A delimitação do núcleo essencial do direito à privacidade e a necessidade de sua densificação normativa em função do princípio da dignidade da pessoa humana

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A delimitação do núcleo essencial do direito à privacidade e a necessidade
de sua densificação normativa em função do princípio da dignidade da pessoa
humana


The delimitation of essencial core of the right to privacy and the need for
its normative densification due to the principle of human dignity


Resumo: O crescente uso das tecnologias, a despeito de enriquecer a esfera
privada do homem, o torna cada vez mais vulnerável. Sua hipossuficiência
perante o progressivo uso de seus dados, ausentes de qualquer proteção, vem
causando uma forte mitigação do direito à privacidade e, principalmente, de
seu núcleo essencial enquanto sua proteção mínima. Essa proteção coaduna-se
intimamente com o princípio da dignidade da pessoa humana
constitucionalmente estabelecido. Assim, é de mister importância a
delimitação desse núcleo essencial com o intuito não apenas de se
salvaguardar um grau minimo de tutela da privacidade do homem tão exposto
na sociedade de vigilância, mas, principalmente, de se ter garantida a sua
dignidade, aspecto valorativo que o torna fim de toda a legisação de um
Estado Democrático de Direito.

PALAVRAS-CHAVE: direito à privacidade, núcleo essencial, princípio da
dignidade da pessoa humana.


Abstract: The increasing use of technology, despite of enriching the
private sphere of human being, make him more and more vulnerable. His
weakness towards the progressive use of his data, absent of any protection,
has caused an enormous mitigation of the right to privacy, specially of its
essencial core while its minimal protection. This protection is closely
linked with the constitutionally established principle of human dignity.
Thus, it is very important to delimitate this essencial core in order to
safeguard a minimum level of human being's privacy protection who is so
exposed in the surveillance society, but manly to guarantee the human
dignity which is the evaluative aspect of a Democratic State.

KEYWORDS: right to privacy, essencial core, principle of human dignity.

1. Introdução
A pesquisa objetiva examinar o núcleo essencial do direito à privacidade à
luz dos corolários da dignidade da pessoa humana, princípio remodelador das
estruturas normativas do ordenamento jurídico. Não obstante a positivação
de referido princípio na Constituição Brasileira de 1988, torna-se
necessário um aprofundamento para compreender sua relação com os direitos
fundamentais, em especial o direito à privacidade. Com o intento de
clarificar as obscuridades que envolvem o princípio, busca-se,
primeiramente, analisá-lo filosófica e juridicamente. Essas duas
perspectivas de estudo objetivam, respectivamente, fundamentar e incluir a
dignidade humana nas construções normativistas do pós-positivismo. Nessa
perspectiva, admite-se ser a dignidade da pessoa humana o elo entre a
igualdade formal do sujeito que o liberta dos preconceitos e a igualdade
substancial da pessoa, relacional e concretamente considerada, protegendo-a
das vulnerabilidades fáticas.
No que concerne à análise filosófica, será conferida minuciosa atenção às
teorizações do filósofo Immanuel Kant que definiu a dignidade como valor
intrínseco às pessoas humanas, um imperativo categórico. Sustenta-se ser a
filosofia kantiana apta a auxiliar na análise jurídica do tema por
consolidar a autonomia da vontade, faculdade diferenciadora do homem frente
aos outros seres. A partir dessa perspectiva filosófica, será possível
extrair o substrato filosófico dos três colorarios da dignidade humana, a
saber, a igualdade, a liberdade e a solidariedade.
Enquanto parte essencial da pessoa humana, a dignidade é autorreferente e
condição intrínseca da liberdade, pois não existe dignidade sem autonomia.
Alicerçado na perspectiva de que todos os institutos existentes na ordem
jurídica encontram garantia tão somente em face do seu fim de permitir o
desenvolvimento da personalidade humana, defende-se que essa função
promocional deve ser exercida tendo em vista a garantia dos direitos
fundamentais. Daí decorre o fundamento da construção normativa do Estado
Democrático de Direito tida como protetora dos direitos fundamentais. A
existência desses direitos fundamenta-se única e exclusivamente no homem
enquanto fim em si mesmo. Nesse sentido, situa-se o direito à privacidade
enquanto direito fundamental e individual cuja proteção mínima coaduna-se
com a proteção da própria pessoa humana, ápice do ordenamento jurídico.
Após a análise da evolução jurídico-filosófica do conteúdo da dignidade
humana, será buscado na obra Teoria dos Direitos Fundamentais do Professor
Robert Alexy o parâmetro contemporâneo para a análise jurídica do tema,
abordando-se as questões do caráter não absoluto da dignidade humana e do
núcleo essencial dos direitos fundamentais. Essas duas questões servirão de
sustentação ao estudo do direito à privacidade. Apesar de possibilitar a
construção de uma esfera privada mais diversificada, a tecnologia,
paradoxalmente, a torna mais vulnerável a partir do momento em que sua
exposição passa a ser constante. Disso, emerge a necessidade crescente de
um maior fortalecimento da proteção jurídica da privacidade a fim de que o
princípio da dignidade da pessoa humana seja efetivamente concretizado.
Para persecução deste fim, será adotada uma adordagem interdisciplinar,
envolvendo teoria do direito civil e do direito constitucional, tomando-se
por marco teórico a privacidade na sociedade de vigilância, conforme o
pensamento de Stefano Rodotà que, por sua vez, reconstrói, com base no
valores constitucionais, a proteção do direito à privacidade. A abordagem
do autor italiano, ao inserir a privacidade no contexto atual das
sociedades tecnológicas possibilita uma reflexão acerca das restrições a
esse direito individual e da necesssidade de sua proteção mínima propondo,
para tanto, o que denomina de núcleo duro do direito à privacidade que será
analisado, neste trabalho, à luz dos corolários da dignidade humana,
propondo-se uma delimitação do conteúdo de referido direito.

2. Análise filosófica da dignidade humana
Em sua obra "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", publicada em 1785,
o filósofo prussiano Immanuel Kant expõe que a natureza age conforme leis
que descrevem o mundo do ser, ou seja, a realidade fática. Um ser racional,
por outro lado, enquanto dotado de vontade, tem a capacidade de agir
segundo a representação das leis. A vontade, nesse sentido, "é a faculdade
de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação,
reconhece como […] necessário, quer dizer, como bom." (KANT, 2007, p.47,
BA).
Porém, a vontade não obedece necessariamente a razão, ou seja, não é
inteiramente conforme a ela. As ações oriundas de uma vontade não
plenamente conforme à razão são objetivamente necessárias, apesar de
subjetivamente contingentes. Daí, Kant (2007) considerar essa vontade como
"nao absolutamente boa" cuja determinação dá-se na forma de obrigação por
leis objetivas. A razão, na filosofia kantiana, é legisladora e o homem,
diferentemente da natureza, age conforme as leis objetivas que prescrevem
condutas.
A representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma
vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-
se Imperativo. Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever (sollen),
e mostram assim a relação de uma lei objectiva da razão para uma vontade
que segundo a sua constituição subjectiva não é por ela necessariamente
determinada (uma obrigação). (KANT, 2007, p.48, BA 36, 39)

Kant (2007) distingue duas maneiras pelas quais a razão pode comandar a
vontade, dois tipos diferentes de imperativo: o imperativo hipotético que
se serve da razão instrumental e o imperativo categórico que se relaciona
com a razão prática, pois não admite condicionantes, mas cria suas leis a
priori, a despeito de quaisquer objetivos empíricos.
O imperativo categórico, segundo Kant (2007, p. 59, BA 52, 53) é apenas um
único: "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne lei universal", o que significa dizer que o agir deve se
dar de acordo com princípios possíveis de se universalizar sem entrar em
contradição. A razão, para o filósofo, é inata ao homem, ou seja, anterior
à experiência e independente dela. A estrutura da razão, portanto, é a
priori. O imperativo categórico chama-se também imperativo da moralidade
porquanto não se baseia em qualquer condição ou resultado, ordenando
imediatamente determinado comportamento (KANT, 2007, p. 53, BA 43). Daí,
resulta que o imperativo categórico, enquanto lei moral, é um juízo puro ou
a priori, pois não tem fundamento a posteriori (sensível, empírico),
fundando-se tão somente na razão pura prática do homem[1]. Assim, o
imperativo categórico apresenta-se como uma lei que é universalmente válida
para todos os seres racionais. Ainda, não se trata de uma lei natural, que
regula os fenômenos ou objetos da natureza, mas uma lei moral, pois se
impõe à vontade humana e regula a ação dos sujeitos morais.
A compreensão do imperativo categórico presente na filosofia kantiana é de
fundamental importância ao estudo da dignidade humana. Isso porque da
fórmula geral apresentada por Kant deduz-se a seguinte máxima moral: "Age
de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de
qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como
meio" (KANT, 2007, p. 69, BA 66, 67). Para o filósofo, a natureza racional
existe como fim em si e é assim que o homem representa necessariamente a
sua própria existência. Da mesma forma, qualquer outro ser racional
representa a sua existência, em virtude exatamente do mesmo princípio
racional que é válido para ele.
É nessa máxima que se situa a noção de dignidade no pensamento kantiano.
Nesse sentido, ao contrário dos seres irracionais que apresentam valor-meio
e, por isso, são considerados como coisas, os seres racionais chamam-se
pessoas, pois seu valor é a dignidade.
No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa
tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a
coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer
equivalência, compreende uma dignidade. (KANT, 2007, p. 77, BA 77 )

Em razão dessa dignidade, o homem deve tomar sempre as suas máximas do
ponto de vista de si mesmo e, ao mesmo tempo, do ponto de vista de todos os
outros seres racionais como legisladores (os quais por isso também se
chamam pessoas). Dessa forma, ou seja, em virtude da própria legislação que
as pessoas impõem a si mesmas, torna-se possível um mundo de seres
racionais como reino dos fins que se difere do reino da natureza, pois este
age apenas segundo leis de causas eficientes externamente impostas.
Entende-se, portanto, que, a partir da máxima moral trazida por Kant (2007)
segundo a qual o homem é um fim em si mesmo e jamais deve ser transformado
em meio de qualquer ação, tem-se que a legislação vigorante na esfera
social deve ter como finalidade a "realização do valor intrínseco da
dignidade humana" (BODIN de MORAES, 2010a, p.81).
Ademais, certifica-se que a abordagem em termos universais de Kant (2007)
possibilita a compreensão de que a objetificação do outro é também uma auto-
objetificação. Isso porque as ações humanas, conforme o imperativo
categórico, fundamentam-se em máximas universalizáveis sem contradição. A
máxima "objetificar outrem", se universalizada, acarretaria na previsão de
atos atentórios a todos os indivíduos (enquanto partes de uma humanidade
racional). Serão analisados, agora, os três corolários da dignidade humana,
a saber, a igualdade, a liberdade e a solidariedade.

3. A análise jurídico-constitucional da dignidade humana
É possível extrair do pensamento kantiano os três corolários da dignidade
humana: a igualdade, a liberdade e a solidariedade. Verifica-se, na
filosofia kantiana, a inserção do valor igualdade na noção de dignidade
atribuída ao indivíduo, que, pelo simples fato de integrar o gênero humano,
já é detentor de dignidade. Essa qualidade é inerente a todos os homens,
decorrente da própria condição humana, que o torna merecedor de igual
consideração e respeito por parte de seus semelhantes. A dignidade, dessa
forma, é tida como um valor universal e independente de diversidades
socioculturais. Extrai-se, dessa conclusão, que a igualdade constitui um
dos corolários da dignidade. Além disso, é mister compreender a igualdade
sob dois ângulos. Primeiramente, a igualdade é um estado de fato que
pressupõe a inexistência de diferenças. Assim, indivíduos se reúnem em
torno de concepções religiosas, políticas ou éticas comuns, configurando-se
uma variedade de grupos nas sociedades atuais.
Dada essa realidade multicultural, a igualdade enquanto estado de fato
pressupõe que os variados grupos não receberão tratamento discriminatório.
Em outras palavras, o reconhecimento da identidade cultural e o respeito à
especificidade de cada cultura são fundamentais para a proteção da
igualdade nesse primeiro ângulo. Em segundo lugar, a igualdade é um
princípio que não admite desigualdade (BODIN de MORAES, 2010a, p.93).
Entende-se que a diversidade humana se unifica em um ponto que justifica a
aplicação do princípio da igualdade e este elo é a dignidade humana. É ela
que garante o respeito das diferenças tanto nas relações intersubjetivas
quanto na relação indivíduo-Estado. Isso significa que, independentemente
das diferenças, todos são iguais em dignidade e, portanto, a todos são
atribuídos direitos fundamentais.
Outro corolário da dignidade é a liberdade. Uma vez que, no pensamento
kantiano, a vontade se determina somente pelo imperativo categórico, cuja
origem reside na razão pura prática, a moral kantiana é definida como
autônoma: a vontade é fundada na lei moral que a governa e é essa autonomia
a exigência mesma da lei moral ou do imperativo categórico. Todavia, quando
o imperativo ou máxima que governa a ação humana encontra seu fundamento em
um outro, seja ele - educação, instituições, sentimentos, desejo de
felicidade ou prazer - que não a razão pura prática, tem-se, então, a
heteronomia.
"Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro
ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação
universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca essa lei na
natureza de qualquer dos seus objectos, o resultado é então sempre
heteronomia. Não é a vontade que então se dá a lei a si mesma, mas é sim o
objecto que dá a lei à vontade pela sua relação com ela. Esta relação, quer
assente na inclinação quer em representações da razão, só pode tornar
possíveis imperativos hipotéticos: devo fazer alguma coisa porque quero
qualquer outra coisa. Ao contrário, o imperativo moral, e, portanto,
categórico, diz: devo agir desta ou daquela maneira, mesmo que não quisesse
outra coisa (KANT, 2007, //BA87,88).

A heteronomia da vontade surge como fonte de todos os princípios ilegítimos
da moralidade, pois quando o agente não se desprende das necessidades do
mundo sensível, surge, em lugar da racionalidade, a necessidade como causa
da ação, não se podendo falar em regras universalizáveis a partir das
peculiares condições de cada um.
Por outro lado, na medida em que a vontade autônoma determina a ação
guiando-se apenas pela lei moral, que não se funda em nada de empírico ou
sensível, o sujeito moral afirma-se como liberdade, isto é, como causa
livre capaz de autodeterminar sua ação, acima de todas as determinações
sensíveis e naturais.
O terceiro corolário da dignidade humana é a solidariedade. Enquanto o
século XIX representa "o século do triunfo, do individualismo, da explosão
da confiança e orgiuho na potência do indivíduo, em sua criatividade
intelectual [...]" (BODIN de MORAES, 2010b, p.237), o século XX é marcado
pela consideração de uma nova perspectiva das relações humanas. Em resposta
às trágicas experiências vividas durante a Segunda Guerra Mndial, a
solidariedade passa a ser a base de um novo tipo de relacionamento entre as
pessoas. No sistema jurídico brasileiro, a mudança de perspectiva se
verificou com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que, em seu
art. 3º, III, estabelece como fundamentos da República Federativa do Brasil
a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A referência à
solidariedade no texto constitucional introduz em nosso ordenamento
jurídico um princípio jurídico inovador capaz de fundamentar tanto a
interpretação e a aplicação do direito, quanto a elaboração legislativa e a
execução de políticas públicas (BODIN de MORAES, 2010b, p.239).
A inclusão da solidariedade como corolário da dignidade humana parte do
pressuposto de que a existência humana é inter-relacional. Nesse sentido,
concebe-se a solidariedade sob duas perspectivas: (a) a solidariedade
fática e (b) a solidariedade enquanto valor. A "solidariedade fática"
(BODIN de MORAES, 2010b) está atrelada à necessidade humana de
coexistência. Dessa necessidade, percebe-se o quão diversificada é a
existência humana enquanto exercício de autonomia. Tem-se, então, uma
desigualdade existencial sobre a qual se insere o conceito de solidariedade
fática trazido por Bodin (2010b, p.241).
Somente se pode pensar o indivíduo como inserido na sociedade, isto é, como
parte de um tecido social mais ou menos coeso em que a interdependência é a
regra e, portanto, a abertura em direção ao outro, uma necessidade. Ser
solidário, assim, é partilhar, ao menos, uma mesma época,e, neste sentido,
uma mesma história.(BODIN de MORAES, 2010b, p.241)

A solidariedade enquanto valor está atrelada à "consciência racional dos
interesses em comum" (BODIN de MORAES, 2010b, p.241). Entende-se que essa
perspectiva da solidariedade fundamenta-se na obrigação moral trazida por
Kant em seu imperativo categórico, segundo o qual a ação humana deve se
basear em máximas universáveis. Ora, trata-se, em termos simples, da
chamada Regra de Prata segundo a qual "não faças aos outros o que não se
deseja que lhe seja feito" (apud BODIN de MORAES, 2010b, p.241). Assim, a
solidariedade enquanto valor, diferentemente da solidariedade fática,
relaciona-se com a autonomia como faculdade formal diferenciadora do homem
frente aos demais seres (aspecto levantado na obra de Kant conforme exposto
no segundo tópico). Em outras palavras, a solidariedade enquanto valor
funda-se na igualdade ontológica da existência humana.
O destaque conferido aos corolários da dignidade humana justifica-se na
intenção do trabalho de delimitar o núcleo essencial do direito à
privacidade tendo como parâmetros justamente a igualdade, a liberdade e a
solidariedade. A análise específica da relação entre o núcleo essencial do
direito à privacidade e o princípio da dignidade dar-se-á mais adiante
neste artigo. Por ora, é importante compreender que, enquanto princípios,
os corolários da dignidade humana são ponderados no caso concreto, variando-
se, assim, o grau de proteção das posições jurídicas inseridas no núcleo
essencial do direito à privacidade.
O conteúdo da dignidade humana, portanto, não é uma criação constitucional,
antes a sua função é garanti-la através dos direitos, liberdades e
garantias. O direito é invocado para garantir e promover os atributos
intrínsecos da pessoa. Isso significa dizer que, tanto o reconhecimento
quanto a proteção da dignidade humana se darão essencialmente na esfera do
Direito.
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira na história do
constitucionalismo pátrio a prever um título dedicado aos princípios
fundamentais, incluindo nele a dignidade humana[2]. No artigo 1º, III da
CF/88, encontra-se a dignidade humana como um dos fundamentos da República
Federativa do Brasil. Não obstante sua positivação, não raras às vezes,
surgem dúvidas acerca da proteção da dignidade, isto é, da correta
ponderação dos seus corolários que venha a considerar o ser humano em sua
integralidade.
Sabendo disso, o papel dos juristas é essencial para clarear o conceito de
dignidade humana de suas obscuridades e entender como ela se densifica. Os
juristas são chamados a fazer escolhas na construção de significados e são,
igualmente, responsáveis pela conseqüências sociais e distributivas que
essas escolhas podem provocar (MARINI, 2005).
Como se percebe da menção acima ao texto constitucional, a dignidade
humana, em nosso ordenamento jurídico, é uma norma constitucional. Nesse
sentido, sabe-se que toda norma jurídica ou é uma regra ou é um
princípio[3]. Contudo, a dignidade humana apresenta uma peculiaridade em
sua abordagem, manifestando-se ora como regra, ora como princípio. Essa
dupla-dimensão da dignidade humana conduz à impressão de a mesma apresentar
um caráter absoluto. O conteúdo da regra da dignidade humana é determinado
conforme a relação de precedência do princípio da dignidade humana em face
de outros princípios. Essa regra, considerando seu caráter definitivo, não
está sujeita a limitações fáticas nem jurídicas e, por isso, é absoluta. O
princípio da dignidade humana, por outro lado, está sujeito à satisfação em
diferentes medidas, o que impossibilita considerá-lo como absoluto[4]
(ALEXY, 2015, p. (). O fato de que, sob determinadas condições, há razões
jurídico-constitucionais praticamente inafastáveis para uma relação de
precedência em favor da dignidade humana não justifica uma natureza
absoluta desse princípio (ALEXY, 2015).
Os corolários da dignidade humana assumem importância no que concerne à
densificação do conteúdo em dignidade de um direito fundamental no caso
concreto. Essa densificação dar-se-á a partir da ponderação dos princípios
da igualdade, da liberdade e da solidariedade. Verifica-se, assim, como a
dignidade humana vem à tona no caso concreto. (BODIN de MORAES, 2010a).
Tem-se, portanto, que o princípio da dignidade humana não é absoluto,
conforme exposição baseada na obra de Robert Alexy. Assim, a dignidade
humana enquanto princípio (mandamento de otimização) será sempre realizada
parcialmente à luz das possibilidades fáticas e jurídicas. Enquanto
conteúdo de um direito fundamental, a dignidade humana terá como parâmetros
seus corolários (a igualdade, a liberdade e a solidariedade) que, por sua
vez, serão ponderados prevalecendo aquele que melhor realizar o conteúdo
mencionado. Esse conteúdo confunde-se com o núcleo essencial[5] dos
direitos fundamentais, incluindo neles o direito à privacidade, enquanto
direito individual.

4. A privacidade na obra de Stefano Rodotà
Da obra "A vida na sociedade de vigilância" do professor italiano Stefano
Rodotà (2008), é possível extrair quatro aspectos que são centrais em seus
estudos sobre a privacidade. Inseridos no paradigma da atual sociedade de
informação, tem-se que o primeiro é a conceituação de privacidade levantada
pelo autor a partir do entendimento da Corte Constitucional Alemã. Nesse
aspecto, também inclui-se a questão do caráter extrapatrimonial do direito
à privacidade. O segundo diz respeito aos paradoxos da privacidade. O
terceiro, por sua vez, levanta a questão do direito de acesso. Já o quarto
aspecto chama a atenção à questão da ampliação da noção de esfera privada e
a sua relação com a privacidade.
A inserção de novos aspectos de liberdade no conceito de privacidade
caracterizou suas reinvenções ao longo do século. A definição histórica
feita da privacidade como "o direito de ser deixado em paz" (WARREN e
BRANDEIS apud RODOTÀ, 2008, p.15) apresenta um caráter fortemente
individualista[6], vinculando a privacidade à proteção da intimidade. Passa-
se da privacidade como "a proteção de escolhas de vida contra qualquer
forma de controle público e estigma social" (FRIEDMAN apud RODOTÀ, 2008,
p.15), até a definição segundo a qual a privacidade é a "reivindicação dos
limites que protegem o direito de cada indivíduo a não ser simplificado,
objetivado, e avaliado fora de contexto" (ROSEN apud RODOTÀ, 2008, p.15).
Essas duas úlimas conceituações são as que mais se aproximam da definição
trazida por Rodotà (2008), segundo a qual o direito à privacidade é
entendido como "o direito de manter o controle sobre suas próprias
informações e de determinar a maneira de construir sua própria esfera
individual" (RODOTÀ, 2008, p.15). O autor, portanto, relaciona o conceito
de privacidade à autodeterminação informativa, termo cunhado pela Corte
Constitucional Alemã em decisão sobre a Lei do Censo em 1983.[7]
O autor dedica seus estudos ao direito à proteção de dados trazido pela
Carta de Direitos Fundamentais da Comunidade Europeia em 2000 que
reconheceu o caráter autônomo desse direito, destacando a sua relação com a
proteção da vida privada dos indivíduos, mas também com a própria liberdade
dos mesmos. Esse reconhecimento é importante por dois motivos. Enquanto a
proteção da esfera privada se dá de modo negativo e é, por isso, estática,
pois visa a impedir a interferência na vida privada do indivíduo, a
proteção dos dados é dinâmica, "que segue o dado em todos os seus
movimentos". (RODOTÀ, 2008, p.17).
Porém, diante das exigências de segurança interna e internacional, além dos
interesses de mercado, a proteção dos dados encontra-se em uma frágil e
desgastante situação, sendo, muitas vezes, utilizados para fins negociais.
Essa fragilidade é problemática, principalmente quando se entende que a "a
proteção de dados é uma expressão de liberdade e dignidade pessoais e, como
tal, não se deve tolerar que um dado seja usado de modo a transformar um
indivíduo em objeto sob vigilância constante". (RODOTÀ, 2008, p.19). Assim,
o autor situa o direito à proteção de dados na esfera dos direitos de
personalidade, não se enquadrando, então, como um direito de propriedade. O
direito à proteção de dados visa a considerar o indivíduo não somente como
dono de dados, mas como ser autônomo que se manifesta livremente,
construindo, portanto, sua personalidade. Isso signifca que, dedicar os
dados pessoais para fins negociais é uma prática que mitiga o próprio
direito à proteção de dados e, portanto, a dignidade da pessoa natural
cujos dados foram coletados.
O segundo aspecto levantado na obra do autor italiano refere-se à questão
dos paradoxos da privacidade. O primeiro paradoxo encontra-se na relação
tecnologia-privacidade. A tecnologia, a despeito de possibilitar a
construção de uma esfera privada mais diversificada, paradoxalmente, a
torna mais vulnerável a partir do momento em que sua exposição passa a ser
constante (RODOTÀ, 2008, p.95). O segundo paradoxo apresenta uma forte
vinculação com o pluralismo ideológico e político característico de uma
democracia. Assim, as opiniões políticas e sindicais são consideradas como
dados sensíveis que requerem "rigorosas condições de circulação" (RODOTÀ,
2008, 96). Esses dados, portanto, devem estar protegidos da coleta que vise
a práticas discriminatórias que acabem por mitigar a própria participação
dos indivíduos na esfera pública. Essa proteção acentuada tem o intuito,
justamente, de garantir a plena participação dos indivíduos no espaço
público, ou seja, a manifestação autônoma de sua personalidade em público,
enquanto aspecto fundamental de uma democracia. O terceiro paradoxo
consiste na capacidade atribuída aos indivíduos de acompanhar as
informações pessoais "mesmo quando se tornaram objeto da disponibilidade de
um outro sujeito" (RODOTÀ, 2008, p.97). Chama-se a isso de direito de
acesso. Ele, como se verá, terá sua importância substituída pela
necessidade do consentimento do interessado.
Na análise do quarto e último aspecto, é importante compreender como a
ampliação progressiva da noção de esfera privada influenciou diretamente a
mais recente noção de privacidade.
Paralelamente houve uma ampliação progressiva da noção de esfera privada
que, quantitativamente, compreende agora situações e interesses antes
excluídos de proteção jurídica específica, e que, qualitativamente, se
projeta muito além da mera identificação de um sujeito e seus
comportamentos 'privados'. Desta forma pode-se definir a esfera privada
como aquele conjunto de ações, comportamentos, opiniões, preferências,
informações pessoais, sobre os quais o interessado pretende manter um
controle exclusivo. Em consequência, a privacidade pode ser identificada
com 'a tutela das escolhas de vida contra toda forma de controle público e
de estigmatização social', em um quadro caracterizado justamente pela
'liberdade das escolhas existenciais'. (RODOTÀ, 2008, p.92)

O conceito de privacidade acompanha, portanto, a ampliação da noção de
esfera privada. A privacidade passa a compreender um número maior de
situações juridicamente relevantes. Essas, por sua vez, apresentam um
potencial de comunicação verbal e não-verbal, ou seja, são traduzíveis em
informações. Assim, o conceito de privacidade passa a incluir informações
pessoais as quais não se atribui necessariamente segredo.
[…] pode-se dizer que hoje a sequência quantitativamente mais relevante é
'pessoa-informação-circulação-controle', e não mais apenas 'pessoa-
informação-sigilo' (...) O titular do direito à privacidade pode exigir
formas de 'circulação controlada', não somente interromper o fluxo das
informações que lhe digam respeito. (RODOTÀ, 2009, p.93)

Diferentemente de publicidade e sigilo, publicidade e controle não são
termos contraditórios. É a partir da noção de controle que se pode
vislumbrar uma tutela efetiva da privacidade no paradigma da sociedade de
informação. A autonomia em relação aos dados exercida através do controle
efetivo evita a estigmatização social e a criação de perfis padronizados
com o intuito discriminatório, segregando determinados grupos em razão de
padrões comportamentais que não são seguidos por eles.
Ao mesmo tempo, dilatada para além da necessidade de intimidade e,
portanto, de informações relacionadas à esfera íntima da pessoa (protegidas
de qualquer forma de circulação), a noção de privacidade abrange,
atualmente, categorias de informações capazes de circulação no meio social.
Da relação entre o primeiro paradoxo da privacidade já apresentado e a
atual noção ampliada de privacidade, emerge a necessidade de sua proteção,
não mais a entendendo apenas como um direito individual de acesso (certas
informações deveriam ser de conhecimento apenas de seu interessado e a
privacidade atuaria como instrumento de limitação da circulação dessas
informações).
Em superação ao tradicional quadro individualista da privacidade, a
dimensão coletiva tem em vista o indivíduo pertencente, necessariamente, a
um determinado grupo social. A privacidade, então, projeta-se sobre a
coletividade. Indispensável, então, ponderar sobre a dimensão coletiva que
está ligada tanto às consequências sociais quanto ás consequências para o
próprio interessado. A circulação de determinadas categorias de informações
pessoais e de informações coletadas para finalidades específicas devem ser
analisadas considerando-se valores e interesses diversos daqueles puramente
proprietários.
Porém, é fato que, em determinados contextos não é possível se falar de
liberdade de escolha do interessado em consentir ou não com a circulação de
determinadas informações. É o caso, por exemplo, "de todos os serviços
obtidos através das novas mídias interativas, cujos gestores, por evidentes
razões de ordem econômica, estão prontos a exercer forte pressão sobre os
usuários para que estes autorizem a elaboração (e a eventual transmissão a
terceiros) de 'perfis' pessoais ou familiares baseados nas informações
coletadas por ocasião do fornecimento dos serviços" (RODOTÀ, 2009, p.76).
Admite-se, então, que tutelar a privacidade a partir do controle sobre os
gestores dos dados ou do direito de escolha das informações a serem
colocadas em circulação não se coaduna com as atuais relações de poder
existentes a partir do paradigma da sociedade de vigilância.

A relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o núcleo
essencial do direito à privacidade
Em primeiro lugar e a título de esclarecimento, é preciso que se estabeleça
qual a teoria adotada neste trabalho no concernente ao conceito de núcleo
essencial (conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Nesse âmbito,
suscitam-se, na obra de Robert Alexy, tomada como marco teórico, neste
trabalho, duas teorias: a teoria absoluta e a teoria relativa sobre o
núcleo essencial dos direitos fundamentais.
Para a teoria relativa, "o conteúdo essencial é aquilo que resta após o
sopesamento" (ALEXY, 2015, p.297). Nesse sentido, a garantia do conteúdo
essencial reduze-se à máxima da proporcionalidade. A teoria absoluta, ao
seu turno, admite que "cada direito fundamental tem um núcleo, no qual não
é possível intervir e hipótese alguma" (ALEXY, 2015, p.298). Trata-se,
então,de uma esfera permanente de direito fundamental que coloca uma
barreira intransponível à atividade legislativa.
É mister ressaltar que ambas as teorias apresentam fragilidades. No caso da
teoria absoluta, ao admitir uma noção material do núcleo essencial,
impassível de redução legislativa, pode transformar-se, em alguns casos, em
uma fórmula vazia, considerando a dificuldade de se estabelecer a piori e
in abstracto a existência desse conteúdo essencial. Essa difícil
identificação pode acarretar o sacrifício do objeto que pretende proteger
(MENDES, COELHO, BRANCO, 2000)
A teoria relativa, por seu turno, pode conferir uma flexibilidade exagerada
ao substrato dos direitos fundamentais, acabando por descaracterizá-los
como construções normativas de um Estado Democrático de Direito que tem o
princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento desse arcabouço
normativo.
Diante dessas dificuldades, surge a necessidade de se estabelecer uma
fórmula conciliadora, nesse sentido:
"propõe Hesse uma fórmula conciliadora, que reconhece no princípio da
proporcionalidade uma proteção contra as limitações arbitrárias ou
desarrazoadas (teoria relativa), mas também contra a lesão ao núcleo
essencial dos direitos fundamentais. É que, observa Hesse, a
proporcionalidade não há de ser interpretada em sentido meramente
econômico, de adequação da medida limitadora ao fim perseguido, devendo
também cuidar da harmonização dessa finalidade com o direito afetado pela
medida."( MENDES, COELHO, BRANCO, 2000, p.245)


Torna-se prudente, então, a proposta de uma teoria cuja elaboração
contemple critérios da teoria relativa e critérios da teoria absoluta, ou
seja, uma teoria mista sobre o núcleo essencial dos direitos fundamentais.
"Si se quiere combinar ambas teorias, sería necesario presuponer la
existencia de dos diferentes normas de derecho fundamental. (…) El punto de
partida estaria em un núcleo absoluto, estricto, de los derechos
fundamentales, que podría ser restringido por el Estado em ninguna
circunstancia. Este núcleo estaria rodeado por una corona em la que las
intervenciones estatales serían admisibles, siempre y cuando respetaran el
princípio de proporcionalidad em sentido amplio." (BOROWSKI, 2003, p.101)

No concernente ao direito à privacidade, objeto de estudo deste trabalho, a
teoria mista melhor se coaduna com a proposta do mesmo. Admite-se que
referido direito, enquanto direito fundamental, possui um núcleo essencial,
constituido por posições jurídicas mínimas envoltas por um campo passível
de restrições desde que se e respeite o sopesamento dos corolários da
dignidade humana, bem como outras relações de interesses envolvidos.
Os procedimentos de tutela da privacidade, portanto, baseiam-se em diversos
critérios de relação de interesses. A consideração do contexto e das
finalidades para as quais uma informação é utilizada orientam as regras
sobre a sua circulação. A despeito do "acentuado relativismo das regras" é
possível traçar tendências gerais quanto à proteção da privacidade.
(RODOTÀ, 2009, p.77-p.78). Daí, emerge a delimitação do núcleo essencial do
direito à privacidade no qual são construídos parâmetros para uma proteção
mínima do direito em questão, dada a sua crescente vulnerabilidade na
sociedade da informação[8].Essa proteção não visa a proteger um grau mínimo
estático da privacidade. O que se busca é uma salvaguarda mínima do direito
em questão, mas que também viabilize o desenvolvimento e a inclusão de
novas posições jurídicas, conforme será analisado neste trabalho.
Procura-se individuar o 'núcleo duro' da privacidade em torno dos dados
relativos a opiniões políticas, sindicais ou de qualquer outro gênero, fé
religiosa, saúde, hábitos sexuais. Ao mesmo tempo, tende-se a liberalizar a
circulação de informações pessoais de conteúdo econômico. " (RODOTÀ, 2009,
p.78)

O núcleo duro trazido por Rodotà evidencia que, além da tutela da
privacidade, o que se busca é, precipuamente, a proteção dos corolários da
dignidade humana. Primeiramente, a inclusão das informações que foram
citadas no núcleo essencial do direito à privacidade leva em conta sua
potencial inclinação para usos com finalidades discriminatórias, bem como
sua relevância às escolhas existenciais dos indivíduos. A proteção
conferida àquele catálogo de informações não deriva apenas da necessidade
de sigilo, mas, principalmente, da proteção da igualdade. Isso porque, tal
proteção surge como forma de evitar atos discriminatórios entre os
cidadãos. Em segundo lugar, as informações incluídas no núcleo duro citado
coadunam com a liberdade, uma vez que representam as escolhas existenciais
dos indivíduos e, portanto, manifestações da construção de sua
personalidade. É a partir da escolhas livres e conscientes que os
indivíduos manifestam suas desigualdades existenciais (aspecto mencionado
no item 3 deste trabalho). A ausência de tutela das opiniões políticas,
sindicais, religiosas, além dos hábitos sexuais, poderia ocasionar um
ambiente de insegurança comportamental aos indivíduos. Isso significa dizer
que, em nenhum momento, ficaria suficientemente claro se a livre
manifestação de sua personalidade poderia ensejar ou não atos
discriminatórios. Em razão dessa incerteza, seria bem provável que não
ocorresse a incidência em posições ou comportamentos que, de certa forma,
fossem desviantes. Ter-se-iam, portanto, manifestações heterônomas de
vontade dos indivíduos (e a consequente mitigação da liberdade),
consubstanciadas nas limitações externas e no controle comportamental
incisivo com relação à circulação e ao uso das informações.
Em terceiro lugar, a íntima relação do núcleo duro do direito à privacidade
com a solidariedade se verifica em suas duas perspectivas - fática e
valorativa -, já mencionadas no item 3 deste trabalho. As livres
manifestações de escolhas dos indivíduos e a consequente construção
autônoma de sua personalidade ensejam a elaboração de concepções diversas
em todas as áreas do agir humano, inclusive na religão e nos hábitos
sexuais. Esse caráter diversificado da existência humana decorre de sua
necessidade de coexistência, ou seja, de seu caráter relacional. Assim, a
proteção dessas escolhas no núcleo duro do direito à privacidade
consubstancia-se não apenas na coexistência humana, mas, principalmente,
nas diversificadas manifestações de vontade que dela decorrem. Daí a
relação do núcleo duro do direito em análise com a solidariedade fática.
Com relação à solidariedade enquanto valor, seu fundamento está na
autonomia como faculdade formal diferenciadora do homem frente aos demais
seres, ou seja, na igualdade ontológica da existência humana. A despeito
das mais diversas manifestações existenciais humanas, seu ponto em comum
está nessa faculdade que torna possível a construção autônoma da
personalidade com suas livres manifestações de vontade. Nesse sentido, a
proteção do núcleo duro do direito à privacidade funda-se, justamente,
nessa igualdade ontológica, impossibilitando proteções discriminatórias. A
proteção das posições jurídicas incluídas no núcleo duro do direito à
privacidade se verifica a todos os indivíduos, inclusive por força do
princípio da igualdade formal, garantido na primeira parte do artigo 5º da
Constituição Federal de 1988 ("Todos são iguais perante a lei"). A despeito
dessa igualdade formal de tutela do núcleo duro do direito à privacidade, o
grau de proteção das posições jurídicas nele inseridas é variável caso a
caso. Isso porque, como já se admitiu, os corolários da dignidade humana –
intimamente relacionados com o núcleo duro em questão – são ponderáveis no
caso concreto. Assim, viabiliza-se tanto o desenvolvimento das posições já
formalizadas quanto a inclusão de novas posições no núcleo, sempre à luz do
caso concreto e em respeito à máxima da proporcionalidade, perspectiva que
se coaduna com a teoria relativa do núcleo essencial dos direitos
fundamentais.

6. Conclusão
A delimitação do núcleo essencial - tendo como norte a obra de Stefano
Rodotà - do direito à privacidade não tem o escopo de esgotar todas as
posições jurídicas que possam vir a ser incluídas em tão núcleo. Ademais, é
imprescindível que se compreenda o núcleo essencial do direito à
privacidade à luz das circunstâncias fáticas que fundamentam a sua
proteção. Não obstante esse caráter sócio-cultural, o núcleo essencial do
direito à privacidade demanda uma delimitação normativa em observância aos
corolários da dignidade humana.
Verifica-se, no mundo dos fatos, a necessidade de um controle efetivo dos
dados que possibilite a salvaguarda do agir autônomo, ou seja, da livre
manifestação da personalidade, enquanto corolário da dignidade humana. Sem
esse controle, tem-se a mitigação da própria dignidade humana enquanto
conteúdo que se confunde com o núcleo duro do direito à privacidade.
Como se salientou, o conteúdo da dignidade humana não é uma criação
constitucional, já que a sua proteção se dá mediante a salvaguarda de
direitos e garantias. Nesse ponto, insere-se a importância da densificação
normativa do núcleo essencial do direito à privacidade para que se proteja
uma esfera mínima de posições jurídicas perante a exposição dos dados
pessoais em uma sociedade da informação que coloca a própria pessoa em
situação de vulnerabilidade. Tem-se, portanto, um núcleo essencial do
direito à privacidade capaz de tutelar posições jurídicas mínimas, mas que
também se encontra sujeito a ampliações de seus limites em observância às
necessidades de cada tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros
Editores Ltda, 2015.

BODIN de MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da pessoa humana.
In: BODIN de MORAES, Maria Celina (org.). Na Medida da Pessoa humana:
Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010,
p.71.

BODIN de MORAES, Maria Celina. O princípio da solidariedade. In: BODIN de
MORAES, Maria Celina (org.). Na Medida da Pessoa humana: Estudos de direito
civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.237.

BOROWSKI, Martin. La estructura de los derechos fundamentales. Trad. Carlos
Bernal Pulido. Bogotá: Universidade Externado de Colômbia, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.Ática, 2000.

GOUVEIA, Luis Manuel Borges. Sociedade da Informação: Notas de contribuição
para uma definição operacional. Página consultada a 24 de abril de 2016,
disponível em: http://homepage.ufp.pt/lmbg/reserva/lbg_socinformacao04.pdf.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições
70, 2007.

MARINI, Giovanni. La giuridificazione della persona.Ideologie e tecniche
nei diritti della personalità. In: Il diritto privato nella società
moderna. Seminario in onore di S.Rodotà, a cura di Guido Alpa e Vincenzo
Roppo, Napoli: Jovene Editore, 2005, p.375 a 419.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília:
Brasília Jurídica, 2000.

RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: A privacidade hoje. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008.





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[1] Conforme leciona Marilena Chauí, Kant diferencia a razão pura
teórica da razão pura prática. Ambas são formalmente universais, ou seja,
são universais as formas da atividade racional do conhecimento e da ação. A
diferença entre ambas situa-se em seus objetos. Enquanto a razão pura
teórica conhece uma realidade que opera conforme leis de causa e efeito e é
externa a nós, a razão pura prática cria sua própria realidade. Assim, o
reino da natureza, conhecido pela razão pura teórica, opera conforme a
necessidade (causa e efeito), ao passo que, no reino da práxis (dos fins),
as ações são realizadas por finalidade e liberdade. Entende-se, portanto,
que a razão pura prática nada mais é que a liberdade como instauração de
fins éticos. (CHAUÍ, 2000, p.443)

[2] Embora sejam encontradas algumas manifestações constitucionais
destinadas a proteger a pessoa humana, tal proteção, antes de 1988, era
restrita à defesa da liberdade individual, e, meramente formal. Convém
trazer a título de exemplo a edição do Ato Institucional nº. 5, no ano de
1968, época da ditadura militar que, ao fundamentar a defesa do regime
institucionalizado, dispôs ser o mesmo baseado na liberdade e no respeito à
dignidade da pessoa humana. Observa-se que a proteção oferecida pelas
Constituições anteriores à de 1988 era estritamente formal. Apesar de ser
possível a dedução de certa proteção da pessoa humana dos textos
constitucionais mais antigos que tutelavam as liberdades fundamentais,
estas se vinculavam à liberdade de contratar e de exercer as faculdades do
direito de propriedade sem interferência do Estado. Não havia uma real
proteção da pessoa e dos valores que lhe são indispensáveis, posto que a
preocupação consistia em fixar limites à intervenção do Estado tendo por
base a consagração das liberdades do homem. A expressão liberdade estava
profundamente vinculada à ideia de um espaço não violável pelo Estado
(RAMOS, 1998) – ideia de abstenção que como tal não comportava a noção de
promoção de um espaço onde o homem pudesse desenvolver de forma autônoma
sua personalidade.
[3] Princípios são mandamentos de otimização, ou seja, podem ser
satisfeito em graus variados conforme as possibilidades fáticas e
jurídicas. Já as regras são determinações dentro do que é fático e
juridicamente possível. Uma vez válidas, elas são ou não satisfeitas, não
havendo satisfação em grau como ocorre nos princípios.(ALEXY, 2015)
[4] Princípios absolutos são extremamente fortes, ou seja, não cedem em
favor de outros em hipótese alguma. (ALEXY, 2015, p.111)
[5] O autor Stefano Rodotà, ao abordar o núcleo essencial do direito à
privacidade, utiliza a expressão "núcleo duro". Entende-se ser tal
expressão um sinônimo de "núcleo essencial".
[6] É importante compreender as reinvenções históricas pelas quais
passou a definição de privacidade, pois acaba por evidenciar a atual
necessidade de se dilatar esse conceito para além de sua dimensão
essencialmente individualista. O nascimento do direito à privacidade
apresenta-se como um privilégio da burguesia (pós revolução industrial e
superação do modelo feudal de organização social) que possuía condições
materiais suficientes para a satisfação de sua necessidade de intimidade.
Assim, o "direito a ser deixado só de Warren e Brandeis, apresentado acima,
assume um significado fortemente individualista. (RODOTÀ, 2008, p.27)
[7] Ao decidir acerca das Reclamações Constitucionais referentes à Lei
do Censo de 1983, o Tribunal Constitucional Federal Alemão entendeu que
quem não consegue determinar com segurança quais são as informações
conhecidas sobre sua pessoa em certas áreas do meio social e quem não
consegue avaliar com precisão quais são os possíveis parceiros de
comunicação que terão acesso a essas informações, pode ter sua liberdade de
planejar ou decidir com autodeterminação inibida. Nesse sentido, a Corte
entende que, diante das modernas tecnologias, a autodeterminação individual
pressupõe que ao indivíduo garante-se a liberdade de decidir sobre quais
informações serão ou não omitidas, bem como a possibilidade de se comportar
conforme tal decisão. (MARTINS, 2005, p.237)
[8] Adota-se, aqui, o conceito de "sociedade da informação" trazido Luis
Manuel Borges Gouveia, segundo o qual, "a sociedade de informação está
baseada nas tecnologias de informação e comunicação que envolvem a
aquisição, o armazenamento, o processamento e a distribuição da informação
por meios electrónicos, como a rádio, a televisão, telefone e computadores,
entre outros. Estas tecnologias não transformam a sociedade por si só, mas
são utilizadas pelas pessoas em seus contextos sociais, económicos e
políticos, criando uma nova comunidade local e global: a Sociedade da
Informação". (GOUVEIA, 2004, p.1)
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