– 277). Diferentemente das outras tribos da região, eles são representantes do tipo econômico-cultural “pescadores/caçadores/coletores e agricultores semisedentários das águas interiores tropicais”. Os Mura também eram inimigos dos extintos Matanawí (Matanaú), cuja moradia Natterer localiza junto ao rio Ariupoana (Aripuanã), um afluente oriental do Madeira. Sua declaração de que os Matanawí seriam apenas uma tribo especial dos Arara não é correta. Nimuendajú caracteriza os Matanawí como sendo de língua isolada (Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Nimuendajú

172

1981: 57; Kann 1989: 114). Eles foram influenciados culturalmente pelos vizinhos e amigos Arara, conforme é demonstrado pelas flechas Matanawí da Coleção Natterer. Ambas as tribos também usavam tembetás feitas de resina no beiço. Eram imigrantes do nordeste da Amazônia os Arara já ao final do século XIX extintos, que chamavam a si mesmo de Kabana. Essa tribo que fazia parte da família linguística Karíb vivia nos afluentes orientais do Madeira, o rio Machado, o rio dos Marmelos e o rio Ariupoana (Aripuanã) (Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Kann 1989, 113–115). O etnônimo Arara era usado para uma série de tribos pertencentes a diferentes línguas. Delas fazem parte, entre outras, a tribo Arara, também Karíb, junto ao rio Iriri (afluente do baixo Xingu), os Arara Karíb do baixo Tocantins, os Arara (Karo, Urukú) que viviam na região do Madeira-Tapajós e pertenciam à família linguística Ramarama (tronco linguístico Tupi), os Arara (Koaiá) de Rondônia isolados linguisticamente (Rodrigues 1986, 46, 63, 98) e os Arara (Shauanaua) da família linguística Pano na região do alto Purús (Métraux 1948c: 660). Através dos Arara Karíb do Madeira ao que tudo indica chegaram uma série de elementos culturais dos Karíb à região entre o Madeira e o Tapajós. Deles fazem parte – como já foi mencionado – a emplumação de flechas com ligação intervalar.

5. Amazônia Ocidental Do rio Purús, a leste, até o rio Javari, a oeste, estendem-se as terras baixas da Amazônia Ocidental. Os objetos etnográficos de tribos dessa região não foram adquiridos pelo próprio Natterer, pois ele não chegou a visitar essas tribos. A região fluvial do Purús é marcada culturalmente por tribos Aruak, que pertencem à família linguística Arawá e à grande família linguística Aruak (ou Maipure) do tronco linguístico Aruak. Tribos do tronco linguístico Aruak se espalharam mais ou menos a partir do ano 1.000 a. C. por um longo tempo do baixo Orenoco às regiões de terras baixas da América do Sul. As tribos da família linguística Arawá ao que tudo indica são, com sua cultura simples, descendentes de uma onda precoce de colonização Aruak. Delas fazem parte os Paumari (Rodrigues 1986: 72), que em fontes mais antigas também são chamados de Poropurú (Porupurú). Eles são – assim como os Guató do rio Paraguai mencionados acima e os Mura do rio Madeira – representantes do tipo econômico-cultural “pescadores/caçadores/coletores e agricultores semisedentários das águas interiores tropicais”. Assim como em todos os representantes desse tipo, a agricultura tem um papel subordinado no processo de busca da alimentação. Os Paumari caçam animais aquáticos com flechas, que são arremessadas por um propulsor. Um desses propulsores em forma de palheta e flechas de arpão para a caça de tartarugas podem ser encontradas na Coleção Natterer. Na floresta, é utilizado o arco. Um elemento cultural típico dos Aruak, o flagelo ritual vinculado a noções de fertilidade em determinadas festas, pode ser encontrado também entre os Paumari (Kann 1989: 135–137). Pouco se conhece acerca dos extintos Jubiri (Schubiri, Yuberi) do rio Tapauvá, um afluente do Purú. Duas flechas Jubiri na Coleção Nat-

terer têm emplumação do tipo “ligação espiral contínua com cobertura escura de resina ou de cera”. As indicações nos registros de Natterer são contraditórias. Em dado momento ele escreve que os Jubiri seriam apenas uma horda dos Catauixi. Segundo outro trecho ele considerava que eles eram uma horda dos Porupuru (Paumari). Suas línguas mal se diferenciariam (Kann 1989: 117, 137, 140). Mason (1950: 216s.) inclui os Jubiri, com ressalvas, junto com os Paumari e Yamamadi na família linguística Arawá. À pequena família linguística Katukina pertencem os Katawixi (Catauixi, Catau-ichi) junto ao rio Tapauvá, afluente do Purús (Rodrigues 1986: 81). As tribos Katukina habitam sobretudo as regiões fluviais dos rios Juruá e Jutaí, entre as tribos Aruak da região do Purús no leste e as tribos Pano da região do Javari, a oeste. Os hoje não mais existentes Marauá (Marahua, Marawá) são uma tribo da família linguística Aruak do tronco linguístico Aruak no baixo Juruá e Jutaí, assim como na margem sul do alto Amazonas (Nimuendajú 1981: 57). Com seus adornos faciais deformantes, perfurações em várias partes da boca, com pontas de madeira de palmeira implantadas dentro delas (Marcoy 1869: 299), eles se assemelham às tribos Pano dos Matsé e Matís da região vizinha do Javari. Indubitavelmente esse adorno facial dos Marauá, que é pouco típico das tribos Aruak, foi assumido a uma antiga camada populacional da área oriental subandina. A parica é cheirada, aspirada, como narcótico; os homens velhos também a tomam como clister (Kann 1989: 131). Na indicação de proveniência Marauá existem algumas confusões na documentação da Coleção Natterer (vide 4. Amazônia Central). Fazem parte da Coleção Natterer também alguns objetos dos Mayoruna (Matsé) e Culino de língua Pano, que vivem na região fluvial do Javari (rio limítrofe entre o Brasil e o Peru). Ali existem uma série de tribos da família linguística Pano, cuja origem presumivelmente se localizava nas terras cobertas de florestas à beira dos Andes, a oeste do Ucayali. A expansão dessa família linguística aconteceu para oeste e sudeste. A região de propagação dos Pano se estende além da bacia do Ucayali, da região do Javari e da região do alto Juruá-Purús. Além dessa grande região interligada há ainda, na região do alto Madeira e de suas nascentes, o pequeno grupo sudeste dos Pano (com os já mencionados Karipuna – vide 4. Amazônia Central) e o grupo sudoeste também pequeno – hoje não mais existente – da família linguística Pano. Os Pano são oriundos de uma antiga camada populacional da área oriental subandina. As raízes de suas culturas tribais se localizam em um antigo substrato cultural dessa região (Kästner 1992: 98–105). Os Matsé, que na literatura mais antiga são chamados Mayoruna (Manjerona, Manscherona), ocupam um território que hoje é brasileiro e peruano. No século XVIII, Barbudo é outro sinônimo mencionado para esta tribo. Os missionários e viajantes precoces tiveram sua atenção chamada sobretudo pelos adornos faciais deformantes constituídos de uma perfuração múltipla na parte do nariz e da boca para a colocação de objetos de adorno. Esse elemento cultural, que também pode ser encontrado entre os vizinhos Matís de língua Pano e outras tribos dessa região (por exemplo os acima mencionados Marauá), é significativamente difundido na área oriental subandina e, ao que tudo indica, tem suas raízes em um

antigo substrato cultural subandino. Talvez os espinhos aplicados no nariz e na boca sejam destinados a imitar um felino predador (Kästner 1990: 327–341; 1992, 166). Na Coleção Natterer há uma zarabatana dos Mayoruna (Matsé), cuja parte traseira é decorada com pedaços de cascas de ovo de caimão, que são fixados em forma de mosaico sobre uma massa de piche. Também os vizinhos Matís de língua Pano adornavam suas zarabatanas com pedaços de casca de ovo aplicados (Kästner 2009: Quadro XXX, Fotografia 99). Outros objetos colecionados dos Mayoruna são um pequeno vaso de argila para curare, com ornamentos retilíneos marrom-avermelhados sobre fundo branco, e um carcas feito de taboca para setas de zarabatana, que apontam para a influência da vizinha província histórico-etnográfica de Montaña, a oeste. (Kästner 1992: 132s.; 135s.). Uma peça notável da Coleção Natterer é uma clava com a indicação de procedência “Dos manscheronas junto ao rio Javari”. No entanto, ela provavelmente seja oriunda da região do baixo Yapura-Putumayo, ao norte do Amazonas.10 Os Culino (Kulino) pertencentes à família linguística Pano se estabeleceram entre o baixo Javari e o rio Jutaí. Partes restantes desta tribo, que já era considerada extinta, vivem junto ao rio Curuça, um afluente oriental do Javari. Eles não devem ser confundidos com os Kulina (Culina, Madija) da família linguística Arawá, que vivem mais ao sul, na região do médio e alto Juruá (Nimuendajú 1981: 56; Rodrigues 1986: 72). As informações que Natterer recebeu acerca dos Nauá, caracterizam-nos como uma “nação selvagem e numerosa”, que vive bem distante no interior da região do Juruá. Mas, no que diz respeito a esses Nauá (Nahua), não se trata de uma tribo, e sim de um grupo de tribos Pano linguística e culturalmente estreitamente aparentadas (Verswijver 1987: 25–67), que formam uma área histórico-etnolinguística na região do alto Juruá-Purús. As designações da maior parte das tribos Pano terminam em Nahua ou bo (= “gente”). Terminam em nahua sobretudo os nomes das tribos Pano da região do alto Juruá-Purús, que hoje se encontra em território brasileiro e peruano. Segundo Natterer, os Nauá traziam um adorno em forma de meia-lua feito de conchas ou de prata no septo nasal, sendo que o metal nobre havia sido recebido dos espanhóis (Kann 1989: 133). Pingentes no septo nasal perfurado são um elemento cultural típico das tribos da família linguística Pano (Kästner 1992: 103s.). Segundo Menzel (1957: 40, 99) a presença de pingentes de nariz em forma de meia-lua e feitos de conchas, o material original, está limitada à região do rio Juruá. Na Coleção Natterer existe um arco 10 Trata-se, no que diz respeito à clava, de uma forma mista de clava rasa e de quatro quinas com uma decoração de losangos, volutas e espirais entalhadas e pintadas em branco. Desse tipo de clava existem apenas alguns poucos exemplares com diferentes indicações de procedência em coleções de museu da primeira metade do século XIX. Na Coleção Spix-Martius de Munique a indicação de proveniência para uma dessas clavas é Paumari, ao passo que dois exemplares na Coleção Poeppig do museu de etnologia de Dresden seriam oriundos dos Juri. A forma da clava e a ornamentação apontam para o fato de que essas clavas têm origem ao norte do Amazonas, na região do baixo Yapura-Putumayo, e de que a indicação de procedência “Juri” de Dresden provavelmente seja correta. No que diz respeito as clavas de Viena e de Munique, trata-se de exemplares que chegaram como exemplares isolados a tribos ao sul do Amazonas ou as indicações são falsas (Kästner 1979: 295–306; Zerries 1980: 88 (Quadro 40), 146–148).

173

raso de palmeira com a indicação de procedência Nauá, cuja parte central aparece amplamente provida de um envoltório de fio de algodão branco. Este é adornado por riscos coloridos de través e ornamentos retilíneos. Arcos decorados de tipo semelhante podem ser encontrados nas tribos Pano Shipibo, Conibo e Setebo da bacia do Ucayali, mas também nas tribos Pano da região do alto Juruá-Purús, por exemplo entre os Sharanahuas (Kästner 1992: 35, 80). As tribos acima mencionadas são, com exceção dos Paumari, representantes do tipo econômico-cultural “agricultores usuários de bastão de plantio das regiões florestais tropicais”.

6. Alto Amazonas e Noroeste da Amazônia Fazem parte da Coleção Natterer alguns poucos objetos de índios aculturados da localidade de São Paulo dos Omaguas, no alto Amazonas, chamados de Cambeba (Cambéva, Campeba). Eles são partes restantes da tribo outrora poderosa dos Omagua (Omaú-a), que pertencem à família linguística Tupi-Guarani do tronco linguístico Tupi. Seus antepassados chegaram em tempos tardios da época pré-colombiana com uma onda de migração Tupi da costa do leste brasileiro ao alto Amazonas e até a Montaña. A origem dos Omagua é comprovada por um estreito parentesco linguístico com os Tupinamba da costa leste. Rodrigues (1984/1985: 38s., 43s.) inclui ambos no subgrupo III da família linguística Tupi-Guarani. Durante sua peregrinação que levava ao oeste, subindo o Amazonas, os antepassados dos Omagua assumiram elementos estilísticos do estilo horizontal policromático em cerâmica desenvolvido nas culturas Aruak do baixo Amazonas. A maior parte da tribo se estabeleceu nas ilhas do alto Amazonas. Uma parte se separou e avançou à região do alto rio Napo, ao norte da Montaña. Ali eles foram os portadores, do século XII ao século XV – provavelmente junto com as populações dos Tucano –, da fase napo do estilo horizontal policromático em cerâmica. Eles são os antepassados imediatos dos Omagua-Yeté, que na época pós-colombiana precoce formavam um enclave dos Omaguas na região do alto rio Napo. Os Omaguas do alto Amazonas formavam, junto com outras tribos como os Yurimagua e Aizuar uma região histórico-etnográfica. Essa paisagem cultural das ilhas do alto Amazonas foi aniquilada por portugueses que avançaram pelas correntes do Amazonas acima em busca de escravos, assim como por epidemias no final do século XVII e no princípio do século XVIII. Uma parte da tribo dos Omagua foi estabelecida pelos jesuítas nas proximidades da foz do Ucayali, na Montaña central, onde eles foram influenciados pela cultura dos linguisticamente estreitamente aparentados Cocama e com isso integrados na paisagem cultural da região histórico-etnográfica da bacia do Ucayali, no leste do Peru. A parte restante dos Omagua permaneceu na antiga região de colonização, no alto Amazonas, nas proximidades da localidade de São Paulo dos Omagua ou dos Cambeba (desde 1882 São Paulo de Olivença), em território brasileiro. Ali os Omagua vivem ainda hoje sob o nome de Cambeba (Campeba) (Lathrap 1970: 150–157; Kästner 1992: 71–98, 317–319). Especialmente numerosos na Coleção são objetos que Natterer conseguiu juntar no noroeste da Amazônia. Ao norte do alto Ama-

174

zonas se estende, entre o rio Negro e o rio Putumayo, uma região marcada sobretudo pela presença de tribos Aruak e Tucano. Já na época pré-colombiana precoce, populações proto-Aruak habitavam o noroeste da Amazônia. Populações de Tucano se espalharam apenas bem mais tarde nessa região. A origem da família linguística Tucano está presumivelmente na Montaña setentrional, hoje sede das tribos Tucano Ocidentais. Algumas populações Tucano migraram em direção ao leste e expulsaram ou “tucanizaram” partes da população ali estabelecida, da qual faziam parte tribos Aruak e Makú. Durante esse processo, que ainda estava em andamento no princípio do século XX, estas tribos de Tucano Orientais assumiram vários traços culturais Aruak. Por outro lado, elas também espraiaram elementos culturais do espaço subandino norte no noroeste da Amazônia. Através de processos de aculturação intertribais surgiu ali a província histórico-etnográfica do rio Negro-Putumayo, que politicamente pertence ao Brasil e à Colômbia, assim como em pequena parte também ao Peru. No interior dessa grande paisagem cultural se destacaram quatro regiões histórico-etnográficas. Fazem parte da região histórico-etnográfica entre o baixo Yapura e Putumayo (Iça) tribos da família linguística Aruak do tronco linguístico Aruak, tribos das pequenas famílias linguísticas Peba e Uitoto e tribos de línguas isoladas. Na Coleção Natterer elas estão representadas pelas tribos Aruaks Passé e Cauixana (Caixana), pela tribo de língua isolada Juri (com forte influência Aruak) e pela tribo de língua isolada Ticuna (Nimuendajú 1981: 55, 60, 64; 1982d: 192–208; Rodrigues 1986: 98; Kann 1989: 128–131, 133–135). A região do alto Yapura (Caquetá)-Putumayo é formada por tribos da família linguística Uitoto e da também pequena família linguística Bora, por uma tribo Aruak e ainda uma tribo de língua isolada. Na Coleção Natterer essa região está representada apenas pelos Miranha (Miranya, Miraña) da família linguística Bora (Kann 1989: 128–130; Telban 1988: 358s.). Os Urequena (Uerequena, Arequena) do alto rio Putumayo (Iça) são de difícil classificação. Não existem indicações confiáveis para a classificação linguística dessa tribo. Chamavam a atenção seus lóbulos auriculares ampliados e pendentes bem para baixo, que eles adornavam com feixes de palha (Spix e Martius 1823–1831. Volume III: 1186, 1302; Kann 1989: 117, 119, 129, 135). Certamente se pode classificá-los na região histórico-etnográfica do alto Yapura-Putumayo. Eles não devem ser confundidos com a também mencionada tribo Aruak dos Warekena (Uarequena) da região do alto rio Negro. A região histórico-etnográfica do rio Apaporis (afluente oriental do Yapura) assume uma posição intermediária entre as regiões histórico-etnográficas do baixo Yapura-Putumayo e do Içana-Uaupés. Dela fazem parte tribos dos Tucano e Aruak. Na Coleção Natterer essa região está representada pela tribo Aruak dos Jucuna (Yukúna) (Spix e Martius 1823–1831. Volume III: 1223; Nimuendajú 1981: 67; Kann 1989: 122, 128). A região histórico-etnográfica do Içana-Uaupés envolve as regiões fluviais desses dois afluentes Ocidentais do rio Negro. As tribos dos Aruak do rio Içana formam a área histórico-etnolinguística Baniwa – que não deve ser confundida com a tribo Aruak dos Baniwa junto ao rio Guainia (designação da corrente superior do rio Negro acima

da foz do Cassiquiare) e ao rio Atabapo, na região fronteiriça entre Brasil, Colômbia e Venezuela. Suas línguas são aparentadas, mas diferentes. No presente texto será usada, para os Baniwa do rio Guainia e do rio Atabapo, a designação Baniva, que na literatura é usada com frequência como grafia alternativa para todas as tribos Baniwa. Os Baniva hoje em dia também são conhecidos pelo nome de Kuripako na Colômbia e pela designação Wakuena na Venezuela (Wright 2002). Já Koch-Grünberg havia percebido que Natterer visivelmente “fizera confusão” entre os Baniwa do Içana e os Baniwa (Baniva) do rio Guainia (Colômbia), ao não distingui-los no índice de suas listas de palavras. Também em suas cartas Natterer não faz essa diferenciação. Isso obviamente levou a uma confusão no índice do inventário da Coleção Natterer. Apenas em uma tigela de argila pintada está indicada como origem os Baniwa do rio Içana, e em dois recipientes de cerâmica pintados aparece a indicação de que foram conseguidas em San Carlos, junto ao rio Guainia, dos Baniwa (Baniva) (Imagem 218). Em todos os outros objetos dos “Baniwa” a indicação de procedência destaca apenas Nova-Granada (Colômbia). Isso implica que essas peças são oriundas dos Baniva do rio Guainia. Pelas cartas de Natterer, no entanto, fica claro que ele conseguiu pelo menos a maior parte da coleção junto aos Baniwa do baixo Içana. Koch-Grünberg introduziu, para este grupo dos Baniva, o conceito Karútana (Carta de Natterer a K. v. Schreibers 20.–

Imagem 218: Tigela de argila e vaso de cerâmica. Baniwa, rio Içana, Brasil. Em torno de 1830. Argila, corante, H. 26,5 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.882, 2.584 Tigelas de argila pintadas dos Baniwa [Carútana, Karútana, Karutana] do rio Içana e vasos de cerâmica pintados dos Baniwa do rio Guainia. A última peça foi adquirida em San Carlos, no alto rio Negro. (KPK)

28.2.1831 e 28.8.1831, assim como a Leopold v. Daiser 25.8.1831, Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Koch-Grünberg 1922: 242–245; Nimuendajú 1982c: 123–128, 165, 169, 174; Rodrigues 1986: 66s., 72). Na região fluvial do rio Uaupés vivem sobretudo tribos dos Tucano, que chegaram como conquistadoras. O etnônimo Uaupé (Vaupé) usado por Natterer envolve diversas tribos dos Tucano junto ao rio Uaupés e seus afluentes. Desse etnônimo faz parte a tribo dos Tucano (Tocanna) propriamente ditos junto ao rio Uaupés. Os Kobeua (Köbéu, Cubeo), uma tribo Tucano junto ao rio Cuduiari (afluente do rio Uaupés), também estão representados na Coleção. Apesar de um alinhamento cultural abrangente, ainda continuam existindo diferenças entre as tribos individuais da região histórico-etnográfica do Içana-Uaupés. Assim, a cerâmica marrom-avermelhada, decorada com ornamentos vermelhos das tribos Baniwa do Içana, se diferencia nitidamente da cerâmica negra com detalhes amarelos das tribos dos Tucano da região fluvial do Uaupés. A cerâmica

175

das tribos Aruaks mencionadas tem suas raízes históricas no arqueológico estilo horizontal policromático, que foi desenvolvido em culturas Aruak pré-colombianas da Amazônia (Kästner 1992: 55). Fazem parte da região histórico-etnográfica do Içana-Uaupés também os grupos dos Makú, que estiveram em uma espécie de relação escrava com os Tucano e foram culturalmente muito influenciados por eles. Os Makú, que viviam espalhados na região entre o rio Negro e seu afluente, o rio Uaupés, assim como junto ao rio Yapura e seu afluente, o rio Apaporis (Apaporís), fazem parte da pequena família linguística Makú-Puinave e se subdividem nas tribos Nukak, Hupdu, Yuhup, Dow, Nadob e Kawka (Bará). As tribos dos Makú no passado eram todas elas, provavelmente, representantes do tipo econômico-cultural “caçadores/coletores nómades das regiões florestais tropicais”. Hoje em dia isso continua certo em relação à tribo mais setentrional dos Makú, os Nukak na Colômbia. Sob a influência dos Tucano, grupos dos Makú assumiram um tanto de agricultura e se tornaram “caçadores/coletores e agricultores semisedentários das regiões florestais tropicais” (Koch-Grünberg 1922: 260–262; Pozzobon 1997: 162–165, 170s.; Politis 2001: 30– 46). Dos Makú do rio Ija, um afluente do rio Marié, que desemboca no rio Negro ao sul do Uaupés, provém a lâmina de um machado de pedra da Coleção Natterer. Provavelmente ela deva ser classificada como sendo dos Nadob. Os exemplos seguintes apontam para a equiparação cultural, mas também para as diferenças culturais entre as tribos da província histórico-etnográfica do rio Negro-Putumayo. Em todas as quatro regiões histórico-etnográficas desse território há cultos de máscaras de cunho diferente, que estão em conexão sobretudo com a difusão dos traços culturais dos Aruak. Neles são usadas máscaras biomórficas de ráfia, que se distinguem tipologicamente nas quatro regiões. As máscaras na região do baixo Yapura-Putumayo se distinguem pelo aspecto realista. Delas fazem parte as máscaras dos Ticuna, que aparecem sobretudo durante a iniciação das moças (Nimuendajú 1948d: 718–720). Nelas se unem rasgos de um antigo culto de máscaras dos Aruak com as de um antigo substrato cultural subandino (Kästner 1992: 62, 169s.). Um exemplo da difusão dos elementos culturais dos Tucano na província histórico-etnográfica do rio Negro-Putumayo é a presença de lanças com chocalho. A lança com chocalho é uma arma cerimonial, cetro cerimonial e instrumento de emissão de ruído (idiofone). Entre algumas tribos, ao que tudo indica, ela também era usada como arma de guerra. As lanças com chocalho feitas pela tribo Tucano dos desanas eram negociadas em diversas tribos dos Tucano, mas também chegavam a tribos dos Aruak da região do Içana-Uaupés. Em forma um tanto mudada, este elemento cultural também acabou se espalhando na região do Apaporis – como por exemplo entre a tribo Aruak dos Jucuna –, assim como na região do baixo e do alto Yapura-Putumayo (Kästner 1980: 94–100; Zerries 1980: 94s.). A ponta denteada das lanças com chocalho das tribos dos Tucano do Uaupés aponta para um possível nexo entre estas e cetros cerimoniais de forma semelhante encontrados entre algumas tribos chibchas no noroeste da América do Sul (Izikowitz 1935: 138–144; Zerries 1973: 548–550). Este é, aliás, um indício para a presumível região de origem da família linguística Tucano, que deve ser localizada na Mon-

176

taña setentrional, ao sul da região de difusão das tribos dos Chibcha. Uma importante arma de caça de toda a região é a zarabatana. Conforme a construção e o corte, Yde (1948, 282–317) distingue quatro tipos de zarabatanas. A província histórico-etnográfica do rio Negro-Putumayo é a única região da América do Sul na qual pode ser constatada a presença de todos os quatro tipos.11 Tanto para fins guerreiros como para a caça, várias das tribos da região usavam também lanças envenenadas.12 Ao norte do rio Içana está estabelecida, junto ao rio Xié (afluente do alto rio Negro) e ao rio Guainia, na região fronteiriça entre o Brasil, a Colômbia e a Venezuela, a tribo Aruak dos Warekena (Uarequena). Linguística e culturalmente eles são, assim como os acima mencionados Baniva do Guainia, aparentados das tribos Baniwa do rio Içana, também pertencentes à família linguística Aruak. De modo que zarabatana e carcas para setas dessa tribo correspondem aos das tribos da região do Içana-Uaupés. São também tribos dos Aruak do rio Negro os Baré e Manao. Os Barés na primeira metade do século XIX eram divididos em duas tribos, estabelecidas às margens do rio Negro, da localidade chamada Barcellos a San Carlos (em território colombiano). Os Unini(Ihini)-Baré viviam no médio rio Negro, e os Arihini(Alihini)-Baré no alto rio Negro até a foz do Cassiquiare. Essa ligação fluvial natural entre rio Negro e Orenoco é, segundo Koch-Grünberg, a antiga pátria dos Baré. A partir dali eles se espalharam ao longo do rio Negro. No decorrer do tempo, a língua dos Baré também foi assumida por outros grupos. Hoje eles formam o núcleo da população indígena aculturada em vários lugares do médio e do baixo rio Negro (Carta de Natterer a C. v. Schreibers, 22.8.1831, Museum für Völkerkunde de Viena, Arquivo; Koch-Grünberg 1922: 239–241). Os Manao do baixo e do médio rio Negro, também pertencentes à família linguística Aruak, foram no passado uma tribo poderosa. No século XVII eles mantiveram intensivas relações de comércio com as tribos das ilhas do alto Amazonas, que entre outras coisas recebiam 11 Yde (1948: 276–317) distingue quatro tipos de zarabatanas usadas na América do Sul. O tipo I é um canudo simples e tem presença apenas esporádica na região. O tipo II é feito de dois canudos embutidos (um canudo de Arundinaria em um caule escavado e tornado oco da palmeira paxiúba). A região em que ele mais se espalhou é as Guianas. Mas ele também se espraiou à região vizinha do alto rio Negro e à região do Içana-Uaupés colada a ela. Ali também pode ser encontrado o tipo III, cuja presença é limitada a esta região. Este tipo é feito também de dois canudos, embora o cano exterior consista nas duas metades coladas de um caule escavado e oco de palmeira. O tipo III é uma forma mista dos tipos II e IV. O último é feito de apenas um canudo, composto de duas metades escavadas e ocos de um caule de palmeira. O tipo IV é muito difundido na região ocidental da Amazônia, ao norte e ao sul do rio Amazonas. À sua região de difusão pertencem também a região do baixo e do alto Yapura-Putumayo e a do Apaporis. As demais características que diferenciam as zarabatanas são a forma e o material da embocadura da zarabatana, assim como do carcas para as setas de zarabatana e do recipiente de seda vegetal que também faz parte do conjunto (Kästner 1980: 107–115). 12 Na região do alto e do baixo Yapura-Putumayo, assim como na região do Apaporis, as armas principais eram dardos leves com pontas envenenadas. Vários dardos eram juntados em um feixe, e as pontas eram enfiadas em um estojo feito de pedaços de canudos atados. Flechas e arco tinham um papel apenas acessório na província histórico-etnográfica do rio Negro-Putumayo. Uma exceção eram as tribos da região do Içana-Uaupés. Suas flechas sem emplumação com pontas envenenadas também eram juntadas em feixe e providas de um estojo de proteção (Kästner 1980: 90–92; 2006: 125s., 136).

Imagem 219: Aljava de setas. Yabaána, noroeste da Amazônia, Brasil/ Venezuela. Em torno de 1830. Mainatari, Venezuela. Em torno de 1830. Curivaurana, Brasil/Venezuela. Em torno de 1830. Uirina, noroeste da Amazônia, Brasil. Folhas de palmeira, barbantes, lã, piche, cabaça, veneno de setas, C. máx. 66 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.910, 1.917, 1.912, 1.913 Para as zarabatanas são usadas setas pequenas e pontudas, cuja extremidade superior é provida de lã vegetal. Isso serve para estabilizar a trajetória de voo. Uma vez que as setas em muitos casos são demasiado pequenas para matar animais apenas com o disparo, suas pontas são embebidas em um veneno típico para setas. Na Amazônia sobretudo o curare é bastante difundido. Ele pode ser extraído de diferentes espécies de cipós. Muitos grupos indígenas dispõem de suas próprias receitas. O curare causa paralisia, e por fim paralisia dos músculos respiratórios, o que leva à morte. (CA)

deles objetos de ouro (Métraux 1948c: 707s.). À época de Natterer, continuavam vivendo apenas alguns descendentes dessa tribo nas localidades de Barcellos e Thomas, junto ao rio Negro (Kann 1989: 122). Com exceção dos Makú, todas as tribos que foram mencionadas na presente seção acerca dos índios do noroeste da Amazônia são representantes do tipo econômico-cultural “agricultores usuários de bastão de plantio das regiões florestais tropicais”. A plantação de mandioca-brava como principal planta alimentícia é de importância especialmente grande nessa área, o que está em conexão com a expansão das tribos da família linguística Aruak, que já cultivavam tubérculos assaz nutritivos na época pré-colombiana precoce e desenvolveram tecnologias de processamento para seu uso (Lathrap 1970: 40–60; Kästner 1992: 22s., 46–52).

7. As Guianas e a foz do Amazonas A região das Guianas se estende ao norte do Amazonas até o Orenoco e do rio Negro até a costa do Atlântico. Ela foi marcada culturalmente pelas tribos da família linguística Aruak do tronco linguístico Aruak e pela família linguística Karíb. A difusão das tribos do tronco linguístico Aruak sucedeu – conforme já foi mencionado –

por volta do ano 1000 a. C. a partir do baixo Orenoco. Ponto de partida para a difusão da família linguística Karíb foi, em cerca de 400-500 d. C., o médio Orenoco. Enquanto a difusão dos (proto-) Aruak é posta em conexão com a difusão do estilo horizontal barrancoide em cerâmica, existe uma conexão direta entre a difusão da família linguística Karíb e o estilo horizontal arrauquinoide em cerâmica (Lathrap 1970: 113–117, 120s., 123–127, 164–170; Kästner 1992: 46–50, 194–197). Além destas há ainda pequenas famílias linguísticas, tribos de língua isolada, oriundas de uma antiga camada populacional, e algumas poucos tribos da família linguística Tupi-Guarani, que migraram de suas regiões originais no sul do Amazonas para o norte e, ao fazê-lo, atravessaram o rio Amazonas. Através de aculturação intertribal entre as tribos pertencentes a diferentes línguas surgiu a província histórico-etnográfica das Guianas, na qual podem ser distinguidas cinco regiões histórico-etnográficas com marcas culturais próprias: a região do alto Orenoco, a região de savanas Guianenses, a Guiana amazônica assim como as regiões costeiras setentrional e meridional das Guianas. A rota da viagem de Natterer o levou pelo rio Branco, um afluente oriental do rio Negro, até as Guianas. Ele coletou numerosos objetos etnográficos das tribos mencionadas a seguir. Pouco se conhece acerca dos Aroaqui (Arauakí), que viviam a leste do baixo rio Negro (Kann 1989: 225). Provavelmente eles pertencessem a família linguística Aruak. Nimuendajú os menciona em seu mapa (1981: 46) sem classificá-los linguisticamente. Entre os poucos objetos aroaquis da Coleção Natterer encontra-se uma flecha de arpão (sararaca) para caçar tartarugas. Sua emplumação corresponde ao tipo “emplumação com ligação intervalar”, que evidentemente tem origem Karíb. A variante curta desse tipo de emplumação se difundiu por toda a província histórico-etnográfica das Guianas (Kästner 2006: 124s., 134). Estão extintas também as tribos Aruak mencionadas a seguir, que viviam junto aos afluentes orientais do médio rio Negro. Os Yabaána (Yabahána, Jabahani), que não devem ser confundidos com a tribo Karíb dos Yabarana da região do alto Orenoco, e os Curivaurana (provavelmente uma tribo Aruak) habitavam a região da nascente do rio Marauía. Os Curivaurana talvez fossem, segundo Koch-Grünberg (1922: 238), idênticos aos Curanaó ou Curanau mencionados por Martius, que viviam misturados aos Yabaána na mesma área. A região de colonização dos Uiriná, também de língua Aruak, ficava ao sul do rio Marauía, junto ao rio Marari. Junto ao Castanha Paraná, um afluente meridional do Orenoco, no sul da Venezuela, se estabeleciam, segundo Natterer, os Mainatari e Macuná-uis (Índice de objetos inventariados da Coleção Natterer no Museum für Völkerkunde de Viena; Kann 1989: 222s.). Os Mainatari são mencionados por Koch-Grünberg (1922: 238) e Nimuendajú (1981: 56), mas não se sabe a que língua pertencem. Com relação aos Macuná-uis não se encontram referências na literatura especializada. Talvez se trate, no caso deles, apenas de um subgrupo de uma tribo. Evidentemente as tribos a leste do rio Negro e ao sul do Orenoco mencionadas acima pertenciam à província histórico-etnográfica das Guianas. As zarabatanas dos Yabaána e Mainatari são do mesmo tipo (Tipo II, segundo Yde) das zarabatanas das tribos da região

177

Imagem 220: Cestos, leques para ativar o fogo e a época ancestral mítica. Porocoto, Wapixana, Guaiana, região fronteiriça entre Brasil e Guiana. Em torno de 1832. Tiras de folha de palmeira, tiras de cana, fibra vegetal, corante, lã vegetal, H. máx. 17,5 cm. Col. Natterer, Nºs de Inv. 1.978, 1.979, 2.011, 2.013, 2.015 Tanto os grupos de língua Karíb quanto os de língua Aruak das Guaianas são conhecidos por sua habilidade artística na produção de cestos. O trançado de cestos é, entre muitos grupos, um trabalho puramente masculino. Muitas vezes os cestos de transporte, de armazenamento e os leques para ativar o fogo são vistos como cópias dos primeiros objetos desse tipo, que têm sua origem na época ancestral mítica. Sobretudo objetos de uso cotidiano são tidos como corpos de seres míticos, cuja força caótica pôde passar a ser controlada e tornada útil aos humanos através de um processo de transformação. (CA)

de savanas Guianenses e da região do alto Orenoco. O mesmo tipo também pode ser constatado junto ao alto rio Negro e na região do Içana-Uaupés (vide 6. Noroeste da Amazônia). Os carcases para setas de zarabatanas dos Yabaána e Mainatari, feitas de um pedaço de bambu com um envoltório de folhas, se assemelham às das tribos da região do alto Orenoco. Os carcases para setas de zarabatanas entrançadas dos Curivaurana, e com algum desconto também as dos Uirina, têm, por sua vez, uma certa semelhança com os carcases das tribos do alto rio Negro e da região do Içana-Uaupés (Imagem 219). Na Coleção há ainda pequenos recipientes de cabaças cheios de curare dos Yabaána e Mainatari. Eles correspondem aos recipientes de curare difundidos nas Guianas (Kästner 1980: 118). Fazem parte da região histórico-etnográfica do alto Orenoco os Yekuana (Makiritare), que vivem nos afluentes orientais desse rio. A região de savanas Guianenses é uma região histórico-etnográfica que envolve a área do alto rio Branco (afluente do rio Negro) e grande parte da região fluvial do Essequibo (incluindo o Rupunini). O Essequibo não pertence à região fluvial do Amazonas, e sim desemboca no Atlântico. As tribos dessa paisagem cultural habitam sobretudo a savana, mas também as regiões florestais vizinhas. Trata-se, no caso, sobretudo de tribos dos Karíb e Aruak.

178

Na Coleção Natterer as tribos dos Karíb estão representadas pelos Makushi (Macuxi, Macushi), Parukotó (Porocoto) e Caripuna (Calipuna), das quais as últimas duas mencionadas não existem mais. Os Parukotó na região do alto rio Branco tiveram um papel cultural mediador entre as tribos da referida região do rio Branco e as do alto Orenoco. Nas vizinhanças dos Caripuna do Rupunini vivia uma parcela da tribo dos Karaíba, que fazem parte da paisagem cultural da região costeira setentrional das Guianas. As Karaíba avançaram cada vez mais da região costeira ao interior das Guianas, caçando escravos. Assim como os Caripuna, eles praticavam o comércio de escravos com os holandeses. Em um relato português de 1787, as Caripuna e as Karaíba são descritos como inimigos, embora sendo tribos aparentadas. Disso se segue que ambas as tribos fazem parte da família linguística Karib. No final do século XIX ainda existiam apenas alguns poucos Caripuna e Karaíba na região do Rupunini (Koch-Grünberg 1922: 205–218). Esses Caripuna não são os mesmos das tribos de nome igual ou semelhante na região costeira das Guianas. No século XVII, os Karipuna (Karipou) habitavam a mesma região habitada pelos palikurs da familia linguística Aruak, na região costeira meridional das Guianas (Povos Indígenas no Brasil. Volum. 3. 1983: 63). Segundo Nimuendajú (1926: 17) esses Caripou (Anacaioury, Yao) são um povo misto Aruak-Karib, que se deslocou, sob a pressão dos espanhóis de Trinidad, ao longo da costa até a foz do Amazonas. Karipuna (Caripuna) era uma designação Karib para grupos inimigos. De diferente origem étnica são também os Karipuna que são mencionados no século XIX junto ao rio Curipi (também na região costeira meridional). Seus antepassados eram fugitivos da foz do Amazonas, dos quais alguns falavam a língua franca baseada no Tupi oriental, e que era usada nas missões jesuíticas como língua franca. Eles chamavam a si mesmos dos Karipuna. Seus descendentes hoje em dia falam Patoá, uma língua mista (Povos Indígenas no Brasil. Volume 3. 1983: 63). Também não existem nexos com tribos ao sul do Amazonas, que ficaram conhecidas pelo nome de Karipuna (vide 3. Amazônia Central). As tribos Aruak da região de savanas Guianenses estão representadas na Coleção Natterer pelos Wapishana (Wapixana, Vapeschana, Uapeschana) e Pauishana (Pauixana, Pauschiána, Paušiána, Pajana). A numericamente grande tribo dos Wapishana vive sobretudo na região fluvial do Rupunini. Através do comércio com os brancos, eles estavam fortemente aculturados já no princípio do século XX (Koch-Grünberg 1922: 219s.). Suas lingínquas viagens de comércio os levaram até o alto rio Mapuera, na região fluvial do rio Trombetas, um afluente setentrional do Amazonas (Fock 1963: 5s.; Yde 1965: 281s.). Essa área faz parte da região histórico-etnográfica da Guiana amazônica. Na região do alto rio Branco vivem os Pauishana, dos quais no princípio do século XX ainda existia apenas um pequeno número. Segundo Richard Schomburgk (Volume 2. 1848: 42) as línguas dos Pauischana e Wapischana são bastante parecidas. Por isso é incompreensível que Nimuendajú (1981: 60) classifique os “Paušiána” na família linguística Karib. Ambas as tribos estavam em constante contacto uma com a outra (Robert Schomburgk 1841: 506).

Na Coleção Natterer se encontram zarabatanas do Tipo II (conforme Yde 1948: 282s.) dos Makushi, Parukotó e Caripuna. Os carcases entrançadas para setas de zarabatanas dos Makushi e Parukotó são – conforme é típico das tribos das savanas – de forma aproximadamente cilíndrica e cobertas de piche por fora. Um elemento cultural típico da província histórico-etnográfica das Guianas são os pequenos cestinhos com tampo quadrados e entrançados dos Parukotó e Wapishana, nos quais os homens conservam seus utensílios (Kästner 2007: 179s.) (Imagem 220). Os Taruma de língua isolada, chamados de Tarumán, Kinna e Kinoo por Natterer (Indice de objetos inventariados da Coleção Natterer no Museum für Völkerkunde de Viena; Kann 1989: 123, 126), viviam no século XVII nas proximidades da área em que o rio Negro desemboca no Amazonas. A pressão dos portugueses e de tribos vizinhas fez com que eles se mudassem para o norte, à região das nascentes do Essequibo, na antiga Guiana Britânica (Brett 1868: 338). No século XIX os hoje extintos Taruma viviam como vizinhos junto com uma parte da tribo Karib dos Waiwai, oriunda da região do alto Trombetas. Ambas as tribos, que fazem parte da região histórico-etnográfica da Guiana amazônica, mantinham intensas relações de comércio com os Wapishana das savanas do Rupunini (Fock 1963: 5s.). Sobretudo os Taruma desempenhavam um papel cultural mediador entre as tribos da Guiana amazônica e as da região das savanas. Na Coleção Natterer encontra-se uma tábua de ralar mandioca que os Makushi conseguiram dos Taruma através de uma troca. As tábuas de ralar dos Taruma eram um objeto de troca cobiçado no comércio intertribal das Guianas (Kann 1989: 126). Todas as tribos das Guianas acima mencionadas – também as tribos da região das savanas – encarnam o tipo econômico-cultural “agricultores usuários de bastão de plantio das regiões florestais tropicais”. Assim como no noroeste da Amazônia, também ali a mandioca-brava é a principal planta fornecedora de alimento. Para concluir, sejam mencionados ainda os Sacaca (Sacacca, Joannes), que no século XVII habitavam a costa oriental da ilha de Marajó, na foz do Amazonas. Segundo o missionário jesuíta Bettendorf (1910: 26, 90–92) viviam nessa época na ilha de Marajó, que também era chamada de Ilha Grande dos Joannes, sete tribos de diferentes línguas, que guerreavam com frequência. Delas faziam parte, entre outros, os Sacaca e Arua. Não se sabe a que língua pertencem os Sacaca (Nimuendajú 1981: 62). Também não existem indicações acerca de sua cultura. Em Bettendorf (1910: 92) pode ser encontrada apenas a indicação de que as tribos da ilha de Marajó usavam flechas de pontas envenenadas. Quando os Arua da familia linguística Karib migraram da foz do Amazonas para o norte, nos séculos XVII e XVIII, e se estabele-

ceram na região costeira meridional das Guianas, onde se misturaram com tribos ali estabelecidas desde antigamente, faziam parte de sua comitiva provavelmente também outros grupos étnicos como os Sacaca (Nimuendajú 1926: 112). Dos descendentes aculturados dos Sacaca que permaneceram na ilha de Marajó podem ser encontradas na Coleção Natterer algumas colheres de cozinha entalhadas em madeira de jenipapeiro (Genipa americana).

Glossário Tipo e subtipo econômico-cultural Etnias com um estado de desenvolvimento social semelhante formam, sob condições de ambiente iguais ou semelhantes, um complexo de especificidades econômicas e culturais características que distinguem um determinado tipo econômico-cultural. De quando em quando no interior de um mesmo tipo podem ser identificados vários subtipos cujo surgimento é atribuído a especificidades ecológicas regionais e determinados processos históricos. Família histórico-etnolinguística e área histórico-etnolinguística Tribos aparentadas linguisticamente e (pelo menos originariamente) culturalmente formam uma família histórico-etnolinguística, cuja correspondência linguística é a família linguística e, em alguns casos (por exemplo entre as famílias histórico-etnolinguísticas Aruak e Tupi/Guarani), o tronco linguístico. Em famílias histórico-etnolinguísticas maiores muitas vezes há grupos de tribos vizinhas, que desenvolveram adicionalmente alguns traços culturais específicos, e por isso podem ser caracterizadas como áreas histórico-etnolinguísticas. Isso pode acontecer por exemplo com a fragmentação de uma tribo (materna) em várias tribos autônomas. Por outro lado, as tribos de uma área histórico-etnolinguística podem, ao longo de um processo de consolidação, se fundir em uma única tribo, na qual as tribos outrora autônomas continuam reconhecíveis apenas na condição de subgrupos. Província histórico-etnográfica e região histórico-etnográfica A província histórico-etnográfica é uma grande paisagem cultural, na qual aconteceu uma equiparação cultural (aculturação intertribal) entre numerosas tribos que pertencem a línguas diferentes. No interior de uma província histórico-etnográfica na maior partes das vezes podem ser distinguidas várias regiões histórico-etnográficas. No que diz respeito às últimas, trata-se de regiões de aculturação intertribal menores, que apresentam particularidades culturais de caráter especial e uma homogeneidade fundamentalmente maior do que a apresentada pelo conjunto da província histórico-etnolinguística. São vários os fatores que contribuem para o surgimento de tais paisagens culturais, por exemplo as relações de troca, relações de casamento intertribais (inclusive o rapto de mulheres), subjugamento de outras tribos ou partes de tribos e outras influências externas de diferentes tipos (por exemplo influências em estações missionárias). Antigos substratos culturais pré-colombianos A difusão de determinados elementos culturais ao longo de grandes espaços geográficos permite supor a existência de antigos substratos culturais na época pré-colombiana, cujos suportes eram camadas populacionais antigas. Desses substratos culturais se formaram, no decorrer do desenvolvimento histórico, as famílias histórico-etnolinguísticas. (Indicações mais especificadas a este sistema de classificação histórico-etnográfico podem ser encontradas em Kästner 1992: 10–20).

179

Anexo

Etnias representadas na Coleção Natterer de Viena Leste e sudeste do Brasil

Amazônia ocidental

1 Apinayé (Apinaié, Apinagé) 2 Krahô (Kraho, Krahão, Craó) 3 Porecramecan (Poracramecan) 4 Xavante (Shavante, Chavante) 5 Xerente (Sherente, Cherente) 6 Kayapó do sul (Caiapó meridionais) 7 Camé (Cameh) [subgrupo dos Kaingang (Caingang)] 8 Coroado 9 Puri 10 Botocudo 11 Maxakali (Mashacali) 12 Tembé 13 Vuai-ai-já [Guajajara] 14 Avá-Canoeiro (Canoeiro) 15 Carijó (Guarani)

42 Paumari (Poropuru, Poropurú, Porupurú) 43 Jubiri (Schubiri, Yuberí) 44 Katawixi (Catauixi, Catau-ichi) 45 Marauá (Marahua, Marawá) 46 Mayoruna (Manjerona, Manscherona) [Matsé] 47 Kulino (Culino, Kulina) 48 Nauá

Mato Grosso do Sul e Gran Chaco 16 Bororo da Campanha (Bororo Biriboconé ou Biriboconné) 17 Bororo do Cabaçal (Bororo Cabaçais ou Cabaçaes, Bororo Aravirá) 18 Guató (Vuató) 19 Guaná (Vuaná) 20 Enima(ga) (Lilei) [Inimacá, Lengua-Cochaboth] 21 Chamacoco (Xamacoco, Schamucoco)

Índios aculturados (“civilizados”) do leste da Bolívia e do leste do Peru 22 Mojo (Moxo) 23 Baure 24 Itonama 25 Guasoroca (Guasaroka) 26 Chacapoia (Chachapoia) [população mista da Província de Chachapoyas]

Amazônia Central

Esboço: Klaus-Peter Kästner Execução técnica: Sylvia Pais da Silva Pereira

182

27 Munduruku (Mundurucú, Mundurucu) 28 Sateré-Mawé (Mawé, Maué, Mauhé) 29 Apiaká (Apiacá) 30 Parentintin (Parintintin) 31 Uauirivait (Ouauirivait) [Kuruaia, Curuáia, Kuruáya] 32 Bakairi (Bacairi) 33 Paresí (Pareci, Paressi) 34 Cabixi (Cabishi, Kabischi) [Nambikwara, Nambicuara, Nambiquara] 35 Karipuna (Caripuna) 36 Pama (Pamma) 37 Guatiá (Guatihiá, Quatia) 38 Torá (Turra) 39 Mura 40 Matanawí (Matanaú) 41 Arara

Alto Amazonas e Noroeste da Amazônia 49 Omágua (Omaú-a) [Kambeba, Cambeba, Cambéva, Campeba] 50 Passé 51 Cauixana (Caixana) 52 Juri 53 Ticuna (Tukuna) 54 Miranha (Miraña, Miranya) 55 Urequena (Uerequena, Arequena) 56 Jucuna (Yukúna) 57 Baniwa (Baniva) do rio Içana [Karútana e outras tribos Aruak] 58 Baniva (Baniwa) do rio Guainia e do rio Atabapo 59 Tukano (Tucano, Tocanna, Uaupé, Vaupé) 60 Kubeo (Cubeo, Kobeua, Köbéu) 61 Makú [Nadob e outras tribos Makú] 62 Warekena (Uarequena, Varequena) 63 Baré 64 Manao

Guianas e foz do Amazonas 65 Aroaqui (Aroaki, Arauakí) 66 Yabaána (Yabahána, Jabahani) 67 Curivaurana 68 Uiriná 69 Mainatari 70 Macuná-ui 71 Yekuana (Makiritare) 72 Makuxi (Makushi, Macushi) 73 Parukotó (Porocotó, Porocoto) 74 Caripuna (Calipuna) 75 Wapixana (Wapishana, Vapeschana, Uapeschana) 76 Pauixana (Pauishana, Pauschiána, Paušiána, Pajana) 77 Taruma (Tarumán, Kinna, Kinoo) 78 Sacaca (Sacacca), [Joanes, Joannes]

Os etnônimos entre parênteses correspondem a grafias alternativas ou sinônimos para as tribos referidas. As designações ou indicações geográficas apresentadas entre colchetes foram acrescentadas pelo autor para uma definição mais precisa.

183

Johann Natterer e a expedição austríaca ao Brasil Cronologia A ÉPOCA

BRASIL

ÁUSTRIA

1819 Fevereiro

6.–21. Excursão de Pohl ao Rio Claro, em Goiás.

Abril



Continuação da viagem de Pohl ao Rio Maranhão, em Goiás

Junho

4.

Viagem de Schott ao Rio Paraíbuna, SP

Julho

19. Chegada de Schott em Cantagalo, RJ

Outubro

1. Retorno de Schott ao Rio de Janeiro

1820 Janeiro



Viagem de Schott e Frick a Macacú, Espírito Santo



Pohl regressa a Goiás

1816 Início dos planos de viagem Março

1817 Abril



Maio Junho

Embarque a bordo da fragata Austria: Mikan, Ender, Spix, Martius Embarque a bordo da Augusta: Natterer, Schott e Sochor

13. Casamento da arquiduquesa Leopoldina na Igreja Agostiniana

Abril Julho

15. Viagem de Natterer a Curitiba, Paraná

Dezembro

6.

14. Chegada da fragata Áustria no Rio de Janeiro

Agosto



Embarque a bordo da São Sebastião em Livorno:

2. Retorno de Schott e Frick ao Rio de Janeiro

5. Chegada da Augusta e dos navios portugueses no Rio de Janeiro

Dezembro

9.

Janeiro

Fevereiro



15. Retorno de Mikan, Schott e Buchberger para o Rio de Janeiro

Abril

5. Retorno de Pohl para o Rio de Janeiro

Maio

7. Retorno de Natterer e Sochor ao Rio de Janeiro 26. Embarque da primeira carga coletada, na Fragata Augusta

Setembro Novembro

184

Karl von Schreibers publicou os primeiros relatos dos



naturalistas brasileiros nos meios de comunicação austríacos

Viagem de Natterer e Schott para Sepetiba, RJ 15. Viagem de Pohl através da província do Rio de Janeiro e Ilha Grande

Março

Junho



Morte do pintor Buchberger



Abertura do Museu Brasileiro na (Rua) Johannesgasse



Chegada de Pohl em Viena, acompanhado por um homen e uma mulher do grupo dos Botocudo, que ele apresenta no jardim do castelo

2. Regresso de Natterer ao Rio de Janeiro 28. Regresso ao Pohl nach Rio de Janeiro

Viagem de Ender, Spix e Martius para São Paulo

Viagem de Mikan, Schott e Buchberger para Cabo Frio, RJ



1821

Fevereiro

1818

Aluguel da casa na Rua Johannesgasse para o Museu Brasileiro

Pohl alcança Ouro Preto, MG Natterer viaja para Patanaguá, Paraná

Leopoldina e o restante dos participantes da expedição Novembro



Abril



Volta de Pohl para a Europa

Junho

25.

Dissolução oficial da expedição por causa da ameaça de instabilidade política Em uma carta, Natterer conta a Schreibers sobre o desejo de continuar a expedição por conta própria

Outubro

1822

Natterer obtém permissão oficial para continuar sua jornada

Setembro

2.

Proclamação da independência do Brasil de Portugal, sob a presidência de Leolpoldina

Volta de Mikan, Ender, Buchberger e Raddi para a Europa, com a fragata Austria

Outubro

Início da quinta viagem de Natterer, com saída de Ipanema

6.

Viagem de Pohl através das províncias de Goiás e Minas Gerais

Novembro



Chegada de Natterer em Orissanga, SP, onde passa o período chuvoso

1.

Viagem de Natterer ao interior da província de São Paulo

Dezembro

1.

Dom Pedro é coroado o primeiro imperador do Brasil

25. Chegada da primeira carga de material coletado a Viena

185

1823 Agosto

2.

Chegada de Natterer em Goiás

Dezembro



Chegada de Natterer em Cuiabá, MG, fim da quinta viagem, Natterer adoece de uma grave infecção no fígado



Dezembro

Início da sexta viagem de Natterer



Chegada de Natterer ao Rio Guaporé, MG, fim da



sexta viagem

Novembro

Morte de Dominik Sochor em São Vicente, devido a uma febre 11. Morte de Leopoldina, na idade de 29 anos, no Rio de Janeiro

25. Partida de Natterer de volta a Cuiabá, MG

Início da sétima viagem de Natterer. Partida de Mato Grosso sobre os rios Guaporé e Madeira para Borba, Amazonas.

Meados. Saída de Barcelos ao Rio Branco, AC

Setembro

8.

Novembro

5. Saída de Natterer de Manaus, sentido Rio Negro 28. Chegada de Natterer em Barcelos, AM 30. Saída de Natterer de Barcelos

1831



Janeiro

16. Chegada de Natterer em Marabitanas, AM

Fevereiro

15. Chegada de Natterer em San Carlos de Rio Negro, AM

Março

18. Chegada de Natterer em Marabitanas, AM

Maio

26. Saída de Natterer de Marabitanas

Junho

2.

27. Saída de Natterer do Forte do Rio Branco

Agosto

1.

Chegada de Natterer em Manaus



Natterer recebe uma carta, dizendo que deve voltar imediatamente a Europa. Contudo, devido à instabilidade política essa empreitada revela-se difícil.

Maio

13. Saída de Natterer de Manaus

Setembro

Final. Chegada de Natterer em Belém, PA.

Outubro

Início. Saída da décima primeira carga de material coletado, com mais de 400 objetos etnográficos.

Setembro

9.

Natterer volta a casa, a partir de Belém.

Novembro

9.

Chegada de Natterer em Londres

1836

17. Partida da décima carga de material coletado de Borba, com 150 objetos etnográficos. 25. Saída de Natterer de Borba, AM

Maio

1835

24. Chegada de Natterer em Borba, no Rio de Madeira, onde ele passa o período chuvoso.

Agosto

186

Setembro

1834

1830 Junho

20. Retorno de Natterer a Barcelos



1829 Julho

Agosto

Outubro

1827 Setembro

Chegada de Natterer em São Joaquim, AM 11. Chegada de Natterer em São Jerônimo, AM 24. Saída de Natterer de São Jerônimo, no Rio Uaupés

1832

1826 Outubro

1.

Morte do pai de Johann Natterer

1825 Agosto

Julho

Junho

5.

Julho

3.

Agosto

13. Chegada de Natterer em Viena

Fechamento do Museu Brasileiro de Viena e transferência da coleção para a casa da família imperial, Ungargasse 67–69

Saída de Natterer de Londres

Chegada de Natterer em Manaus, AM

Chegada em Viena da nona carga de material coletado

Casamento de Natterer com Maria do Rego

Siglas dos Estados:



Chegada em Viena da décima carga de material coletado

AC........ Acre AM....... Amazonas MG....... Mato Grosso PA......... Pará RJ.......... Rio de Janeiro SP......... São Paulo

Natterer visitou uma aldeia de índios Baré 22. Natterer enviou seus pilotos a uma aldeia no Rio Cuiari, a fim de comprar itens de grupos indígenas. 26. Natterer visitou quatro aldeias dos índios Baniwa

187

Biografias resumidas dos participantes da expedição Johann Natterer (1787–1843) Johann Natterer foi um naturalista e zoólogo austríaco nascido em Laxenburg, filho de um taxidermista e colecionador, que dedicou sua vida na obtenção de uma vasta coleção de aves nativas, mamíferos e insetos. Quando em 1794 esta coleção foi comprada pelo imperador Franz II e transferida para Viena, Johann Natterer sen. introduziu ambos os filhos na arte de preparar, caçar e empalhar animais e deixou eles trabalharem com a coleção dele. Após Karl von Schreiber ter sido chamado para ser o diretor do escritório de história natural da corte imperial, Johann Natterer foi chamado para ser funcionário voluntário e mandado fazer uma viagem para o lago de Neusiedler e o lago de Platten, de onde ele trouxe de volta aves que vivem em regiões alagadas e pantanosas para a coleção do imperador. Para agredecer o trabalho, finalmente Natterer foi promovido a assistente do supervisor e no ano de 1816 foi definido chefe da expedição para o Brasil.

Johann Baptist Emanuel Pohl (1782–1834) Johann Baptist Emanuel Pohl nasceu na Boêmia-Kamnitz e mudou-se na idade de mais ou menos oito anos para morar com o seu tio em Pölitz. Após ter terminado a escola, Pohl estudou medicina na Universidade de Praga e além disso estudou a mineralogia da Boêmia, e já nessa época publicou alguns artigos sobre ela. No ano de 1808 finalmente formou-se em medicina, depois iniciou um trabalho como professor substituto ocupando a cadeira de Ciências Naturais do Johann Christian Mikan e também como médico substituto em um hospital militar. Alguns anos depois, juntou-se a expedição para o Brasil como botânico. Após retornar, ele aceitou um cargo de curador da coleção naturalista do imperador em Viena e escreveu uma obra de dois livros sobre as pesquisas e viagens feitas por ele ao Brasil.

Heinrich Wilhelm Schott (1794–1865) Heinrich Wilhelm Schott foi um botânico austríaco e jardineiro, que nos anos de 1817 e 1821 participou da expedição para o Brasil. Após regressar, ele presentou a extensa coleção botânica adquirida por ele no Brasil, onde pode ser admirada hoje no Museu de História Natural, nos Jardins do Imperador de Viena, onde os visitantes mostram grande interesse por esta coleção. Até o dia de sua morte, Schott foi ativo como diretor dos Jardins Imperiais e da Menagerie Imperial.

Johann Christian Mikan (1769–1844) O botânico de Praga e professor de história natural geral, nasceu em Teplitz, na Boêmia, filho de um médico e químico. Aos 2 anos de idade mudou-se com a família para Praga onde cursou o ginásio e depois formou-se pela faculdade de medicina. Antes de juntar-se a botânica e a entomologia, por um curto período foi médi-

188

co. Embora, inicialmente o Johann Natterer tenha sido chamado para ser o chefe da expedição para o Brasil, o imperador Franz I. preferia Johann Christian Mikan. Natterer mostrou-se insatisfeito com isso e depois, a maneira autoritária do botânico praguense causou fortes tensões entre os membros da expedição. Mikan voltou para Europa em Junho de 1818 tendo ficado apenas por oito meses no Brasil.

Karl von Schreibers (1775–1852) Karl von Schreibers nasceu na Bratislava e aos nove anos de idade mudou-se para Viena. Por volta do ano de 1784 ele começou seus estudos em medicina e após a sua formatura passou a trabalhar como médico no consultório do seu tio. Alguns anos depois ele foi chamado para ser assistente do professor de História Natural na Universidade de Viena. A paixão pelo trabalho nas áreas da botânica, mineralogia e zoologia motivou-o a aceitar a posição de chefe do Escritório Naturalista Imperial no ano de 1806. Onze anos depois quando Fürst Metternich organizou a expedição para o Brasil, Schreibers foi convidado para ser o orientador científico da mesma e comandou a expedição estando em Viena.

Carl Friedrich Philipp von Martius (1794–1868) Carl Friedrich Philipp von Martius era filho de um famoso farmaceutico imperial e foi criado na cidade da Bavária Erlangen com boas condições. Após o período escolar iniciou primeiramente o seu estudo na faculdade de medicina de Erlangen, onde encontrou o futuro companheiro de expedição Johann Baptist von Spix. Também foi ele que motivou o jovem a se ocupar com mais seriedade aos estudos das plantas e deixar de ver a botânica apenas como hobby. Alguns anos após a formatura em doutor de medicina e cirurgia, Martius foi enviado pelo rei Maximilian I. da Bavaria junto com o seu colega Spix para participar da expedição ao Brasil, onde ele não só fez pesquisas extensas sobre as plantas tropicais como também estudou intensivamente a vida, a cultura e a língua da população indígena do Brasil.

Thomas Ender (1793–1875) Thomas Ender, veio de uma família carente, filho de um vendedor de coisas antigas e usadas em Viena. Aos 13 anos ele já foi aceito na Academia Imperial de Belas Artes. No ano de 1816 um de seus quadros recebeu o “Großer Hofpreis”, o grande prêmio imperial e posteriormente esse quadro foi comprado pelo curador da academia dessa época, o Fürst Metternich. Este também indicou Ender como participante da expedição para o Brasil. Durante a expedição, Thomas Ender produziu mais que 700 desenhos e aquarelas.

Johann Buchberger (? – 1821) Os dois pintores Thomas Ender e Johann Buchberger, enviados pelo Fürt Metternich ao Brasil, por um ano expressaram visualmente cenas da natureza exótica, e da vida cotidiana do Brasil e designaram assim uma valiosa documentação sobre os momentos da expedição. Enquanto Thomas Ender ficou conhecido por suas paisagens espetaculares, Buchberger focou na representação realista de plantas exóticas. Devido a um grave acidente Buchberger teve que sair mais cedo da expedição e voltou junto com Ender, Professor Raddi e Mikan para Europa no ano de 1821, onde faleceu no mesmo ano devido ao resultado de sua lesão.

Dominik Sochor (? – 1826) Dominik Sochor era caçador treinado e taxidermista e foi escolhido pelo diretor do escritório de ciencias naturais da corte imperial Karl Franz Anton von Schreibers para participar da expedição junto com Johann Natterer e Heinrich Wilhelm Schott. A tarefa dele foi ser assistente do Johann Natterer e auxiliar na caçada e depois na preparação dos animais. Após a dissolução oficial da expedição em 1821, Sochor permaneceu ao lado do zoólogo e também se recusou a terminar a viagem precocemente. Porém, no dia 13 de dezembro de 1826 Sochor faleceu devido a uma febre tropical, e assim não voltou mais para Europa.

Giuseppe Raddi (1770–1829) Giuseppe Raddi desenvolveu muito cedo a paixão pela botânica e aos 15 anos foi nomeado como assistente do diretor do jardim botânico em Florença nesta época. Após trabalhar como supervisor na coleção de história natural em Florença ele publicou alguns artigos sobre fungos e esporos nativos. Mas o ponto de virada em sua carreira científica, no entanto, foi iniciada pela participação dele na expedição para o Brasil, onde durante a presença de oito meses ele conseguiu uma coleção fascinante de objetos naturais da província do Rio de Janeiro. Após retornar para Itália dedicou-se muitos anos ao material coletado no Brasil. Em 1829 Raddi faleceu após uma viagem de pesquisa para o Egito na ilha de Rhodos.

Johann Baptist von Spix (1781–1826) O Naturalista alemão Johann Baptist von Spix nasceu em Höchstadt an der Aisch na Bavária. Formou-se primeiramente em Filosofia pela faculdade de Filosofia em Bamberg e mais tarde, após um estudo não terminado de Teologia, formou-se também em medicina e ciências naturais. Após exercer por alguns anos a profissão de médico em Bamberg ele foi convidado para Munich, onde trabalhou como curador da coleção zoológica. Em 1817 finalmente juntou-se a expedição para o Brasil e até o ano de 1820 viajou com Carl Friedrich Philipp von Martius pelos estados do Rio de Janeiro, Goiás e Amazonas.

189

Bibliografia 2012

Adelaar, Willem F., e Brijnen, Hélène B. Natterer’s Linguistic Heritage. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo).

Becker-Donner, Etta 1970 Geriefte Keramik des Rio Negro-Gebietes aus den Jahren 1830 bis 1831. Archiv für Völkerkunde 24: 1–24.

s. a.

Aguiar, Luis Os adornos indígenas do Rio Negro (IPHAN/FOIRN/ISA).

[1971] [1972]

1985

Albert, Bruce Temps du sang, temps des cendres. Représentation de la maladie, système rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est (Amazonie brésilienne). Thesis. Université de Paris. Paris.

Berkes, Fikret 1999 Sacred Ecology. Traditional Ecological Knowledge and Resource Management. Philadelphia.

Becker-Donner, Etta, et al. Brasiliens Indianer. Wien: Museum für Völkerkunde. Volkskunst aus Lateinamerika. Wien: Museum für Völkerkunde.

Albert, Bruce, e Kopenawa, Davi 2010 La chute du ciel. Paroles d’un chaman Yanomami. Terre Humaine. Plon.

2000

Bernecker, Walther L., Pietschmann, Horst, e Zoller, Rüdiger Eine kleine Geschichte Brasiliens. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag.

Albisetti, César, e Venturelli, Angelo J. 1962–1976 Enciclopédia Bororo. 3 Vols. Campo Grande: Museu Regional Dom Bosco.

1979

Berthels, D. E., Nikolaevich Komissarov, Boris, e Ivanovna Lysenko, Tamara Materialien der Brasilien-Expedition 1821–1829 des Akademiemitglie- des Georg Heinrich Freiherr von Langsdorff (Grigorij Ivanovič Langsdorff). Völkerkundliche Abhandlungen VII. Berlin: Dietrich Reimer Verlag.

Anônimo 1835 Vermischte Nachrichten. Wiener Zeitung 287 (15. Dezember): 1409. 2003

Antunes, Miguel Teles Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Coleção da Academia das Ciências de Lisboa Vol. II. Rio de Janeiro: Kapa Editorial.

Augustat, Claudia 1993 Funktion und Bedeutung der Masken bei der Mädchenreifefeier der Tukuna. Unveröffentlichte Magisterarbeit. Universität Bonn. 2012 In the Shadow of Johann Natterer: The Ethnographic Collection of Johann Emanuel Pohl. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo). 2011

Augustat, Claudia, Kanoê, José Augusto, e Kapfhammer, Wolfgang Begegnungen mit den Kanoê. In: Abenteuer Wissenschaft. Etta Becker-Donner in Afrika und Lateinamerika (Barbara Plankensteiner, Gerard van Bussel e Claudia Augustat, Orgs. Ausstellungskatalog. Museum für Völkerkunde. Wien), 73–80.

Barbosa Rodrigues, João 1882a Tribu dos mundurucus. Trages. Revista da Exposição Anthropologica Brazileira: 27–28. 1882b Tribu dos mundurucus. A Festa da „Pariuate-ran“. Revista da Exposição Anthropologica Brazileira: 45–46. 2008

Barcelos Neto, Aristóteles Apapaatai. Rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo: EDUS/FAPESP.

Bates, Henry Walter [1866] 1989 Am Amazonas. Leben der Tiere, Sitten und Gebräuche der Bewohner, Schilderung der Natur unter dem Äquator und Abenteuer während eines elfjährigen Aufenthalts. Nördlingen: Greno. 1965

190

Bauer, Wilhelm P. Der Curare-Giftkreis im Lichte neuer chemischer Untersuchungen. Baessler-Archiv, N. F. 8: 207–239.

Bettendorf, Johannes Philipp Chrónica da missão dos padres da Companhia de Jesus no 1910 Estado do Maranhão. Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro LXXII: Parte I. Bloc, David 1994 Mission Culture on the Upper Amazon. Native Tradition, Jesuit Enterprise and Secular Policy in Moxos, 1660–1880. Lincoln and London: University of Nebraska Press. Brasilien-Bibliothek 1988 Nachlass des Prinzen Maximilian zu Wied-Neuwied. Teil 1. Illustrationen zur Reise 1815–1817 in Brasilien. Brasilien-Bibliothek der Robert-Bosch-GmbH 2. Renate Löschner und Birgit Kirschstein-Gamber, Orgs. Stuttgart: Deutsche Verlagsanstalt.

2011 Instruments cérémoniels des peuples Tukano. In: Índios no Brasil. Catálogo (Europalia. Brasilien. Antwerpen: Ludion), 153–155.



Cabanagem in Northern Brazil, 1750 to 1850. Comparative Studies in Society and History 40(1): 109–135.

2006

Cabalzar, Aloisio, e Ricardo, Carlos Alberto (Orgs.) Povos Indígenas do alto e médio rio Negro: uma introdução à diversidade cultural e ambiental do noroeste da Amazônia brasileira. 3 ed. rev. São Paulo: Instituto Socioambiental, São Gabriel: Federação das Organizações Indígenas do rio Negro.

1972

Cocco, P. Luis Iyëwei-theri, quince años entre los Yanomamos. Caracas: Edición de la Escuela Técnica Popular Don Bosco Boleíta.

1997

Caiuby Novaes, Sylvia The Play of Mirrors. The Representation of Self as Mirrored in the Other. Austin: University of Texas Press.

1942

Cooper, John M. The South American Marginal Cultures. Proceedings of the 8th American Scientists Congress 1940, Vol. II, Anthropological Sciences – Washington.

1997

Campbell, Lyle American Indian Languages. The Historical Linguistics of Native America. New York: Oxford University Press.

1897

Coudreau, Henri Voyage Au Tapajoz 28 Juillet 1895 – 7 Janvier 1896. Paris: Lahure.

1995

Carelli, Mario A descoberta da Amazônia. Os diários do naturalista Hércules Florence. São Paulo: Editora Marca D’Agua.

2001

Da Silva, Verone Cristina Missão, aldeamento e cidade. Os Guaná entre Albuquerque e Cuiabá (1819–1901). Dissertation, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá.

2006 2012

Carvalho Brandão, Aivone O museu na aldeia: comunicação e transculturalismo no diálogo museu e aldeia. Mato Grosso do Sul: UCDB. Visual Repatriation and Self-Representation. The Case of the Bororo of Meruri. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo).

2011

Descola, Philippe Jenseits von Natur und Kultur. Frankfurt am Main: Suhrkamp.

Casal, Manoel Ayres de [1817] 1847 Corografia brazilica, ou Relação historico-geografica do reino do Brazil, tomo II. Rio. Castelnau, Francis de Laporte de 1850–1851 Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para: exécutée par ordre du gouvernement Français pendant les années 1843 à 1847. Histoire du voyage. 6 Vols. Paris: P. Bertrand. 1852 Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para: exécutée par ordre du gouvernement Français pendant les années 1843 à 1847. 2e partie. Vues et scènes. Paris: P. Bertrand.

Brett, Wilhelm Henry 1868 Indian Tribes of Guiana: Their Conditions and Habits. London: Bell and Daldy.

1889

Chaffanjon, Jean L’Orenoque et le Caura. Paris.

1977

Brüzzi Alves da Silva, Alcionílio A civilização Indígena do Uaupés. Observações antropológicas, etnográficas e sociológicas. Rom: Libreria Ateneo Salesiano.

1983

Chagnon, Napoleon Yanomamö – the fierce people. Case Studies in Cultural Anthropology. 3. Ed. New York: Holt, Rinehart and Winston.

1990

Buchillet, Dominique Os índios da região do alto rio Negro. História, etnografia e situação das terras. Laudo antropológico redigido para a Procuradoria Geral da República.

1862 1870

Chandless, William Notes on the Rivers Arinos, Juruena, and Tapajos. Journal of the Royal Geographical Society of London 32: 268–280. Notes on the Rivers Maué-assú, Abacaxis, and Canumá; Amazons. Journal of the Royal Geographical Society of London 40: 419–432.

Bujok, Elke, e Helbig, Jörg 2012 The „Brazilian-Bavarian Expedition“ of Spix and Martius. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo). Burkhalter, S. Brian, e Murphy, Robert F. 1989 Tappers and Sappers. Gold and Money among the Mundurucú. American Ethnologist 16(1): 100–116. Cabalzar, Aloisio 2003 Kumurõ. Banco Tukano. São Gabriel da Cachoeira/São Paulo: FOIRN/ISA.

Chaumeil, Jean-Pierre 2001 The Blowpipe Indians: Variations on the Theme of Blowpipe and Tube among the Yagua Indians of the Peruvian Amazon. In: Beyond the Visible and the Material (Laura Rival und Neil Whitehead, Orgs. Oxford: University Press), 81–100. 2004 Le sac à maladies. Du carquois à flechettes à l’estomac du chamane. In: Le cas du sac. Histoires d’une utopie portative (F. Chenoune, Org. Paris: Hermés Editions), 288–291. 1998

Cleary, David „Lost Altogether to the Civilized World“: Race and the

Dorta, Sonia Ferraro 1981 Pariko. Etnografia de um artefato plumário. Coleção Museu Paulista, Série de Etnologia 4. São Paulo. 1992 Coleções etnográficas: 1650–1955. In: História dos Índios no Brasil (Manuela Carneiro da Cunha, Org. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura; FAPESP), 501–528. 1997 Comentários sobre a exposição “Natterer – um naturalista austríaco na Amazônia 1825–1835”. São Paulo: Estação Ciência. 1983

Dorta, Sonia, e Van Velthem, Lucia H. Arte Plumária. In: Arte Plumária do Brasil (Catálogo da Exposição Arte Plumária do Brasil. São Paulo: Fundação Bienal), 13–22.

1985

Eder, Francisco J. Breve descripción de las reducciones de Mojos. Cochabamba: Historia Boliviana.

Edwards, William H. A Voyage Up The River Amazon, Including A Residence At Pará. 1847 London. 1891

Ehrenreich, Paul Beiträge zur Völkerkunde Brasiliens (II. Über einige Völker am Rio Purus (Amazonas). Veröffentlichungen aus dem Königlichen Museum für Völkerkunde Bd. II: 48–80. Berlin: Verlag von W. Spemann.

Eibl-Eibesfeldt, Irenäus, Herzog-Schröder, Gabriele, e Mattéi-Muller, Marie-Claude 2000 Publikation zu wissenschaftlichen Filmen, Ethnologie Sonderband 10 –Yanomami. Humanethologische Begleitpublikationen. Publikation vom IWF. Institut für den wissenschaftlichen Film. Göttingen. 2010

Everett, Daniel Das glücklichste Volk. Sieben Jahre bei den Pirahã-Indianern am Amazonas. München: Deutsche Verlags-Anstalt.

Fabre, Alain 2005 Diccionario etnolingüístico y guía bibliográfica de los pueblos indígenas sudamericanos. CHIQUITANO: 1–9 [http://butler.cc.tut.fi/~fabre/BookInternetVersio/ Dic=Chiquitano.pdf]

191

1999

Fausto, Carlos Of Enemies and Pets: Warfare and Shamanism in Amazonia. American Ethnologist 26(4): 933–956.

Feest, Christian 1997 On Some Uses of the Past in Native American Art and Art History. In: Past is Present (M. Mauzé, Org. Lanham: University Press of the Americas), 65–79. 2012 The Ethnographic Collection of Johann Natterer and the Other Austrian Naturalists in Brazil. A Documentary History. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo). 2011

Feest, Christian, e Luiza da Silva, Viviane Between Tradition and Modernity: The Bororo in Photographs of the 1930s. Archiv für Völkerkunde 59–60: 157–190.

Ferguson, Brian 1990 Blood of the Leviathan: Western Contact and Warfare in Amazonia. American Ethnologist 17(2): 237–257. 1995 Yanomami Warfare. A Political History. Santa Fe, New Mexico: School of American Research Press. Ferreira, Alexandre Rodrigues 1885–1888 Diário da Viagem Philosophica pela Capitania do Rio Negro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) 48(1): 1–234; 49(1): 123–288; 50(2): 11–141; 51(1): 5–166. Ferreira Moutinho, Joaquim 1869 Notícia sobre a província de Matto Grosso. São Paulo: Henrique Schroeder. Fienup-Riordan, Ann 2010 Foreword: From Consultation to Collaboration. In: Sharing Knowledge & Cultural Heritage: First Nations of the Americas. Studies in Collaboration with Indigenous Peoples from Greenland, North and South America (Laura Van Broekhoven, Cunera Buijs e Pieter Hovens, Orgs. Mededelingen van het Rijksmuseum voor Volkenkunden, Leiden No. 39. Leiden: Sidestone Press), 1–7. 1875 1977

Florence, Hércules Esboço da viagem pelo Sr. de Langsdorff no interior do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro 38(1): 337–469; (2): 231–301. Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas, 1825 a 1829 [Voyage fluvial du Tietê â l’Amazonie par les provinces brésiliennes de St. Paul, Matto Grosso et Gran Pará]. Com gravuras do autor. São Paulo: Editora Cultrix.

Fock, Niels 1963 Waiwai. Religion and Society of an Amazonian Tribe. Nationalmuseets Skrifter. Etnografisk Raekke VIII. Copenhagen: The National Museum Copenhagen. Forte, Janette (Org.) 1996 Mukusipe Komanto Iseru. Sustaining Makushi Way of Life. Georgetown: Business Print. Fuchs, Helga 1999 Leopoldine. Erzherzogin von Österreich – Kaiserin von Brasilien. Ihr Beitrag zum Unabhängigwerden Brasiliens, zur Emanzipation vom Kolonialgebiet zum selbstständigen Staat. Unveröffentlichte Diplomarbeit: Universität Wien.

192

Gallois, Dominique 2005 De sujets à objet: défis de la patrimonialisation des arts et savoirs indigènes. Brésil Indien. Les arts des indiens du Bresil: 99–110. 2011 Patrimoines indigènes: de la cultures „autre“ à la culture „pour soi“. In: Índios no Brasil (Katalog. Europalia. Brasilien. Antwerpen: Ludion), 29–46. Gallois, Dominique (Org.) 2006 Patrimônio cultural imaterial e povos indígenas: exemplos do Amapá e Norte do Pará. São Paulo: Iepé. Galvão, Eduardo 1979a Mudança cultural na região do rio Negro. In: Encontro de Sociedades. Índios e brancos no Brasil (Rio de Janeiro: Paz e Terra 1979), 120–125. 1979b O artesanato indígena na Amazônia brasileira. In: Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil (Rio de Janeiro: Paz e Terra), 291–300. 1998

Gell, Alfred Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Oxford University Press.

Glavin, Terry 2008 Warten auf die Aras. Geschichten aus dem Zeitalter des Verschwindens. Frankfurt am Main: Zweitausendeins. Goeldi, Emilio A. 1894–1896 Johannes von Natterer. Boletim Museu Paraense de Historia Natural e Ethnographia 1(1–4): 189–217. 1991

Good, Kenneth; com Chanoff, David Into The Heart: One Man’s Pursuit of Love and Knowledge Among the Yanomami. New York: Simon and Schuster.

Goodwin Gómez, Gale 2007 Responsive research and community involvement among the Brazilian Yanomami. In: Peter K. Austin, Oliver Bond and David Nathan (eds.), Proceedings of Conference on Language Documentation and Linguistic Theory. London: SOAS. www.hrelp.org/eprints/ldlt_12.pdf „Hapa Të Pë Rë Kuonowei: Mitología Yanomamí / Book Review“ 2009 (2009). Faculty Publications. Paper 77. http://digitalcommons.ric.edu/facultypublications/77 1991

Gow, Peter Of Mixed Blood. Kinship and History in Peruvian Amazon. Oxford: Clarendon Press.

1989

Guss, David To weave and sing. Art, symbol, and narrative in the South American rain forest. University of California Press.

1995

Hackethal, Sabine Friedrich Sellow (1789–1831). Skizzen einer unvollendeten Reise durch Südamerika. Fauna und Flora in Rheinland-Pfalz Beiheft 17 (Landau: GNOR), 215–228.

2010

Halbmayer, Ernst Kosmos und Kommunikation. Weltkonzeptionen in der südamerikanischen Sprachfamilie der Cariben. Bd. 1. Wien: Facultas-Verlag.

Hamilton Rice, Alexander 1921 The Rio Negro, the Casiquiare Canal and the Upper Orinoco, Sept. 1919 – Apr. 1920. The Geographical Journal, Vol. LVIIII, No. 5.

1921 The Rio Branco, Uraricuera and Parima. The Geographical Journal, Vol. LXXI, No. 1–3. 2010

Harris, Mark Rebellion on the Amazon. The Cabanagem, Race, and Popular Culture in the North of Brazil, 1798–1840. Cambridge: Cambridge University Press.

1889 1902

Hauer, Franz Allgemeiner Führer durch das k. k. Naturhistorische Hofmuseum. Wien: Naturhistorisches Hofmuseum. Allgemeiner Führer durch das k. k. Naturhistorische Hofmuseum. 2. Aufl. Wien: Naturhistorisches Hofmuseum.

1840

Hebenstreit, Wilhelm Der Fremde in Wien. Zuverlässiger und zeitersparender Führer für alle, welche das Sehens- und Merkwürdigste von Wien in kürzester Zeit kennen lernen […] wollen. 4. Aufl. Wien: Armbruster.

1882 1908

Heger, Franz K. k. naturhistorisches Hofmuseum. AnthropologischEthnographische Abteilung. Inventar A. 1806–1875. Nr. 1–2915. [später hinzugefügt: Neue Nummern 1–4737.] Museum für Völkerkunde Wien, Archiv. Die archäologischen und ethnographischen Sammlungen aus Amerika im k. k. naturhistorischen Hofmuseum in Wien. In: Festschrift zum 16. Internationalen Amerikanistenkongress in Wien, 9. bis 14. September 1908 (Wien: Verlag des Bureaus des Amerikanisten-Kongresses), 1–72.

Helbig, Jörg 1994 (Org.) Brasilianische Reise 1817–1820. Carl Friedrich Philipp von Martius zum 200. Geburtstag. München: Hirmer. Helbig, Jörg, Iten, Oswald, e Schiltknecht, Jacques (Orgs.) 1989 Yanomami. Indianer Brasiliens im Kampf ums Überleben. Innsbruck: Pinguin-Verlag. Hemming, John 1987 Red Gold. The Conquest of the Brazilian Indians. [1978]. London: Papermac. Amazon Frontier. The Defeat of the Brazilian Indians. 1995 London: Papermac. 2002

Hermannstädter, Anita Brasilien – Land der Zukunft. Naturkundliche Expeditionen 1800–1831. In: Deutsche am Amazonas: Forscher oder Abenteurer? Expeditionen in Brasilien 1800 bis 1914 (Anita Hermannstädter, Org. Veröffentlichungen des Ethnologischen Museums Berlin N. F. 71, Fachreferat Amerikanische Ethnologie IX; Münster: LIT), 26–43.

Herzog-Schröder, Gabriele 2000 Okoyoma – Die Krebsjägerinnen. Vom Leben der Yanomamï-Frauen in Venezuela. Münster – Hamburg: LIT-Verlag. 2003 Yanomami. In: Encyclopedia of Sex and Gender: Men and Women in the World’s Cultures (Carol R. Ember and Melvin Ember, Eds.; Publication of the Human Relation Area Files, Inc. New York: Kluwer/Plenum), 967–975. 2002

Höldrich, Michaela „… merkwürdige Effekten der Indier …“. Weitere ethnographische Objekte aus dem Mato Grosso aus der Sammlung Johann Natterer. Archiv für Völkerkunde 52: 93–117.

2011

Hölzl, Norbert Weltpolitik einer Österreicherin. Von der Unabhängigkeit Brasiliens bis zum Abzug der Sowjets aus Wien. Reith im Alpbachtal: Edition Tirol.

Hugh-Jones, Stephen 1993 Useful arts: artful utensils. Journal of the Anthropological Society of Oxford, V. XXIV: 71–74. 2009 The Fabricated Body. Objects and Ancestors in Northwest Amazonia. In: The Occult Life of Things. Native Amazonian Theories of Materiality and Personhood (Fernando Santos-Granero, Org. Arizona: The University of Arizona Press). Hugo, Vitor 1991 (1959)Desbravadores. Vol. II. Rio de Janeiro: Edição do Autor sob os auspícios do Banco do Estado de Rondônia – BERON. Humboldt, Alexander von 1958/1980 Vom Orinoko zum Amazonas. Reise in die Äquinoktialgegenden des neuen Kontinents. Wiesbaden (überarbeitete Auflage 1980). Iphan/Foirn/Isa s. a. Basá Busá. Ornamentos de dança. Folder de exposição. 1935

Izikowitz, Karl Gustav Musical and other Sound Instruments of the South American Indians (A comparative ethnographical study). Göteborgs Kungl. Vetenskaps- och Vitterhets-Samhälles Handlingar. Femte Följden Ser. A. Vol. 5. Nr. 1. Göteborg: Elanders Boktryckeri Aktiebolag.

Kästner, Klaus-Peter 1979 Westamazonische Keulen (Aus der Poeppig-Sammlung des Staatl. Museums für Völkerkunde Dresden). Ethnographisch-Archäologische Zeitschrift 20: 295–313. 1980 Waffen aus dem westlichen Amazonasgebiet (Aus der Poeppig Sammlung des Staatl. Museums für Völkerkunde Dresden). Abhandlungen und Berichte des Staatlichen Museums für Völkerkunde Dresden 38: 86–121. Berlin: Akademie-Verlag. 1990 Barbudos und/oder Mayoruna (Eine ethnohistorische Untersuchung zur ethnischen Identifizierung zweier Stammesbezeichnungen aus dem westlichen Amazonasgebiet). Abhandlungen und Berichte des Staatlichen Museums für Völkerkunde Dresden (Festschrift G. Guhr) 44: 327–341. Berlin: Akademie-Verlag. 1992 Historisch-ethnographische Klassifikation der Stämme des Ucayali Beckens (Ost-Peru) – Eine Kulturanalyse und -synthese. Abhandlungen und Berichte des Staatlichen Museums für Völkerkunde Dresden 46. Frankfurt/Main: IKO-Verlag für Interkulturelle Kommunikation. 1994 Kulturgeschichtliche und ethnohistorische Betrachtungen zur ethnographischen Sammlung von J. B. von Spix und C. F. Ph. von Martius. In: Brasilianische Reise 1817–1820. Carl Friedrich Philipp von Martius zum 200. Geburtstag (Jörg Helbig, Org. Ausstellungskatalog. München: Hirmer Verlag), 117–144. 2005 Beiträge zur Geschichte und Kultur der Urueuwauwau-Stämme (Rondônia, Brasilien). Abhandlungen und Berichte der Staatlichen Ethnographischen Sammlungen Sachsen 52: 91–133. Berlin: VWB-Verlag für Wissenschaft und Bildung. 2006 Zur Typologie und kulturgeschichtlichen Aussage südamerikanischer Pfeilfiederung. Münchner Beiträge zur Völkerkunde 10: 63–88. 2007 Zoé. Materielle Kultur, Brauchtum und kulturgeschichtliche Stellung eines Tupi-Stammes im Norden Brasiliens. Abhandlungen und Berichte der Staatlichen Ethnographischen Sammlungen Sachsen 53. Berlin: VWB-Verlag für Wissenschaft und Bildung. 2009 Amazonien – Indianer der Regenwälder und Savannen. Ausstellungskatalog. Dresden: Staatliche Ethnographische Sammlungen Sachsen.

193

1992

Kann, Bettina Die österreichische Brasilienexpedition 1817–1836 unter besonderer Berücksichtigung der ethnographischen Ergebnisse. Diplomarbeit Universität Wien.

Kann, Peter 1989 Die ethnographischen Aufzeichnungen in den wiederentdeckten Wortlisten von Johann Natterer, während seiner Brasilienreise zwischen 1817–1835. Archiv für Völkerkunde 43: 101–146. 2002 (Org.) Johann Natterers Brasilien-Expedition 1817–1835. Archiv für Völkerkunde 52. Wien. Kapfhammer, Wolfgang 2004 „De Sateré puro“ (sateré sese) ao Novo Sateré (sateré pakup): mitopraxis no movimento evangélico entre os Sateré-Mawé. In: Transformando os Deuses. Igrejas evangélicas, pentecostais e neopentecostais entre os povos indígenas no Brasil (vol. II. R. Wright, Org. Campinas: Ed. Campinas), 134–193. 2007 Götterkind und Markenzeichen. Ökonomie, Moral und kulturelle Nachhaltigkeit eines Guaraná-Projektes bei den Sateré-Mawé, Brasilien. In: Indiegegenwart. Indigene Realitäten im südamerikanischen Tiefland (M. Amelung et al. Orgs. Estudios Indiana 1. Berlin: Gebr. Mann Verlag), 19–44. 2009 Divine Child and Trademark. Economy, morality, and cultural sustainability of a guaraná project among the Sateré-Mawé, Brazil. In: Native Christians: Modes and Effects of Christianity among Indigenous Peoples of the Americas (A. Vilaça e R. Wright, Orgs. Farnham: Ashgate), 211–228. 2007

Kasprycki, Sylvia S. A Devout Collector: Johann Georg Schwarz and Early Nineteenth-Century Menominee Art. In: Three Centuries of Woodlands Indian Art (J. C. H. King e C. F. Feest, Orgs. ERNAS Monographs 3, Altenstadt 2007), 113–122.

1874

Keller-Leuzinger, Franz Vom Amazonas und Madeira. Stuttgart: Verlag von A. Krömer.

2002

Koch, Lars-Christian, e Mendivil, Julio „Wenn die Instrumente weinen …“ Musikpraxis und -konzeption der Indígenas im Amazonas-Tiefland. In: Amazonas Indianer (Doris Kurella, Org. Berlin: Reimer Verlag), 135–140.

Koch-Grünberg, Theodor 1922 Die Völkergruppierung zwischen Rio Branco, Orinoco, Rio Negro und Yapurá. In: Festschrift für Eduard Seler (Walter Lehmann, Org. Stuttgart: Verlag von Strecker und Schröder), 205–266. 1923 Vom Roroima zum Orinoco. Ergebnisse einer Reise in Nordbrasilien und Venezuela in den Jahren 1911–1913. Band III. Stuttgart: Strecker und Schröder. 2005 Dois anos entre os indígenas. Viagens no noroeste do Brasil. (1903/1905). Manaus: EDUA/FSDB. 1895

Koslowsky, Julio Algunos dados sobre los indios bororós. Revista del Museo de la Plata 6: 375–411.

Kruse, Albert 1946–1949 Erzählungen der Tapajoz-Mundurukú. Anthropos 41/44(1/3): 314–330. 1951 Karusakaybë, der Vater der Mundurukú. Anthropos 46(5/6): 915–932. Lasmar, Cristiane 2008 Irmã de indio, mulher de branco: perspectivas femininas no alto rio Negro. Mana 14(2): 429–454.

194

1970

Lathrap, Donald W. The Upper Amazon. London: Thames and Hudson.

1995

Leonel, Mauro Etnodicéia Uruéu-au-au. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

Lévi-Strauss, Claude 1936 Contribution a l’étude de l’organisation sociale des indiens Bororo. Journal de la Société des Américanistes, N. S. 37: 269–304. 1948 The Nambicuara. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 361–369. Traurige Tropen. Köln: Kiepenheuer & Witsch. 1960 [Erstausgabe: Tristes Tropiques. Paris 1955: Plon. Portugiesische Ausgabe: Tristes Trópicos. São Paulo: Anhembi 1957.] 1971[1976] Das Rohe und das Gekochte. Mythologica I. Frankfurt am Main: Suhrkamp. Lizot, Jacques El hombre de la pantorrilla preñada. Caracas: Fundación La Salle. 1973 1982 Im Kreis der Feuer. Aus dem Leben der Yanomami-Indianer. Frankfurt am Main: Syndikat. (Französische Originalausgabe: Le cercle des feux. Faits et dits des Indiens yanomami. Recherches anthropol. au Seuil. 1976.) Los Yanomami. In: Los Aborigenes de Venezuela (Fundación La 1988 Salle de Ciencias Naturales. Instituto Caribe de Antropología y Sociología. Monografía No. 35. Ethnologia Contemporanea. III). Caracas: Monte Avila Editores. No patapï tëhë – en tiempos de los antepasados. Texto de lectura 1989 (2). Puerto Ayacucho: Vicariato apostólico de Puerto Ayacucho. 1993

Lizot, Jacques, Cocco, Luis, e Finkers, Juan Yanomami. Los pueblos indios en sus mitos. No. 4. Quito: Ediciones Abya-Yala.

1982

Löschner, Renate Die Reisen des Prinzen Maximilian zu Wied 1815–1817 in Brasilien. Berlin: Ibero-Amerikanisches Institut Preußischer Kulturbesitz.

Lopes, Marcos Felipe de Brum, e Feest, Christian 2009 (Org.) Mario Baldi. Fotógrafo austríaco entre índios brasileiros. Rio de Janeiro: F. Dumas. Loukotka, estimir 1968 Classification of South American Indian Languages. Reference Series 7. Los Angeles: Latin American Center, University of California Los Angeles. Lowie, Robert H. 1946a The Bororo. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution; Washington D. C.), Vol. 1: 419–434. 1946b The Northwestern and Central Ge. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 1: 477–517. 1946c The Southern Cayapó. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 1: 519s. Maclachlan, Colin 1972 The Indian Directorate: Forced Acculturation in Portuguese America (1757–1799). The Americas 28(4): 357–387.

1967

Manizer, G. G. A expedicão do acadêmico G. I. Langsdorff ao Brasil (1821–1828). Edição póstuma organizada por B. X. Xprintsin. São Paulo: Companhia Editora Nacional.

1869

Marcoy, Paul Voyage à travers l’Amérique du Sud de l’Océan Pacifique à l’Océan Atlantique. 2 Vols. Paris.

Martius, Carl Friedrich Philipp von 1867 Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerikas zumal Brasiliens. Bd. I. Zur Ethnographie. Leipzig: Friedrich Fleischer. Mason, J. Alden 1950 The languages of South American Indians. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 6: 157–317. 2007

Mattéi Muller, Marie-Claude Lengua y Cultura Yanomamï. Diccionario Ilustrado Yanomamï – Español, Español – Yanomamï. Caracas: Epsilon Libros.

McEwan, Colin, Barreto, Cristina, e Neves, Eduardo 2001 (Org.) Unknown Amazon. London: The British Museum Press. Menéndez, Miguel 1981/1982 Uma Contribuição para a Etno-História da Área Tapajós-Madeira. Revista do Museu Paulista, N. S. XXVIII: 289–388. 1984/1985 Contribuição ao estudo das relações tribais na área Tapajós-Madeira. Revista da Antropologia 27/28: 271–286. Menget, Patrick 1993 Notas sobre as cabeças mundurucu. In: Amazônia: etnologia e história indígena (Viveiros de Castro, Eduardo, e Manuela Carneiro de Cunha, Orgs. São Paulo: Núcleo de Historia Indígena e do Indigenismo da USP: FAPESP), 311–321. Menzel, Brigitte 1957 Deformierender Gesichtsschmuck südamerikanischer Naturvölker. Baessler Archiv, N. F. V: 1–120. Métraux, Alfred 1946a Ethnography of the Chaco. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 1: 197–370. 1946b The Caingang. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 1: 445–475. 1946c The Purí-Coroado Linguistic Family. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 1: 523–530. 1946d The Botocudo. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution; Washington D. C.), Vol. 1: 531–540. 1946e The Mashacalí, Patashó, and Malalí Linguistic Families. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 1: 541–545. 1948a The Guaraní. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution; Washington D. C.), Vol. 3: 69–94. 1948b Tribes of Eastern Bolivia and the Madeira Headwaters. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 381–454.

1948c Tribes of the Juruá-Purús Basins. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 657–686. 1948d Tribes of the Middle and Upper Amazon River. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 687–712. 1948 e The Hunting and Gathering Tribes of the Rio Negro Basin. In: Handbook of South American Indians (Vol. 3. Julian Steward, Org. Bulletin 143, Bureau of American Ethnology, Smithsonian Institution – Washington). Meyer, Herrmann 1895 Bogen und Pfeil in Zentral-Brasilien. Leipzig: Bibliographisches Institut. 1972

Migliazza, Ernest Cesar Yanomama Grammar and Intelligibility. Dissertation, Indiana University, Dept. of Linguistics. Bloomington, Indiana.

Monteiro, Salvador, e Kaz, Leonel 1988 (Org.) Expedicão Langsdorff ao Brasil 1821–1829. 3 Vols. Rio de Janeiro: Edicões Alumbramento. Monteiro de Noronha, José [1768] 1862 Roteiro da viagem da cidade do Pará até as últimas colonias do sertão da Provincia. Pará: Typographia de Santos e Irmãos. Monteiro Soares, José Paulo, e Ferrão, Cristina 2005 (Org.) Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Colecção Etnográfica. 3 Vols. Petrópolis: Kappa. 2010

Montez, Luiz Barros Johann Natterer e a situação singular de seu legado textual: propostas para uma análise crítica e ideológica de seus discursos acerca do homem brasileiro. In: Atas do Terceiro Congresso Nacional de Letras, Artes e Cultura (Belo Horizonte: Univ. Fed. São João Del Rei), 701–709.

Morgenblatt Korrespondenz-Nachrichten. Wien, im Januar [1825]. 1825 Morgenblatt für gebildete Stände 52 (2. März): 207–208. Murphy, Robert F. 1956 Matrilocality and Patrilineality in Mundurucú Society. American Anthropologist 58: 414–434. 1957 Intergroup Hostility and Social Cohesion. American Anthropologist 59: 1018–1035. 1958 Mundurucú Religion. University of California Publications in American Archaeology and Ethnology 49(1). Berkeley. 1960 Headhunter’s Heritage. Social and Economic Change among the Mundurucú Indians. Berkeley: University of California Press. 1974

Murphy, Yolanda, e Murphy, Robert F. Women of the Forest. New York: Columbia University Press.

Natterer, Johann 1821a Briefentwurf an Karl Schreibers. Rio de Janeiro, 2. März 1821. Museum für Völkerkunde Wien, Archiv, Natterer 4/1–8, 5/1–4. 1821b Brief (Fragment) an Johann Natterer. Rio de Janeiro, 3. März 1821. Wiener Stadt- und Landesbibliothek, HS Natterer 7877. 1824 Briefentwurf an Karl von Scheibers. Cuiabá, 18. Dezember 1824. Museum für Völkerkunde Wien, Archiv, Natterer, ohne Sign. 1824–1825 Briefentwurf an Josef Natterer. Cuiabá, 16. Dezember 1824 / 18. Februar 1825. Wiener Stadt- und Landesbibliothek, HS Natterer 7882.

195

1828 Briefentwurf an José Gomes da Silva, 17. Oktober 1828, Vila Bela de Santissima Trindade (Matogrosso). Museum für Völkerkunde Wien, Natterer 27/3–4. 1836 Auszug aus Joh. Natterers Bericht an H. Hofrath von Schreibers vom 20. July 1836 aus Frankfurt am Main. Naturhistorisches Museum Wien, Wissenschaftsarchiv, Brasilianum. 2012a Travel Notes from the Rio Negro. Letters and Fragments of Diaries. Edited by Kurt Schmutzer. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil and Austria (Christian Feest, Org. No prelo). Bororo Vocabularies and Ethnographic Notes. Edited by 2012b Christian Feest. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo). Natterer, Josef 1837 Total-Uibersicht des Gehaltes aller aus Brasilien während den Jahren 1817–1836 von den k. k. Naturforschern eingeschickten Sendungen, Jänner 1837. Museum für Völkerkunde Wien, Archiv, Natterer. Nimuendajú, Curt 1921/1922 Bruchstücke aus Religion und Überlieferung der Šipáia-Indianer (Schluss). Anthropos XVI/XVII: 367–406. 1926 Die Palikur-Indianer und ihre Nachbarn. Göteborgs Kungl. Vetenskaps- och Vitterhets-Samhälles Handlingar. Fjärde Följden, Bd. 31 Nr. 2. Göteborg: Elanders Boktryckeri Aktiebolag. The Šerente. Publications of the Frederick Webb Hodge 1942 Anniversary Publication Fund, Vol. IV. Los Angeles: The Southwest Museum Administrator of the Fund. The Eastern Timbira. University of California Publications in 1946 American Archaeology and Ethnology, Vol. 41. Berkeley and Los Angeles: University of California Press. 1948a Tribes of the Lower and Middle Xingú River. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 213–254. 1948b The Mura and Piraha. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 255–269. 1948c The Cawahíb, Parintintin, and their Neighbors. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution; Washington D. C.), Vol. 3: 283–297. 1948d The Tucuna. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 713–725. 1948e The Cayabi, Tapanyuna, and Apiaca. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 307–320. 1967 (1939) The Apinayé. Anthropological Publications. Oosterhout N. B.: Reprint by arrangement with The Catholic University of America Press, Washington. U.S.A. 1981 Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes (adaptado do Mapa de Curt Nimuendajú. 1944). Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em colaboração com a Fundação Nacional Pró-Memória. 1982a Os Índios Parintintin do Rio Madeira (1924). In: Textos Indigenistas (São Paulo: Edições Loyola), 46–110. As Tribos do Alto Madeira (1925). In: Textos Indigenistas 1982b (São Paulo: Edições Loyola), 111–122. 1982c Reconhecimento dos Rios Içana, Ayarí e Uaupés (1927). In: Textos Indigenistas (São Paulo: Edições Loyola), 123–191. 1982d Os Índios Tukuna (1929). In: Textos Indigenistas (São Paulo: Edições Loyola), 192-208. 1982e Indios Maxakali (1939). In: Textos Indigenistas (São Paulo: Edições Loyola), 209–218.

196

1949

Nowotny, Karl Anton Aufzeichnungen Johann Natterers über die Aufenthaltsorte brasilianischer Stämme in den Jahren 1817 bis 1835. Archiv für Völkerkunde 4: 160–164.

1988

Oberacker, Carlos Leopoldine. Habsburgs Kaiserin von Brasilien. Wien, München: Amalthea.

1991 1999

Overing, Joanna A estética da produção: o senso de comunidade entre os Cubeo e os Piaroa. Revista de Antropologia 34: 7–34. Elogio do cotidiano: a confiança e a arte da vida social em uma comunidade amazônica. Revista Mana: Estudos de Antropologia Social v. 5(1): 81–107.

Peers, Laura, e Brown, Alison K. (Orgs.) 2003 Museums and Source Communities. A Routledge Reader. London, New York: Routledge. 1871 1883

Pelzeln, August von Zur Ornithologie Brasiliens. Resultate von Johann Natterers Reisen in den Jahren 1817 bis 1835. Wien: A. Pichler’s Wwe & Sohn. Brasilische Säugethiere. Resultate von Johann Natterer’s Reisen in den Jahren 1817 bis 1835. Verhandlungen der k. k. zoologischbotanischen Gesellschaft, Beiheft zu Bd. 33. Wien.

Perley, Bernhard C. 2012 Last Words, Final Thoughts: Collateral Extinctions in Maliseet Language Death. In: The Anthropology of Extinction. Essays in Culture and Species Death (Genese Marie Sodikoff, Org. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press), 127–142. 2005

Perrone Moisés, Beatriz Objets, sujets du mythe, sujets. Brésil Indien. Les arts des indiens du Bresil (Paris: RMN), 89–97.

1932

Petrullo, Vincent M. Primitive Peoples of Matto Grosso, Brazil. The Museum Journal 23(2): 83–173.

Poeppig, Eduard 1960 (1835) Reise in Chile, Peru und auf dem Amazonenstrom während der Jahre 1827–1832. Stuttgart: F. A. Brockhaus Komm.-Gesch. GmbH. Abt. Antiquarium. Pohl, Johann B. Emanuel 1832–1837 Reise im Inneren von Brasilien. 2 Bde. Wien: Strauss’s Witwe. 2001

Politis, Gustavo Foragers of the Amazon (The Last Survivors or the First to Succeed?). In: Unknown Amazon (C. Mc Ewan, C. Barreto e E. Neves, Orgs. London: The British Museum Press), 26–49.

1983 2000

Povos Indígenas no Brasil Amapá/Norte do Pará. Vol. 3. São Paulo: Centro de Documentação e Informação. São Paulo: Instituto Socioambiental.

Pozzobon, Jorge 1997 Langue, Société et Numération chez les Indiens Maku (Haut Rio Negro, Brésil). Journal de la Société des Americanistes 83: 159–172. 2002

Raffles, Hugh In Amazonia. A Natural History. New Jersey: Princeton University Press

1998

Ramos, Alcida Indigenism. Ethnic Politics in Brazil. Madison, Wisconsin: University Press.

2010

Reel, Monte The Last of the Tribe. The epic quest to save a lone man in the Amazon. New York: Scribner.

Ribeiro, Bertha 1983 Artesanato indígena, para que, para quem? In: O artesão tradicional e seu papel na sociedade contemporânea (Rio de Janeiro: FUNARTE/INF), 11–48. 1995 Os índios das águas pretas. Modo de produção e equipamento produtivo. São Paulo: Cia das Letras/EDUSP. 1987

Ribeiro, Darcy Arte índia. In: Suma Etnológica Brasileira. Arte Índia: 3 (Petrópolis: Vozes/FINEP), 29–64.

1998 2000

Riedl-Dorn, Christa Das Haus der Wunder. Zur Geschichte des Naturhistorischen Museums in Wien. Wien: Holzhausen. Johann Natterer und die österreichische Brasilienexpedition. Petrópolis: Kappa, Edition Index.

1971

Riester, Jürgen Die materielle Kultur der Chiquitano-Indianer (Ostbolivien). Archiv für Völkerkunde 25: 143–230.

Rodrigues, Aryon Dall’Igna 1984/1985 Relações internas na família lingüística Tupi-Guarani. Revista de Antropologia 27/28: 33–53. 1986 Línguas Brasileiras. São Paulo: Edições Loyola. 2010

Roller, Heather Flynn Colonial Collecting Expeditions and the Pursuit of Opportunities in the Amazonian Sertão, c. 1750–1800. The Americas 66(4): 455–467.

1995

Santos, Francisco Jorge dos Dossiê Munduruku. Uma contribuição para a história indígena da Amazônia colonial. Boletim Informativo do Museu Amazônico 5(8).

2009

Santos-Granero, Fernando (Org.) The occult life of things: native Amazonian theories of materiality and personhood. Arizona: The University of Arizona Press. Introduction: Amerindian Constructional Views of the World, ebenda: 1–32.

1983 2002

Schindler, Helmut Die Reiterstämme des Gran Chaco. Völkerkundliche Abhandlungen VIII. Zwei Federkostüme des brasilianischen Kaisers Pedro I. Münchner Beiträge zur Völkerkunde 7: 31–46.

Schlothauer, Andreas 2012 Featherwork from the Mundurucu and the Apiaka in the Collection of Johann Natterer 1817–1835. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo). 1837

Schmidl, Adolph Wien, wie es ist. Ein Gemälde der Kaiserstadt und ihrer nächsten Umgebung in Beziehung auf Topographie, Statistik und geselliges Leben, mit besonderer Berücksichtigung wissenschaftlicher Anstalten und Sammlungen. 2., erw. Aufl. Wien: Gerold.

Schmidt, Max 1912 Reisen in Matto Grosso im Jahre 1910. Zeitschrift für Ethnologie 44: 130–174. 2007 2011

Schmutzer, Kurt Der Liebe zur Naturgeschichte halber. Johann Natterers Reisen in Brasilien 1817–1835. Dissertation. Universität Wien. „Der Liebe zur Naturgeschichte halber.“ Johann Natterers Reisen in Brasilien 1817–1836. Veröffentlichungen der Kommission für Geschichte der Naturwissenschaften, Mathematik und Medizin 64. Wien: Verlag der Österreichischen Akademie der Wissenschaften.

2012

Schmutzer, Kurt, e Feest, Christian Brazil in Vienna. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo).

1848

Schomburgk, Richard Reisen in Britisch-Guiana in den Jahren 1840–1844. Bd. 2. Leipzig: Verlagsbuchhandlung von J. J. Weber.

Schomburgk, Robert Hermann 1841 Reisen in Guiana und am Orinoco während der Jahre 1835–1839. Nach seinen Berichten und Mitteilungen an die Geogr. Gesellschaft in London herausgegeben v. O. A. Schomburgk. Mit einem Vorwort v. Alexander von Humboldt. Leipzig. Schott, Heinrich 1822 Tagebücher des k. k. Gärtners, Hrn. H. Schott in Brasilien, von dessen Reisen in die Campos am Paraiba und Paraibuna Flusse und durch den Distrikt von Canta Gallo; dann nach Macaçu und am Flusse gleichen Nahmens, Von Rio de Janeiro aus. In: Nachrichten von den kaiserl. österreichischen Naturforschern in Brasilien und den Resultaten ihrer Betriebsamkeit (Karl von Schreibers, Org. 2, Appendix I, 1–80. Schreibers, Karl von 1820–1822 (Org.) Nachrichten von den kaiserl. österreichischen Naturforschern in Brasilien und den Resultaten ihrer Betriebsamkeit. Brünn: Trassler. 1855

Schröckinger-Neudenberg, Julius von Zur Erinnerung an einen österreichischen Naturforscher. Verhandlungen des zoologisch-botanischen Vereins in Wien 5: 727–732.

1962

Schultz, Harald Hambu – Urwaldleben der brasilianischen Indianer. Colibris Editora Ltda. Leiden/Stuttgart. 1962.

Serra, Ricardo F. de Almeida 1847 Navegação do Rio Tapajóz para o Pará pelo tenente coronel Ricardo Franco de Almeida Serra, escripta em 1779. Revista Trimensal do Instituto Histórico Geográphico e Ethnográphico do Brasil: 1–16. Shinohara, Alessandro, e Kwok Chiu Cheung 2012 The Achievements of Johann Natterer as a Zoologist. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo). 1921

Snethlage, Emilie Die Indianerstämme am mittleren Xingú. Im besonderen die Chipaya und Curuaya. Zeitschrift für Ethnologie 52/53: 395–427.

2005

Soares, J. P. Monteiro, e Ferrão, C. Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira. Coleção Etnográfica, Vols. I, II e III. Rio de Janeiro: Kapa Editorial.

197

Sodikoff, Genese Marie 2012 Introduction. Accumulating Absence: Cultural Productions of the Sixth Extinction. In: The Anthropology of Extinction. Essays in Culture and Species Death (Genese Marie Sodikoff, Org. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press), 1–17. Spix, Johann Baptist von, e Martius, Carl Friedrich Philipp von 1823–1831 Reise in Brasilien auf Befehl Sr. Majestät Maximilian Joseph I. Königs von Baiern in den Jahren 1817 bis 1820 gemacht […]. 3 Teile, 1 Atlas zur Reise in Brasilien. München. [Unveränderter Neudruck: hg. von Karl Mägdefrau, Quellen und Forschungen zur Geschichte der Geographie und der Reisen 3. 4 Bde. Stuttgart 1967–1980: Brockhaus.] 1908

Spruce, Richard Notes of a Botanist on the Amazon and Andes 1849–1864, Vol. 1. (Ed.) Alfred Russell Wallace. 2 Vols. London.

1925

Stahl, Günther Der Tabak im Leben südamerikanischer Völker. Zeitschrift für Ethnologie 57: 81–152.

Steinle, Robert Finn 2002 „Waffen und Geräthschaften der Indianer aus Brasilien …“. Eine Dokumentation der Bororo-Objekte der Sammlung Natterer. Archiv für Völkerkunde 52: 47–92. 1948

Steward, Julian Culture Areas of the Tropical Forests. In: Steward, Julian (Org.), Handbook of South American Indians, Vol. 3, Bulletin 143, Bureau of American Ethnology, Smithsonian Institution – Washington.

1959

Steward, Julian, e C. Faron, Louis Native Peoples of South America. New York.

Steward, Julian H., e Métraux, Alfred 1948 Tribes of the Peruvian and Ecuadorian Montaña. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 535–656. 2000

Straube, Fernando Costa Johann Natterer (1787–1843): naturalista-maior do Brasil. Nattereria 1: 4–13.

1837

Technologisches Kabinett An das k. k. techn. Kabinet abgegebene Gegenstände. Wien, 1. März 1837. Museum für Völkerkunde Wien, Archiv, Natterer.

1988

Telban, Blaz Grupos Étnicos de Colombia. Etnografía y Bibliografía. Colección 500 Años. 3. Quito: Ediciones ABYA-YALA.

2000

Tierney, Patrick Darkness in El Dorado: How Scientists and Journalists Devastated the Amazon. New York: W. W. Norton & Company.

1877

Tocantins, Antonio Manoel Gonçalves Estudos Sobre a Tribu „Mundurukú“. Revista Trimensal do Instituto Histórico Geográphico e Ethnográphico do Brasil, tomo XL, parte 2: 74–161.

Toral, André 2011 Avá-Canoeiro. In: http://www.brasilienportal.ch/kultur/ ureinwohner-in-brasilien/indianer-territorium/2119-ava-canoeiro

198

Van Broekhoven, Laura, Buijs, Cunera, e Hovens, Pieter (Orgs.) 2010 Sharing Knowledge & Cultural Heritage: First Nations of the Americas. Studies in Collaboration with Indigenous Peoples from Greenland, North and South America. Mededelingen van het Rijksmuseum voor Volkenkunde, Leiden, No. 39. 2010. Sidestone Press. 1999

Van Bussel, Gerard, e Steinmann, Axel (Orgs.) Out of the Ordinary: Museums of Ethnology on the Eve of the Third Millenium. Archiv für Völkerkunde 50.

Van Velthem, Lucia H. 1975 Plumária Tukano. Tentativa de análise. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. N. S. Antropologia: 57: 1–29. 1995 Arte plumária Indígena. Artesanías de America. Revista del CIDAP: 46–47, 105–116. 1998 A pele de Tuluperê. Uma etnografia dos trançados wayana. Belém: MPEG. 2000 Os primeiros tempos e os tempos atuais; artes e estéticas indígenas. In: Artes Indígenas (São Paulo: Mostra do Redescobrimento. Catálogo), 58–91. 2001 The Woven Universe. Carib Basketry. In: Unknown Amazon (Colin McEwan, Cristina Barreto, Eduardo Neves, Orgs. London: The British Museum Press), 198–213. 2003 O belo é a fera: a estética da produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio e Alvim/MNE. 2009 Mulheres de cera, argila e arumã: principios criativos e fabricação material entre os Wayana. Mana: Estudos de Antropologia Social 15 (1): 213–236. Artes indígenas: notas sobre a lógica dos corpos e dos artefatos. 2010a In: Textos escolhidos de cultura e artes populares (Rio de Janeiro: UERJ/Instituto de Artes, V. 7: 1), 19–29. 2010b Transformar: a cultura material. In: Dossier de Registro. O sistema agrícola tradicional do Rio Negro (Brasilia: IPHAN). 2012 Artes Indígenas no Noroeste do Brasil. MVK. Verswijver, Gustaaf 1987 Analyse comparative des perures Nahua: similitudes et différences. Musée d’Ethnographie Genève. Bulletin Annuel 29 (1986): 25–67. 1992 2001

Vidal, Lux B. (Org.) Grafismo Indígena. Estudos de Antropologia Estética. São Paulo: NOBEL/FAPESP, EDUSP. As artes indígenas e seus múltiplos mundos. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional 29: 10–41.

Vidal, Lux, e Silva, Aracy Lopes 1995 O sistema de objetos nas sociedades indígenas: arte e cultura material. In: A temática indígena na escola (Brasília: MEC/MAR/ UNESCO), 369–406. 1990

Viertler, Renate B. A duras penas. Um histórico das relações entre índios Bororo e „civilizados“ no Mato Grosso. FFLCH-USP, Antropologia 16. São Paulo.

2012

Viertler, Renate B., e Ochoa, Gonçalo Ethnohistorical, Ethnographic, and Linguistic Information on the Bororo Indians of Mato Grosso. Commentaries for a Study of the Natterer Collection. In: Indigenous Heritage. Johann Natterer, Brazil, and Austria (Christian Feest, Org. No prelo).

Vincent, William M. Máscaras 1985 Daxsea Mahsa: Cosmology and Material Culture among t he Tukano Indians of Brazil. Dissertation an der University of Chicago, Illinois. 1987 Objetos rituais do Alto Rio Negro. In: Arte Índia. Suma etnológica brasileira. V. 3 (Petrópolis: Vozes/FINEP), 151–171. Viveiros de Castro, Eduardo 2002 Perspectivismo e multiculturalismo na América indígena. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia (São Paulo: Coac e Naify), 347–399. von den Steinen, Karl 1894 Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiliens. Berlin: Reimer. 1899 Indianerskizzen von Hercules Florence. Globus 75: 5–9, 30–35. 1864

Waehneldt, Rodolfo Exploração da província de Mato Grosso. Revista Trimestral do Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do Brazil 27(1): 193–229. Rio de Janeiro.

Wagley, Charles, e Galvão, Eduardo 1948 The Tenetehara. In: Handbook of South American Indians (Bulletin 143, Bureau of American Ethnology of the Smithsonian Institution. Washington D. C.), Vol. 3: 137–148. Wallace, Alfred R. [1889] 1979 Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, São Paulo: EDUSP. 1930

Wegner, Richard N. Die Mojos-Indianer. Eine Jesuitenmission im 18. Jahrhundert und ihre spätere Entwicklung. In: Verhandlungen des XXIV Internationalen Amerikanisten-Kongresses (Hamburg), 185–195.

1990

Whitehead, Neil L. Carib Ethnic Soldiering in Venezuela, the Guianas, and the Antilles, 1492–1820. Ethnohistory 37(4): 357–380.

Wied-Neuwied, Maximilian zu 1820–1821 Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817. Frankfurt: Heinrich Ludwig Bronner. [Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817. São Paulo 1940: Companhia Editora Nacional.] 1821 1825

Wiener Zeitschrift Brasilianische Naturmerkwürdigkeiten. Wiener Zeitschrift für Kunst, Literatur, Theater und Mode 145 (4. Dezember): 1217–1221; 146 (6. Dezember): 1225–1229. Nachrichten aus Brasilien. Wiener Zeitschrift für Kunst, Literatur, Theater und Mode 113 (20. September 1825): 937–940; 114 (22. September): 945–949; 115 (24. September): 953–559.

1963

Wilbert, Johannes Indios de la región Orinoco-Ventuarii. Caracas: Fundación La Salle de Ciencias Naturales.

Wright, Robin 2002 Baniwa und Kuripako. In: http://www.brasilienportal.ch/ brasilien/norden/amazonas/783-baniwa-und-kuripako.html Wright, Robin M., Kapfhammer, Wolfgang, e Braune Wiik, Flávio The Clash of Cosmographies. Indigenous Societies and Project Collaboration – Three ethnographic cases (Kaingang, Sateré Mawé, Baniwa). Im Druck. Online in: Revista VIBRANT 9.1, Antropologia, cooperação e desenvolvimento; www.vibrant.org.br

2003

Wuketitis, Franz M. Ausgerottet – ausgestorben. Über den Untergang von Arten, Völkern und Sprachen. Stuttgart – Leipzig: S. Hirzel Verlag.

Yde, Jens 1948 The Regional Distribution of South American Blowgun Types. Journal de la Société des Americanistes 37: 276–317. 1965 Material Culture of the Waiwái. Nationalmuseets Skrifter. Etnografisk Raekke X. Kopenhagen: The National Museum of Copenhagen. 1993

Zeilinger, Elisabeth Österreich und die neue Welt. Symposion in der österreichischen Nationalbibliothek. Biblos-Schriften, Bd. 160. Wien.

Zerries, Otto Some Aspects of Waica Culture. In: Proceedings of the 31st 1955 International Congress of Americanists, 73–88. São Paulo. 1964 Waika: Die kulturgeschichtliche Stellung der Waika-Indianer des oberen Orinoco im Rahmen der Völkerkunde Südamerikas. München: Klaus Renner-Verlag. 1970 Tierbank und Geistersitz in Südamerika. Ethnologische Zeitschrift Zürich 1: 47–66. 1973 Zeremonialstäbe des Medizinmannes mit figürlichen Darstellungen in Süd- und Zentralamerika. In: Festschrift zum 65. Geburtstag von Helmut Petri (K. Tauchmann, Org. Kölner Ethnologische Mitteilungen 5; Köln – Wien: Böhlau Verlag): 542–564. 1980 Unter Indianern Brasiliens. Sammlung Spix und Martius 1817–1820. Sammlungen aus dem Staatlichen Museum für Völkerkunde München 1. Innsbruck: Pinguin-Verlag – Frankfurt a. M.: Umschau-Verlag. 1974

Zerries, Otto, e Schuster, Meinhard Mahekodothedi, Monographie eines Dorfes der Waika-Indianer (Yanoama) am oberen Orinoco (Venezuela). München: Klaus Renner Verlag.

Zetzsche, Viola 2009 Totenkult der Wolkenkrieger. epoc – Das Magazin für Archäologie und Geschichte 4: 88–94.

Internet: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1525/aa.1966.68.5.02a00100/pdf http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1525/aa.1963.65.5.02a00450/pdf http://www.publicanthropology.org/archives/american-anthropology/ american-anthropologist-1960/american-anthropologist-1966/ http://pib.socioambiental.org/en/povo/kraho/445 http://ti.socioambiental.org/#!/terras-indigenas/3735 http://pib.socioambiental.org/pt http://pib.socioambiental.org/en/povo/ticuna Ender Thomas. In: Österreichisches Biographisches Lexikon 1815–1950 (ÖBL). Bd. 1, Verlag der Österreichischen Akademie der Wissenschaften. Wien 1957: 247. (http://www.biographien.ac.at/oebl_1/247.pdf, 27.05.2012)

199

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.