A DEMOCRACIA EM JOSÉ SARAMAGO: cegueira, sombra e lucidez numa democracia possível (DEMOCRACY IN JOSE SARAMAGO: blindness, shadows and seeing in a possible democracy)

July 6, 2017 | Autor: Maressa Miranda | Categoria: José Saramago, Direito e Literatura, Democracias Representativas
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A DEMOCRACIA EM JOSÉ SARAMAGO: CEGUEIRA, SOMBRAS E LUCIDEZ NUMA DEMOCRACIA POSSÍVEL DEMOCRACY IN JOSE SARAMAGO: BLINDNESS, SHADOWS AND SEEING IN A POSSIBLE DEMOCRACY

Maressa da Silva Miranda

RESUMO Este breve ensaio pretende recolher alguns elementos da obra de José Saramago que nos permita estabelecer o diálogo entre direito e literatura, notadamente no que diz respeito à teoria da democracia. Transitando entre cegueira, sombras e lucidez, Saramago cria situações extremas, aparentemente absurdas, para chamar a atenção do leitor aos problemas recorrentes de um mundo dominado pelas desigualdades do capitalismo e por uma democracia representativa de fachada. Os livros de Saramago são ótimos exemplos de como tanto a literatura quanto o direito transitam entre o imaginário instituinte e a realidade instituída, e criam expectativas, esperanças e frustrações quanto às mudanças necessárias para se alcançar uma democracia ideal. PALAVRAS-CHAVES: DIREITO E LITERATURA; DEMOCRACIA; DISTOPIA

ABSTRACT This brief essay intends to collect some elements of José Saramago’s work in order to help the establishment of a dialogue between Law and literature, especially in what concerns the democracy theory. Through the discussion of the concepts of blindness, shadows and seeing, Saramago creates extreme and absurd situations, to call the reader’s attention to the problems of a capitalist world dominated by inequality and by a fake representative democracy. Saramago’s books are great examples of how literature and Law involve the constitutive imaginary and the institutive reality, as well as create expectations, hope and frustrations concerning the changes needed to reach an ideal democracy. KEYWORDS: LAW AND LITERATURE; DEMOCRACY; DYSTOPIA



Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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1. INTRODUÇÃO

Neste ano, a Constituição brasileira de 1988 completa 20 anos. Em meio a aplausos e vaias, vai-se consolidando, no Estado brasileiro, um regime democrático que, se não é perfeito (nenhum Estado o é), acumula conquistas e desafios indispensáveis para o aperfeiçoamento da própria democracia. Diferentemente das outras constituições brasileiras, que concebiam uma república de regime representativo, e começavam sempre com a organização dos poderes do Estado, a Constituição de 1988 é a primeira a estabelecer um Estado Democrático de Direito, cujo poder emana do povo, diretamente ou por meio dos seus representantes. É a primeira, também, a trazer logo no início a explicitação dos fundamentos do Estado e dos direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos. Mais do que uma diferença de redação, a escolha pelo estado democrático de direito, pelo exercício direto do poder e pela primazia dos direitos fundamentais reflete a insatisfação do povo brasileiro em ficar, como nas outras constituições, a mercê apenas de interesses e desmandos de representantes eleitos. A Constituição de 1988 é democrática não só porque assim está escrito no artigo 1°, nem porque garante o direito de votar e ser votado em eleições periódicas e a prevalência da vontade da maioria (noção de democracia dominante nas constituições anteriores, típica do paradigma do Estado liberal). Ela é democrática porque garante a participação ampla e irrestrita dos indivíduos a ela submetidos na sua criação, modificação e fiscalização (v.g. controle de constitucionalidade difuso, de legitimação irrestrita, e concentrado com legitimação de representantes da sociedade civil organizada). Ademais, ela também garante a participação direta dos titulares do poder nas funções administrativa (v.g. ação popular, liberdade de associação e organização da sociedade civil para gestão da coisa pública, ação civil pública), legislativa (v.g. iniciativa popular de projeto de lei, plebiscito, referendo, ação de impugnação de mandato eletivo) e jurisdicional (v.g. acesso irrestrito à jurisdição, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, direito ao advogado, duplo grau de jurisdição)[1]. Nota-se, pois, que o mote do constitucionalismo contemporâneo, não só o brasileiro, mas em todo o mundo, é a democracia. E o que é democracia, como se exerce, o que significa um Estado democrático, são questões de constante estudo e debate entre juristas, cientistas políticos, filósofos, e demais representantes de outros setores da sociedade.

2. A DEMOCRACIA A PARTIR DA LITERATURA DE JOSÉ SARAMAGO

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A literatura, assim como toda obra de arte, é “uma contra-criação: um desafio ao mundo herdado, à natureza circundante, à herança cultural” (OST, 2004, p. 32), e, como não poderia deixar de ser, também se ocupou do tema da democracia. Tomemos como exemplo o romance Ensaio sobre a lucidez, do escritor português José Saramago, publicada no ano de 2004. José Saramago, o maior autor português ainda vivo, não é apenas um escritor ficcional, como também um ativista político. Não que ele tenha se envolvido diretamente com a política, mas desde jovem identifica-se com a ideologia marxista, é afiliado ao partido comunista português e corriqueiramente afirma-se contrário ao sistema capitalista e sua lógica excludente e individualista. Suas obras, mais do que simples romances de entretenimento, são denúncias e protestos contra situações de desigualdade e intolerância criadas pelo sistema político, econômico e religioso, o que se observa nos romances Jangada de Pedra (1986), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995), Todos os nomes (1997), A Caverna (2000) e Ensaio sobre a Lucidez (2004). Mas, nesta última obra, Ensaio sobre a Lucidez, as críticas de Saramago vão muito além de metáforas e insinuações. Neste romance, o escritor português faz uma censura aberta ao sistema capitalista e aos governos contemporâneos que, em nome de uma tão aclamada democracia, cometem atos arbitrários, ilegítimos e anti-democráticos. Este livro, como bem esposado na edição brasileira da editora Companhia das Letras (2004), mostra que, “numa manhã de votação que parecia como todas as outras, na capital de um país imaginário, os funcionários de uma das seções eleitorais se deparam com uma situação insólita, que mais tarde, durante as apurações, se confirmaria de maneira espantosa. Aquele não seria um pleito como tantos outros, com a tradicional divisão dos votos entre os partidos “da direita”, “do centro” e “da esquerda”; o que se verifica é uma opção radical pelo voto em branco. Usando o símbolo máximo da democracia – o voto –, os eleitores parecem questionar profundamente o sistema de sucessão governamental em seu país”. A não-escolha por determinado representante ou partido, ou melhor, a escolha por não ter nenhum governo, é, como se esperava, mal recebida pelo atual governo do país que, inconformado com a opção do eleitorado, toma várias medidas para descobrir os líderes de um movimento conspirador, única explicação para tão insólita situação. Agentes de polícia foram infiltrados na sociedade para ouvir e registrar qualquer conversa suspeita, prisões e interrogatórios de duvidosa legalidade foram realizados, até mesmo um estado de exceção, e posteriormente de sítio, foi decretado na capital, sem, porém, nenhum resultado positivo. Por fim, o governo toma a medida drástica de se retirar da cidade, juntamente com a polícia, com o intuito de que, quando os cidadãos se vissem sem governo e sem polícia, sem alguém que colocasse ordem na cidade, esta viraria um caos, e a população rogaria pelo retorno dos seus representantes políticos. Qual não é a decepção dos governantes retirados quando percebem que, após dias, não só o caos não se instala na capital, como os cidadãos dão visíveis sinais de estarem felizes e bem organizados sem precisar de qualquer governo. O principal objetivo de Saramago no Ensaio sobre a lucidez foi questionar a democracia, tema que, para ele, parece intangível no mundo atual, como declarou para

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vários jornais na época do lançamento de seu livro: “no mundo tudo se discute, tudo é objeto de debate, mas a democracia surge como pura, inatingível, intocável", disse o escritor, destacando que "é o poder econômico que realmente governa, usando a democracia a seu favor" (SARAMAGO, 2004) [2]. Ao contrário do que possa parecer, Saramago não pretende fazer apologia ao voto em branco, nem uma campanha contra a democracia. Seu objetivo é mostrar que o simples direito de voto, ou a mudança periódica de governantes, por si só, não representa a democracia. O discurso democrático pregado pelos Estados ocidentais serve apenas de fachada para esconder o real poder que prevalece nestas sociedades: o poder econômico.

Não estaríamos vivendo em democracia mesmo que não se verificasse um só atentado. Evitemos confundir as coisas. Poderíamos gozar de uma democracia plena, isto é, política, econômica e cultural, e ainda assim sermos alvo de atentados com origem precisamente nos inimigos da democracia. Quem tem a culpa pelo fato de a democracia não ser o que deveria ser são os que fizeram dela uma mera fachada, um artifício em que ao cidadão apenas está permitido substituir um governo por outro, deixando intacto o sistema. (Saramago, 2004)[3]

Ensaio sobre a lucidez seria, pois, um grito (ou uivo: Uivemos, disse o cão[4]) contra uma situação de mudança aparente que é, no fundo, a continuidade de um sistema capitalista consumista, excludente e desigual. O romance mostra-se, inicialmente, como uma utopia na qual, mais do que renunciar a uma democracia de fachada, os cidadãos se mostram maduros o suficiente para exercerem uma democracia direta, para viverem em comunidade sem precisar do mando ou comando de alguns poucos, ou da força e do medo impostos pela polícia. Mas por que lucidez? Seria o romance realmente uma utopia? Seria o Ensaio sobre a lucidez apenas uma crítica à democracia de fachada? Para respondermos a estas perguntas é necessário resgatar duas outras obras do escritor português: Ensaio sobre a cegueira (1995) e A Caverna (2000).

2.1. A cegueira e a desconstrução da caverna

O livro Ensaio sobre a lucidez remete-se, não só no título, mas também na trama, à célebre obra Ensaio sobre a cegueira, de 1995, que rendeu ao escritor português o único Prêmio Nobel de Literatura a um autor de língua portuguesa. Neste romance, Saramago coloca toda a população de um país imaginário (o mesmo do romance de 2004) acometida de uma cegueira branca, com exceção de uma única mulher, a esposa do médico oftalmologista que examinou em seu consultório o

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primeiro homem a cegar. A mulher do médico - como a personagem é conhecida, já que, assim como os outros personagens e a cidade em que as histórias se passam, não receberam nomes próprios - é a única testemunha ocular dos horrores de uma sociedade tomada pelo caos, sem ordem ou regra, sem governo, que retrocede a um modo de vida tribal. A cegueira que Saramago quer mostrar no romance vai muito além da patologia física: a cegueira branca é uma metáfora para representar o estupor vivido pelo indivíduo do fim do século XX, acomodado, passivo, consumista, manipulável. Alienado, enfim. O próprio Saramago explica, no documentário Janela da Alma (2002), que

[...] de repente, eu pensei: e se nós fossemos todos cegos? E depois, praticamente no segundo seguinte, eu estava a responder, eu respondia a esta pergunta que tinha feito, mas nós estamos realmente todos cegos! Cegos da razão, cegos da sensibilidade, cegos, enfim, de tudo aquilo que faz de nós não um ser razoavelmente funcional no sentido da relação humana, mas, pelo contrário, um ser agressivo, um ser egoísta, um ser violento, enfim, isso é o que nós somos. E o espetáculo que o mundo nos oferece é precisamente este. Um mundo de desigualdade, um mundo de sofrimento, sem justificação. Com explicação. Podemos explicar o que se passa, mas não tem justificação. (SARAMAGO, 2002)

No Ensaio sobre a cegueira, Saramago inicia uma interlocução com o mito da Caverna, presente no Livro VIII da República, de Platão. Já no final do livro, quando as pessoas começam a recuperar a visão, temos um diálogo entre a protagonista, mulher do médico, e seu marido:

Por que foi que cegamos, Não sei, talvez uma dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. (SARAMAGO, 1995, p. 310)

A alienação que a cegueira representa é, na verdade, o mundo das aparências em que vivemos, acentuado no final do século XX. É como se vivêssemos na caverna, vendo as sombras que se projetam ao fundo, mas não vendo a realidade. Vemos sem ver.

O que eu acho é que nós nunca vivemos tanto na caverna de Platão como hoje. Hoje é que nós estamos a viver de fato na caverna de Platão. Porque as próprias imagens que nos mostram da realidade de alguma maneira substituem a realidade. Nós estamos, estamos num mundo que chamamos o mundo audiovisual. Nós estamos efetivamente a

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repetir a situação das pessoas aprisionadas ou atadas na caverna de Platão olhando em frente, vendo sombras, e acreditando que estas sombras são realidade. Foi preciso passarem todos estes séculos para que a caverna de Platão aparecesse finalmente num momento da história da humanidade, que é hoje. E vai ser, e vai ser cada vez mais. (SARAMAGO, 2002)

A situação caótica criada em Ensaio sobre a cegueira seria, como dito antes, um apelo para não só olharmos, mas repararmos, como encontramos na epígrafe do livro: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (SARAMAGO, 1995). Em um trabalho no qual pretende resgatar a essência humana nos Ensaios de Saramago, SILVA (2006) mostra que a cegueira branca é, na verdade, um resgate da lucidez do homem. Ao cegar todas as pessoas, Saramago teria alcançado a igualdade entre os indivíduos, já que bens de consumo, aparências e status social não têm mais lugar numa sociedade em que se vive de forma tribal, sem as comodidades proporcionadas pela modernidade. Mas o caos vivido pela cegueira obriga um recomeço. Um recomeço igualitário, onde valores como solidariedade e consciência coletiva superam o egoísmo e o individualismo, e a necessidade de sobrevivência supera a idéia de posse. Para SILVA (2006) tal epidemia seria, pois, essencial para a recuperação de uma lucidez indispensável para que uma sociedade justa e igualitária seja possível. Contrariamente às expectativas, no romance de 2000, A Caverna, Saramago parece sepultar a esperança da tomada de consciência dos indivíduos sobre a alienação em que vivem. Nele, o escritor português retoma, agora explicitamente, a alegoria da Caverna de Platão. Nesta história encontramos um homem, Cipriano Algor, de sessenta e quatro anos, oleiro por profissão, que vive de fabricar e vender louças de argila. Um dia, o Centro Comercial para o qual vendia sua produção informa-o que não se interessa mais por tais produtos. Sem ter como se sustentar, Cipriano muda-se para o próprio Centro, para ir viver com a filha e o genro, já que este trabalhava como vigia do Centro Comercial. Já no fim do livro, durante a escavação nas obras do Centro para a construção de novos depósitos frigoríficos, é achada uma gruta e, dentro dela, seis esqueletos humanos, sentados, com o rosto virado para a parede do fundo. É claro que a referência à caverna não se dá simplesmente em decorrência da gruta encontrada nas escavações. A caverna, neste livro, é o próprio Centro Comercial, local de consumismo exacerbado, onde os indivíduos encontram atrações que reproduzem locais, sensações e impressões da vida real, tudo isso sem precisarem sair do shopping. A própria descoberta da “caverna” torna-se, ao fim, uma fonte de lucro para o Centro Comercial, que faz dela mais uma atração que promete alta lucratividade, como diz no cartaz colocado na fachada: “BREVEMENTE, ABERTURA AO PÚBLICO DA CAVERNA DE PLATÃO, ATRACÇÃO EXCLUSIVA, ÚNICA NO MUNDO, COMPRE JÁ A SUA ENTRADA” (SARAMAGO, 2000, p. 350).

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2.2. A lucidez: reconstrução da caverna?

Quatro anos depois, Saramago reacende as esperanças em Ensaio sobre a Lucidez. Como dito acima, o romance de 2004 é um grito contra a cegueira-sombraalienação vivida no mundo capitalista. A ação de votar em branco representa a saída do estupor e inércia dos indivíduos frente ao sistema, e uma tomada de posição lúcida pela mudança. Nas palavras de SILVA

nos “ensaios” de Saramago, este percurso da tomada de consciência (Ensaio sobre a cegueira) à ação lúcida (Ensaio sobre a lucidez), como vimos, ocorre também devido à total falta de horizontes, a uma total privação vivenciada pelos personagens, que passam, então, à organização de um movimento extremamente lúcido pelo voto em branco [...] (SILVA, 2006, p. 73)

A lucidez adquirida pelos indivíduos no romance aparece em vários momentos. Primeiro, é claro, com o voto em branco. Depois, com a demonstração, por parte dos moradores da cidade, de consciência, solidariedade, perdão e apego à verdade[5]. Após a desconstrução do mundo capitalista em Ensaio sobre a cegueira, Saramago constrói o que seria uma sociedade idealizada por Marx, baseada na igualdade e no auto-governo do povo. E o contraste entre os dois sistemas é uma constante no livro, já que os governantes retirados, cegos à escolha do povo, continuam a agir de forma a sustentar o discurso capitalista de liberdade e democracia, contraditoriamente invocados em meio a ações totalitárias, como é ilustrado nas seguintes passagens:

Já os do p.d.m., como oposição que eram, e estando embora de acordo quanto ao fundamental, isto é, a necessidade urgente de apurar responsabilidades e punir os faltosos, ou conspiradores, achavam desproporcionada a instauração do estado de excepção, (...) e que, em última análise, era totalmente desprovido de sentido suspender direitos a quem não havia cometido outro crime que exercer precisamente um deles. (p. 37) (grifo nosso)

Peço licença para recordar ao nosso caro colega e ao conselho, disse o ministro da justiça, que os cidadãos que decidiram votar em branco não fizeram mais que exercer um direito que a lei explicitamente lhe reconhece (...) Os direitos não são abstrações, respondeu o ministro da defesa secamente, os direitos merecem-se ou não se merecem, e eles não o mereceram, o resto é conversa fiada. (p. 62) (grifo nosso).

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Quero dizer que, tendo em conta a gravidade da situação, a ninguém causaria surpresa se eu decidisse assumir as pastas da defesa e do interior, dessa maneira a situação de emergência nacional teria o seu reflexo nas estruturas e no funcionamento do governo, isto é, para uma coordenação total, uma centralização total (...) se eu conseguir triunfar de uma acção subversiva que não teve paralelo em nenhum lugar, uma acção subversiva que veio atingir o órgão mais sensível do sistema, o da representação parlamentar, então a história dar-me-ia um lugar inapagável, um lugar para sempre único, como salvador da democracia. (p. 152) (grifo nosso).

Interessante notar como Saramago deixa claro em Ensaio sobre a lucidez o seu repúdio pela democracia representativa e pela importância que os sistemas capitalistas dão ao parlamento, que, no fim das contas, não só não representa o povo, como ignora cegamente as suas aspirações. Mas apesar do clima de otimismo presente durante quase toda a obra, o ceticismo de Saramago triunfa sobre a esperança de um mundo ideal, mesmo que apenas na ficção[6]. Até meados do livro Ensaio sobre a lucidez, a alusão ao Ensaio anterior parece se resumir apenas no título. Porém, durante uma reunião do conselho de ministros do governo retirado, em meio a uma discussão entre o presidente e o primeiro ministro, que não conseguem achar uma solução para o problema vivenciado, o presidente lamentase, “Entretanto, andaremos para aqui às apalpadelas, às cegas”, no que é completado pelo ministro da cultura, “Tal como há quatro anos”. (SARAMAGO, 2004, p. 170). Neste momento Saramago completa a ligação entre os romances, e o leitor pode compreender que o país em questão é o mesmo onde ocorreu a epidemia de cegueira, assim como reencontra os personagens centrais do romance anterior, como o primeiro cego, o médico oftalmologista, a mulher do médico e o cão das lágrimas. A partir daí, a história toma um rumo diferente. Toda a construção de uma crítica à sociedade capitalista, a tomada de consciência por parte dos indivíduos da desnecessidade de um governo, a realização da utopia de uma sociedade justa e igualitária, mesmo que apenas no campo ficcional, começa a ruir, dando lugar à prevalência, mais uma vez, do sistema anterior, da caverna. A morte dos heróis de ambos os romances, o comissário de polícia e a mulher do médico, assim como do cão das lágrimas, assassinados a mando do governo, parecem dizer que, não importa o quanto se lute contra o sistema, ele sempre elimina os elementos subversivos para se manter. E a última cena do livro Ensaio sobre a lucidez é emblemática para ilustrar a iminência do retorno à cegueira: Então um cego perguntou, Ouviste alguma coisa, Três tiros, respondeu outro, Mas havia também um cão aos uivos, Já se calou, deve ter sido o terceiro tiro, Ainda bem, detesto ouvir cães a uivar. (SARAMAGO, 2004, p. 325)

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SILVA (2006), que interpreta que o Ensaio sobre a lucidez é, na verdade, um retorno à cegueira, comenta que os dois cegos não só sabem perfeitamente que o que ouviram foram tiros e que os dois primeiros foram possivelmente dirigidos à pessoas, restando o terceiro ao cão, como não se sensibilizam com o acontecido, mas sim demonstram uma completa indiferença ou alheamento. Podemos também interpretar os cegos como o próprio governo (ou o próprio sistema), que se manteve todo o tempo cego, e finalmente dá um basta às manifestações (uivos) dos indivíduos (cães) da cidade. Diante disto, e concebendo os romances Ensaio sobre a cegueira, A Caverna e Ensaio sobre a lucidez como três momentos complementares de uma mesma obra, podemos afirmar que José Saramago cria uma distopia[7]. Certamente não tão explícita quanto 1984, de Georg Orwell, ou Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, mas mais sutil, mais requintada, mas na qual o sistema prevalece, apesar de tudo.

3. DIALÉTICA ENTRE DIREITO E LITERATURA

Apesar das diferenças marcantes entre as duas áreas do conhecimento, direito e literatura têm mais em comum do que uma análise superficial faz parecer. François Ost (2004) fala com propriedade sobre as diferenças e similitudes entre direito e literatura, enumerando 4 principais diferenças: 1) o direito codifica a realidade e institui uma rede de convenções, enquanto que a literatura “libera os possíveis”, desordena convenções e certezas (papel crítico); 2) o direito, para manter esse real convencionado, é preso no cumprimento das escolhas que faz (segurança jurídica), enquanto a literatura é livre para o imaginativo e para a surpresa; 3) o direito produz pessoas com traços normativos determinados, convencionados, enquanto a literatura produz personagens ambivalentes, ambíguos, contraditórios; 4) o direito pretende a generalidade e abstração, enquanto a literatura cria personagens e histórias específicas, particulares. Mas, na verdade, o direito também exerce funções instituintes, deixa margem para a flexibilidade da ação dos atores, e gera práticas e discursos diferentes dos modelos oficiais do direito instituído. Assim como a literatura também obedece formas instituídas (da própria escrita), conta histórias não só individuais mas também de alcance universal, e é uma forma usual de fixar no público o vocabulário das instituições jurídicas. Ou seja, ao invés de uma relação de simples animosidade, direito e literatura têm uma relação de “empréstimos recíprocos e trocas implícitas” (OST, 2004, p. 23). Esse campo de concordância entre direito e literatura é chamado por Ost de retorno dialético. E na literatura de José Saramago observamos vários elementos que realizam essa convergência. Saramago, em seus Ensaios, cria personagens individualizados, porém sem nomes próprios, assim como o desenrolar das histórias se dá em um país e uma cidade sem nomes. Tal ausência pode significar a intenção do escritor em universalizar aquela

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situação particularizada nos romances, de forma a mostrar que a cegueira ou lucidez ilustradas não são comportamentos de determinados personagens, de um país específico, mas são universais, observáveis em distintos e múltiplos lugares e pessoas. Como lembra Ost, a imersão da literatura no particular pode ser o caminho mais rápido para se alcançar o universal. Ademais, a caracterização dos personagens por posição social, grau de parentesco ou profissão, reforçam a idéia de que os fatos narrados não se tratam apenas de ficção, mas podem ocorrer, e de fato ocorrem, na vida real. O burlesco ficcional nos impõe uma análise da realidade, e acabamos descobrindo que ou a realidade é tão caricatural quanto a ficção, ou esta não se afasta tanto daquela. Afinal, num país onde os cidadãos são saturados com informações de políticos corruptos e escândalos de “mensalões”, esquemas das ambulâncias, cartões corporativos, e não obstante continuam a votar e eleger os mesmo políticos envolvidos em tais práticas ilícitas (que continuam ignorando os interesses dos seus eleitores), só podem estar, todos, cegos. Estas provocações fazem com que o direito, que se pretende ser coordenador e transformador da realidade, interrogue-se sobre tal situação, aqui particularmente sobre a crise da democracia representativa e da sociedade capitalista. Reforçar a democracia direta e institucionalizar o poder comunicativo observado na esfera pública, de forma que ele determine o poder administrativo[8], são medidas indispensáveis para a realização de uma sociedade igualitária, sem que para isso voltemos à era tribal.

4. CONCLUSÃO

Certamente, uma análise superficial sobre a rotina do Estado brasileiro, sobretudo o que nos mostra a mídia, pode nos conduzir à conclusão simplista de que estamos todos cegos, aprisionados na caverna, vivendo de sombras. Mas, se procurarmos bem em fontes outras que não o do frágil senso comum, podemos perceber que uma outra realidade está sendo construída. Uma outra democracia, direta e participativa, força os limites do instituído e tenta se firmar. A sociedade civil está cada vez mais organizada, segmentada, e sob a forma de associações, organizações e outros tipos de grupos os indivíduos utilizam as armas que a Constituição democrática lhes dá para se apropriar do poder que lhes é próprio e construir uma sociedade que seja realmente democrática. Talvez a democracia “real”, plena e direta, e uma ordem jurídica libertária, igualitária e solidária, sejam ainda utopias. Mas é preciso continuar a olhar e uivar, para que possamos um dia ver e reparar.

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5. BIBLIOGRAFIA

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[1] São vários os artigos da Constituição brasileira de 1988 que fundamentam a participação direta do povo, seja no papel de constituintes (artigos 102, III, “b”, 103, VII, VIII, IX), de administradores (artigos 5°, LXXIII, XVII, XVIII, 37, caput e §3°, 129, III), de legisladores (artigos 14, 61, caput e §2°) e de jurisdicionados (artigos 5°, XXXV, LV, 133), além de vasta legislação infraconstitucional. [2] Entrevista dada à agência Lusa, de Lisboa, e publicada no Jornal Folha de São Paulo Online dia 24/03/2004. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u42705.shtml. [3] Entrevista dada ao Jornal O Estado de São Paulo, e publicado em seu site em 20/03/2004. Disponível em http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2004/not20040320p4494.htm [4] Epígrafe de Ensaio sobre a lucidez.

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[5] Várias passagens do texto indicam tais sentimentos e/ou atitudes: quando os moradores saem para limpar as ruas da cidade, em decorrência da greve dos lixeiros forçada pelo governo; quando ajudam os eleitores do partido da direita a se estabelecerem em suas casas, após uma tentativa frustrada de sair da cidade sitiada; na negação do inspetor de polícia em acusar sem provas a mulher do médico pelo movimento conspirador, entre outros. [6] Não só na ficção, como também na realidade. Saramago, apesar de não abandonar a ideologia e o partido comunista, já declarou várias vezes que nenhum governo ou partido de esquerda, em nenhum lugar do mundo, tem um plano de ação satisfatório para contornar o capitalismo e todos os valores que ele representa, e se entregam, no fim, ao sistema. [7] De acordo com François Ost (2004), o termo distopia opõe-se ao termo utopia, significando o desencantamento do mundo conduzido pela modernidade. Nas distopias, são mostradas situações de desregramentos do espaço, do tempo, do direito, e de mundos “pouco habitáveis pelos homens” (p. 374). [8] Aqui nos baseamos na teoria discursiva do direito de Jürgen Habermas (2003) que, por sua vez, traz para sua teoria a idéia de poder comunicativo de Hannah Arendt. O poder comunicativo é o resultado de “uma vontade comum formada numa comunidade não coagida (...), que nasce da capacidade humana de agir ou de fazer algo, de se associar com outros e de agir em afinação com eles.” (p. 187). Por sua vez, “se o poder da administração do Estado, constituído conforme o direito, não estiver apoiado num poder comunicativo normatizador, a fonte de justiça, da qual o direito extrai sua legitimidade, secará.” (p. 186).

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