A definição de \"arte\" e a filosofia analítica

June 30, 2017 | Autor: Jean Siqueira | Categoria: Estética, Arte Contemporanea, Artes, Filosofia Analitica, Filosofia
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A definição de “arte” e a Filosofia Analítica Jean Rodrigues Siqueira1

As transformações que começaram a ocorrer nas artes a partir do fim do século XIX trouxeram à fia ica o tona questões bastante difíceis de serem respondidas à luz das teorias estéticas tradicionais. s o Fil nalít A Em particular, a questão a respeito da natureza da arte e de como defini-la revelou-se ceno t i e ce tral e imensamente problemática. Qual foi a perspectiva que a tradição filosófica conhecida Con de art z eit como Filosofia Analítica – muitas vezes associada apenas a problemas teóricos envolvendo W s i r r Mo tein a Lógica, a Linguagem, a Matemática e a Ciência – assumiu em suas primeiras contribuições s n ge Witt sobre o assunto?

“Isso é arte?” – Essa pergunta, que serve de título para um informativo livro sobre a arte dos últimos 150 anos escrito pelo editor de artes do canal BBC, Will Gompertz (1965-), bem poderia ter saído da boca de um visitante da última Bienal de São Paulo ou acabado de ser levantada por alguém diante de um trabalho exposto em alguma galeria ou museu de arte contemporânea. É extremamente comum encontrar o tipo de sentimento geralmente encapsulado nessa interrogação – confusão, frustração e até indignação – presente em pessoas que inadvertidamente se veem diante de certos trabalhos apresentados em mostras, galerias e museus espalhados em todo mundo. Em alguns casos, tais sentimentos podem originar situações bastante inusitadas e até cômicas. No ano passado, por exemplo, uma funcionária da galeria Sala Murat, na cidade de Bari, Itália, equivocou-se ao fazer a limpeza do local e acabou jogando no lixo uma obra de autoria do artista nova-iorquino Paul Branca (1974-) avaliada em cerca de € 10 mil. Infelizmente – principalmente para a administração da galeria, que foi responsabilizada pelo prejuízo –, a obra não pôde ser recuperada, pois quando o equívoco foi constatado, o serviço de coleta da cidade já havia recolhido o trabalho de Branca e o destruído. Situações semelhantes envolvendo funcionários de museus e galerias já haviam acontecido em anos anteriores. Em 2004, uma empregada do Tate Britain, em Londres, também tomou parte de uma obra de arte, uma instalação do artista alemão Gustav Metzger (1926-), como sendo apenas lixo e a tirou do museu. Porém, diferentemente do episódio ocorrido na galeria italiana, o fragmento do trabalho foi recuperado antes de virar, realmente, apenas lixo. Poucos anos antes, em 2001, parte de um trabalho do badalado artista inglês Damien Hirst (1965-) exposto na galeria londrina Eyestrom, também foi retirado de uma das salas de exibição pelo encarregado da limpeza após ser confundido com lixo comum. Mais uma vez, a obra acabou sendo recuperada, já que a parte descartada foi salva da destruição ao ser encontrada em um contêiner que estava prestes a ser recolhido pelo serviço local de coleta de lixo. 1 Bacharel em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutorando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É professor de graduação e pós-graduação na Universidade Camilo Castelo Branco e no Centro Universitário Assunção. São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 1

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Algo diferente dos casos de “confusão” mencionados, mas tão curioso quanto, se deu em 2006 quando um francês chamado Pierre Pinoncelli atacou com um martelo uma das oito réplicas da conhecida obra A fonte, de Marcel Duchamp (1887-1968), exposta no Centro Georges Pompidou, em Paris. Em 1993, Pierre já havia atacado outra cópia do trabalho de Duchamp em uma exibição em Nimes, França, desta vez urinando na obra antes e só depois tentando destruí-la. Quando preso, justificou sua ação alegando que se algo como A fonte poderia estar em um museu, sua ação deveria ser considerada também uma performance artística; na ocasião, chegou inclusive a dizer que se Duchamp estivesse vivo ele aplaudiria seu feito transgressor. Esses exemplos ilustram muito bem, embora realmente sejam um tanto extremos, quanto a arte contemporânea pode despertar sentimentos ímpares em seus espectadores e colocar em xeque nossas intuições sobre a natureza da arte, sobre o que é arte e o que não é arte e, mais especificamente, sobre quais características ou propriedades fazem com que algo seja ou não seja arte. E a grande verdade é que mesmo apreciadores plenamente cientes do tipo de obra que pode ser encontrado em um espaço de arte contemporânea também poderiam facilmente ser lançados em um estado de confusão e frustração se tivessem que responder a alguém que lhes perguntasse: “Se essa peça de mobília é arte e a que está em casa não é, então o que diferencia uma da outra a ponto de uma poder ser chamada de obra de arte e a outra não?” ou “Mas isso em nada difere de um monte de lixo; por que não é simplesmente lixo?”, ou ainda “Mas isso é só um urinol, por que deveríamos considerá-lo como arte?”. Uma resposta que poderia ser dada – e que muitas vezes realmente é dada – seria a de que esses trabalhos contemporâneos são arte porque estão nos museus e espaços do tipo, ou porque pessoas que “entendem do assunto” dizem que é arte, ou ainda que são arte porque foram feitos por artistas. Mas será que alguma dessas respostas bastaria para explicar inequivocamente a distinção que parece existir entre coisas que são arte e coisas que não são arte? Será que alguma delas poderia ser considerada uma definição satisfatória do conceito “arte”? Aliás, que critérios uma definição deveria contemplar para ser considerada satisfatória? São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 2

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A concepção clássica de definição Uma definição teoricamente satisfatória, assim já apontavam os mais importantes pensadores da Grécia antiga, certamente não poderia se reduzir a uma simples definição lexical, isto é, uma mera determinação do sentido corrente das palavras – como, por exemplo, fazem nossos dicionários idiomáticos. E isso porque quando o que está em jogo é a apresentação de definições rigorosas, o que se almeja são caracterizações capazes de revelar a “natureza” ou “essência” das coisas referidas por certas expressões linguísticas, ou seja, indicações de qual ou quais propriedades fazem com que cada item individual, por mais semelhanças ou diferenças que possam revelar entre si, pertença a certa espécie de coisa e não a outra. Assim, em oposição às meras definições lexicais, bem poderíamos chamar essa forma rigorosa de definição – seguindo autores como Morris Weitz (1916-1981), cujas ideias serão abordadas logo mais adiante – de “definição real” ou “definição analítica”. Uma definição real é, então, um tipo clássico de definição que consiste na determinação de um conjunto de condições necessárias (ou até uma única condição necessária) que sejam conjuntamente suficientes para a correta aplicação de um conceito a suas respectivas exemplificações, ou seja, as coisas referidas por tal conceito. Ao explicitar as condições necessárias e suficientes de aplicação de um conceito, uma definição real revela as propriedades que constituem a natureza ou a essência daquilo referido por ele – daí esse tipo de definição estar intimamente associado a concepções essencialistas da linguagem. Historicamente, a origem dessa concepção essencialista das definições (e da linguagem) pode ser rastreada ao método empregado por Sócrates (469-399 a.C.) nos chamados diálogos socráticos de Platão (428/7-348/7 a.C.), e, de um modo mais explícito, à ideia de definição por gênero e diferença específica, devida aos trabalhos de Aristóteles (384-322 a.C.) – por isso sua qualificação como “clássica”. De acordo com esse modelo de definição, as condições necessárias de aplicação de um conceito dizem respeito a certas propriedades que todo objeto referido pelo conceito tem de possuir para ser considerado uma exemplificação do conceito (o que caracterizaria o seu gênero – o genus); condições suficientes, por sua vez, remetem às propriedades que bastam a um certo objeto possuir para que ele caia sob o conceito em questão (o que caracterizaria sua diferença específica – a differentia). Por exemplo, para que certo ser humano x possa ter o conceito “pai biológico” adequadamente aplicado a ele é necessário que x seja um homem (anatomicamente falando), mas ser um homem não é condição suficiente para a aplicação desse conceito (afinal, há homens que não são pais); ter filho(s) biológico(s) é outra condição necessária para que x seja considerado um “pai biológico”, mas também não é uma condição suficiente dos objetos que caem sob esse conceito (afinal, há mulheres que têm filhos biológicos). Nem mesmo a conjunção dessas duas propriedades – ser homem e ter filhos – é uma condição suficiente para a aplicação do conceito, uma vez que um homem com filhos adotivos não deveria ser considerado um “pai biológico”. Assim, o conceito “pai biológico” será adequadamente aplicado a um ser humano x se, e somente se, x tiver como propriedades conjuntas ser um homem com filhos não adotivos. Teríamos aí, então, a definição real do conceito “pai biológico”, uma definição que permite não apenas identificar quando certo ser humano x é um pai, mas determinar o que é que, essencialmente, faz com que x seja tal coisa. Conforme dito, as primeiras elaborações teóricas envolvendo as definições reais podem ser encontradas já nos diálogos de Platão. Nesses textos, o que habitualmente está em jogo na troca de argumentos, objeções e contra-argumentos é a procura por qual é a natureza ou a essência (a ousía, em grego) de alguma disposição humana. No diálogo Êutifron, por exemplo, o que está em pauta é o conceito de piedade; no Mênon, o que é a virtude; na República, o que é a justiça. Nesses textos, portanto, a pergunta que conduz toda a discussão subsequente é uma pergunta do tipo “o que é” (ti esti, em grego) aquilo de que se pretende falar. Ou seja, para se saber São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 3

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se a piedade é algum bem porque os deuses a aprovam ou se os deuses aprovam a piedade porque ela é um bem, é preciso saber o que é a piedade; antes de responder se a virtude pode ou não pode ser ensinada, é preciso saber o que é a virtude; para responder se devolver as armas para alguém que as havia emprestado, mesmo depois de esse alguém ter ficado louco, é algo justo, é preciso antes definir o que é a justiça. Buscar essa essência, isto é, a definição de um conceito, implicaria, segundo a estratégia delineada nesses diálogos de Platão, apresentar alguma propriedade (ou propriedades) que todas as coisas que fossem conhecimento ou virtude, por exemplo, possuam e, ao mesmo tempo, alguma propriedade (ou propriedades) que apenas as coisas que fossem conhecimento ou virtude poderiam apresentar. Nessa conjunção de todas e apenas as propriedades referidas por um termo de uma língua natural qualquer teríamos a definição rigorosa de um conceito, isto, é uma clara delimitação de suas fronteiras, uma restrição formal que nos impediria de confundir um copo com uma taça ou com uma caneca, apesar das óbvias semelhanças entre esses três tipos de objeto. “Arte” e Filosofia Analítica Apontar a característica ou características presentes em todos os objetos considerados artísticos (e presentes apenas neles) – isto é, definir o conceito “arte” à maneira clássica – nem sempre pareceu uma tarefa ingrata para os filósofos e estetas. Por muito tempo, por exemplo, aceitou-se a ideia de que a propriedade definidora das obras de arte residia no fato de elas serem uma imitação ou representação da natureza; no texto A república, o próprio Platão pressupôs essa definição ao apresentar, no livro IX, suas duras críticas às chamadas “artes miméticas”. Mesmo Aristóteles, que em sua Poética manifestou uma posição completamente distinta do seu mestre a respeito da função e importância das artes, jamais chegou a questionar sua natureza imitativa – vendo, inclusive, na imitação e no prazer decorrente dela, a origem do fazer artístico. Ainda no século XVIII, o pensador francês Charles Batteux (17131780), em seu clássico texto As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio, de 1746, viu na imitação aquilo que caracterizava as “belas-artes”, ou seja, o “mesmo princípio” a que todas elas se submetiam. Mas, com o caminho rumo à inovação radical tomado a partir das últimas décadas do século XIX, processo cujo ápice se deu com o desenvolvimento das chamadas “neovanguardas” na década de 1960, e o surgimento de diversos novos gêneros artísticos – da fotografia e do cinema à performance e à instalação –, definir “arte” foi se tornando um exercício cada vez mais difícil e embaraçoso. Tal dificuldade se impunha justamente pelo fato de a atividade artística constantemente revelar contraexemplos para as diversas definições propostas. E com o inegável fracasso dessa agenda teórica fundada na ideia de definição, um sentimento de ceticismo acerca da possibilidade de definições na teoria estética e também de desprezo pelo tipo de empreitada começou a ganhar voz nos meios acadêmicos de discussão sobre arte. E foi exatamente a proposta de abandono do projeto definicional que fez com que a questão da definição de “arte” ganhasse espaço nos debates envolvendo os filósofos analíticos. Nesse contexto, a crítica do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) às teorias essencialistas da linguagem foi a grande inspiração para que a busca por definições reais, tarefa intimamente associada às teorias estéticas tradicionais, fosse considerada equivocada e, consequentemente, infrutífera. Autores como o já citado Weitz, William Kennick (1923-2009) e Paul Ziff (1920-2003), por exemplo, explicitamente construíram argumentos céticos tomando como inspiração as Investigações filosóficas, a mais conhecida obra da segunda fase do pensamento de Wittgenstein, publicada postumamente em 1953, e defenderam que qualquer busca por propriedades necessárias e suficientes intrínsecas aos objetos reconhecidos como obras de arte não passava de uma tentativa vã de encontrar uma natureza ou essência onde não havia nada a encontrar. São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 4

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De acordo com o texto das Investigações, a tarefa da filosofia poderia ser resumida à elucidação da relação que há entre o uso da linguagem (seu uso de fato) e as condições sob as quais ela é adequadamente utilizada, e não na busca de essências ocultas por trás de seu uso pelos falantes das línguas naturais. E é exatamente sob influência desse modelo de investigação filosófica que Weitz, o autor que tomaremos aqui como emblemático da postura dos primeiros filósofos analíticos a respeito da questão da definição de “arte”, vai sugerir que o conceito “arte” e sua lógica devem ser pensados e explorados. Guiado por essa perspectiva, Weitz ressalta em seu artigo O papel da teoria na estética (1958) que a atenção aos usos efetivos do conceito “arte”, especialmente na composição da expressão “obra de arte”, mostra que ele pode ocorrer tanto como um termo meramente descritivo quanto como um termo avaliativo. Em seu uso descritivo, “arte” tem unicamente uma função taxonômica, de classificação de objetos. É assim, por exemplo, que empregamos as expressões “arte” ou “obra de arte” para dizer que um objeto é considerado arte independentemente de o apreciarmos ou não, independentemente de ser boa arte ou não. Já quando dizemos a respeito de um trabalho que apreciamos que ele é uma “obra de arte”, ou que ele é que é “arte”, a ocorrência desses termos envolve um juízo de valor. A diferença que a análise de Weitz destaca entre o uso descritivo e o uso avaliativo do conceito “arte” é fundamental para sua argumentação, já que ele entende que todas as tentativas de apresentar uma definição real desse conceito confundem esses dois usos, sempre privilegiando seu uso avaliativo. Mas, em seu uso avaliativo, as condições de aplicação do conceito “arte” não podem ser adequadamente descritas, uma vez que tal uso remete apenas a certas preferências estéticas, o que acaba por excluir outras propriedades relevantes para a identificação de objetos artísticos. Por outro lado, quando tomado em seu sentido meramente descritivo, o que se observa é que o conceito “arte” revela-se extremamente flexível, mutável e abrangente. Novos gêneros artísticos e obras de arte absolutamente inovadoras surgem de tempos em tempos, ressalta Weitz. E mesmo diante dessa grande variação e transformação, o conceito “arte” continua sendo empregado significativamente e abarcando esses novos objetos e atividades. Assim, mais uma vez a atenção ao uso do conceito “arte”, agora especificamente em seu sentido descritivo – o único sentido que pode apontar adequadamente suas condições de aplicação – conduz à compreensão de uma importante característica de sua lógica: “arte” é um conceito aberto, isto é, um conceito cujas condições de aplicação são reajustáveis e corrigíveis. É em virtude dessa característica empiricamente apreensível do conceito “arte” que decorre, entende Weitz, a impossibilidade de qualquer definição que feche o conceito e estabeleça condições necessárias e suficientes para seu uso. Daí sua tese de que todas as teorias estéticas tradicionais estão erradas, dado que elas adulteram radicalmente a lógica do conceito “arte”. E o principal argumento de Weitz para fundamentar essa tese consiste exatamente em chamar a atenção para o fato de que o conceito “arte” exige abertura, exige a possibilidade de se ajustar ao surgimento de situações não previstas, a situações que independem de qualquer tipo de regra ou restrição, sob pena de um fechamento desse conceito excluir as próprias condições de criatividade na arte. São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 5

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Mas, segundo Weitz, o fato de não podemos definir da maneira clássica o conceito “arte” de modo algum significa que não possamos reconhecer ou identificar as obras de arte. E, para explicar esse ponto, o filósofo estadunidense novamente recorre a ideias desenvolvidas nas Investigações de Wittgenstein. Conforme argumenta esse texto, a linguagem não possui uma estrutura formal subjacente aos fenômenos linguísticos; desse modo, o que explica o fato de um mesmo termo se aplicar aos mais variados casos específicos não é uma essência por trás de seu uso, mas sim a presença de cadeias de semelhanças entre os vários objetos aos quais se espera que certo conceito se aplique. Dito de outro modo, para ele a lógica que governa as relações entre os conceitos e os objetos referidos pelos conceitos não é aquela proposta por Platão nos diálogos, segundo a qual os conceitos (linguisticamente exemplificados por meio dos nomes gerais) remetem a algo essencial, mas sim uma lógica determinada pela relação de “semelhanças de família” e decorrente do uso efetivo desses conceitos pelos usuários das línguas naturais. Como ilustração dessa ideia, o filósofo austríaco propõe uma reflexão a respeito do emprego do conceito “jogo”, convidando-nos a pensar se há alguma propriedade comum a todos os jogos; mas sua instrução para essa reflexão é bastante clara: não pense que deve haver algo comum, veja se há! O resultado dessa consideração é, segundo o filósofo, de que aquilo que os essencialistas acerca da linguagem acreditam ser um conjunto de propriedades necessárias e suficientes existentes em todos os objetos que caem sob um conceito nada mais é do que uma rede de semelhanças constituída de características que se sobrepõem e se entrecruzam de maneiras variadas, em maior ou menor grau. Pife-pafe, por exemplo, é um jogo de cartas, assim como paciência; mas um é jogado por uma única pessoa e o outro não. Futebol é um jogo, assim como pife-pafe e paciência, mas não é um jogo de cartas. Futebol se joga com uma bola, assim como o polo aquático; mas este se joga dentro de uma piscina, enquanto o outro não. Há, pergunta Wittgenstein, algo visível comum a todos eles, a todos os jogos de que possamos nos lembrar ou imaginar? Segundo Wittgenstein, por mais que observemos, não encontraremos nenhuma propriedade comum existente em todos os jogos, mas sempre a ocorrência (e recorrência) de certas semelhanças e a ausência de outras. Isso que Wittgenstein afirma ocorrer com o conceito de “jogo” ocorre também, enfatiza Weitz, com o conceito “arte”: se olharmos para todos os gêneros e objetos artísticos, jamais encontraremos uma natureza comum, uma única propriedade presente em todos eles, mas apenas semelhanças de família, cadeias de similaridades. Portanto, a classificação de um novo objeto como “arte” exige apenas que ele apresente certas semelhanças com casos de objetos já considerados como arte – casos paradigmáticos de arte. Uma nova atividade pode ser considerada um jogo se ela apresentar semelhanças com aquelas atividades que já consideramos como jogos. Portanto, ao recorrer à noção wittgensteineana de semelhanças de família, Weitz deixa registrado que nenhum mistério com relação à identificação e reconhecimento de objetos como obras de arte surge em decorrência de sua refutação do projeto definicional da teoria estética clássica. A definição real do conceito “arte” é impossível de ser obtida, mas o reconhecimento de quais objetos são obras de arte (em sentido descritivo) é perfeitamente realizável. A lógica do conceito “arte”, assim a análise de Weitz pretende destacar, apresenta uma estrutura aberta – ou seja, sem quaisquer condições necessárias e/ou suficientes pressupostas em sua aplicação –, cujo emprego adequado se orienta pela presença de semelhanças de família entre os objetos por ele referidos. Em virtude dessa estrutura aberta, o alargamento ou não do conceito de modo a abarcar novos casos é sempre resultado de uma opção pragmática, de uma consideração a respeito de se um novo conjunto de propriedades deve ser acrescentado à rede de similaridades já mais consolidada ou não. O artigo de Weitz é hoje um verdadeiro clássico da filosofia analítica da arte. E isso se deve muito mais à influência que ele exerceu sobre as reflexões posteriores acerca da questão da definição de “arte” do que propriamente sobre a permanência de suas teses São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 6

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e argumentos. A partir da publicação de seu artigo, a arte passou a figurar como mais um importante e acalorado tema de discussão entre os filósofos analíticos – tanto que o projeto definicional clássico na teoria estética retornou com toda a força já na década seguinte, graças aos trabalhos de Maurice Mandelbaum (1908-1987), Arthur Danto (1924-2013) e George Dickie (1926-). E um dos primeiros passos que foi dado no sentido da consolidação desse novo e promissor capítulo da história da filosofia analítica foi dado justamente por esse distinto pensador. Morris Weitz, O papel da teoria na estética (1956) A teoria tem tido um papel central na estética e ainda é a preocupação da filosofia da arte. A sua maior preocupação continua a ser, assumidamente, a determinação da natureza da arte, que possa ser formulada por meio de uma definição. Ela concebe a definição como a afirmação das propriedades necessárias e suficientes daquilo que está a ser definido, e esta afirmação diz algo de verdadeiro ou falso acerca da essência da arte, acerca daquilo que a caracteriza e a distingue de tudo o resto. Cada uma das grandes teorias da arte — formalismo, voluntarismo, emocionalismo, intelectualismo, intuicionismo, organicismo — converge na tentativa de enunciar as propriedades definidoras da arte. Cada uma delas reclama ser a verdadeira teoria por ter formulado corretamente a verdadeira definição da natureza da arte; e reivindica que as restantes teorias são falsas por terem deixado de fora alguma propriedade necessária ou suficiente. Muitos especialistas mantêm que o seu empreendimento não é um mero exercício intelectual, mas antes uma necessidade absoluta para qualquer compreensão da arte e da nossa correta avaliação artística. Eles afirmam que, a não ser que saibamos o que é a arte, quais as suas propriedades necessárias e suficientes, não podemos reagir adequadamente à arte nem dizer por que razão uma obra é boa ou melhor do que outra. Assim, a teoria estética não só é importante em si mesma, mas também em relação aos fundamentos quer da apreciação quer da crítica de arte. Os filósofos, os críticos e mesmo os artistas que escreveram sobre arte, concordam que o que é primário em estética é a teoria acerca da sua natureza. [...] Neste ensaio, pretendo advogar a rejeição deste problema. Pretendo mostrar que a teoria — no sentido clássico requerido — nunca surgirá na estética, e que faríamos muito melhor enquanto filósofos em substituir a questão “Qual é a natureza da arte?” por outras questões, a resposta às quais nos fornecerá todo o entendimento possível acerca das artes. Pretendo mostrar que a insuficiência das teorias não é primariamente ocasionada por nenhuma dificuldade legítima originada, por exemplo, pela vasta complexidade das artes, a qual poderia ser corrigida por uma exploração e investigação complementares. As suas insuficiências básicas residem antes numa má compreensão fundamental da arte. A teoria estética — toda ela — está errada em princípio ao pensar que uma teoria correta é possível uma vez que adultera radicalmente a lógica do conceito de arte. É falsa a sua principal contenda de que a “arte” é susceptível de uma definição real ou de outro tipo de definição verdadeira. A sua tentativa de descobrir as propriedades necessárias e suficientes da arte é logicamente ilegítima pela simples razão de que nunca aparecerá um tal conjunto de propriedades nem, consequentemente, a sua fórmula. A arte, tal como a lógica do conceito mostra, não tem nenhum conjunto de propriedades necessárias e suficientes; logo, uma teoria acerca dela é logicamente impossível e não apenas factualmente impossível. A teoria estética tenta definir o que não pode ser definido no sentido requerido (WEITZ, 2007, p. 61-62).

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Referências bibliográficas DANTO, A. O mundo da arte. In: D’OREY, C. O que é arte – a perspectiva analítica. Lisboa: Dinalivro: 2007. p. 79-99. DICKIE, G. Defining art. American Philosophical Quarterly, v. 6, n. 3, p. 253-256, 1969. GOMPERZ, W. Isso é arte? Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2013. KENNICK, W. Does aesthetics rests on a mistake? Mind, New Series, v. 67, n. 267, p. 317-334, 1958. MANDELBAUM, M. Family resemblances and generalizations concerning the arts. American Philosophical Quarterly, v. 2, n. 3, p. 219-228, 1865. WEITZ, M. O papel da teoria na estética. In: D’OREY, C. O que é arte – a perspectiva analítica. Lisboa: Dinalivro: 2007. p. 61-78. WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores). ZIFF, P. The task of defining a work of art. The Philosophical Review, v. 62, n. 1, p. 58-78, 1953.

Imagens: www.wikipedia.org, www.examiner.com/article/janitor-throws-out-14-000-worth-of-art e www. noticias.bol.uol.com.br/ fotos/bol-listas/2015/08/25/17-obras-de-arte-que-ja-foram-danificadas-acidentalmente-ou-nao.htm#fotoNav=14 São Paulo, Ano II, n. 05, mai./ago. de 2015 • 8

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