A DEMOCRACIA E O BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE DO DIREITO INTERNACIONAL NA AMÉRICA LATINA

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A DEMOCRACIA E O BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE DO DIREITO INTERNACIONAL NA AMÉRICA LATINA1 Pedro Muniz Pinto Sloboda2 e Guilherme de Jesus France3. Resumo O presente artigo propõe discutir a importância da democracia, como valor fundamental na América Latina. A partir da existência de diversas cláusulas democráticas nas organizações presentes na região, analisa-se a existência de um conjunto de normas que resguardam esse valor fundamental e que criam uma estrutura institucional para preservá-lo, conformando, assim, o bloco de constitucionalidade do Direito Internacional na América Latina, por meio de uma rede constitucional interinstitucional. Palavras-chave: bloco de constitucionalidade latino-americano; democracia; rede constitucional interinstitucional.

Abstract This paper aims at discussing the importance of democracy as a fundamental value of Latin America. Taking into consideration the democratic clauses of the regional organisations, it is analysed the set of norms that preserves this fundamental value and that create the institutional framework to protect it. This is how the Latin American constitutional block of International Law is constituted, through a constitutional interconnection of institutions. Keywords: Latin American constitutional block; democracy; constitutional networking of institutions. 1

Referência: SLOBODA, Pedro Muniz Pinto; FRANCE, Guilherme de Jesus. A Democracia e o Bloco de Constitucionalidade do Direito Internacional na América Latina. In: Ana Cristina Paulo Pereira; Wagner Menezes. (Org.). A Democracia e o Bloco de Constitucionalidade do Direito Internacional na América Latina. 1ed.Belo Horizonte: Arraes Editora, 2015, v. , p. 535-546. 2 Professor de Direito Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto de Desenvolvimento e Estudos de Governo (IDEG). Especialista em Direito Internacional pelo Centro de Direito Internacional (CEDIN). Mestrando em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 3 Mestrando em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ).

1. INTRODUÇÃO

Existe um bloco de constitucionalidade no Direito Internacional Geral 4. Ele é formado por normas que asseguram direitos fundamentais da sociedade de Estados e que compõem a estrutura institucional necessária para assegurar a eficácia desse direito material, tal como um bloco de constitucionalidade dos direitos domésticos, cada vez mais abertos ao Direito Internacional. O bloco de constitucionalidade não se resume ao texto formal elaborado por Assembleia Constituinte, mas inclui um conjunto de normas que deve ser incluído à constituição, em função de sua materialidade constitucional. O Reino Unido, por exemplo, não conta com texto constitucional único, o que não significa que não possua constituição. Em verdade, a constituição britânica é composta por normas escritas, por decisões judiciais e por princípios jurídicos. As normas constitucionais são caracterizadas por seus aspectos materiais, não apenas formais. Um conjunto de normas que protege direitos fundamentais e regulamenta um sistema político, mesmo que não esteja organizado em um documento único, criado por uma Assembleia constituinte, pode ser caracterizado como uma constituição5. O eixo central do bloco de constitucionalidade do Direito Internacional Geral é a Carta da ONU, cujas normas possuem hierarquia superior e vinculam terceiros Estados. Afinal, o artigo 103 da Carta prevê a superioridade das obrigações dela decorrentes, em detrimento de outras decorrentes de outros tratados internacionais.6 Ainda, o art.2 (6) estabelece que a Carta pode criar obrigações para Estados não-membros7. A esse eixo 4

SLOBODA, Pedro Muniz Pinto; TAVARES Sérgio Maia. Direito Interno e Direito Internacional: Integração Sistemática. In: Wagner Menezes; Clodoaldo Silva da Anunciação; Gustavo Menezes Vieira. (Org.). Direito Internacional em Expansão. 1ed.Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014, v. III, p. 504-514. 5 TOMUSCHAT, Christian. Obligations arising for states without or against their will. Recueil des cours de l´Académie de Droit International de la Haye, Volume 241, IV, 1993, p. 217. 6 Carta da ONU, art. 103: “No caso de conflito entre as obrigações dos Membros das Nações Unidas, em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta.” 7 Carta da ONU, art. 2 (6): “A Organização fará com que os Estados que não são Membros das Nações Unidas ajam de acordo com esses Princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais.”

principal, agregam-se outras normas de natureza constitucional, como as normas de jus cogens8 e as normas fundamentais, que criam obrigações erga omnes, devidas à comunidade internacional como um todo, independentemente do consentimento dos Estados. Acontece que a sociedade internacional é descentralizada, e assim também o direito que nela opera. Dessa forma, cada tratado fundador de organização internacional é constitutivo de uma comunidade jurídica própria. Esses tratados resguardam valores essenciais a essas comunidades e asseguram o seu respeito por meio de sistemas de governança, que incluem instituições legislativas, executivas e judiciárias. Nesse contexto, a América Latina apresenta alguns valores fundamentais resguardados por normas constitucionais, entre eles, a democracia. O objetivo do presente estudo é analisar esse bloco de constitucionalidade do Direito Internacional na América Latina. Para tanto, investigam-se as características constitucionais de algumas normas regionais. Em seguida, analisam-se as cláusulas democráticas no contexto das organizações regionais. Por fim, verifica-se a aplicação prática dessas normas constitucionais, por meio de um controle de constitucionalidade até o momento bem-sucedido.

2. O

BLOCO

DE

CONSTITUCIONALIDADE

DO

DIREITO

INTERNACIONAL NA AMÉRICA LATINA

No contexto latino-americano, observa-se claramente a existência de um conjunto de normas constitucionais destinadas a proteger valores fundamentais latinoamericanos e a criar um sistema de governança que garanta sua eficácia. Esse conjunto de regras é complementar ao bloco de constitucionalidade do Direito Internacional Geral, no contexto de uma rede constitucional transnacional, que envolve organizações regionais e funcionais, perpassando, ainda, o direito constitucional dos Estados, cada 8

Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, art. 53: “uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.”

vez mais internacionalizados, dentro da tendência de integração sistemática entre o Direito Internacional e do Direito Interno9. As cláusulas democráticas do MERCOSUL e da UNASUL possuem algumas características constitucionais bem definidas: foram celebradas em momento constitucional; são hierarquicamente superiores ao direito dos Estados; vinculam Estados da região mesmo sem seu consentimento; utilizam o sistema de governança criado pelos tratados constitutivos das organizações para preservar a ordem democrática. A democracia tornou-se, com o fim da Guerra Fria, um valor fundamental da América Latina. A derrocada das ditaduras militares que afligiram o continente fez com que a América Latina redefinisse sua identidade política, em um verdadeiro “momento constitucional10”, propício para a consolidação de novas normas constitucionais. Aos poucos, a democracia ganhou força mesmo dentro de organizações regionais que já existiam anteriormente. A Organização dos Estados Americanos, constituída, inicialmente, como instrumento de manutenção da zona de influência estadunidense, adquiriu novas funções, dentre as quais se destaca a preservação e promoção de democracia no hemisfério. Já as organizações regionais criadas especificamente durante esse período admitem a democracia como valor basilar e instituem os mecanismos necessários à sua manutenção. Reconhece-se que novas democracias estão sujeitas, na prática, a choques e rupturas, crises e golpes – os mecanismos seriam, assim, essenciais à preservação da experiência democrática. O MERCOSUL e a UNASUL assumem, portanto, papéis estabilizadores, propiciando a atuação concertada dos Estados da região, que têm à sua disposição os instrumentos preventivos sancionadores necessários à proteção desse bloco de constitucionalidade. As cláusulas democráticas são hierarquicamente superiores no contexto latinoamericano. Como normas internacionais, prevalecem sobre o direito interno dos 9

MIRANDA, Jorge. O Direito Internacional no início de um novo século. In: REIS, Tarcísio e GOMES, Eduardo. Desafios do Direito Internacional no Século XXI. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.P . 26. 10 TRINDADE, Otávio Augusto Drummond Cançado. A Carta das Nações Unidas uma leitura constitucional.Belo Horizonte: Del Rey, 2012. P.67.

Estados, conforme artigo 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 196911. Essa regra é amplamente aceita pelos países da América, que aderiram à Convenção de Viena sem reservas ao referido artigo. Dessa forma, não basta que um processo de impedimento de um presidente, por exemplo, seja considerado constitucional de acordo com o direito interno dos Estados americanos, como ocorreu no Paraguai, em 2012. Esse procedimento deve, ainda, ser compatível com o bloco de constitucionalidade do Direito Internacional, que, na América Latina, traz a democracia como valor fundamental. Esse controle de constitucionalidade regional será feito por meio do sistema de governança criado pelas organizações do continente. Os tratados constitutivos do MERCOSUL e da UNASUL criam um sistema de governança regional dotado de órgãos executivos, como o Grupo Mercado Comum, judiciários, como o Tribunal Permanente de Revisão, e legislativos, como o Conselho do Mercado Comum, aptos a criar normas jurídicas regionais. O controle de constitucionalidade dos atos dos Estados passa por esse sistema de governança, que determina, por exemplo, a suspensão de um membro em caso de ruptura da ordem democrática, como foi suspenso o Paraguai do MERCOSUL e da UNASUL em 2012. Ainda, o sistema de governança prevê o controle de constitucionalidade judicial das decisões políticas tomadas, tal como fez o TPR, ao analisar a suspensão do referido membro, por meio do laudo 01 de 2012. As cláusulas democráticas vinculam, ainda, Estados que não são parte delas, independentemente de seu consentimento. Com efeito, a suspensão do Paraguai da UNASUL, em 2012, não se deu com base no Protocolo de Georgetown, que estabelece a cláusula democrática na organização. Afinal, o Protocolo só entraria em vigor em 2014. A suspensão se deu com base no valor jurídico constitucional na democracia, por meio dos instrumentos de governança previstos no tratado de Brasília. Isso significa que o princípio democrático cria, na América, obrigações erga omnes. Significa, ainda, que, mesmo que um Estado denuncie as atuais cláusulas democráticas, continuará vinculado pela obrigação de preservar a democracia. Existe,

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“Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.

nesse sentido, um dispositivo característico dos direitos humanos, dentro dos quais a democracia se inclui, de vedação do retrocesso social. Há, portanto, normas constitucionais materiais que exigem a preservação da ordem democrática, e há institutos voltados para sua proteção. Forma-se, a partir da democracia, uma rede constitucional interinstitucional latino-americana. Essa rede é composta por organizações regionais de caráter hemisférico (OEA), latino-americano (MERCOSUL) e sul-americano (UNASUL), bem como por esquemas de consulta e concertação política (CELAC). Mesmo que esta não seja formalmente uma organização internacional com personalidade jurídica própria, é indicativa de um determinado costume regional. A noção de que uma constituição (e um bloco de constitucionalidade) pode emergir ao longo do tempo, sendo moldada pelas forças políticas e históricas dentro da comunidade que pretende ordenar é reconhecida historicamente no exemplo da GrãBretanha12. O mesmo está acontecendo na América Latina.

3. CLÁUSULAS DEMOCRÁTICAS 3.1 Organização dos Estados Americanos (OEA)

Já no seu estabelecimento a Organização dos Estados Americanos (OEA), em 1948, mostra-se inovadora ao colocar a proteção da democracia dentre os seus princípios governantes. Prevê o art. 3, alínea d: "A Solidariedade dos Estados americanos e os altos fins a que ela visa requerem a organização política dos mesmos, com base no exercício efetivo da democracia representativa" (OEA, 1948). Nota-se, no entanto, a busca de um equilíbrio entre a proteção da democracia e a garantia da soberania estatal e do princípio da não-intervenção – a alínea seguinte do art. 3 resguarda o direito de os Estados escolherem livremente os seus sistemas de governo13.

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TOMUSCHAT, Christian. Obligations arising for states without or against their will. Recueil des cours, Volume 241 (1993-IV), p. 217. 13 Carta da Organização dos Estados Americanos, art. 3º, e – Todo Estado tem o direito de escolher, sem ingerências externas, seu sistema político, econômico e social, bem como de organizar-se da maneira que

Ao longo da Guerra Fria, no entanto, ficou claro qual desses lados pendia a balança. A contenção da ameaça soviética no continente tomava prioridade sobre todos os outros aspectos – a sequência de golpes de Estado na América Latina, muitos dos quais apoiados pelos Estados Unidos, é o principal exemplo disso. Fica clara, ainda, uma instrumentalização da proteção da democracia na suspensão de Cuba da Organização, no momento posterior à tomada de poder por Fidel Castro14. Antes mesmo do fim desse conturbado período das relações internacionais, a OEA já começa a mudar. Por meio do Protocolo de Cartagenas das Indias, de 1985, foi reformada a Carta da Organização, alterando-se seu preâmbulo15 e passando a incluir entre os seus propósitos, no art. alínea b, "Promover e consolidar a democracia representativa, respeitado o princípio da não-intervenção". Com o objetivo de dar maior concretude a essas disposições algumas medidas práticas foram efetivas: a criação da Unidade (depois Escritório) para a Promoção da Democracia, em 1990, responsável pela provisão de acompanhamento e cooperação técnica, além do monitoramento e fiscalização de processos eleitorais16; foi aprovada a Resolução 1080 (1991) que estabelece procedimentos no caso do rompimento da ordem democrática em um Estado, com a convocação, pelo Secretário-Geral, do Conselho Permanente e, posteriormente da Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores ou da Assembleia Geral, para que se determinem as medidas cabíveis para o restabelecimento daquela ordem17; e foi adotado o Compromisso de Santiago com a Democracia Representativa e a Renovação do Sistema Interamericano, também em 1991, por meio da qual se reconheceu, de maneira inequívoca que a democracia seria o regime de governo do continente18.

mais lhe convenha, e tem o dever de não intervir nos assuntos de outro Estado. Sujeitos ao acima disposto, os Estados americanos cooperarão amplamente entre si, independentemente da natureza de seus sistemas políticos, econômicos e sociais. 14 CAMARGO, Alan Gabriel. Democratizando a América Latina? A promoção da democracia por meio do Regime Democrático Interamericano (RDI). Dissertação de Mestrado, UNB, 2013, p. 50. 15 Carta da Organização dos Estados Americanos, preâmbulo – Certos de que a democracia representativa é condição indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região. 16 HAWKINS, Darren; SHAW, Carolyn. Legalising Norms of democracy in the Americas. Review of International Studies, v. 34, p. 459-480, 2008, p. 468. 17 OEA. Compromisso de Santiago com a Democracia Representativa e a Renovação do Sistema Interamericano. Santiago, 1991a. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2015. 18 OEA. Representative Democracy. Resolução 1080. Santiago, 1991b. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2015.

Ainda mais importante foi o Protocolo de Washington, de 1992, que emendou a Carta da OEA, introduzindo o art. 9 que explicita as medidas a serem tomadas em caso de rompimento da ordem democrática. Um membro da Organização, cujo governo democraticamente constituído seja deposto pela força, poderá ser suspenso do exercício do direito de participação nas sessões da Assembléia Geral, da Reunião de Consulta, dos Conselhos da Organização e das Conferências Especializadas, bem como das comissões, grupos de trabalho e demais órgãos que tenham sido criados. a) A faculdade de suspensão somente será exercida quando tenham sido infrutíferas as gestões diplomáticas que a Organização houver empreendido a fim de propiciar o restabelecimento da democracia representativa no Estado membro afetado; b) A decisão sobre a suspensão deverá ser adotada em um período extraordinário de sessões da Assembléia Geral, pelo voto afirmativo de dois terços dos Estados membros; c) A suspensão entrará em vigor imediatamente após sua aprovação pela Assembléia Geral; d) Não obstante a medida de suspensão, a Organização procurará empreender novas gestões diplomáticas destinadas a coadjuvar o restabelecimento da democracia representativa no Estado membro afetado; e) O membro que tiver sido objeto de suspensão deverá continuar observando o cumprimento de suas obrigações com a Organização; f) A Assembléia Geral poderá levantar a suspensão mediante decisão adotada com a aprovação de dois terços dos Estados membros; e g) As atribuições a que se refere este artigo se exercerão de conformidade com a presente Carta.19

O passo final do incremento normativo se deu com a adoção da Carta Democrática Interamericana, em 2001. Apesar de não constituir um tratado internacional, não alcançando, portanto, o nível de obrigatoriedade criada pela Carta da OEA e os subsequentes protocolos, essa declaração já teve sua importância reconhecida em diversas instâncias e tem fundamental relevância na medida em que ela explicita elementos específicos que seriam fundamentais em um regime democrático20: Art. 4 - São elementos essenciais da democracia representativa, entre outros, o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, o acesso ao poder e seu exercício com sujeição ao Estado de Direito, a celebração de eleições periódicas, livres, justas e baseadas no sufrágio universal e secreto como expressão da soberania do povo, o regime pluralista de partidos e organizações políticas, e a separação e independência dos poderes públicos. Art. 5 - São componentes fundamentais do exercício da democracia a transparência das atividades governamentais, a probidade, a responsabilidade dos governos na gestão pública, o respeito dos direitos sociais e a liberdade de expressão e de imprensa.

19 20

Carta da OEA, art. 9. HAWKINS, Darren; SHAW, Carolyn. Op cit, p. 469.

A subordinação constitucional de todas as instituições do Estado à autoridade civil legalmente constituída e o respeito ao Estado de Direito por todas as instituições e setores da sociedade são igualmente fundamentais para a democracia. 21

Importante notar, ainda, que essa Carta expandiu a possibilidade de recurso ao mecanismo previsto no art. 9, introduzido pelo Protocolo de Washington. Ao invés de fazer referência apenas ao caso de deposição pelo uso da força, a Carta prevê o acionamento das instâncias previstas no caso de "ruptura da ordem democrática ou uma alteração da ordem constitucional que afete gravemente a ordem democrática"22 – um conceito bastante mais amplo. 3.2 MERCOSUL O MERCOSUL é um processo de integração latino-americano, aberto a todos os Estados-membro da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI). Sua criação, em 1991, com o Tratado de Assunção, respondia a ímpetos principalmente comerciais e econômicos. Dessa forma, no primeiro momento, a promoção da democracia não figurou de maneira proeminente entre as discussões tidas no seu âmbito. Apesar de ser um valor compartilhado pelos países envolvidos – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai eram, àquele momento, Estados tentando reafirmar sua condição democrática em contraste com os períodos autoritários vividos nas décadas anteriores –, a questão da democracia simplesmente não era objeto da regulamentação daquele tratado (e dos seguintes assinados no âmbito dessa organização). Apenas com a assinatura do Protocolo de Ushuaia I, em 1998, após a tentativa de golpe no Paraguai, em 1996, essa questão adentrou definitivamente para a agenda do MERCOSUL. Esse protocolo previa que, em caso de ruptura da ordem democrática em qualquer um dos Estados signatários, os demais Estados deveriam tomar medidas necessárias para coibir a violação da democracia. O escopo das medidas sancionadoras, inicialmente, era, de fato, pequeno: Quando as consultas mencionadas no artigo anterior resultarem infrutíferas, os demais Estados Partes do presente Protocolo, no âmbito específico dos Acordos de Integração vigentes entre eles, considerarão a natureza e o alcance das medidas a serem aplicadas, levando em conta a gravidade da situação existente.

21

OEA. Carta Democrática Interamericana. Lima, 2001. Disponível em: http://www.oas.org/OASpage/port/Documents/Democractic_Charter.htm> , Acesso em: 22 jun. 2015. 22 OEA. Carta Democrática Interamericana. Op. cit, art. 19.

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Tais medidas compreenderão desde a suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos dos respectivos processos de integração até a suspensão dos direitos e obrigações resultantes destes processos.23

Importante notar que esse Protocolo foi assinado entre os membros do MERCOSUL e Bolívia e Chile, tendo alcance maior, portanto. Em 2011, com a intenção de aprofundar o compromisso da organização com a democracia, os Estados-membros do MERCOSUL, juntamente com Bolívia, Chile, Equador, Peru, Colômbia e Venezuela assinaram o Protocolo de Montevidéu sobre Compromisso com a Democracia no MERCOSUL (também conhecido como Protocolo de Ushuaia II). Em casos de "ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática, de uma violação da ordem constitucional ou de qualquer situação que ponha em risco o legitime exercício do poder e a vigência dos valores e princípios democráticos"24, previa-se a realização de reunião dos Chefes de Estado ou, na falta destes, dos Ministros das Relações Exteriores em sessão extraordinária ampliada do Conselho do Mercado Comum, onde deveriam ser realizadas consultas junto às partes afetadas e bons ofícios e gestões diplomáticas para o restabelecimento da democracia. Acontece que o Protocolo de Ushuaia II previu, também, um maior escopo de medidas aplicáveis nesses casos, quando comparado com o Protocolo de Ushuaia I. Dentre as medidas mais severas previstas, destacam-se: a.- Suspender o direito de participar nos diferentes 6rgaos da estrutura institucional do MERCOSUL. b.- Fechar de forma total ou parcial as fronteiras terrestres. Suspender ou limitar o comércio, o trafego aéreo e marítimo, as comunicações e o fornecimento de energia, serviços e abastecimento. c.- Suspender a Parte afetada do gozo dos direitos e benefícios emergentes do Tratado de Assunção e seus Protocolos e dos Acordos de integração celebrados entre as Partes, conforme couber. d.- Promover a suspensão da Parte afetada no âmbito de outras organizações regionais e internacionais. Promover junto a terceiros países ou grupos de países a suspensão da Parte afetada de direitos e/ou benefícios derivados dos acordos de cooperação dos quais seja parte.

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MERCOSUL. Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile. Ushuaia, 1998. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2015. Art. 5. 24 MERCOSUL. Protocolo de Montevidéu sobre Compromisso com a Democracia no MERCOSUL. Montevidéu, 2011. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2015. Art. 1.

e.- Respaldar os esforços regionais e internacionais, em particular no âmbito das Nações Unidas, encaminhados a resolver e a encontrar uma solução pacifica e democrática para a situação ocorrida na Parte afetada. f.- Adotar sanções políticas e diplomáticas adicionais.25

Esse protocolo ainda não entrou em vigor, contudo, porque ainda não atingiu o número de necessário de ratificações.

3.3 UNASUL A União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) é uma organização regional criada no âmbito da América do Sul – fazendo parte dela todos os Estados do continente. Mesmo antes de sua criação, com a Declaração de Cochabamba, de 2006, já foi sinalizado que a democracia ocuparia um papel de destaque nessa nova organização. Isso foi confirmado no Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas, assinado em 2008 e ratificado, pelo Brasil, em 2011. Afinal, o objetivo de fortalecer a democracia foi elencado entre os principais dessa organização26. Fortalecendo esse compromisso com a democracia, foi assinado, em 2011, o Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da UNASUL sobre Compromisso Democrático, por meio do qual se pretendia estabelecer medidas específicas a serem tomadas no caso do rompimento da ordem democrática. Em verdade, prevê-se a aplicação desse Protocolo em casos de "ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática, de uma violação da ordem constitucional ou em qualquer situação que ponha em risco o legítimo exercício do poder e a vigência dos valores e princípios democráticos"27. Uma vez reconhecida a ocorrência de uma das hipóteses listadas, deverá ser convocado o Conselho Permanente de Chefes de Estado ou, na falta deste, o Conselho 25

MERCOSUL. Protocolo de Montevidéu sobre Compromisso com a Democracia no MERCOSUL, 2011. Op. Cit. Art. 6. 26 UNASUL. Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas. Brasília, 2008. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2015. 27 UNASUL. Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da UNASUL sobre Compromisso Democrático. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=5D505912E783485024145A 95710308F3.proposicoesWeb1?codteor=1056965&filename=Avulso+-MSC+551/2012> . Acesso em: 22 jun. 2015. Art. 1;

de Ministros das Relações Exteriores para que venha a ser decidido sobre as medidas aplicáveis, dentre aquelas previstas no art. 4 do Protocolo: a. - Suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos e instâncias da UNASUL, bem como do gozo dos direitos e prerrogativas no âmbito do Tratado Constitutivo da UNASUL. b. - Fechamento parcial ou total das fronteiras terrestres, incluindo a suspensão ou limitação do comércio, transporte aéreo e marítimo, comunicações, fornecimento de energia, serviços e suprimentos. c. - Promover a suspensão do Estado afetado no âmbito de outras organizações regionais e internacionais. d. - Promover, ante terceiros países e/ou blocos regionais, a suspensão dos direitos e/ou prerrogativas do Estado afetado no âmbito dos acordos de cooperação em que seja parte. e. - Adoção de sanções políticas e diplomáticas adicionais.28

Confia-se à UNASUL, também, a realização de medidas (bons ofícios e gestão diplomática), no sentido de restabelecer a democracia e, em seguida, suspender a aplicação das medidas porventura impostas. Outro papel de relevo desempenhado pela UNASUL é o estabelecimento de comissões eleitorais para o acompanhamento e fiscalização de processos eleitorais que acontecem nos Estados-membros. No exemplo mais recente dessa forma de atuação, foi constituída a Comissão de Chanceleres da UNASUL, formada, pelos ministros das relações exteriores do Brasil, da Colômbia e do Equador, para atuar como mediadora imparcial na crise vivida pela Venezuela, desde 2014. A situação põe em risco a ordem democrática, uma vez que ambos os lados da esfera política pareceram considerar, em algum momento, saídas pouco afetas à normalidade das instituições democráticas. A UNASUL é a única instituição vista como legítima por ambos os lados da controvérsia e tem desempenhado papel essencial na preservação da democracia. A Comissão de Chanceleres já realizou algumas visitas à Venezuela, a fim de manter abertos os canais de diálogo entre governo e oposição, com vistas a uma solução negociada para a crise.

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UNASUL. Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da UNASUL sobre Compromisso Democrático. Op. cit. Art. 4.

3.4 CELAC A Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos é composta por 33 Estados da região, sendo considerada herdeira do chamado Grupo do Rio, também conhecido como Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política da América Latina e do Caribe, e da Cúpula Latino-Americana e Caribenha sobre Integração e Desenvolvimento (CALC). Dos dois esquemas, foi o Grupo do Rio que constituiu, desde 1986, quando foi criado, um importante mecanismo de proteção da democracia na região – especialmente na América Central. O Grupo do Rio, formado por Brasil, Argentina, Peru, Uruguai, México, Colômbia, Venezuela e Panamá mostrou-se atento, desde sua criação, a crises políticas, chegando, inclusive, a suspender membros em momentos de golpes e crises.29 Além de se reunir em momentos de rompimento da ordem democrática, o Grupo, o qual se expandiu ao longo das décadas de 1990 e de 2000, reunia-se em cúpulas anuais, até 2004, estabelecendo importantes instrumentos normativos em defesa da democracia30. Em 1995, a Declaração de Quito reafirmou o compromisso do Grupo com a democracia. Em 1997, o Grupo adotou a Declaração de Assunção e a Declaração a Respeito da Manutenção da Democracia, as quais previam a convocação de uma reunião de emergência dos ministros das Relações Exteriores dos Estados-membros em caso de ameaça à ordem constitucional e democrática em um país-membro.

O

Compromisso Democrático de Cartagena (2000) e a Declaração de San José (2002) aprofundaram ainda mais o comprometimento do Grupo com a promoção e proteção da democracia31. A partir de 2004, no entanto, as atividades do Grupo do Rio diminuíram significantemente. Até que, em 2010, na reunião da Cúpula Grupo do Rio-CALC, abriuse caminho para a construção da CELAC, composta por todos os Estados do continente americano. Os países da América Anglo-saxônica, no entanto, não fazem parte do

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PORTALES, Carlos. Para onde vai o multilateralismo nas Américas? Projetos superpostos num período de mudanças globais. Lua Nova, v. 90, 2013, p. 211. 30 FIGUEIRA, Ariane Roder. A promoção de democracia no legado diplomático brasileiro. ORG & DEMO, v. 15, n. 1, 2014, p. 86. 31 SANTISO, Carlos. Promoção e Proteção da Democracia na Política Externa Brasileira. Contexto Intenracional, v. 24, n. 2, 2002, p. 416-417.

mecanismo32. Já foi aprovada cláusula democrática a constar no futuro estatuto da CELAC, aos moldes da cláusula da OEA – prevendo suspensão do Estado onde o rompimento da ordem democrática venha a acontecer –, mas respeitando as cláusulas regionais mais substantivas (como a da UNASUL)33. Vale ainda notar que a CELAC ocupa papel de interlocutor privilegiado com outros Estados e, principalmente, com outros blocos internacionais34. A realização de Cúpulas CELAC-UE já se tornou, por exemplo, uma tradição, e é comum que se ressaltem os valores compartilhados entre as duas regiões, dentre os quais a democracia se destaca.35

4. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DOS ATOS DOS ESTADOS LATINO-AMERICANOS 4.1 A suspensão do Paraguai das instituições latino-americanas

As cláusulas democráticas das instituições latino-americanas conformam uma rede constitucional interinstitucional que serve como parâmetro para controle de constitucionalidade de algumas condutas dos Estados da região. Em 2012, o Congresso do Paraguai julgou o impeachment do presidente eleito, Fernando Lugo, por “mau desempenho das funções presidenciais”. O presidente era acusado, ainda, de violar a soberania paraguaia, ao assinar o Protocolo de Montevidéu, de 2011, sobre o compromisso com a democracia no MERCOSUL. As acusações eram vagas e o tempo concedido aos advogados de Lugo para prepararem a defesa era exíguo. O processo pode até ter sido constitucional quando se adota como parâmetro a constituição do Paraguai, mas foi incompatível com as normas constitucionais latinoamericanas, de acordo com as instituições competentes para fazer tal julgamento.

32

PORTALES, Carlos. Op Cit, p. 216. Terra. Chanceleres aprovam cláusula democrática da CELAC. Disponível em: < http://noticias.terra.com.br/mundo/america-latina/chanceleres-aprovam-clausula-democratica-dacelac,d71db048a67ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 22 jun. 2015. 34 VIGEVANI, Tullo; ARAGUSUKU, Juliano. Atitudes brasileiras para as organizações hemisféricas: Círculos Concêntricos. Pensamento Próprio, v. 39, n. 19, 2014, p. 183. 35 MOGHERINI, Frederica. Discurso à Cúpula CELAC-UE, 2015. Disponível em: < http://eeas.europa.eu/statements-eeas/2015/150128_04_en.htm>. Acesso em: 23 jun. 2015. 33

Diante dos acontecimentos que pareciam prenunciar a ruptura da ordem democrática no Paraguai, e, por conseguinte, a ordem constitucional na América Latina, os demais Estados-parte do MERCOSUL estabeleceram consultas imediatamente, conforme exigido pelo artigo 4 do Protocolo de Ushuaia. Os chanceleres não apenas do MERCOSUL, mas também de todos os demais países que compõem a UNASUL, acompanharam o processo de impeachment in loco, em Assunção, mas as consultas entabuladas foram infrutíferas. O impedimento do presidente eleito foi aprovado. Dessa forma, os chefes de Estado do MERCOSUL, na Cúpula de Mendoza, decidiram suspender o Paraguai de alguns direitos que lhe eram conferidos pelos tratados do bloco, nos termos do artigo 5 do Protocolo de Ushuaia de 1998. A decisão foi seguida por outra, de mesmo teor, da UNASUL, com base em sua cláusula democrática. Alguns analistas argumentaram que a ausência de convocação do Paraguai para a Cúpula de Mendoza, sem precedentes na história do MERCOSUL, teria sido ilegítima36. A alegação, contudo, não condiz com o disposto no artigo 6 do Protocolo de Ushuaia. Como é muito razoável, o Estado sancionado não participa do processo decisório que o suspende dos direitos decorrentes do processo de integração: As medidas previstas no artigo 5 precedente serão adotadas por consenso pelos Estados Partes do presente Protocolo, conforme o caso e em conformidade com os Acordos de Integração vigentes entre eles, e comunicadas ao Estado afetado, que não participará do processo decisório pertinente. Tais medidas entrarão em vigor na data em que se faça a comunicação respectiva37. (Sem grifo no original).

Após a plena restituição da democracia no Paraguai, com a posse do presidente Horacio Cartes, em 15 de agosto de 2013, eleito em pleito que contou com o acompanhamento do MERCOSUL e da UNASUL, cumpriram-se os requisitos do artigo 7 do Protocolo de Ushuaia. Dessa forma, os demais Estados-parte decidiram cessar a suspensão do país guarani, que voltou a gozar de todos os direitos e benefícios decorrentes do processo de integração.

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LAFER, Celso. Descaminhos do Mercosul – a suspensão da participação do Paraguai e a incorporação da Venezuela: uma avaliação crítica da posição brasileira. In Política Externa. Mercosul = - Paraguai + Venezuela. Vol. 21no 3, janeiro – março, 2013. 37 Protocolo de Ushuaia, artigo 6.

A suspensão do Paraguai do MERCOSUL e da UNASUL comprovam a eficácia do controle de constitucionalidade na América Latina e a preservação do direito constitucional à democracia na região. Além disso, possibilitou a ampliação do MERCOSUL, por meio da admissão da Venezuela como membro pleno do bloco.

4.2 A adesão da Venezuela ao MERCOSUL

O Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela ao MERCOSUL havia sido assinado em 2006. O Protocolo entraria em vigor, consoante seu artigo 12, trinta dias após o quinto instrumento de ratificação38. Sendo cinco os Estados negociadores, e considerando-se natural que a Venezuela devesse confirmar sua intenção de participar do bloco, o que o protocolo faz não é mais que reiterar que os Estados-parte são dotados do direito de deliberar sobre a adesão de novos membros ao processo de integração, conforme já disposto no artigo 20 do Tratado de Assunção. Para que a Venezuela pudesse ser admitida como membro pleno do MERCOSUL, dever-se-ia verificar se o Estado respeitava a ordem democrática. Os órgãos adequados para fazer essa análise eram os Poderes Legislativos dos próprios Estados-parte do MERCOSUL, que entenderam que o Estado venezuelano de fato respeitava esse princípio constitucional latino-americano. Dessa forma, o Protocolo de Adesão entrou em vigor em 12 de agosto de 2012, trinta dias após o depósito do instrumento de ratificação da Venezuela, o quarto depósito. Como o Paraguai ainda não havia ratificado o referido protocolo, a legitimidade constitucional do processo foi colocada em xeque, uma vez que muitos denunciaram suposta violação de seu artigo 12. Alegação, no entanto, não resiste à análise jurídica mais acurada. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 determina, em seu artigo 31, que “um tratado deve ser interpretado de boa fé, segundo o sentido comum 38

Protocolo de Adesão da República Bolivariana da Venezuela ao MERCOSUL, art. 12: “O presente Protocolo, instrumento adicional ao Tratado de Assunção, entrará em vigência no trigésimo dia contado a partir da data de depósito do quinto instrumento de ratificação.”

atribuível aos termos do tratado, em seu contexto, e à luz de seu objetivo e finalidade.” A Comissão de Direito Internacional39 propôs os artigos supracitados à luz do princípio da efetividade40, insculpido na máxima magis valeat quam pereat, segundo o qual os propósitos do tratado devem pautar sua interpretação, de modo a garantir sua total efetividade41. Uma razão e um sentido devem ser atribuídos a cada parte do tratado42. A finalidade do artigo 12 do Protocolo de Adesão da Venezuela é conferir a todos os Estados negociadores o direito de deliberar sobre a entrada da Venezuela no bloco econômico. Nesse sentido, reitera o artigo 20 do Tratado de Assunção, que exige decisão unânime dos Estados-parte no MERCOSUL acerca da entrada de novos membros. À luz de sua finalidade e do princípio da efetividade, a redação do protocolo

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A Comissão de Direito Internacional é um órgão formado por juristas de notório saber vinculado à Assembleia Geral da ONU. De acordo com o artigo 13 da Carta da ONU, uma das funções da Assembleia Geral é promover estudos para a codificação e o desenvolvimento progressivo do Direito Internacional. Com esse objetivo, a CDI realiza estudos jurídicos, a fim de propor minutas de tratados, a serem adotados pelos Estados. Na década de 1960, alguns tratados, entre os quais a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, foram celebrados a partir de propostas realizadas pela CDI. A Comissão contribui decisivamente para que a codificação, valer dizer, a redução a termo dos costumes internacionais, seja uma tendência evolutiva do Direito Internacional. MIRANDA, Jorge. O Direito Internacional no início de um novo século. In: REIS, Tarcísio e GOMES, Eduardo. Desafios do Direito Internacional no Século XXI. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.P . 25. 40 A importância do princípio da efetividade já foi reconhecida pela Corte Internacional de Justiça em diversas ocasiões. No caso Jurisdição em matéria pesqueira (Espanha v. Canadá), por exemplo, a Corte afirmou que o princípio “has an important role in the law of treaties.” ICJ Reports, 1999, p. 432. De acordo com Malcolm Shaw, o princípio deve ser usado para conferir efetividade às provisões de um tratado, em consonância com a intenção das partes. SHAW, Malcolm. Op. Cit. P. 936. 41 Primeiro relatório sobre direito dos tratados YBILC (1962), vol. II, pp. 65-66. “Quando um tratado dá margem a duas interpretações, uma que permite e outra que não permite que o tratado exerça efeitos apropriados, a boa-fé e o objetivo e o propósito do tratado demandam que a primeira interpretação seja adotada.” Tradução livre. No original: “When a treaty is open to two interpretations one of which does and the other does not enable the treaty to have appropriate effects, good faith and the objects and purposes of the treaty demand that the former interpretation should be adopted.” 42 “O princípio da efetividade tem dois significados. O primeiro é o de que todo dispositivo de tratado ou de outro instrumento deve, presumivelmente, ter sido concebido para possuir significado e para ser necessário à manifestação do sentido desejado. Dessa forma, uma interpretação que não confere efetividade e sentido ao texto está incorreta. O segundo opera como um aspecto da verificação do „objetivo e da finalidade‟ e significa que o instrumento, como um todo, e que cada dispositivo, em particular, devem ser considerados como tendo pretendido atingir uma finalidade, e que a interpretação que não confere ao texto efetividade para alcançar seu objetivo também está incorreta.” Tradução livre. No original: “The principle of effectiveness has two meaning. The first is that all provisions of the treaty or other instrument must be supposed to have been intended to have significance and to be necessary to express the intended meaning. Thus an interpretation that renders a text ineffective and meaningless is incorrect. The second operates as an aspect of the „object and purposes‟ test, and it means that the instrument as a whole and each of its provisions must be taken to have been intended to achieve some end, and that an interpretation that would make the text ineffective to achieve that object is also incorrect.” FITZMAURICE, Malgosia. The Practical Working of the Law of Treaties. In EVANS, Malcolm. International Law. Oxford University Press: Oxford, 2010. P. 188.

de adesão da Venezuela seria igualmente satisfatória se exigisse, por exemplo, a ratificação de todos os Estados negociadores. Como o Paraguai estava suspenso dos direitos decorrentes do processo de integração, incluindo o direito de deliberar sobre a entrada de novos membros, não gozava, temporariamente, do direito que lhe era conferido pelo artigo 20 do Tratado de Assunção e pelo artigo 12 do Protocolo de Adesão da Venezuela. À luz da finalidade desse protocolo, portanto, cumpriram-se os requisitos exigidos para sua entrada em vigor: houve aprovação unânime por todos os Estados que tinham, naquele momento, o direito de decidir sobre a entrada de novos membros no MERCOSUL. Com a entrada da Venezuela, o MERCOSUL se tornou a maior potência energética do mundo, com as maiores reservas de petróleo conhecidas; ampliou, dessa forma, sua dimensão geopolítica, representando mais de 70% da população, do território e do PIB da América do Sul. No que diz respeito ao bloco de constitucionalidade da América Latina, a ampliação do bloco se deu de maneira legítima, tendo passado pelo controle de constitucionalidade dos tratados do MERCOSUL.

5. CONCLUSÃO

Após um ciclo de regimes ditatoriais que macularam a América Latina na segunda metade do século XX, a região redefiniu sua identidade política e elencou a democracia como valor fundamental a ser protegido. Do ponto de vista normativo, esse valor passou a ser preservado por normas materialmente constitucionais, que, além de consolidar um direito material, criaram instituições com sistema de governança competente para assegurar a preservação da ordem democrática na região. Esse controle de constitucionalidade das condutas dos Estados latino-americanos é realizado de forma preventiva e coercitiva. A suspensão do Paraguai do MERCOSUL e da UNASUL em 2012, seguida da entrada lícita da Venezuela naquele são exemplos bem-sucedidos de como a democracia tem prevalecido, no seio da comunidade normativa latino-americana.

O processo de institucionalização desse sistema de governança está em curso. Os protocolos de Ushuaia II e o Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da UNASUL sobre Compromisso Democrático, por exemplo, ainda não foram ratificados pelo Brasil. A CELAC, única dessas organizações a compreender completamente a América Latina, ainda não se institucionalizou de forma de definitiva. Ainda sim, fica clara a direção em que a região se encaminha: na defesa da democracia. Sendo a democracia valor comum a algumas organizações internacionais do continente, as normas que a preservam conformam uma rede constitucional interinstitucional, compondo o bloco de constitucionalidade do Direito Internacional na região.

6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

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