A DEFINIÇÃO DO INIMIGO PELO DIREITO PENAL

June 29, 2017 | Autor: Gustavo Batista | Categoria: Criminal Law, Criminal Policy
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A DEFINIÇÃO DO INIMIGO PELO DIREITO PENAL

Prof. Dr. Gustavo Barbosa de Mesquita Batista (UFPB)[1]
E-mail: [email protected]




1. INTRODUÇÃO

O direito penal moderno traz consigo o mito de segurança. É o Leviatã
disponível para assombrar os inimigos da racionalidade e do modo de vida da
sociedade burguesa. Possuindo a pena como forma de intervenção social, o
direito penal transformou sua ação num importante capítulo da história da
violência e do sofrimento humano. O direito penal constrói e seleciona os
inimigos de uma ordem social e direciona sobre eles todos os recursos
punitivos disponíveis para colocar em segurança a parte hegemônica da
sociedade. Resta-nos perguntar se os inimigos definidos pelo direito penal
colocam, realmente, todos em situação de insegurança? São eles, realmente,
os inimigos da sociedade ou de uma classe dominante?
As subjetividades são, normalmente, vistas pelo direito penal a partir
de um universo objetivo de valores o que impede quaisquer relativizações de
ordem pessoal ou microcomunitária. Este objetivismo valorativo assumido
pelo Sistema Penal não permite flexibilizações quanto aos conflitos
originados por choques culturais, de classes sociais ou de gênero e de
origem étnica. O ordenamento penal segmenta as subjetividades,
fundamentando, a partir do seu universo objetivo (absoluto) e monista de
valores, a segmentação do mundo em: sujeitos delinqüentes, sujeitos
passíveis de punição e sujeitos imunes. Estas definições são políticas
antes mesmo de se tornarem jurisdicionais. No tocante às previsões de
penas, Foucault chegou a afirmar:

A penalidade seria uma maneira de gerir as ilegalidades,
de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns,
de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de
tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito
daqueles. Em resumo, a penalidade não "reprimiria" pura e
simplesmente as ilegalidades; ela as "diferenciaria",
faria sua "economia" geral. E se podemos falar de uma
justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de
aplicá-la servem aos interesses de uma classe, é porque
toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio
da penalidade faz parte desses mecanismos de dominação
(1987, p. 226-227).

É lógico que o esforço centralizador e simplificador da racionalidade
moderna determinou, em boa parte, as falhas do ordenamento jurídico penal
contemporâneo. Seu esforço de centralização político-social esbarrou numa
série de percalços e numa ambivalência lingüística que exigem uma contínua
correção e reexplicação de significados por parte do próprio sistema e dos
seus operadores, geralmente, ocupantes do poder político central como
integrantes do judiciário ou do ministério público.
Assim sendo, a definição político-jurídico da delinqüência segue
padrões previsíveis numa determinada sociedade (FOUCAULT, 1987, p. 230-
231). Como estes padrões previsíveis de definição da delinqüência e da
imunidade penal se articulam dentro de uma estrutura social indica os
procedimentos político-criminais orientados para a consecução dos objetivos
hegemônicos do direito penal no tocante à definição dos inimigos visíveis e
úteis da ordem jurídica e social.


2. CONTRADIÇÃO INERENTE AO DIREITO PENAL



O funcionamento do direito penal permite-nos entender como o modelo
punitivo está organizado socialmente. As codificações muitas vezes sugerem
as influências filosóficas, políticas e as fórmulas básicas de um
determinado sistema penal, ou seja, o seu universo de valores. Todavia,
existem várias contradições entre o discurso e a prática penal:

No caminho desta contrastação, faz-se necessário, pois,
deslocar a abordagem do saber dogmático para o sistema da
Justiça Penal que ele tem por referência, partindo de uma
indagação preliminar: que saber pode orientar a análise
deste sistema e, por extensão, o controle funcional da
Dogmática Penal? Com base em que saber de controle da
funcionalidade do sistema penal se pode controlar a real
funcionalidade dogmática? (ANDRADE, 2003, p. 170-171).

Desta forma, quanto ao direito penal liberal, caberá sempre refletir
acerca da sua origem histórica, dos pressupostos ideológicos de elaboração
normativa, das orientações político criminais que efetivamente recebe e dos
interesses culturais e econômicos que determinam toda a construção teórico-
legislativa da dogmática que dá suporte ao sistema de justiça penal
operante na prática, observando possíveis contradições, pois:

Quando não é assim, se propõe, todavia, um problema
difícil de resolver. Negar a contradição é esconder a
cabeça sob a asa e não querer ver a realidade. Resolvê-la
dando primazia a uma das partes em conflito, quer dizer, à
dogmática ou à política criminal, é algo que não se pode
decidir a priori sem saber de que dogmática jurídica ou de
que política criminal está se falando. No Estado nacional-
socialista estava claro que a primazia se deu à política e
certamente aos fins políticos que caracterizavam o dito
Estado, o que, traduzido ao direito penal supunha que este
tinha que perseguir, com seus meios específicos, estes
fins resumidos sobretudo na idéia da pureza da raça do
povo alemão: a raça ariana. A dogmática jurídico-penal da
época não fez, pois, outra coisa, como já vimos, que
seguir fielmente estes postulados e tentar traduzi-los em
categorias dogmáticas básicas como a idéia de traição
("verrat") como fundamento do conceito material de delito,
e a idéia de "eliminação" (Ausmerzung) de elementos
daninhos ao povo e à raça, como um dos fins da pena (MUÑOZ
CONDE, 2005, p. 57).

No caso brasileiro, por exemplo, o primeiro título da Parte Especial
do Código Penal trata dos Crimes contra as Pessoas, definindo o sujeito
titular de direitos e os respectivos direitos de personalidade: vida,
integridade física, saúde pessoal, honra, liberdade e intimidade.
Entretanto, a partir do segundo título, que são os Crimes contra o
Patrimônio, passamos a perceber quais são as pessoas tuteladas como sujeito
de direitos protegidas pelo sistema penal brasileiro. O segundo título da
Parte Especial tem por objeto os Crimes contra o Patrimônio. Vários são os
aspectos indicativos de qual sujeito/pessoa de direitos estamos tratando no
Código Penal, pelo que podemos referir-se, aqui, a alguns destes aspectos.
Primeiramente, no título dos Crimes contra o Patrimônio, temos duas
hipóteses típicas: o Latrocínio (art. 157, § 3º, 2ª Parte do CP: Se da
violência resulta (...) morte, a reclusão é de 20 (vinte) a 30 (trinta)
anos, sem prejuízo de multa) e a Extorsão Mediante Seqüestro seguida de
morte (art. 159, § 3º do CP: se resulta morte Pena - reclusão de 24 (vinte
e quatro) a 30 (trinta ) anos). O primeiro é punido com uma pena mínima de
20 anos e o segundo com uma pena mínima de 24 anos. Relacionando-se ambos
com a pena mínima atribuível ao homicídio qualificado que é de 12 anos,
obtemos uma variação final do dobro da pena aplicável ao fato único de
destruir a vida de uma pessoa humana. O cotidiano brasileiro é marcado por
latrocínios ou homicídios? Onde ocorrem estes últimos?
Se é com base na pena que extraímos o grau de importância social do
bem jurídico protegido por parte do direito penal, o simples fato de crimes
relativos ao patrimônio classificarem penas mais graves de que um crime
contra a pessoa já nos deixa com um fundamentado questionamento acerca do
tipo de pensamento político-econômico que determinou esta distorção e para
qual classe social serve esta dissimetria das penas. Elucida, enfim, a
constatação do modelo liberalista nominal adotado pelo Código Penal
brasileiro a adição da idéia do sujeito de direitos com aquilo que o compõe
numa proposta clássica do liberalismo: a propriedade. Por isso, a vida dos
sujeitos desprovidos de propriedade (patrimônio) é valorada, positivamente
por parte da lei penal, pela metade com relação à vida daqueles que possuem
patrimônio, já que de 12 (doze) para 24 (vinte e quatro) anos temos uma
variação do dobro. Há destruição da vida em todos os casos supracitados,
apenas o que diferencia a clássica fórmula do homicídio prevista no artigo
121 do CP (matar alguém) para as demais relatadas é a composição da ordem
de proteção do patrimônio presente nas hipóteses que, declaradamente,
tutelam este bem jurídico em detrimento do primeiro. Esta ordem de proteção
indica uma seletividade penal que classifica o patrimônio acima da idéia e
do conceito de pessoa humana. Também propõe uma identidade de sujeito de
direitos: o cidadão proprietário, ou seja, o famoso cidadão de bem como
aquele que possui bens. Em virtude dele, são dimensionadas as penas, ou
seja, o custo punitivo que recai sobre o agressor do patrimônio que é
superior ao agressor da vida, demonstrando, na prática político criminal, a
estatura social diferenciada de um cidadão que possui patrimônio frente aos
demais cidadãos comuns.
Na matriz ibérica do direito penal brasileiro, sempre foi muito comum
a utilização da diferenciação punitiva. As penas eram estabelecidas de
forma desigual sobre os vários níveis de estratificação social e, desta
forma, positivadas na legislação penal do reino. Portanto, nas Ordenações
do Reino, era expressa a previsão de penas diferenciadas aplicáveis aos
nobres, aos plebeus e aos escravos, segmentando-se abertamente a
delinqüência. Hoje não mais existe uma clara diferenciação punitiva
prevista no código penal, em função do mito liberal da igualdade de todos
perante a lei, mas é possível demonstrar que ela foi tão somente ocultada
pelo mascaramento da adoção de uma ideologia liberal que não suplantou
completamente a cultura colonial brasileira, impondo uma completa
desigualdade na aplicação das penas. Por exemplo, o artigo 176 do código
penal prevê pena para quem: tomar refeição em restaurante, alojar-se em
hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para
efetivar o pagamento. O problema é que se você possui dinheiro e no momento
do pagamento não o efetua a questão se dissolve, gerando dúvidas com
relação a previsão típica. Há, neste processo, uma definição da
delinqüência para além da infração, que proporciona, continuamente, separar
as ilegalidades de bens (sujeitas à repressão) das ilegalidades de direito
(sujeitas à imunização penal), sendo as primeiras praticadas pelas classes
populares e as demais, geralmente, pela classe dominante. Desta forma:

Sem dúvida a delinqüência é uma das formas da ilegalidade;
em todo caso, tem suas raízes nela; mas é uma ilegalidade
que o "sistema carcerário" com todas as suas ramificações,
investiu, recortou, penetrou, organizou, fechou num meio
definido e ao qual deu um papel instrumental, em relação
às outras ilegalidades. Em resumo, se a oposição jurídica
ocorre entre legalidade e a prática ilegal, a oposição
estratégica ocorre entre ilegalidades e a delinqüência
(FOUCAULT, 1987, p. 230).

Neste sentido, pune-se claramente as pessoas pobres, porque ao trazer
uma determinada condição para o sujeito ativo da conduta (sem dispor de
recursos para efetivar o pagamento) atinente à situação patrimonial no
momento em que contrata o serviço de hotelaria ou de refeição, o legislador
optou pela repressão de uma classe de indivíduos (aqueles que não possuem
recursos financeiros suficientes), ainda que não tenha, diretamente e de
forma clara, dirigido a norma penal em razão de categorias sociais como
ocorria anteriormente no período das ordenações do reino. Portanto, a nossa
tese é que o critério da diferenciação punitiva foi ocultado dentro do
paradigma liberal e formal da igualdade de todos perante a lei, deixando
margens para uma nova forma de análise substancialista no tocante à
definição penal do inimigo, desta vez, pelo método liberal encontrado no
sentido de separar ilegalidade e delinqüência, conforme explicitou Foucault
(1987, p. 229-231).


3. O INQUISITORIALISMO PERSISTENTE: A OPERACIONALIDADE SISTÊMICO-FUNCIONAL
DA DEFINIÇÃO PENAL DO INIMIGO



A máquina inquisitorial, modelada no seio do catolicismo para
combater os hereges, acabou sendo incorporada pelo Estado Moderno,
dirigindo-se contra os rebeldes e contra qualquer agrupamento humano
considerado inimigo do Estado. Como, neste modelo inquisitorial, para haver
condenação, a culpa deveria ser estabelecida por meio de provas objetivas
(não mais os duelos e ordálios presentes no direito comunitário tribal), o
inquisidor buscava a declaração de confissão do réu a qualquer custo,
inclusive por intermédio da prática de tortura (BATISTA, 2000, p. 265-267).

Entretanto, foi exatamente esta necessidade de provar e estabelecer o
grau da culpa que tornou o modelo inquisitivo uma inovação frente ao
cenário comunitário e horizontal das ordálias, ao mesmo tempo, que refletiu
o primeiro modelo para o processo de verticalização do sistema penal e de
centralização da política criminal. Sistema produzido e aperfeiçoado pela
Igreja Católica, para o combate às heresias, os poderes de inquisição
foram, inicialmente, confiados aos bispos (tratavam-se de poderes
episcopais de perseguição, investigação, julgamento e condenação dos
hereges) para, somente algum tempo depois, serem confiados, por intermédio
das bulas papais de Gregório IX de 1233, tais poderes à ordem dominicana,
dando-lhes a tarefa de perseguir as heresias (BATISTA, 2000, p. 246).
O estabelecimento do critério da verdade real criava uma dinâmica
perversa no tocante à produção das provas. Por outro lado, o inquisidor
deveria intermediar todo o processo, num princípio de imediação, que
contaminava completamente o seu juízo decisório, selecionando,
arbitrariamente, as provas a serem utilizadas, ou avaliadas, de maneira
favorável ou desfavorável ao réu, conforme "a verdade real pretendida".
Tratava-se de um modelo concentrador dos atuais papéis da tríade presente
num processo penal acusatório: acusador; defensor e juiz. A defesa, por um
advogado do réu, era desestimulada, pois, conforme salientou Batista:

Kramer e Sprenger, recordando aos advogados que quem
"indevidamente defende uma pessoa já suspeita de heresia
torna-se a si próprio um defensor daquela heresia,
aconselha-os – já que além dos réus, também os defensores
não podem saber os nomes das testemunhas – a exortá-la (a
feiticeira) a ter o máximo de paciência" e induzi-la a uma
confissão aparentemente escusante (2000, p. 265).

A fragilidade da defesa e dos seus argumentos posta em marcha por um
juízo que crê na identidade substancialista do mundo e exige do defensor
parâmetros de atuação que impeçam o exercício da ampla defesa e do
contraditório tornou-se um elemento próprio da ordem inquisitiva. Isto
ainda hoje é o que ocorre, de acordo com o senso comum jurídico, com
relação às defesas praticadas em favor de certas categorias da
delinqüência, em especial: traficantes, parricidas, estupradores, pessoas
pobres que cometeram crimes patrimoniais, ou integrantes de movimentos
sociais que criticam as estruturas de opressão vigentes. Encontra-se,
inclusive, no funcionamento normal dos juizados especiais criminais, pela
prática indiscriminada da transação penal, da oferta direta de pena por
composição, da suspensão condicional do processo e da análise privilegiada
da confissão, fragilizando-se os elementos da ampla defesa e do
contraditório com relação às imputações criminais feitas arbitrariamente.
A prática substancialista e inquisitiva pressupunha a presença de um
juiz bom, homem santo, sacerdote apto para levar a bom termo o processo,
descobrir a verdade e restaurar a ordem perdida. Sua posição superior aos
demais (pontífice e sacra) tornava-o capaz para conceder o perdão ou ditar
a pena do réu. Ao juiz bom, não interessaria apenas evidenciar um fato e
submetê-lo aos ditames da lei, ou seja, realizar uma simples operação
jurídica, quase que matemática, mas, pelo contrário, ao juiz bom caberia
purgar a alma do criminoso, pois desde sempre: "o processo penal
(inquisitivo, grifo nosso) apresenta semelhanças com a doutrina católica do
purgatório. Em ambas a posição do indivíduo confesso constitui o
pressuposto para restabelecer a ordem lesada, limpando-o de sua culpa"
(SABADELL, 2006, p. 240). Em tais casos, diante do juiz bom a confissão ou
aplaca a culpa, ou reduz a pena, daí mais um estímulo ao réu para se
entregar ao juízo de um homem santo e capaz de remir o seu pecado a fim de
salvar sua alma. Esta posição do juiz inquisidor, certamente não é o local
ocupado por um terceiro homem eqüidistante das partes, mas por um
receptáculo divino da verdade: aos padres foi dada a sacra missão de,
através do sacramento da confissão, colher a verdade acerca dos pecados dos
fiéis e expiar suas culpas, ou ordenar sua penitência (SABADELL, 2006, p.
238-246).
Aos juízes, a formação moderna e aristocrática do aparelho
burocrático judicial, vem confiando a mesma missão quando se trata de sua
atuação junto ao sistema penal contemporâneo: colher a verdade, expiar as
culpas e ordenar a penitência. Poderes exclusivos justificados pelo a
priori jurídico substitutivo do a priori canônico e sacramental vigorante
na Idade Média.


4. MODELO GARANTISTA: UMA ALTERNATIVA REAL AO DECISIONISMO PENAL E À
DEFINIÇÃO JURISDICIONAL DO INIMIGO?



O cognitivismo processual sugerido pelo garantismo de Ferrajoli
(2002) tenta pôr um fim a esta missão do homem santo e infalível,
instaurando a necessidade do uso regrado de um saber técnico para a
definição da existência de um fato (o crime), a imputação de um responsável
pelo fato (o autor) e a determinação de sua conseqüência (a pena). O modelo
garantista reflete um projeto de racionalidade burocrática contemporâneo
muito semelhante aos modelos descritos como de domínio legítimo e legal por
Weber (2001, p. 349-359). O problema é que, por mais que o avanço do
processo penal garantista tenha positivado regras formais que limitam o
poder de cognição judicial ao material constante nos autos, outros
princípios que, ainda hoje, vigem no mundo ocidental no que diz respeito à
relação jurídico processual penal, como o princípios da verdade real e o do
livre convencimento do juiz, opõem-se fortemente a este avanço sugerido
pelo modelo garantista de Ferrajoli (2002), deixando em aberto diversas
possibilidades de arbítrio lingüístico e de decisão substancialista penal a
serem realizadas por parte da magistratura.
Talvez, tenhamos apenas substituído os ordálios horizontais e
comunitários por uma era dos ordálios judiciais, contemplando certa
verticalização do poder de julgar devido aos avanços trazidos pela ordem
burocrática desenvolvida na contemporaneidade. A regra abaixo descrita e
constante numa norma expressa e ainda em vigor do Código de Processo Penal
brasileiro corrobora com tudo o que foi dito anteriormente quanto ao
substancialismo possível nas decisões judiciais:

Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá
proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério
Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer
agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.

Este poder jurisdicional está freqüentemente vinculado aos princípios
da obrigatoriedade[2] e da indisponibilidade da ação penal pública.
Entretanto, a concepção da opinio delicti com relação à condenação e aos
limites da pena como papel inerente à atuação do ministério público que
deveria servir para limitar o poder decisório do judiciário é desrespeitada
no Brasil.
Por sua vez, o princípio do livre convencimento tornou-se um elemento
de autonomização do poder de decisão judicial, impedindo quaisquer
intervenções limitativas desta ampla autonomia e devolvendo o
substancialismo inquisitorial aos magistrados pós-iluministas e
brasileiros. Por outro lado, amplia as possibilidades de julgamentos com
base em visões substancialistas e arbitrárias do mundo.
A teoria garantista (modelo iluminista revisitado) pressupõe uma
atitude judicial de imparcialidade e, por isso, apregoa a necessidade da
inação do juiz no tocante à produção das provas (nemo judex agit ex
officio). No modelo garantista, o velho princípio da verdade real, que
regia a relação jurídico processual penal de caráter inquisitivo, encontrou-
se mitigado diante do pressuposto de produção regrada das provas e da
substituição dos critérios de verdade real, por outro princípio jurídico
denominado verdade processual (obviamente, de natureza normativa e formal).
Desta maneira:

A verdade a que aspira o modelo substancialista do direito
penal é chamada verdade substancial ou material, quer
dizer uma verdade absoluta, onicompreensiva em relação às
pessoas investigadas, carente de limites e de confins
legais, alcançável por qualquer meio, para além das regras
procedimentais. É evidente que esta pretendida "verdade
substancial", ao ser perseguida fora das regras e
controles e, sobretudo, de um exata determinação empírica
das hipóteses de indagação, degenera em juízo de valor,
amplamente arbitrário de fato, assim como o cognitivismo
ético sobre o qual se baseia o substancialismo penal
resulta, inevitavelmente, solidário com uma concepção
autoritária e irracionalista do processo penal (FERRAJOLI,
2002, p. 38).

Todavia, no tocante à verdade formal, Ferrajoli reconheceu que esta:
"é, em suma, uma verdade mais controlada quanto ao método de aquisição,
porém mais reduzida quanto ao conteúdo informativo de que qualquer verdade
substancial"(2002, p. 38). Para uma acusação mal formulada e não pré-
constituída por provas válidas, o preço a ser pago é sem dúvida a
prevalência do princípio de presunção da inocência. Por outro lado, esta
verdade controlada romperia os grilhões dos modelos autoritários do antigo
substancialismo penal, presentes na epistemologia inquisitiva, e conferiria
ao juízo penal maiores competências cognitivas e menos espaço
"decisionista", por que:

De forma sintética, pode-se dizer que o juízo penal – como
ademais toda atividade judicial – é um saber-poder, quer
dizer, uma combinação de conhecimento (veritas) e de
decisão (auctoritas). Em tal entrelaçamento, quanto maior
é o poder, tanto menor é o saber e vice-versa. No modelo
ideal da jurisdição, tal como foi concebido por
Montesquieu, o poder é nulo, na prática costuma ocorrer
que nulo é o saber (FERRAJOLI, 2002, p. 39).

A subordinação do juiz à verdade processual é observada, num modelo
garantista, como um critério constitucional e legitimo de controlar o
exercício do poder judiciário num Estado de Direito. Somente seria possível
por meio de uma atuação judicial de caráter cognitivista e com espaço
reduzido de decisão para que este perfil de imparcialidade desejada se
realizasse. Logicamente, por experiência, os poderes de decisão judicial
tendem a se somar aos poderes de acusação do órgão ministerial, compondo
sempre em prejuízo da defesa. O próprio Ferrajoli, magistrado aposentado,
reconheceu que:

[...] a posição da defesa permanece radicalmente inferior
em relação àquela da acusação, porque na organização do
nosso ordenamento jurídico, no qual o Ministério Público é
- seja por arregimentação na carreira ou por status
jurídico – um magistrado da mesma forma que o juiz, e a
este ligado por vínculos de coleguismo, de familiaridade,
de fungibilidade e de solidariedade corporativa bem
superiores àqueles vínculos existentes entre juízes e
defensores, esta inferioridade é destinada a resolver-se
em substancial ausência de contraditório no processo que
se tenha como réus hipossuficientes, nos quais a defesa é
confiada apenas a um simulacro [...] que não se reveste de
uma característica de parte conflituosa, mas quase sempre
ritual e de cumplicidade silenciosa (2002, p. 597).

Continuando este raciocínio, poder-se-ia afirmar que um juiz com
menor poder de produção probatória e completamente vinculado ao que for
produzido pelas partes no processo, encontrar-se-ia menos apto para a
produção das visões substancialistas e autoritárias de um direito penal do
autor. Logicamente, seriam mais reduzidas suas oportunidades de definir
categorias sociais inimigas. Por isso, reduzir as possibilidades judiciais
de cognição torna-se uma máxima garantista.
Na verdade, esta é a "patologia sistêmica" mais comum nas decisões
judiciais de natureza penal, tornando sua aplicação tão arbitrária,
desigual e ordálica como eram assim categorizadas as decisões condenatórias
penais do período medieval, baseado em juízos morais e em tabus
comunitários ou na simples fortuna da simpatia ou antipatia do órgão
decisório por uma das partes. Aliás, estas formas de decidir são,
inclusive, pré-inquisitivas, uma vez que o modelo inquisitorial instaura
uma metodologia objetiva de produção das provas, embora centrado no
subjetivismo da autoria da ação criminal: o substancialismo penal.
Logo, concordamos que um sistema garantista material, superando-se o
liberalismo nominal vigente, seria a melhor forma de opor resistência a
este dado cultural, antigo e transmutado, a partir do modelo inquisitorial
originário, para os dias atuais, no sentido de desvalorizar a defesa do
réu, pela definição prévia e substancialista do herege (inimigo público) e
de sua culpa objetiva programada por uma ordem natural (ou cultural e
social) das coisas. Somente o funcionamento e o pleno exercício das
garantias jurídicas restabeleceria o equilíbrio das forças e a paridade das
armas numa relação jurídico-processual desenhada a partir dos princípios
penais liberais.
Do contrário, como é comum no Brasil, o senso comum jurídico,
contaminado por uma visão substancialista, presente no funcionamento do
aparelho policial do Estado, termina legitimando o genocídio que atinge:

[...] milhares de crianças e jovens, predominantemente
negros e invariavelmente os habitantes de favelas, [...]
mortos por incursões policiais que, a serviço da cruzada
contra as drogas, cumprem, na verdade, a tarefa de
intimidar a população insatisfeita e faminta, numa espécie
de controle social preventivo pelo terror [...]. As
oligarquias brasileiras contemporâneas, que estimulam e
enaltecem – velada ou expressamente – a permanente
opressão que a polícia, a pretexto da "guerra santa"
contra as drogas, exerce sobre as comunidades faveladas,
com seu saldo fantástico de mortos (BATISTA, 2000, p.
241).

No caso latino-americano, especialmente como já foi supramencionado,
foi também decisivo para as visões substancialistas e socialmente eugênicas
a formação de um senso comum jurídico, influenciado pelo positivismo penal
lombrosiano, adotado a partir do funcionamento do aparelho policial do
Estado com forte caráter genocida e etnocida, legitimando a continuidade da
política posta em marcha nestas terras desde a modernidade colonial
(CANCELLI, 2005; FERLA, 2009).


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS



O garantismo material é um modelo de efetividade improvável, porque
se resume a uma técnica jurídica operacional que exige um comprometimento
de atitudes e uma visão não substancialista do mundo. As atitudes dependem
de mudanças sociais e culturais, por isso a postura cognitivista judicial
pretendida por um modelo garantista, não pode deixar de observar as
dificuldades inerentes a esta retomada de atitudes por parte de uma
sociedade que, nem sempre, são modificáveis por um discurso teórico ideal
defendido por um autor, mas acabam sendo determinados pelo desnivelamento
entre discursos e práticas sociais ou entre norma e política criminal ou
social efetivada.
Não há como negar que este é um ponto chave para a discussão do
garantismo em terras brasileiras (e, também, alhures). Somente podemos
compreender sua extensão e suas possibilidades de atuação, caso
compreendamos a natureza e os motivos destas atitudes (culturais e
ideológicas) que, muitas vezes, fogem às regras estatuídas por um sistema
legal simbólico e incorporam padrões culturais e ideológicos de conduta que
impedem o aperfeiçoamento dos modelos estatais de solução de conflitos,
determinando a continuidade de todas as mazelas inerentes a uma visão
substancialista de mundo pré-moderna. Estas atitudes tratam-se do dado
antropológico (ZAFFARONI, 1991, p. 74) que não podemos deixar de lado na
compreensão dos desvios no tocante ao funcionamento perverso e opressor do
aparelho burocrático de Estado latino-americano. Há um processo de
atualização histórica no sentido das formas européias e centrais de
controle social, mas que inversamente é utilizado para a conservação das
práticas autoritárias coloniais, numa incorporação substancialista das
regras que definem um modelo liberal-autoritário próprio da América Latina,
que ao invés das regras de limitação do poder estatal, próprias do
iluminismo, investe em regras de obediência e de submissão da maior parcela
da sociedade (NEDER, 2000).
Por sua vez, no campo político prático, mesmo nos países centrais, a
redução cognitiva e linguística da magistratura, proposta por um modelo
liberal garantista, formalmente inalterado, por exemplo, quando esteve
vigente na Alemanha o regime totalitário nazista, foi impossível de ser
realizada, especialmente quando observamos que as sentenças e decisões dos
tribunais se valeram da visão substancialista de mundo oferecida pela
ideologia nazista e fizeram largo uso dos termos vagos e mais sensíveis
desta política eugênica (RIGAUX, 2000, p. 116).
Por isso, no tocante a uma política criminal alternativa, acredito
que já é chegado o momento de discutirmos modelos não estatais de solução
de conflitos e nos aperfeiçoarmos linguisticamente para eles, evitando-se o
uso excessivo do aparelho de Estado na resolução final dos conflitos.
Entretanto, reconheço que, para isto, precisamos de uma visão social mais
aberta e relativizada, certamente, algo que é impossível no atual estágio
de nossas vidas comunitárias e urbanas, pelo que proponho uma articulação
instrumental e crítica do garantismo até o momento histórico em que
possamos reformar todo o sistema penal. Precisamos tratar de forma mais
diversificada (menos punitiva) os vários conflitos criminais, inclusive,
por intermédio da articulação paulatina e progressiva de políticas de
descriminalização, despenalização e descarcerização, além do aprendizado de
uma linguagem menos vindicativa no tocante à reação social ao crime. Enfim,
mudar a cultura de punição por outras formas de restauração da paz e de
reconciliação social.


6. REFERÊNCIAS


ANDRADE, V. R. P de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do controle da
violência à violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2003b.


BATISTA, N. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro, v. 1. Rio de
Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, Freitas Bastos, 2000.

CANCELLI, Elizabeth. Carandiru: a prisão, o psiquiatra e o preso. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2005.


FERLA, Luís. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do
biodeterminismo. São Paulo: Alameda, 2009.


FERRAJOLI, L. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula
Zomer; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002.


FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 21ª ed.
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[1] Professor de Direito Penal do CCJ/UFPB, membro do Programa de Pós-
Graduação em Direitos Humanos do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos
do CCHLA e doutor em teoria dogmática do direito pela Faculdade de
Direito do Recife/UFPE
[2] Com a adoção de uma postura garantista, o princípio da obrigatoriedade
da ação penal pública sofreria alguma limitação. Logo, esta obrigatoriedade
vincularia a atuação do órgão ministerial e não seria, propriamente, uma
obrigatoriedade da oferta de um pedido de condenação (denúncia), mas a
obrigatoriedade de manifestação deste órgão ministerial acerca da
ocorrência de fatos suspeitos de enquadramento em condutas típicas
previstas como sujeitas aos procedimentos de ação penal pública. Portanto,
não se poderia exigir do ministério público, atuando com independência nas
suas funções, um posicionamento de acusação imediato, mas a realização de
uma opinio delicti acerca daquilo que lhe é apresentado. O arquivamento, o
pedido de absolvição e a manifestação favorável a realização de novas
diligências probatórias deveriam ser respeitados e vincular, completamente,
a atuação jurisdicional num modelo acusatório perfeito como é o
fundamentado pelo garantismo jurídico.
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