A Democracia nos Media Portugueses: Pluralismo Político Partidário na Televisão e Imprensa

May 25, 2017 | Autor: Susana Rogeiro Nina | Categoria: Media Studies, Political Science, Media and Democracy, Public Policy
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Democracia nos Meios de Comunicação

Pluralismo, Liberdade de Expressão e Informação

Enzo Bello Samantha S. Moura Ribeiro (organizadores)

www.lumenjuris.com.br Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida Conselho Editorial Adriano Pilatti Alexandre Bernardino Costa Alexandre Morais da Rosa Ana Alice De Carli Beatriz Souza Costa Bleine Queiroz Caúla Caroline Regina dos Santos Daniele Maghelly Menezes Moreira Diego Araujo Campos Emerson Garcia Firly Nascimento Filho Flávio Ahmed Frederico Antonio Lima de Oliveira Frederico Price Grechi

Geraldo L. M. Prado Gina Vidal Marcilio Pompeu Gisele Cittadino Gustavo Noronha de Ávila Gustavo Sénéchal de Goffredo Helena Elias Pinto Jean Carlos Fernandes Jerson Carneiro Gonçalves Junior João Carlos Souto João Marcelo de Lima Assafim João Theotonio Mendes de Almeida Jr. José Emílio Medauar Josiane Rose Petry Veronese Leonardo El-Amme Souza e Silva da Cunha

Lúcio Antônio Chamon Junior Luigi Bonizzato Luis Carlos Alcoforado Luiz Henrique Sormani Barbugiani Manoel Messias Peixinho Marcellus Polastri Lima Marcelo Ribeiro Uchôa Márcio Ricardo Staffen Marco Aurélio Bezerra de Melo Ricardo Lodi Ribeiro Roberto C. Vale Ferreira Sérgio André Rocha Victor Gameiro Drummond Sidney Guerra

Conselheiro benemérito: Marcos Juruena Villela Souto (in memoriam) Conselho Consultivo Andreya Mendes de Almeida Scherer Navarro Antonio Carlos Martins Soares Artur de Brito Gueiros Souza

Caio de Oliveira Lima Francisco de Assis M. Tavares Ricardo Máximo Gomes Ferraz

Airton L. Cerqueira Leite Seelaender, Carlos Affonso Souza, Enzo Bello, Fábio Carvalho Leite, Fábio Steibel, Gilberto Bercovici, Jorge Resina, José Santana-Pereira, Júlio Longo, Leonardo Rezende Cecílio, Mario Viola, Martín Becerra, Palmira Chavero, Ricardo Porto, Roberto Gargarella, Ronaldo Lemos, Samantha S. Moura Ribeiro, Susana Rogeiro Nina, Vanessa Vargas

Democracia nos Meios de Comunicação

Pluralismo, Liberdade de Expressão e Informação

Filiais Sede: Rio de Janeiro Av. Presidente Vargas - n° 446 – 7° andar - Sala 705 CEP: 20071-000 Centro – Rio de Janeiro – RJ Tel. (21) 3933-4004 / (21) 3249-2898 São Paulo (Distribuidor) Rua Sousa Lima, 75 – CEP: 01153-020 Barra Funda – São Paulo – SP Telefax (11) 5908-0240

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Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2016

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Lista de Colaboradores

Categoria: Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Diagramação: Bianca Callado A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu Autor. É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE ________________________________________

Airton L. Cerqueira Leite Seelaender: Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Anna Cecília Faro Bonan: mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista da CAPES. Bernardo Xavier dos S. Santiago: Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Bolsista pela CAPES. Carlos Affonso Souza: Doutor e Mestre em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS). Professor da Faculdade de Direito da UERJ e da PUC-Rio. Pesquisador Visitante do Information Society Project, da Faculdade de Direito da Universidade de Yale. Membro da Comissão de Direito Autoral, Direitos Imateriais e do Entretenimento da OAB/RJ. Enzo Bello: Pós-doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www. culturasjuridicas.uff.br). Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES). Fábio Carvalho Leite: Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Professor Assistente de dedicação exclusiva da PUC-Rio. Bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq. Professor de Direito Constitucional e Coordenador adjunto da pós-graduação em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio. Assessor Jurídico Adjunto da Reitoria da PUC-Rio. Membro do Núcleo de Estudos Constitucionais

da PUC-Rio (NEC/PUC-Rio) e da Comissão de Direito Constitucional da OAB-RJ (2016- ). Fábio Steibel: Professor de inovação e tecnologia na ESPM Rio. Pesquisador Independente da Parceria de Governo Aberto no Brasil e fellow em governo aberto pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Pesquisador Visitante na Universidade das Nações Unidas e na Universidade da Califórnia San Diego. Pós-doutor em consultas públicas pela UFF. Doutor em Comunicação pela Universidade de Leeds (UK). Coordenador-geral de projetos do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Gilberto Bercovici: Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Jorge Resina: Doutor em Ciência Política pela Universidad Complutense de Madrid. José Santana-Pereira: Doutor em Ciências Políticas e Sociais pelo Instituto Europeu Universitário (IUE), Florença/Itália. É atualmente investigador no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa e Professor Auxiliar Convidado no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. Júlio Longo: Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Leonardo Rezende Cecílio: Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (PPGDC/UFF). Mario Viola: Coordenador da área de privacidade e proteção de dados do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Professor do Instituto Brasileiro de Mercados de Capitais (IBMEC). Doutor em Direito pelo Instituto Universitário Europeu (Itália). Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Martín Becerra: Doutor em Ciências da Informação (Universidad Autónoma de Barcelona). É Pesquisador Independente no CONICET. Professor titular da Universidad Nacional de Quilmes (UNQ) e da Universidad de Buenos Aires (UBA). Seu blog é http://martinbecerra.wordpress.com/ e seu nome de usuário no Twitter @aracalacana.

Palmira Chavero: PhD em Ciências da Comunicação e Sociologia pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha). Professora Titular de Comunicação na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO)-Equador. Pesquisadora do Grupo de Investigación en Gobierno, Administración y Políticas Públicas (GIGAPP). Ricardo Porto: Mestrando em Direito e Pós-graduado em Direito Constitucional e Direitos Humanos pela Universidad de Palermo. Secretário da Comissão de Sistemas, Meios de Comunicação e Liberdade de Expressão do Senado da Nação Argentina. Docente de pós-graduação e autor de diversas obras sobre direito das comunicações. Advogado. Roberto Gargarella: Mestre e Doutor em Direito pela University of Chicago. Professor da Universidad de Buenos Aires e da Universidad Torcuato di Tella. Diretor da Revista Argentina de Teoría Jurídica. Blog: http://seminariogargarella.blogspot.com.br/. Ronaldo Lemos: Professor de Direito na Graduação e na Pós-Graduação da UERJ. Mestre em Direito pela Universidade de Harvard. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Pesquisador visitante do MIT Media Lab. Professor visitante da Universidade de Princeton, afiliado ao Center for Information Technology Policy. Professor visitante da Universidade de Oxford. Membro do Conselho de Comunicação Social, com sede no Senado Federal. Diretor e fundador do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Liaison Officer do MIT Media Lab para o Brasil. Samantha S. Moura Ribeiro: Doutora em Direito pelo Instituto Universitário Europeu em Florença (Itália). Professora do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e membro do Núcleo de Estudos Constitucionais da PUC-Rio (NEC/PUC-Rio). Susana Rogeiro Nina: Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, vertente Ciência Política, pela Universidade da Beira Interior (Covilhã, Portugal). Atualmente é mestranda em Ciência Política no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. Vanessa Vargas: pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS).

Sumário Lista de Colaboradores................................................................................ V Apresentação................................................................................................

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Parte I. Brasil Os Meios de Comunicação no Brasil Atual: Entre a Normatividade Democrática da Constituição e a Realpolitik da Mídia Oligárquica................................................................... 5 Enzo Bello Samantha S. Moura Ribeiro Radiodifusão e Defesa do Pluralismo na Constituição Brasileira: a Questão das Concessões, Permissões e Autorizações de Radiodifusão para Pessoas Jurídicas com Sócios Titulares de Mandato Político Eletivo ..................................... 13 Gilberto Bercovici Airton L. Cerqueira Leite Seelaender Marco Civil da Internet: uma Construção Multissetorial.......................... 43 Fabro Steibel Carlos Affonso Souza Ronaldo Lemos Breves Considerações sobre o Direito ao Esquecimento no Brasil: Lições do Supremo Tribunal Federal no Caso das Biografias não Autorizadas.................................................................... 59 Mario Viola Vanessa Vargas Programando Multidões: Algoritimos, Revoluções e Democracia............ 69 Leonardo Rezende Cecilio Rastros Digitais: entre a Superexposição e a Vigilância............................. 97 Julio Longo

Apresentação

Parte 2. América Latina e Europa Políticas Públicas de Comunicação: Progressos e Desafios da Democratização da Comunicação no Equador..................... 123 Palmira Chavero A Concepção Constitucional da Liberdade de Expressão........................ 137 Roberto Gargarella Muda, Tudo Muda: Sistema de Mídias e Regulação na Argentina Contemporânea......................................................................... 159 Martín Becerra Os Movimentos Sociais Vinculados à Comunicação e a Lei de Mídias.................................................................................................181 Ricardo Porto Regulação dos Meios de Comunicação e o Desafio do Controle de Conteúdo: Dificuldades no Brasil e Algumas Contribuições da Alemanha....................................................................... 201 Fábio Carvalho Leite A Democracia nos Media Portugueses: Pluralismo Político-Partidário na Televisão e na Imprensa......................................... 225 José Santana-Pereira Susana Rogeiro Nina Tem Alguém Ai? Entre o Eco Digital e um Novo Diálogo dos Comuns: Comunicação Política, Internet e Democracia, um Estado de Coisas.................................................................................... 249 Jorge Resina

O livro coletivo ora publicado é resultado de uma parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), e o Núcleo de Estudos Constitucionais (NEC) do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), que organizaram o “I Seminário Internacional Democracia nos Meios de Comunicação: pluralismo, liberdade de expressão e informação”1, realizado nos dias 10 e 11 de setembro de 2016, nas sedes das duas universidades, nas cidades de Niterói e do Rio de Janeiro. O objetivo principal do Seminário, que se amplia com a publicação da presente obra, é aprofundar o debate sobre o papel fundamental dos meios de comunicação para o estabelecimento de uma democracia funcional. A possibilidade de ter contato de forma reflexiva com a experiência de regulação em outros Estados democráticos amplia os horizontes e contribui para o avanço na busca de soluções capazes de garantir entre nós o livre acesso à informação. Para esse fim, torna-se indispensável a análise cuidadosa dos efeitos da penetração da Internet como fator determinante das novas formas de comunicação e relação social que se constroem atualmente. Os potenciais democráticos, bem como os desafios impostos pelas novas tecnologias de comunicação que transpassam fronteiras e horizontalizam a produção e o acesso à informação são objetos centrais dos debates sobre a democracia nos meios de comunicação. O Seminário teve a participação de pesquisadores e professores, brasileiros e estrangeiros, de graduação e pós-graduação, de diversas instituições, tais como Universidade Federal Fluminense (UFF), Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC), Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO) – Equador, Instituto Universitário Europeu (IUE) – Itália, Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa – Portugal, e Universidad Complutense de Madrid - Espanha.

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Para evidências sobre o evento, com o registro de suas atividades, veja-se a página: http:// ppgdcuffseminario1.wix.com/dmcseminario.

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O Seminário se valeu da tecnologia da informação não apenas como objeto fundamental dos debates empreendidos, mas também como meio para encurtar as distâncias e permitir a interação em tempo real com professores estrangeiros. Palmira Chavero e Jorge Resina falaram a partir de seus gabinetes de pesquisa em seus respectivos países, Equador e Espanha. Do Brasil, entre os expositores, merece destaque a participação do deputado federal Alessandro Molon, que por ter atuado como relator do projeto de lei que resultou no Marco Civil da Internet, contribuiu para a compreensão profunda das nuances e desafios do processo de aprovação de uma lei construída de forma participativa e multissetorial. Após o evento, os conferencistas e outros convidados elaboraram os artigos ora publicados, a partir das discussões realizadas e o acúmulo de conhecimento reunido com o Seminário. Os textos possuem como eixo condutor a discussão acerca da democracia nos meios de comunicação, num viés interdisciplinar, conjugando abordagens do Direito, da Comunicação Política e Social, da Filosofia, da Economia, da Sociologia, da Tecnologia da Informação. O seminário também realizou grupos de trabalho para apresentação de dezenas de resumos expandidos que, avaliados pelo sistema double blind peer reivew, foram expostos e debatidos nos seguintes eixos temáticos: (i) Liberdade de expressão na internet: garantias e limites; (ii) democracia, participação política e acesso à informação: empoderamento e mídia; (iii) Proteção de dados e direito ao esquecimento; (iv) Regulação da mídia no Brasil e no Direito Comparado: rádio, televisão e internet. Os resumos constarão em Anais a serem divulgados em formato eletrônico (ebook). Agradecemos a Anna Cecília Faro Bonan e Bernardo Xavier dos S. Santiago pelo auxílio na tradução de textos do espanhol para o português, bem como aos discentes do PPGDC-UFF e à equipe do NEC-PUC-Rio, que foram fundamentais para a realização do evento. Por fim, agradecemos aos avaliadores externos dos resumos submetidos, que realizaram os julgamentos no sistema double blind peer review e contribuíram para o sucesso dos debates. Niterói e Rio de Janeiro, maio de 2016.

Enzo Bello Samantha S. Moura Ribeiro

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Parte I Brasil

Os Meios de Comunicação no Brasil Atual: Entre a Normatividade Democrática da Constituição e a Realpolitik da Mídia Oligárquica Enzo Bello2 Samantha S. Moura Ribeiro3 Em outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil normatizou o objetivo de concretizar uma democracia plena. A reconstrução democrática, após duas décadas de regime autoritário, e em um contexto de profunda desigualdade socioeconômica, requer a domesticação dos fatores reais de poder através da vontade constitucional de mudança. A incorporação do ethos da mudança identificada como o modelo da Constituição Dirigente rendeu à nossa Constituição Cidadã acusações de ser desligada da realidade e meramente nominal. Desde então, a história foi marcada por disputas entre a vontade constitucional de se construir uma sociedade “fraterna, pluralista e sem preconceitos” e a resistência dos setores beneficiados pelas relações de poder até então estabelecidas. Uma democracia plena pressupõe inclusão e participação de todos os cidadãos no debate público que define as regras que pautam a convivência social. Só assim é possível garantir a abertura de horizontes necessária à representação ampla de diversas visões de mundo. Caso exista a exclusão de pessoas e grupos sociais dessa participação, o que se tem é uma visão de mundo aparentemente 2

Pós-doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br). Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES).

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Doutora em Direito pelo Instituto Universitário Europeu em Florença (Itália). Professora do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e membro do Núcleo de Estudos Constitucionais da PUC-Rio (NEC/PUC-Rio).

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Enzo Bello Samantha S. Moura Ribeiro

consensual, mas cunhada por aqueles a quem o acesso à informação e a definição do debate público são franqueados. A democracia pressupõe debate público permeado por igualdade material e pluralidade de visões de mundo. Na nossa Constituição, para além do artigo 5o, que elenca entre os direitos fundamentais e individuais a liberdade de pensamento, de expressão e o acesso à informação, o art. 220 inaugura o capítulo sobre comunicação social assegurando que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação devem ser livres de qualquer restrição. Mais a frente, o § 5o expressamente inclui entre as restrições à informação que não devem ser toleradas aquelas decorrentes de distorções do mercado: “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. A existência de meios de comunicação livres, independentes e informativos é fundamental para o bom funcionamento da democracia, pois é ela que permite o contato das pessoas com diversas versões, opiniões e perspectivas, equipando-as com o instrumental necessário para exercer a sua cidadania de forma autônoma. Ao contrário do que determina a Constituição, o Brasil vem por muito tempo vivendo essa realidade excludente em que poucos controlam a pauta de discussão política e definem para si e para os outros as narrativas políticas e a identidade cultural. Tal exclusão fere a Constituição tanto em nível principiológico – contrariando a opção fundamental por uma sociedade democrática e, portanto, plural, inclusiva e fraterna –, como também naquilo que diz respeito especificamente às garantias de acesso à informação e à regulação dos meios de comunicação social. Menos de uma dezena de famílias tradicionais controlam os principais meios de comunicação social do país, e inúmeros políticos em exercício de mandatos públicos eletivos são donos ou acionistas de empresas privadas de serviços de telecomunicações, o que viola o art. 54, II, ‘a’, da CF. Quanto a este último caso, tramita no STF a ADPF 246, que visa a cancelar a outorga de concessões públicas para esse verdadeiro “coronelismo eletrônico”4, o que sequer deveria ter ocorrido. Nessas condições de um oligopólio plutocrático, o mesmo discurso ideológico se produz e reproduz, tornando-se o meio mais poderoso de resistência 4

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SANTOS, Suzy dos. E-Sucupira: o Coronelismo Eletrônico como herança do Coronelismo nas comunicações brasileiras. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, dez., 2006, p. 1-27. Disponível na internet em: www.compos.com.br/e-compos.

Os Meios de Comunicação no Brasil Atual: Entre a Normatividade Democrática da Constituição e a Realpolitik da Mídia Oligárquica

reacionária às mudanças democráticas constitucionais. Apelando-se inclusive para interpretações distorcidas de valores democráticos, difunde-se a ideia de que qualquer regulação dos meios de comunicação é uma forma de censura. Trata-se do que Owen Fiss chama de “efeito silenciador do discurso”5. Paradoxalmente, as oligarquias proprietárias de empresas privadas que exploram lucrativamente canais públicos de comunicação abafam o debate democrático, através de uma retórica falaciosa e vitimista de que disciplinas estatais de pluralização seriam intervenções ilegítimas na liberdade de imprensa. A falsidade do consenso narrativo se tornou clara a partir da penetração da Internet, notadamente a partir da popularização da criação de portais, blogs e mais recentemente das redes sociais. A Internet passa a dar visibilidade a contra narrativas, não mais permitindo a construção exógena de significados6. A Internet se torna um canal de expressão, discussão e mobilização política daqueles sujeitos até então invisibilizados pela mídia tradicional. A consequência off-line desse movimento se tornou aparente a partir de junho de 2013, quando houve diversos movimentos populares de protestos pedindo maior permeabilidade do sistema político, maior inclusão social e, principalmente, maior acesso à cidade. Junho de 2013 causou efeitos distintos: enquanto uns foram invadidos pela esperança de que o empoderamento informacional e político trazido pela Internet não mais poderia ser revertido, outros que viviam beneficiados pelo consenso narrativo ilusório sentiram-se fortemente ameaçados. A partir daí as divisões e polarizações existentes, mas até então passíveis de serem ignoradas, ou ao menos não vociferadas, vieram à tona com uma potência alarmante. A resistência à inclusão do outro se deu através de um discurso conservador amplo e aberto, e da instrumentalização de todos os meios para a sua propagação. O governo que, em princípio sinalizou uma disposição a ouvir a voz das ruas7, em seguida se fechou, deixando de atender as demandas por abertura e diálogo. Nesse momento se tornou claro que, não obstante a abertura trazida pelos canais da Internet e a mídia alternativa, que permitiram a expressão de vozes silenciadas, ela não era suficiente em face da instrumentalização da mídia tra5

FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade da esfera pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 78.

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Cf. RIBEIRO, 2016.

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Manuel Castells (2015) aponta a reação do governo brasileiro como pioneira e exemplar, ao sinalizar essa abertura ao diálogo.

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dicional. O acesso à internet se tornou mais amplo a partir da Internet móvel e dos smartphones, e tal forma de acesso permitiu o uso das redes sociais e da Internet principalmente pelos mais jovens. Contudo, a população em sua grande maioria ainda se informa através da mídia tradicional; portanto, ainda é essencial que se busque efetivar os ditames constitucionais de regulação para impedir o oligopólio e garantir que os canais de mídia tradicional não produzam uma só visão parcial e hegemônica. A necessidade de uma mídia livre e plural no Brasil revelou-se ainda mais urgente nos últimos anos. O relatório publicado pelos Repórteres Sem Fronteiras (RSF) em abril de 2016 aponta que o Brasil se tornou um país menos livre, tendo caído quarenta e seis posições no índice de liberdade de imprensa nos últimos cinco anos. Entre os problemas principais estão a violência e a hostilidade contra jornalistas, acirradas pela instabilidade política em um contexto em que a propriedade e o controle da mídia continuam concentrados nas mãos de famílias do setor industrial, ligadas à classe política8. Já em 2013, o relatório da RSF descrevia o Brasil como “O País de Trinta Berlusconis”9, e destacava o comentário do então Ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, que era mais fácil afastar um presidente do que retirar a concessão de transmissão de qualquer político. De fato, tal afirmativa mostrou-se quase premonitória em face dos recentes acontecimentos na política brasileira, em que um processo de impeachment caracteriza-se como um verdadeiro golpe, manejado numa articulação midiática e judiciária, contra a soberania popular do voto. Em um momento de recessão econômica e instabilidade política, com alto índice de reprovação do governo federal, o poder da mídia tradicional reassumiu papel determinante para a formação da opinião pública e construção da saída política mais benéfica para as tradicionais oligarquias industriais – midiáticas. Tais acontecimentos mostram que o potencial democrático da Internet ainda não acessível a todos é passível de bloqueio em face de um discurso parcial e hegemônico da mídia tradicional. Diante desse cenário, a defesa de uma

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REPORTERS WITHOUT BORDERS, FOR FREEDOM OF INFORMATION. 2016 World Press Freedom Index. Disponível na internet em: https://rsf.org/en/ranking.

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REPORTERS WITHOUT BORDERS, FOR FREEDOM OF INFORMATION. The Country of Thirty Berlusconis Brazil January 2013. Disponível na internet em: https://rsf.org/sites/default/ files/brazil_report.pdf

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Os Meios de Comunicação no Brasil Atual: Entre a Normatividade Democrática da Constituição e a Realpolitik da Mídia Oligárquica

pauta que inclua a regulação estrutural das concessões para garantir o livre acesso à informação torna-se urgente. Se a garantia da neutralidade do discurso midiático tem se provado uma utopia, ao menos o livre acesso à pluralidade de parcialidades deve ser garantido ao cidadão, para que faça suas escolhas de forma consciente e autônoma.Nesse sentido, algumas ações vêm sendo adotadas no âmbito do Estado brasileiro, a partir de reivindicações da sociedade civil baseadas nos avanços da tecnologia da informação. (i) O governo federal vem investindo, desde 2010, no Plano Nacional de Banda Larga, que visa a ampliar e democratizar o acesso à internet de alta velocidade através de um plano de banda larga popular, o “Programa Banda Larga para Todos”, que almeja proporcionar acesso à Internet a 95% da população brasileira. O número saltou de 30% de 2006 para 58% em 201510, porém a falta de investimentos mais expressivos, somada à falta de qualidade do serviço e a outros fatores políticos e de gestão, torna a meta inicial bastante improvável. (ii) Enquanto ainda vige o antigo Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, atualizado pela Lei Geral de Telecomunicações, de 1997, o Congresso Nacional não avança na regulamentação de normas constitucionais que tratam da democratização dos meios de comunicação, restando com a tramitação parada os Projetos de Lei 256/91 e 6446/13, que versam sobre a produção regional independente na televisão aberta e o direito de resposta, respectivamente. (iii) Em 2014, após um longo processo, foi aprovado o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965), bastante celebrado pelo procedimento democrático da sua elaboração e pelo seu conteúdo dedicado a à garantia dos direitos dos usuários da Internet e à proteção da Internet livre e aberta. Contudo, o Marco Civil é alvo de constante ataque, seja pelas interpretações judiciais equivocadas contrárias à sua finalidade11, seja pelas constantes propostas legislativas de emendá10 ONUBR. Quase 60% da população brasileira tem acesso à internet, aponta relatório da CEPAL. 05/08/2015. Disponível na internet em: https://nacoesunidas.org/quase-60-da-populacao-brasileiratem-acesso-a-internet-aponta-relatorio-da-cepal/ 11 O espaço para interpretações equivocadas tende a diminuir com a entrada em vigor do Decreto nº 8.771, de 11 de Maio de 2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet. O Decreto foi aprovado no último dia do governo da Presidenta Dilma Rousseff antes do afastamento decorrente da decisão do Senado de apreciar o pedido de impedimento. O Decreto reafirma o princípio da neutralidade da rede, proibindo acordos entre operadoras e provedores que priorizem pacotes de dados ou privilegiem aplicações, comprometendo o acesso livre e irrestrito à Internet. Além disso, indica procedimentos para a guarda e a proteção de dados, impõe medidas de transparência, e parâmetros para a fiscalização de infrações. De uma forma geral, o Decreto reafirma o caráter democrático aberto e plural da

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Enzo Bello Samantha S. Moura Ribeiro

-lo e contrariá-lo naquilo que lhe é mais caro: a neutralidade da rede, a limitação da responsabilidade dos provedores, e as garantias de liberdade de expressão e privacidade dos usuários. Enquanto isso, não há ações concretas para a descriminalização das rádios comunitárias.(iii) Tramitam no STF, desde 2010, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade por Omissão (ADOs) nº 10 e 11, que pedem a declaração de mora do Congresso Nacional quanto à regulamentação legal de exigências constitucionais envolvendo o direito de resposta (art. 5º, V), os princípios da produção e programação das emissoras de rádio e televisão (art. 221), além da regulação dos meios de comunicação para que se dissipe o seu antigo oligopólio (art. 220, §5º). Os processos encontram-se parados no gabinete do Min. Gilmar Mendes. De todo modo, tais iniciativas ainda não foram capazes de garantir o livre acesso à informação. A partir do fator tecnologia, em junho de 2013 ficou patente no Brasil o crescimento da busca por informações em meios alternativos aos tradicionais, o que se repetiu nas eleições de 2014. Esse fenômeno já havia ocorrido nas eleições presidenciais de 2008 nos EUA e 2011 no Peru, respectivamente, nas quais as campanhas de Barack Obama e Ollanta Humalla contaram com coordenações de redes sociais, que foram decisivas para o ganho de votos entre inúmeros jovens ao abordá-los no espaço das redes e com a linguagem destas. No aspecto econômico, a migração de publicidades e de grandes anunciantes da TV aberta para as mídias da Internet tem reduzido drasticamente o faturamento da maior emissora do Brasil. Simultaneamente, iniciativas como o Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações (FNDC) e os recentes movimentos sociais nas redes demonstram uma migração também de usuários, que cada vez mais deixam para trás a passividade do modelo da televisão, no qual só se recebe informação, e assumem uma postura também ativa expondo suas opiniões, posicionamentos e visões de mundo. E mais, criam novas mídias e articulam ações concretas voltadas à democratização do acesso à informação, de modo amplo e plural, mostrando que é possível a cada cidadão, por conta própria, construir canais e conteúdos de comunicação. Recupera-se assim um fato esquecido ou mascarado: antes de serem mercadorias, a comunicação e a informação representam relações sociais entre pessoas. Esses parecem ser o

Os Meios de Comunicação no Brasil Atual: Entre a Normatividade Democrática da Constituição e a Realpolitik da Mídia Oligárquica

espaço e os atores de uma desejosa e necessária mudança de perspectiva – da Realpolitik da mídia oligárquica para o pluralismo democrático preconizado pela normatividade da Constituição Federal de 1988.

Referências CASTELLS, M. Networks of Outrage and Hopes: Social Movements in the Internet Age. Cambridge: Polity Press, 2015. FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade da esfera pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. ONUBR. Quase 60% da população brasileira tem acesso à internet, aponta relatório da CEPAL. 05/08/2015. Disponível na internet em: https://nacoesunidas.org/quase-60-da-populacao-brasileira-tem-acesso-a-internet-aponta-relatorio-da-cepal/. REPORTERS WITHOUT BORDERS, FOR FREEDOM OF INFORMATION. 2016 World Press Freedom Index. Disponível na internet em: https:// rsf.org/en/ranking _____. The Country of Thirty Berlusconis Brazil January 2013. Disponível na internet em: https://rsf.org/sites/default/files/brazil_report.pdf RIBEIRO, Samantha S. M. Democracy after the Internet – Brazil between Facts, Norms, and Code. Law, Governance and Technologies Series Springer International Publishing. Switzerland, 2016 (no prelo). SANTOS, Suzy dos. E-Sucupira: o Coronelismo Eletrônico como herança do Coronelismo nas comunicações brasileiras. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, dez., 2006, p. 1-27. Disponível na internet em: www.compos.com.br/e-compos

Internet ao garantir a neutralidade e aumentar os poderes de gestão do Comitê Gestor da Internet, de formação técnica e multissetorial, em face da Anatel.

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Radiodifusão e Defesa do Pluralismo na Constituição Brasileira: a Questão das Concessões, Permissões e Autorizações de Radiodifusão para Pessoas Jurídicas com Sócios Titulares de Mandato Político Eletivo Gilberto Bercovici12 Airton L. Cerqueira Leite Seelaender13

1. A Violação do Direito à Liberdade de Expressão e a Ameaça à Autonomia da Imprensa A Constituição não nega ao político, visto como cidadão ou como sócio de pessoa jurídica atuante no ramo da radiodifusão, o direito de se expressar livremente. Para tanto, há respaldo tanto no artigo 5º, IX14 quanto no artigo 220, caput15 da Constituição de 1988. Em uma interpretação sistemática que observe o “princípio do legislador racional”, base de toda interpretação técnico-jurídica adequada16, deve-se observar, contudo, que a existência de duas referências constitucionais à “liberdade de expressão” só faz sentido, a rigor, se uma delas tiver algo de específico, de singular, que da outra a possa distinguir, mesmo que ligeiramente. 12 Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 13 Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. 14 Artigo 5º, IX da Constituição de 1988: “IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. 15 Artigo 220, caput da Constituição de 1988: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. 16 Sobre o tema NIÑO, 1987, p. 328 e ss.; e FERRAZ JR., 1988, p. 254-255.

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Esse aspecto singular se revela claramente no artigo 220. Ali não se fala de uma “liberdade de expressão” no sentido liberal-tradicional, que considera apenas o indivíduo, como unidade social atomística, como ponto de partida. Pelo contrário, ali se refere a Constituição a uma “liberdade de expressão” específica do campo da “Comunicação Social”, como indica a própria localização do artigo no texto. Essa “liberdade de expressão” específica foi, na verdade, prevista como resposta aos desafios da era atual, marcada pelo desenvolvimento tecnológico e por uma acentuada concentração empresarial na área da mídia. Trata-se, pois, de uma “liberdade de expressão” a ser protegida também contra o todo e qualquer “monopólio ou oligopólio” nesse setor, como bem indica, aliás, o próprio parágrafo 5º do artigo ora examinado. Inseridos como estão em um sistema, os dispositivos da Constituição não podem ser interpretados “em tiras, aos pedaços”17. Seria, portanto, evidente despropósito desconsiderar partes do próprio artigo 220 na interpretação de seu caput. Tanto isto é verdade que o Constituinte viu ligados os temas do caput e do parágrafo 5º, que optou por colocá-los no mesmo e exato artigo da Constituição. Dentro desse contexto, não há dúvida de que a liberdade de expressão referida no artigo 220, caput se refere especificamente à “Comunicação Social”, opondo-se a todo e qualquer “monopólio ou oligopólio” nesta última. Assim sendo, se, no campo da radiodifusão, concessões, autorizações e permissões são feitas sistematicamente a pessoas jurídicas controladas por um pequeno grupo de políticos situacionistas, configura-se nisso não a observância da liberdade referida no artigo 220, caput, mas sim uma burla ao mesmo dispositivo. O Governo Federal estaria, então, estimulando a criação de oligopólios contrários à liberdade de expressão, e não fazendo o contrário, como lhe impõe a Constituição. Note-se, aliás, que a liberdade de expressão especificamente referida no artigo 220 também é um “direito função”, destinando-se a resguardar o pluralismo político que é fundamento de nossa República e do nosso Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput e artigo 1º, V da Constituição de

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1988)18. Há, assim, entre a livre expressão do artigo 220 e o pluralismo em tela, uma conexão íntima e manifesta19. O pluralismo político, como fundamento e princípio inspirador de toda interpretação correta da Constituição, seria de todo esvaziado se políticos governistas, ideologicamente identificados com os ocupantes temporários do Poder Executivo, pudessem ser contemplados com concessões e autorizações de serviços de radiodifusão, por meio de empresas em que tivessem influência como sócios. Nessa situação, mesmo em um mercado fracionado por várias empresas se configuraria aquele “monopólio das opiniões” (Meinungsmonopol) que a doutrina e a jurisprudência alemãs apontam como incompatível com a real liberdade e com a democracia20. Tal “monopólio das opiniões” descaracterizaria, ainda, aquela autonomia da imprensa que é essencial ao próprio regime democrático. Realmente, se as concessões de serviços de radiodifusão se concentrassem direta ou indiretamente nas mãos de políticos afinados com o governo, seria inevitável um alto grau de situacionismo e de uniformização ideológica na mídia, comprometendo-se assim, na prática, o próprio núcleo essencial da imprensa livre como instituição constitucionalmente protegida. Impõe-se registrar que tal fato seria ainda mais grave no campo da radiodifusão, por ser este de importância central para a funcionalidade do regime democrático, em um país como o Brasil, em que dezenas de milhões de cidadãos não leem jornais e se informam quase que exclusivamente pela TV e pelo rádio. O Estado Democrático previsto no artigo 1º, caput da Constituição fica, destaquemos, em risco, quando o pluralismo da mídia é eliminado, imperando na prática um “Meinungsmonopol”. Em relação à radiodifusão no Brasil, portanto, cumpre mesmo reforçar o raciocínio exposto por Denninger e Beye na análise da Lei Fundamental Alemã de 1949 e do “Projeto de Lei para a Proteção da Livre Formação da Opinião”, elaborado por destacados juristas alemães: “Da garantia da liberdade de imprensa 18 Sobre o pluralismo político como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito instituídos com a Constituição de 1988, vide MAUÉS, 1999, p. 21-24 e 93-105. 19 Analisando os julgados do Tribunal Constitucional, a doutrina espanhola tem percebido “la conexión fundamentadora entre la libertad de expresión y el derecho de acceso”, direito, este, profundamente vinculado à garantia do pluralismo. Cf. SABAU, 2002, p. 67.

17 Vide, por todos, GRAU, 2007, p. 166.

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20 Sobre a necessidade de a imprensa ser, na democracia, o campo do pluralismo, vide as reflexões de FIKENTSCHER, 1970, p. 153.

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deriva o dever do Estado de proteger tal liberdade contra tudo que possa afetar os pressupostos básicos de sua realização” 21. Em nosso ordenamento, até mesmo por um imperativo decorrente do artigo1º da Constituição, há um dever estatal de impedir a oligarquização do regime democrático. Em nosso ordenamento, por imposição do artigo 1º, V e do artigo 220 e seguintes, há um dever estatal de fomentar o pluralismo na mídia e de se abster de restringi-lo. Em nosso ordenamento, em razão do artigo 220, §5º22, há, ainda, um dever estatal de combater a oligopolização da mídia, seja nas mãos de grupos econômicos, seja nas mãos de forças políticas específicas. É importante notar que a concessão de serviços de radiodifusão a uma minoria privilegiada de indivíduos próximos do núcleo governante eliminaria fatalmente o pluralismo exigido na Constituição de 1988, fazendo com que, no lugar de uma pluralidade de vozes distintas e concorrentes23, houvesse um coro de repertório idêntico ou assemelhado. A importância de preservar o dissenso na radiodifusão, por sinal, já foi reconhecida até nos países menos afeitos a restringir a atuação de políticos e empresários no mercado da mídia. Mesmo nos EUA, no caso Red Lion Broadcasting Co. v. FCC (1969), a Suprema Corte teve de reconhecer que as empresas ocupantes do espectro eletromagnético não se poderiam manter fechadas ao dissenso. Mesmo ali, onde a oligopolização da radiodifusão por parte de interesses empresariais e político-partidários jamais foi vedado constitucionalmente por um dispositivo análogo ao existente em nosso texto constitucional, entendeu o Poder Judiciário que a imprensa também se sujeitava às normas antitruste24

21 DENNINGER & BEYE, 1970, p. 36. 22 Artigo 220, §5º da Constituição de 1988: “§5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. 23 Como ensina Corasaniti, é “somente através de uma pluralidade de vozes concorrentes” que se assegura, na ordem constitucional democrática, aquele pluralismo que reflete a “composição entre o direito à informação dos cidadãos e a liberdade assegurada à imprensa”. Cf. CORASANITI, 1992, p. 55. 24 Associated Press v. U.S. 326, U.S., I, 1945. Sobre a concentração e monopolização dos meios de comunicação de massa nos Estados Unidos, vide FISS, 1996, p. 50-78; e BAKER, 2007, p. 5-53 e 163-202. Para o debate alemão sobre a aplicação da legislação de defesa da concorrência aos meios de comunicação, examinando as relações intrínsecas entre poder econômico e os meios de comunicação de massa, vide HOFFMANN-RIEM, 2009, p. 571-586; FECHNER, 2011, p. 9 e 169-184; e KÜBLER, 2008, p. 27-40, 265-279 e 285-286.

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e que a função das liberdades de imprensa, informação e radiodifusão era, sim, resguardar o pluralismo, e não destroçá-lo25.

2. A Violação à Complementaridade entre os Sistemas Público, Privado e Estatal de Radiodifusão Os serviços de radiodifusão são considerados constitucionalmente como serviços públicos de competência da União desde a Constituição de 1934 (artigo 5º, VIII26), decisão mantida pela Carta de 1937 (artigo 15, VII), pela Constituição de 1946 (artigo 5º, XII27) e pelas Cartas de 1967 (artigo 8º, XV, ‘a’28) e 1969 (8º, XV, ‘a’). A Constituição de 1988 foi ainda mais enfática nesta conceituação, conforme determinam seus artigos 21, XI e XII, ‘a’29 e 223, caput30. 25 CORASANITI, 1992, p. 31. 26 Artigo 5º, VIII da Constituição de 1934: “Art. 5º - Compete privativamente á União: VIII – explorar ou dar em concessão os serviços de telégrafos, radio-communicação e navegação aerea, inclusive as installações de pouso, bem como as vias-ferreas que liguem directamente portos maritimos a fronteiras nacionaes, ou transponham os limites de um Estado” (grifos nossos). A Constituição de 1934 constitucionalizou o regime introduzido pelo Decreto nº 20.047, de 27 de maio de 1931, e pelo Decreto nº 21.111, de 1º de março de 1932, ambos editados durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas. Sobre este período, vide VIANNA, 1976, p. 118-121. A redação do artigo 15, VII da Carta de 1937 é a mesma do texto constitucional de 1934. 27 Artigo 5º, XII da Constituição de 1946: “Art. 5º - Compete à União: XII – explorar, diretamente ou mediante autorização ou concessão, os serviços de telégrafos, de rádiocomunicação, de radiodifusão, de telefones interestaduais e internacionais, de navegação aérea e de vias férrea que liguem portos marítimos a fronteiras nacionais, ou transponham os limites de um Estado” (grifos nossos). Foi sob a vigência da Constituição de 1946 que se debateu e aprovou o atual Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117, de 27 de agosto de 1962), ainda parcialmente em vigor. Para o debate em torno da elaboração e promulgação do Código Brasileiro de Telecomunicações, vide VIANNA, 1976, p. 133-147. 28 Artigo 8º, XV, ‘a’ da Carta de 1967: “Art. 8º - Compete à União: XV – explorar, diretamente ou mediante autorização ou concessão: a) os serviços de telecomunicações”. A Carta de 1969 manteve o mesmo texto e a mesma numeração do dispositivo. 29 Art. 21, XI e XII, ‘a’ da Constituição de 1988: “Art. 21 – Compete à União: XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais; XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens” (redação de ambos os dispositivos introduzida pela Emenda Constitucional nº 8, de 15 de agosto de 1995). 30 Art. 223, caput da Constituição de 1988: “Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”.

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Serviço público é uma das formas de atuação do Estado no domínio econômico, prevista expressamente no artigo 175, caput da Constituição de 198831. É, portanto, essencial compreender os pressupostos teóricos que se encontram por trás das várias concepções de serviço público da doutrina brasileira, cuja grande influência, é de matriz francesa. Nesta análise, pela sua importância teórica, destacam-se os franceses Léon Duguit e Gaston Jèze, cujas teorias são, sem dúvida, as mais influentes na nossa doutrina. Estes autores, no entanto, não só necessitam ser compreendidos no contexto histórico em que desenvolveram sua obra (o início do século XX), mas também é necessário que se problematize, tendo em vista o atual debate sobre os serviços públicos, a adequação destas teorias à nossa realidade, levando em conta a especificidade da formação histórico-social do Estado brasileiro32. Léon Duguit combate, em suas obras, a visão tradicional do Estado soberano, criticando a concepção do Poder Público como uma vontade subjetiva dos governantes sobre os governados. Para Duguit, o Estado não é um soberano que comanda, mas uma força capaz de criar e gerar serviços públicos, formando um sistema realista com base na solidariedade social, objetivamente imposto a todos os cidadãos. O ponto central é a sua defesa do fim da ideia de dominação (Herrschaft, puissance publique) na Teoria do Estado, substituindo a soberania pelo serviço público como noção fundamental do direito público. A doutrina de Duguit é teleológica, o Estado se legitima por seus fins. Para Duguit, os governantes monopolizam a força para organizar e controlar o funcionamento dos serviços públicos. Serviço público, assim, é toda atividade cuja realização deva ser assegurada, regulada e controlada pelos governantes, pois sua prestação é indispensável à interdependência social. O Estado, para Duguit, é o garantidor da interdependência e solidariedade sociais. Os serviços públicos não podem ser interrompidos, sua continuidade é essencial e é uma obrigação imposta aos governantes pelo fato de serem governantes, constituindo o fundamento e o limite de seu poder. Segundo Duguit, o 31 Artigo 175, caput da Constituição de 1988: “Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. Sobre a clássica distinção da atividade econômica em sentido amplo em atividade econômica em sentido estrito e serviço público, vide GRAU, 2007, p. 101-111. 32 Sobre o debate publicista francês do final do século XIX e início do século XX, travado entre os adeptos das concepções de État Légal e de État de Droit, vide REDOR, 1992; e BERCOVICI, 2008, p. 259-272.

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poder público é um dever, uma função, não um direito dos governantes. Duguit propõe, assim, um regime político fundado na solidariedade social, em que os governantes têm deveres e obrigações de agir, o que implica na intervenção estatal nos domínios econômico e social. A solidariedade social, concretizada por meio dos serviços públicos, é, na sua visão, a forma mais adequada de legitimidade do Estado33. Para o estudo do debate clássico francês em torno da concepção de serviço público resta, ainda, mencionar o discípulo de Duguit, Gaston Jèze. Jèze entende o serviço público como elemento fundamental e definidor do direito administrativo, cujo objeto seria formular as regras para o bom funcionamento dos serviços públicos34. No entanto, Jèze diverge do sociologismo de Duguit, preferindo adotar a metodologia essencialmente jurídica. Para ele, serviço público está necessariamente ligado a um regime jurídico especial, cuja base é a supremacia do interesse geral (público) sobre o interesse particular (privado). Ao buscar a instrumentalização do exercício do serviço público pelo direito público administrativo, Jèze acaba abandonando o sentido material de serviço público de Duguit, limitando-se a uma concepção jurídico-formal. Nesta perspectiva, Gaston Jèze define serviço público como um procedimento técnico que se traduz em um regime jurídico peculiar35. A concepção de serviço público dominante na maior parte da doutrina brasileira é a concepção formal, inspirada em Jèze. Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, entende a concepção material de serviço público como “extrajurídica”. Para ele, é impossível uma definição não formal de serviço público: “Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público - portanto,

33 DUGUIT, 1999, p. 33-72; DUGUIT, 1918, p. 29-30, 67-68 e 71-84; DUGUIT, 2000, p. 124-152; DUGUIT, 1928, vol. 1 (1927), p. 541-551, 603-631, 649-654 e 670-680 e vol. 2 (1928), p. 59-107 e 118-142. Para a importância da noção de serviço público na Teoria do Estado de Duguit, vide o indispensável estudo de PISIER-KOUCHNER, 1972. 34 JÈZE, 1925, vol. 1, p. 1-2. 35 JÈZE, 1930, vol. 2, p. 1-23.

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consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais-, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo” 36. Há dois elementos essenciais em sua concepção de serviço público: o substrato material, a prestação de “utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados”, e o elemento formal, que, para Celso Antônio Bandeira de Mello, é o que caracteriza efetivamente o serviço público. Só é serviço público a prestação submetida ao regime de direito público, isto é, ao regime administrativo37. A concepção material de serviço público, na atualidade, é defendida, entre outros, por Eros Roberto Grau. Partindo da sua classificação do serviço público como espécie da atividade econômica em sentido amplo, que compete preferencialmente ao setor público, este autor defende a noção de serviço público como atividade indispensável à consecução da coesão e interdependência sociais. Ao prestar serviço público, o Estado, ou quem atue em seu nome, está acatando ao interesse social. A inspiração da concepção material de serviço público de Eros Grau é proveniente, além de Duguit, da conceituação do administrativista gaúcho Ruy Cirne Lima. A concepção material de serviço público, assim, é construída sobre as ideias de coesão e interdependência sociais, justificando a necessidade da prestação estatal, direta ou indireta, do serviço público. Para os adeptos da concepção material, os serviços públicos podem estar previstos explícita ou implicitamente no texto constitucional, destacando como elemento fundamental para a caracterização de um serviço público a importância daquela atividade econômica, em dado momento histórico, para a coesão e interdependência sociais38. Qualquer que seja a concepção de serviço público adotada, formal ou material, o papel do Estado em sua prestação, direta ou indiretamente, faz parte do núcleo essencial da ideia de serviço público. Ao manter expressamente a TV e o rádio com a natureza jurídica de serviço público (cf. artigos 21, XII, ‘a’ e 223,

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caput), a Constituição de 1988 não baniu da mídia o pluralismo constitucionalmente previsto, mas, pelo contrário, tentou resguardá-lo39. É dentro desse quadro que devemos analisar a previsão de três “sistemas”, distintos e complementares, de rádio e TV (artigo 223, caput). O assim chamado “sistema privado” de rádio e TV recebe tal designação, no texto constitucional, para indicar que a Constituição aceita que as atividades de radiodifusão também se realizem, dentro de certos parâmetros e de forma não exclusiva, com o apoio do mercado e com o objetivo de gerar lucros. A aceitação, aqui, do apoio de empresas privadas controladas por particulares não implica, porém, a descaracterização da atividade como serviço público, calcado em padrões mínimos de impessoalidade e objetividade40. Nem legitima, ao menos do ponto de vista técnico-jurídico, a conversão fática, por meio de empresas-biombo, de deputados, senadores e ex-ministros em concessionários e permissionários de serviços de radiodifusão. Na verdade, a parcial abertura do setor ao capital privado se destina a favorecer o seu desenvolvimento tecnológico e a ampliar o pluralismo político constitucionalmente consagrado41. Tal abertura não se destina a deixar dezenas de milhões de telespectadores à mercê de um poder midiático exercido direta ou indiretamente por políticos e seus testas-de-ferro. Por outro lado, é evidente que a Constituição não concebeu o chamado “sistema privado” de radiodifusão (artigo 223) para ser operado por partidos políticos. E, se não o concebeu para ser operado diretamente por forças partidárias, óbvio é que não desejou, tampouco, que elas indiretamente viessem a operá-lo, através de concessões, permissões e autorizações em favor de deputados, senadores e pessoas físicas e jurídicas a eles vinculadas. Como pode se notar, a concessão de canais a políticos colide com a finalidade do próprio dispositivo constitucional que autoriza a existência do chamado

36 MELLO, 2006, p. 634. 37 MELLO, 2006, p. 633-639. Vide também MELLO, 1968, p. 167-171; e MELLO, 1987, p. 18-27. A concepção formal de serviço público também é a adotada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Na sua definição, serviço público é entendido “como toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”. O elemento material (“satisfazer concretamente às necessidades coletivas”) é, novamente, colocado em segundo plano diante do elemento formal, o regime jurídico e a atribuição do serviço ao Estado por lei, que, para Di Pietro, caracteriza efetivamente o serviço público. Vide DI PIETRO, 2007, p. 86-92. 38 GRAU, 2006, p. 123-140; e GRAU, 2001, p. 249-267. Vide, ainda, LIMA, 1982, p. 81-85.

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39 Mesmo nos países onde o direito constitucional parece, nesse ponto, ser menos claro que o disposto no nosso, juristas de inclinações privatistas são forçados a reconhecer o caráter de serviço público da radiodifusão. Segundo González Encinar, “considerar que em nuestro ordenamiento jurídico el ‘servicio público de televisión’ no es uma realidad ‘necesaria’ sería no solo jurídicamente inconstitucional, sino también politicamente suicida”. ENCINAR, 1995, p. 18. Frisando a compatibilidade entre a defesa das liberdades e o regime de serviço público, vide Idem, p. 110-111. 40 Sobre o tema, mais detidamente, SEELAENDER, 2008. Vide, ainda, LIMA, 2010, p. 68. 41 Como mostra González Encinar, na televisão “el sector privado debe cumplir algunas misiones de interes público (...): tiene que hacer factible el pluralismo y la democracia”. Cf. ENCINAR, 1995, p. 33-34.

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“sistema privado” de radiodifusão. E colide, como agora veremos, igualmente com a finalidade do assim chamado “setor público”, diferenciado pela Constituição tanto do “privado” quanto do “estatal” stricto sensu (artigo 223, caput). É importante notar que a criação de um “sistema público” de rádio e televisão não se deu para autorizar a transformação do “sistema estatal” em venal voz dos governantes e a do assim chamado “sistema privado” em um servil coral de oligarquias. Pelo contrário, apenas sinalizou a preocupação do Constituinte em estimular de forma particularmente intensa o pluralismo, valor da ordem constitucional que rege todos os três “sistemas” supramencionados. Distingue-se o “setor público” do chamado “setor privado” por não pressupor o exercício da atividade por empresas concessionárias ou permissionárias destinadas à obtenção de lucros e controladas por particulares ou empresas privadas. Distingue-se, por outro lado, do “sistema estatal” por ser organizado e dirigido por organizações da sociedade civil, e não pelo Estado. Na concepção da Constituição, a TV e o rádio do “sistema público” deveriam, como vemos, ser geridos por associações, sindicatos e “organizações sociais”, servindo à sociedade civil e não aos interesses dos governantes e seus aliados. A TV e o rádio do “sistema público” deveriam, inclusive, fragmentar sua programação, permitindo a produção descentralizada da mesma, de forma a assegurar um “direito de antena” a distintos setores da sociedade. Do exposto já se depreende que não é função do “sistema público” de rádio e TV servir a políticos dos partidos situacionistas. A razão de ser de tal sistema, como é óbvio, é bem outra. A previsão constitucional de três sistemas de rádio e televisão distintos- um “privado”, um “público” e um “estatal” (artigo 223, caput), não despubliciza, na verdade, nem o setor dito “privado” nem o setor “público não-estatal”, que seguem, ambos, dependendo de concessões, autorizações e permissões, regidas pelo direito público, de serviços de competência da União. A previsão em tela tampouco surgiu para criar diferentes canais para poderes oligárquicos de fato, que a Constituição de 1988 não legitima em momento algum. Vista como freio ao poder privado, a previsão de um sistema “estatal” também se destina, por fim, a reforçar o pluralismo, e não a legitimar a criação de uma rede “chapa-branca”, a serviço da propaganda política governamental42. 42 Nesse sentido, vide, também, a conclusão de CANOTILHO & MOREIRA, 2007, vol.1, p. 589. Na Alemanha, autores como Stern e Wufka já consideravam, há décadas atrás, inconstitucional uma

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Tanto isso é verdade, que a Constituição dispõe sobre um “sistema estatal”, e não sobre um “sistema governamental” ou “governista”. E este “sistema estatal”, ainda que não entregue diretamente à sociedade civil (gestora direta do “sistema público”, na linguagem do artigo 223), pode e deve ser organizado pelo Estado de modo a resguardar o pluralismo e a informação contra pressões do situacionismo político para controlar a mídia. Uma TV ou rádio estatal não deve silenciar a oposição. Não por acaso, há países democráticos em que a direção das redes estatais tem de ser mesmo compartilhada entre partidos oposicionistas e governistas, para que estes últimos não fiquem tentados a abusar do controle dos veículos do “sistema estatal”. Ao não excetuar do campo do pluralismo o chamado “sistema estatal”, está a Constituição, pois, fechando as portas ao telejornalismo “chapa-branca” e dando lastro a normas que permitam às TVs e rádios deste sistema uma abertura a todos os partidos e a todos os grupos sociais e correntes com algum significado na vida coletiva, nas suas discussões e nos seus conflitos43. A exigência constitucional de que também exista um sistema de TVs e rádios sem nenhuma participação do capital privado pode ser vista, em suma, como uma garantia da própria liberdade e pluralidade da comunicação social44. O “sistema estatal” não se justifica, pois, só para garantir o exercício da atividade informativa onde exista desinteresse da iniciativa privada em assumi-la, através de concessões. O princípio da complementaridade dos “sistemas privado, público e estatal” (artigo 223, caput) reflete, sim, o relevo do pluralismo na esfera constitucional e visa, sobretudo, a criar dentro da mídia um sistema de freios e contrapesos próprio, que a impeça de se tornar um polo social de poder descontrolado. Ora, se nem no “sistema estatal” a Constituição permite o uso abusivo do serviço público de radiodifusão, se nem no “sistema estatal” permite a submissão total e automática do rádio e da TV aos interesses do grupo situacionista, representação governamental formal na gestão das TVs públicas que fosse capaz de influenciar estas últimas. Cf. SCHLIE, 1979, p. 57. 43 A este respeito, vide SCHLIE, 1979, p. 59. Ainda analisando o direito alemão, Friedrich Müller e Bodo Pieroth também salientam que a radiodifusão estatal apresenta um dever de neutralidade que, mesmo não se confundindo com a “indiferença” do jornalista, veda com sua “praticabilidade relativa” todo facciosismo imposto a partir dos órgãos dirigentes do ente gestor do serviço. Cf. MÜLLER & PIEROTH, 1976, p. 53 e 75. 44 CANOTILHO & MOREIRA, 2007, vol. 1, p. 586.

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resta evidente que este último não pode, tampouco, através de concessões e outros atos administrativos, apossar-se do “sistema público” e do “sistema privado”, sabotando a ordem constitucional por outras vias. Cumpre destacar novamente, por fim, que os três “sistemas” se inserem na lógica do exercício de um serviço público, no qual é dever do Estado impedir o que na Alemanha se denomina “poder unidirecional sobre a opinião” 45. Concebida como serviço público, a radiodifusão é regrada em nossa Constituição de forma distinta daquela referente às atividades do setor periodístico. Se estas últimas independem de concessões, permissões e autorizações estatais, já na radiodifusão tais atos são constitucionalmente previstos (artigo 223, caput), pois compete à Administração assegurar que a prestação do serviço sirva a objetivos constitucionais próprios, evitando, por exemplo, os riscos políticos decorrentes da oligopolização (artigo 220, §5º da Constituição de 1988). Dentro desse quadro, não seria exagero aceitar a tese de que, ao conceder o serviço, o Estado tenha de garantir um fornecimento mínimo de informações livres de qualquer “monopólio das opiniões” 46. Tal dever de assegurar um fornecimento mínimo de informações em uma atmosfera de pluralismo, se justifica por si só o dever-reflexo de criar e manter um “sistema estatal” de radiodifusão47, nem por isso deve ser desconsiderado à hora da Administração distribuir concessões, autorizações e permissões no âmbito do “sistema privado”. Converter este último em feudo dos partidários do governo e de sua ideologia afetaria substancialmente a diversidade, e, portanto, a própria qualidade da informação prestada pela mídia, comprometendo não só o pluralismo desta, mas também a essência e a finalidade do serviço público de TV e rádio executado por empresas privadas. Voltada ao fomento do pluralismo constitucionalmente desejado, a existência do “sistema privado” não basta, por si só, para assegurar a boa prestação do serviço. Esta seria, aliás, inviável, no entender da própria Constituição, em se verificando um alto grau de concentração empresarial neste “sistema” 48. E seria 45 Cf. HOFFMANN-RIEM, 1990, p. 14. Vide, ainda, LIMA, 2011, p. 93-101. 46 Sobre a ideia de fornecimento mínimo no serviço de radiodifusão, cf. FECHNER, 2011, p. 19, que aqui também remete ao Princípio do Estado Social presente na Lei Fundamental alemã.

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igualmente inviável, evidentemente, se o “sistema privado” tivesse sua finalidade constitucional ignorada ou deturpada, convertendo-se em expediente para disfarçar e travestir o domínio dos políticos governistas sobre a mídia e sobre os processos de formação da opinião pública. Enquanto no Reino Unido e na Alemanha os partidos governistas encontram séria resistência a cada tentativa de influenciar as TVs geridas pelo Estado, a tal ponto que se criam novos meios para proteger a independência desses canais49, entre nós a Administração tenta criar costume inconstitucional, permitindo que tentativas análogas prosperem até mesmo no “sistema privado” de radiodifusão. Tal atitude merece repúdio, inclusive por meio da declaração de nulidade dos atos contrários à Constituição da República.

3. A Violação ao Direito à Informação Mutatis mutandis, aplicam-se ao direito à informação nossas observações sobre a relação entre a liberdade de expressão referida no artigo 5º da Constituição e aquela prevista no seu artigo 220. Este último, portanto, já bastaria aqui, por si só, para fundamentar nosso entendimento, ainda que o artigo 5º, XIV da Constituição50 não existisse. A democracia não é possível onde se inviabiliza o exercício do direito constitucional de informar. Tampouco o é onde se nega ao cidadão o acesso às informações indispensáveis para que ele possa participar do processo político de condução do Estado Democrático. O exercício do direito à informação é, na verdade, pressuposto da atuação consciente dos cidadãos na esfera política- o que o faz corresponder, em certa medida, àquela ideia de autonomia que compôs, a partir de Rousseau, o núcleo da própria concepção moderna de democracia. Previsto no artigo 220 da Constituição em relação à “Comunicação Social”, o direito constitucional à informação engloba o direito de informar, o direito de se não governamental Article 19, em 2008), vide LIMA, 2010, p. 83-87; LIMA, 2011, p. 28-31 e 85-86; e MORAES, 2011, p. 35-46. Para a análise da evolução recente do mercado brasileiro de televisão, a partir de 1985, vide BOLAÑO, 2004, p. 205-281.

47 BVerfGE 73, p. 157 e ss. e BVerfGE 74, p. 325 e ss.

49 HOFFMANN-RIEM, 2009, p. 33-40.

48 Sobre o monopólio dos meios de comunicação no Brasil, situação na qual uma única empresa de mídia detém cerca de 56% da audiência da televisão aberta (dados da pesquisa divulgada pela organização

50 Artigo 5º, XIV da Constituição de 1988: “XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.

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informar e o direito de ser informado sobre as condições, o contexto e o modo de direção dos assuntos públicos51. Ora, como frisa González Encinar52 quando analisa o regime jurídico da televisão espanhola, é óbvio que o reconhecimento de um direito de ser informado implica a necessidade de admitir uma correlata obrigação de informar. É para proteger esse direito, dando à imprensa condições de cumprir a obrigação correspondente, que existe o vasto arsenal de normas estatais protetivas dos jornalistas e das empresas de comunicação53. Configurando um regime específico no campo jurídico, tais normas se vinculam essencialmente à proteção da democracia e da liberdade política. É errado, pois, considerá-las mero reflexo do direito de propriedade dos controladores dos meios de comunicação. Como bem afirmou Fábio Konder Comparato: “Criou-se, com isto, uma lamentável confusão entre a liberdade de expressão e a liberdade de empresa. A lógica da atividade empresarial, no sistema capitalista de produção, funda-se na lucratividade, não na defesa da pessoa humana. Uma organização econômica voltada à produção do lucro e sua ulterior partilha entre capitalistas e empresários não pode, pois, apresentar-se como titular de direitos inerentes à dignidade humana. Ora, a liberdade de expressão não se confunde com liberdade de exploração empresarial nem é, de modo algum, garantida por ela. Constitui, pois, uma aberração que os grandes conglomerados do setor de comunicação de massa invoquem esse direito fundamental à liberdade de expressão, para estabelecer um verdadeiro oligopólio nos mercados, de forma a exercer, com segurança, isto é, sem controle social ou popular, uma influência dominante sobre a opinião pública” 54. Se as faculdades e garantias do proprietário fossem mesmo o cerne do direito da comunicação social, muitos dos elementos mais típicos deste sequer poderiam existir. Lembremos, por exemplo, que, no passado, os opositores do

direito de resposta chegaram a destacar a sua incompatibilidade com o direito do proprietário ao livre uso e gozo dos seus bens55. Já houve quem defendesse, no meio jurídico nacional, que a liberdade de imprensa fosse analisada não como “simplesmente a liberdade do dono da empresa jornalística ou do jornalista”, mas sim como instrumento destinado a facilitar o exercício, pelo cidadão, do direito de ser informado56. Tal proposta conta com lastro constitucional e é mais adequada para o enfrentamento dos desafios da democracia contemporânea do que as concepções liberais tradicionais, que nas situações de conflito entre tal direito e a liberdade empresarial da mídia tenderiam a favorecer esta última, invocando o direito de propriedade e mesmo um direito de livre expressão, na prática, restrito a um privilegiado microgrupo de empresários57. É importante notar que a comunicação de massa também constitui um importante polo de poder social. Deixado hoje em poucas mãos em decorrência do acentuado processo de concentração empresarial ocorrido no setor, tal poder não deveria ficar sem amarras. Mesmo quem reduzisse a informação à condição de pura mercadoria teria de convir que essa concentração põe em risco a qualidade do “produto” e gera disfunções no “mercado” correspondente. Na verdade, é ingênuo conceber a mídia como um amplo universo de fornecedores desarticulados, atuando em um “livre mercado” de informações. A oligopolização da mídia e o acúmulo excessivo de poder nas mãos dos beneficiários desse fenômeno lançam novos desafios ao direito atual. Nas democracias, o direito dos governados à informação passa a sofrer novas ameaças, vindas agora da mesma mídia que deveria ajudar a garanti-lo. É dentro desse quadro que devemos compreender o artigo 220 da Constituição, que prevê um direito à informação no caput que só é viável com o banimento da censura (artigo 220, §§ 1º e 2º58) e dos oligopólios e monopólios que controlam os meios de comunicação de massa e influenciam a opinião pública (artigo 220, §5º).

51 Em decisão datada de 1990, já identificava a Corte Constitucional italiana o direito de ser informado como uma “condizione preliminare (o, se vogliamo, un presupposto insopprimibile) per l’attuazione ad ogni livello, centrale o locale, della forma propria dello Stato democratico”, cf. CORASANITI, 1992, p. 10.

55 Cf. BALLESTER, 1987, p. 19; e SEELAENDER, 2006, p. 7.

52 ENCINAR, 1995, p. 22. 53 SEELAENDER, 2006, p. 6. 54 COMPARATO, 2001, p. 157-158. No mesmo sentido, vide LIMA, 2010, p. 125-128; e McCHESNEY, 2008, p. 249-263.

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56 SILVA, 1996, p. 240; e SEELAENDER, 1991, p. 147-159. Vide, ainda, LIMA, 2010, p. 36-37. 57 SEELAENDER, 2006, p. 7. 58 Artigo 220, §§1º e 2º da Constituição de 1988: “§1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. §2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

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Mais uma vez, ressaltemos que o perfil do direito à informação do artigo 220 é parcialmente distinto daquele previsto no artigo 5º, XIV. É no artigo 220, e não no artigo 5º, XIV, que se encontra o direito à informação específico do setor da “Comunicação Social”. Englobando um direito de informar e um direito de ser informado, tal direito à informação é declarado, pela própria Constituição, incompatível com a censura e com a oligopolização da mídia. Ora, é evidente que o serviço público de radiodifusão, sendo exercido por empresas vinculadas a políticos da base governista, tende a refletir as preocupações, temáticas, ideologias e juízos de valor de uma escassa minoria tendencialmente homogênea, o que compromete substancialmente a qualidade da informação e, por conseguinte, o próprio direito de ser informado. Mesmo quando for veraz e não moldada por um facciosismo consciente, a informação prestada por uma mídia assim controlada acabará tendo deficiências, distorções da realidade e inclinações antipluralistas para a uniformidade ideológica que prejudicarão gravemente o cidadão, violando a Constituição que o quer proteger. Por outro lado, o próprio direito constitucional de informar não faria sentido algum, se fosse reduzido a um caricato direito de informar só de acordo com as concepções do grupo político dominante, com a entrega, em última análise, da maior parte da mídia a este último, por meio de concessões, permissões e autorizações às empresas que ele total ou parcialmente controle.

4. A Orientação Anti-Oligárquica da Constituição de 1988 Nosso ordenamento rejeita toda emenda constitucional que possa comprometer a realização de eleições livres e periódicas (artigo 60, §4º, II da Constituição). As vedações referentes ao segredo do voto ou quanto a seu caráter direto e universal devem ser compreendidas como mecanismos de proteção de uma liberdade mais ampla- tudo que impeça eleições realmente livres, afetando o núcleo essencial da eleição como procedimento e instituto jurídico, pode ter sua constitucionalidade questionada. Muito embora não se trate aqui de emenda constitucional, inexistindo razão para invocar diretamente o artigo 60, §4º59, o fato é que o Constituinte, neste e em outros artigos, claramente sinaliza sua repulsa diante de tudo que 59 Não discutiremos aqui questões ligadas às chamadas “cláusulas pétreas” ou ao significado da expressão “tendente a abolir”. Para esta discussão, vide, por todos, FERREIRA FILHO, 1995, p. 11-17.

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esvazie a democracia como forma política. Democracia que é o canal da soberania popular (artigo 1º, parágrafo único e artigo 14, caput da Constituição) e o reflexo da “cidadania” (artigo1º, II) que tem, entre seus pilares, a igualdade jurídica (artigo 5º, caput). A interpretação histórica dos dispositivos em tela aponta não só para a superação da ditadura de 1964. Indica, também, uma corrente de tradição democrática dentro de nosso constitucionalismo. Nossas constituições rejeitam, desde 1891, a desigualdade e o privilégio e, desde 1934, a oligarquização partidarizada do regime político. Dando prosseguimento a isso, o Constituinte de 1987-1988 retomou a orientação anti-oligarquizante de seus predecessores democráticos, e foi muito além deles, recusando a influência do poder econômico e o uso da máquina estatal nas eleições (artigo14, §9º da Constituição), vinculando o regime democrático ao pluripartidarismo e ao pluralismo em sentido mais amplo (artigo 1º, V, artigo 17, caput, entre outros) e proibindo, em princípio, todo controle governamental, partidário ou privado sobre o fluxo de informações, opiniões e ideias (por exemplo, artigo 5º, IV, IX, XII e XIV, artigo 220, caput e artigo 220, §§ 1º, 2º e 5º e artigo 223). Conhecedor das práticas manipulatórias de certas redes de TV e rádio no sabotar da democracia (que teriam chegado, em 1982, à divulgação de resultados fraudados em eleições para governador) e ciente da atmosfera de aliança e conivência de conglomerados da mídia com as lideranças políticas subservientes à ditadura militar, o Constituinte de 1987-1988 tomou a importante iniciativa de inserir na Constituição uma expressa proibição dos monopólios e oligopólios na radiodifusão (artigo 220, §5º), dispondo de forma cuidadosa, ao tratar deste serviço público, dos mecanismos de concessão, permissão, autorização, renovação e não-renovação. A Constituição, nisso também, se mostra um sistema coerente. Proclamando a soberania do povo (artigo 1º, parágrafo único) e declarando o Brasil como um Estado Democrático e uma República (artigo 1º, caput), não podia mesmo o Constituinte permitir a oligarquização do país que fatalmente decorreria do controle direto ou indireto, por parte de políticos governistas e seus aliados no empresariado, da atividade informativa pela televisão e rádio. Oligarquização e oligopolização tinham de ser conjuntamente vedadas. E efetivamente o foram em nosso ordenamento constitucional. Na doutrina juspublicista, nos tempos atuais, só as vozes do sonambulismo fechariam os olhos ao risco à democracia representado pela associação entre o 29

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situacionismo político e o poder midiático. Se não se quer fazer da interpretação constitucional lápide funerária da própria Constituição, impõe-se interpretar esta última sem desconsiderar o mundo dos fatos, em que a concentração econômica e o patrimonialismo ainda se associam com tanta frequência. Do exposto se depreende que, ao interpretar os dispositivos referentes à comunicação social e às vedações impostas aos parlamentares no que tange a sua influência nas empresas de radiodifusão, deve o jurista ater-se aos artigos pertinentes ao tema, aplicando o texto constitucional como um sistema coerente, feito para dar respostas a problemas concretos, na defesa da ordem democrática desejada pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988.

5. A Violação às Vedações Constitucionalmente Impostas a Membros do Poder Legislativo Em relação às vedações constitucionalmente impostas aos que exercem mandatos eletivos de deputado e senador, o controle de concessões, permissões e autorizações de radiodifusão por pessoas jurídicas que possuem políticos titulares de mandato eletivo como sócios ou associados viola expressamente os artigos 54, I, ‘a’60 e 54, II, ‘a’61 da Constituição. Além do que já foi exposto anteriormente, devemos acrescentar outras reflexões. Como já ensinava Rudolf von Jhering, considerar a finalidade da norma é a tarefa mais essencial do hermeneuta. O “Zweck”, a finalidade, não indica só a razão de ser do dispositivo, mas indica, também, qual a sua melhor interpretação. Analisemos cada um dos dispositivos mencionados acima. Na alínea ‘a’ do artigo 54, I se indica claramente que o deputado ou senador não pode firmar nem manter contrato com empresa concessionária de serviço público, nem com o ente concedente do referido serviço. Tal dispositivo veda, naturalmente, que o deputado ou senador o faça como pessoa física, diretamente.

60 Artigo 54, I, ‘a’ da Constituição de 1988: “Art. 54 – Os Deputados e Senadores não poderão: I – desde a expedição do diploma: a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes”. 61 Artigo 54, II, ‘a’ da Constituição de 1988: “Art. 54 – Os Deputados e Senadores não poderão: I – desde a posse: a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada”.

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Importa aqui questionar, no entanto, se tal vedação se estende ao deputado ou senador, quando tal contratação é na prática intermediada, e formalmente realizada, por pessoa jurídica de que seja sócio. Também importa questionar o alcance da ressalva constante do final da alínea. Que tal ressalva se refira somente ao deputado ou senador como pessoa física, isso nos parece evidente. Como qualquer indivíduo que viva hoje no meio urbano, o deputado ou senador depende fundamentalmente das atividades que Forsthoff classificaria no campo do Daseinsvorsorge62. Por mais influência política que tenha ou possa ter, o deputado ou senador será fatalmente, na cidade em que vive, usuário dos serviços públicos de água, luz, esgoto, gás e eletricidade a todos disponibilizados. Dentro desse quadro, seria irrazoável impedi-lo de firmar ou manter contrato com a Administração Pública prestadora de serviços (Leistungsverwaltung) ou com as empresas privadas concessionárias desses mesmos serviços. Uma proibição total excluiria o congressista dos benefícios mais básicos da civilização moderna, requisitos indispensáveis para a vida digna, senão para a vida mesma, no âmbito urbano. Era nisso que pensava o Constituinte, quando inseriu, ao final da referida alínea, a ressalva: “salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes”. Como é sabido, serviços públicos de água, luz, esgoto, gás e eletricidade são prestados simultaneamente a uma infinidade de contratantes que assinam contratos de adesão, firmados em massa, com cláusulas uniformes. Eram estes os serviços pensados pelo Constituinte, ao criar em 1988 a ressalva em tela. A ressalva, pois, se refere a tais contratos, nada tendo a ver com os contratos específicos do campo dos serviços de radiodifusão. Contratos que, note-se, embora tenham de se ater a padrões legais comuns, nem por isso teriam de ser ao longo do tempo, em tudo, constituídos por cláusulas uniformes. A alínea ‘a’ do artigo 54, I, contudo, não se limita a tal ressalva. Também precisamos examinar, aqui, o alcance da parte inicial do texto, antes do mesmo ser ressalvado. Desta parte inicial do texto deflui a conclusão de que o deputado 62 O debate alemão sobre serviço público gira em torno da concepção de Daseinsvorsorge, desenvolvida originariamente por Ernst Forsthoff durante o nazismo e, posteriormente, adaptada à democracia da Lei Fundamental. Vide FORSTHOFF, 1938, p. 1-15 (capítulo 1, cujo título, emblemático, afirma ser a prestação de Daseinsvorsorge a tarefa da Administração Pública moderna - “Die Daseinsvorsorge als Aufgabe der modernen Verwaltung”); FORSTHOFF, 1966, vol. 1, p. 340-345; SORDI, 1987, p. 274-309. Para o debate atual na Alemanha, vide SCHMIDT, 2003, p. 225-247; e RONELLENFITSCH, 2003, p. 67-114.

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ou senador não poderia firmar ou manter contrato com a Administração Direta nem Indireta, nem mesmo contratos de concessão de serviço público. Note-se que os contratos de concessão de serviço público não foram, aqui, excluídos pelo texto constitucional. E nem faria sentido que o fossem, já que os mesmos tendem a figurar, justamente, entre os contratos de maior importância e valor. Os problemas que a Constituição desejou enfrentar no artigo 54, I, ‘a’, ou seja, os riscos à moralidade pública e à independência do Poder Legislativo, a sedução de parlamentares por meio de contratos lucrativos, a conivência entre os Poderes e o patrimonialismo, ficariam agravados, e não resolvidos, se a proibição ali prevista não abrangesse os contratos de concessão de serviço público, inclusive de serviço público de radiodifusão. Por outro lado, como é sabido, tais contratos, em virtude de sua complexidade e do volume de prestações envolvidas, são em regra executados, e firmados, por pessoas jurídicas, representando empresas de dimensões consideráveis. Aqui, naturalmente, devemos utilizar o princípio da razoabilidade e as regras da experiência para chegar a uma inferência óbvia: para não virar letra-morta e dispositivo constitucional totalmente inútil, o artigo 54, I, ‘a’ tem de abranger os contratos de concessão de serviço público firmados e mantidos por empresas de congressistas. O legislador constituinte não temia que as pessoas físicas dos congressistas se vinculassem à Administração Pública, iluminando pessoalmente as cidades, retirando pessoalmente o lixo das casas, operando pessoalmente estações de TV e usinas hidrelétricas. Temia que tal vínculo surgisse, como é óbvio, intermediado por empresas de que os parlamentares fossem sócios, por pessoas jurídicas que encarnassem os interesses econômicos dos deputados e senadores. Ler de outra forma o dispositivo seria condená-lo à inocuidade, ignorando a sua finalidade intrínseca e a sistemática do texto constitucional. Do exposto se depreende que, como resta evidente, a parte inicial do artigo 54, I, ‘a’ não se restringe, como a ressalva constante da parte final, à pessoa física do parlamentar. Abrange, igualmente, a pessoa jurídica de que este participe, seja como dirigente (artigo 54, I, ‘b’), seja como mero empregado (artigo 54, I, ‘b’)63, seja com mais razão ainda como sócio com direito a dividendos ou como sócio controlador. 63 Artigo 54, I, ‘b’ da Constituição de 1988: “Art. 54 – Os Deputados e Senadores não poderão: I – desde a expedição do diploma: b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis ad nutum, nas entidades constantes da alínea anterior”.

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A leitura conjunta das alíneas ‘a’ e ‘b’ do artigo 54, I da Constituição bem o demonstra. Para que o texto constitucional se torne um todo coerente, é preciso reconhecer que a intermediação por pessoa jurídica não descaracteriza a vedação constante da alínea ‘a’. Realmente, por que a Constituição proibiria o parlamentar de ser um mero empregado, sem nenhum direito legalmente reconhecido aos lucros decorrentes da prestação dos serviços, e lhe permitiria ser um sócio, que, de uma forma ou outra, se beneficiaria desses lucros? Por que a Constituição proibiria um parlamentar de prestar um pequeno serviço pessoalmente, como pessoa física, e permitiria que uma empresa de que ele fosse sócio, eventualmente até acionista controlador, ganhasse fortunas, só pelo uso do biombo de uma pessoa jurídica? Impõe-se reconhecer, pois, que o artigo 54, I, ‘a’ impede a pessoas jurídicas que tenham parlamentares como sócios que firmem ou mantenham contrato de concessão de serviços públicos de radiodifusão com entes da Administração Pública Federal. E tão importante é tal proibição, que a Constituição não a quis deixar para depois da posse do parlamentar. Pelo contrário, o texto constitucional de 1988 deliberadamente observou, nesse ponto, a tradição constitucional brasileira, antecipando para a diplomação do parlamentar o termo inicial da vedação em tela. Nas discussões em que se definiu o texto final da Constituição, assim encaminhou um influente parlamentar da época o entendimento que veio a prevalecer: “O intervalo entre a diplomação e a posse é curto, mas é de grande importância para que se estabeleça o resguardo do Parlamentar, não só no que se refere à imunidade e à inviolabilidade, mas também na cooptação que ele porventura possa sofrer por parte do Estado e dos grupos econômicos a ele ligados. Sr. Relator Bernardo Cabral, chamo a atenção de V. Ex.ª para a necessidade imperiosa de se restaurarem aqueles impedimentos e proibições a partir da diplomação, os quais integram o Direito Constitucional brasileiro desde a Constituição de 1934” 64. Analisemos mais detidamente, agora, o artigo 54, II, ‘a’ da Constituição. De início, cumpre advertir, aqui, que ser acionista ou sócio é ser, ainda que apenas parcialmente, “proprietário” 65. Inerente ao status de sócio, a condição de coproprietário da empresa basta por si só, no entendimento da Constitui64 Deputado Egídio F. LIMA, Diário da Assembleia Nacional Constituinte nº 208. 65 ASCARELLI, 1969, p. 340-343; e COMPARATO & SALOMÃO FILHO, 2008, p. 113 e 129-131.

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ção, para caracterizar a hipótese de incidência do artigo 54, II, ‘a’. E que não se exige que tal sócio seja simultaneamente “controlador”, isso é uma conclusão que deflui não só da redação literal do dispositivo, mas também do exame das discussões da Assembleia Nacional Constituinte. Aliás, se o artigo 54, II, ‘a’ impede até que o congressista se beneficie pouquíssimo do contrato, por vias mais que indiretas, como simples empregado (cf. parte final: “ou nela exercer função remunerada”), muito mais impede que o parlamentar se beneficie à larga desse mesmo contrato como sócio, na forma de dividendos ou na expansão do próprio patrimônio empresarial de que é cotitular. A interpretação literal do texto do artigo 54, II, ‘a’ deve, sem dúvida, ser completada por sua interpretação histórica, sistemática e teleológica. Desse modo, percebe-se claramente a razão de ser da norma, que visa a impedir que membros do Congresso vivenciem situações de conflito de interesses, em um assunto tão fundamental à ordem democrática como é a radiodifusão. Órgão diretamente envolvido na gestão do setor (artigo 222, §5º, artigo 223, §§ 1º, 2º e 3º e artigo 224 da Constituição), o Congresso Nacional tem que atuar de modo isento e livre de amarras, sendo inaceitável que interesses pessoais de parlamentares possam aqui interferir. E que interesses são estes, que a todo custo se quer afastar? A própria Constituição já o esclarece. Em primeiro lugar, o interesse do parlamentar como “proprietário”. Ou seja, como “proprietário único” ou “coletivo” da empresa prestadora do serviço de radiodifusão. O conceito constitucional não exige a titularidade exclusiva do domínio, bastando a propriedade compartilhada: onde o texto constitucional não distingue, não cabe ao intérprete distinguir. Assim sendo, também estão abarcados pela hipótese de incidência do artigo 54, II, ‘a’ os coproprietários de empresas, isto é, os acionistas, os sócios-quotistas e os sócios em geral. Em segundo lugar, pensa-se no interesse do parlamentar como “controlador”. Ciente de que o poder de controle empresarial nem sempre se embasa na titularidade formal da totalidade, da maioria ou mesmo de uma parcela minoritária das ações da própria empresa contemplada com o serviço66, a Constituição deliberadamente fechou as portas, aqui, aos que quisessem burlar o seu texto. Desconsiderando todos os biombos para o poder empresarial de fato, a Constituição atingiu, aqui, mesmo o parlamentar que efetivamente controle a empresa 66 Vide o clássico estudo de COMPARATO & SALOMÃO FILHO, 2008, p. 41-88.

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de radiodifusão por meio de intermediários, sejam eles “testas-de-ferro”, sejam eles pessoas jurídicas que, direta ou indiretamente, controlem a empresa beneficiária da concessão. Em terceiro lugar, pensa-se no interesse do parlamentar que atue como “diretor”. Nessa posição, respondendo perante os sócios pelos resultados empresariais e podendo influenciar diretamente a linha editorial da TV ou rádio em benefício de sua linha política pessoal, o congressista teria manifesto interesse em favorecer a empresa que estivesse administrando. Em quarto lugar, pensa-se no interesse do parlamentar como empregado, conselheiro fiscal ou membro do Conselho de Administração da empresa. O confronto das alíneas ‘a’ e ‘b’ do artigo 54, II67 revela que, na primeira, a Constituição não cogita do temor de demissão e dos riscos desta decorrentes para a independência do empregado empossado como parlamentar. Cogita, isso sim, do risco do parlamentar comprometer sua isenção, em busca de quaisquer vantagens ou ganhos, mesmo que indiretos ou de mero prestígio, no âmbito da empresa contratada pela Administração Pública. Novamente haveria aqui, portanto, um conflito de interesses que a Constituição desejaria afastar. Por fim, cumpre salientar, na análise do artigo 54, II, ‘a’, que toda empresa de radiodifusão pode ser definida, no Brasil, como “empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público”. Como é notório, as concessões, autorizações e permissões de serviços de radiodifusão não são feitas, em nosso direito, recebendo o ente público uma exata contrapartida pelas oportunidades que oferece. No “sistema privado” de rádio e TV mesmo os contratos mais favoráveis ao interesse público não se caracterizam, jamais, por uma estrita equivalência das prestações da concessionária, que sempre conta, pelo contrário, com uma margem de “favor” manifesta.

6. Considerações Finais Por fim, sintetizando todo o exposto, pode-se indagar se é constitucional o controle de concessões, permissões e autorizações de radiodifusão por pessoas jurídicas que possuem políticos titulares de mandato eletivo como sócios ou

67 Artigo 54, II, ‘b’ da Constituição de 1988: “Art. 54 – Os Deputados e Senadores não poderão: I – desde a posse: b) ocupar cargo ou função de que sejam demissíveis ad nutum, nas entidades referidas no inciso I, a”.

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associados. E a resposta, de acordo com o disposto no texto da Constituição de 1988, só pode ser negativa. As alíneas I, ‘a’ e II, ‘a’ do artigo 54 trazem soluções da Constituição para um problema grave e, na década de 1980, já bastante concreto: o uso abusivo e imoral, por parte do Poder Executivo, da concessão de serviços de radiodifusão como meio de sedução e cooptação de parlamentares68. Uma rápida análise na documentação da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 já bastaria para comprovar tal fato. A Assembleia Nacional Constituinte também buscou, com tais dispositivos, imprimir coerência à própria Constituição que então redigia. Com efeito, ao atribuírem a si mesmos um direito de interferir nas concessões, permissões e autorizações de serviços de radiodifusão (conforme o disposto no artigo 223, §§ 1º, 2º e 3º da Constituição), os parlamentares naturalmente perceberam que disso poderia resultar um grave conflito de interesses. Impunha-se, pois, impedir que o árbitro atuasse como parte interessada, ou seja, que pudesse ser beneficiário de tais atos quem os deveria, em última análise, fiscalizar como agente político do Estado. Na feliz síntese de um destacado integrante da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, o então Senador Artur da Távola, “não haverá fator maior de corrupção do Congresso Nacional” do que ele, “ao mesmo tempo em que se constituir em poder concedente, transformar seus membros em eventuais beneficiários da concessão” 69. Reconhecendo tal fato, a Constituição de 1988 deliberadamente criou um regime mais rígido para os parlamentares do que para os demais cidadãos, no que tange ao setor da radiodifusão. A finalidade desse regime seria desconsiderada, sem dúvida, se as normas que o embasam não fossem interpretadas de forma a impedir que pessoas jurídicas em que parlamentares tenham interesse (como sócios, diretores, controladores etc.) viessem a ser beneficiárias de concessões, permissões e autorizações de serviços públicos de radiodifusão70.

Radiodifusão e Defesa do Pluralismo na Constituição Brasileira: a Questão das Concessões, Permissões e Autorizações de Radiodifusão para Pessoas Jurídicas com Sócios Titulares de Mandato Político Eletivo

Examinados, isolada ou sistematicamente, os dispositivos constitucionais aqui abordados revelam, no que tange aos serviços públicos de radiodifusão, a inconstitucionalidade da manutenção, renovação ou outorga de concessões, autorizações ou permissões a pessoas jurídicas, quando estas tiverem parlamentares por proprietários, coproprietários, sócios, acionistas, controladores formais ou informais, diretores ou simples empregados. A margem de tolerância da Constituição de 1988 é muito pequena, e foi instituída claramente para impedir injustos prejuízos aos trabalhadores das empresas de radiodifusão que optem por participar das eleições. Eleitos estes últimos para o Congresso e diplomados pela Justiça Eleitoral, têm eles seu direito constitucional ao trabalho (artigo 6º) resguardado até a data da posse: a validade do ato administrativo em favor da empresa não será afetada, se o empregado eleito deputado ou senador dela se desligar antes dessa mesma data (artigo 54, II, ‘a’, parte final). De todo o exposto, podemos concluir o seguinte: Feitos, como acima demonstramos, em clara burla à Constituição, por comprometerem o pluralismo constitucionalmente exigido, o direito à informação, a liberdade de expressão e as próprias finalidades do “tríplice sistema” do artigo 223, são nulos os atos de outorga ou renovação de concessões, permissões ou autorizações feitos em benefício direto ou indireto de parlamentares e até mesmo de ex-parlamentares governistas, após a data de promulgação da Constituição da República, em 05 de outubro de 1988.

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68 LIMA, 2011, p. 104-107 e 114-117. 69 Neste mesmo sentido, criticando o fato injustificável de o poder concedente se transformar também em concessionário, vide LIMA, 2011, p. 31-32 e 87-89. 70 Vide o exaustivo levantamento feito por Venício A. de Lima sobre parlamentares com interesse direto no setor de radiodifusão em LIMA, 2006, p. 119-143.

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Marco Civil da Internet: uma Construção Multissetorial Fabro Steibel71 Carlos Affonso Souza72 Ronaldo Lemos73

1. Introdução O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) é uma lei inovadora em diversos aspectos. De início, a opção firme pelos direitos humanos como vetor a guiar toda a construção e aplicação da lei já a destaca de outras iniciativas que confundem regulação da Internet com censura e a imposição a restrições diversas ao exercício de direitos na rede. Tendo sido aprovada em 23 de abril de 2014, ela criou uma verdadeira “Carta de Direitos” para a Internet na esteira do aniversário de 25 anos de criação da World Wide Web e do chamado de seu criador, Tim Berners-Lee, para o desenvolvimento de uma “Magna Carta” da Internet global.74

71 Professor de inovação e tecnologia na ESPM Rio. Pesquisador Independente da Parceria de Governo Aberto no Brasil e fellow em governo aberto pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Pesquisador Visitante na Universidade das Nações Unidas e na Universidade da Califórnia San Diego. Pós-doutor em consultas públicas pela UFF. Doutor em Comunicação pela Universidade de Leeds (UK). Coordenador-geral de projetos do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. 72 Doutor e Mestre em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS). Professor da Faculdade de Direito da UERJ e da PUCRio. Pesquisador Visitante do Information Society Project, da Faculdade de Direito da Universidade de Yale. Membro da Comissão de Direito Autoral, Direitos Imateriais e do Entretenimento da OAB/RJ. 73 Professor de Direito na Graduação e na Pós-Graduação da UERJ. Mestre em Direito pela Universidade de Harvard. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Pesquisador visitante do MIT Media Lab. Professor visitante da Universidade de Princeton, afiliado ao Center for Information Technology Policy. Professor visitante da Universidade de Oxford. Membro do Conselho de Comunicação Social, com sede no Senado Federal. Diretor e fundador do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Liaison Officer do MIT Media Lab para o Brasil. 74 BBC, 2014.

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Fabro Steibel Carlos Affonso Souza Ronaldo Lemos

Além disso, o Marco Civil é também um exemplo de formulação de políticas públicas multissetoriais. O Marco Civil, em contraste com outros projetos de lei destinados a regular a Internet no país, não foi elaborado de cima para baixo, mas sim através de um esforço de colaboração. Ele foi baseado em uma iniciativa conjunta que envolveu a sociedade civil, o governo (Executivo e Legislativo), acadêmicos, comunidade técnica e o setor empresarial. Como tal, o Marco Civil foi o produto de um esforço aberto e colaborativo, que pode ser descrito como um processo multissetorial. A partir do momento em que ficou claro que o Brasil precisava de uma declaração de direitos para a Internet, também ficou claro que a própria Internet pode e deve ser utilizada para aperfeiçoar o modo pelo qual se constrói a legislação. Após uma série de movimentos sociais que demandaram a criação de um Marco Civil, o Ministério da Justiça, em parceria com a comunidade acadêmica, começou um processo de consulta de 18 meses que incluía contribuições de diversos intervenientes. A consulta, realizada online, foi complementada por uma série de eventos presenciais em todo o país. O projeto de lei elaborado foi então submetido ao Congresso, novas audiências públicas e consultas foram realizadas, até que o texto da lei foi sancionado pela Presidente mais de sete anos após a primeira consulta. O artigo 24 do Marco Civil impõe a prática do multissetorialismo na Governança da Internet, ao exigir que o Governo Federal, Estadual e os Municípios estabeleçam mecanismos multiparticipativos de governança que sejam transparentes, colaborativos e democráticos, com a participação do governo, do setor privado, da sociedade civil e da comunidade acadêmica. Se tivermos em mente que do início ao fim a aprovação do Marco Civil foi baseada em um intenso debate com as várias partes, o interesse do Brasil na promoção do multissetorialismo como uma diretiva para a governança da Internet e a sua regulação no País é clara. No entanto, até que ponto pode o Marco Civil ser considerado um caso de multissetorialismo bem sucedido, e em que medida ele tem inspirado avanços em outras iniciativas multissetoriais? Este pequeno artigo analisa os êxitos e desafios de características multissetoriais do Marco Civil para resolver essa questão, com base em uma combinação de duas metodologias: um conjunto de entrevistas independentes executadas em 2011, com coordenadores da iniciativa75, e documentação que retrata as análises e observações dos responsáveis pela execução do projeto. 75 STEIBEL, BELTRAMELLI, 2012.

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Marco Civil da Internet: uma Construção Multissetorial

De um lado podemos argumentar que o Marco Civil foi um processo de formulação de políticas verdadeiramente híbrido e transparente, que envolveu contribuições de usuários, organizações da sociedade civil, empresas de telecomunicações, órgãos governamentais e universidades, todos lado a lado. Cada colaborador pôde ver as contribuições dos outros e todas as cartas na mesa tiveram de ser consideradas de forma clara. Por outro lado, podemos argumentar que Marco Civil foi um processo artesanal, no qual, apesar de fóruns e procedimentos com várias partes interessadas, o sucesso do projeto de lei é atribuível ao papel ativo dos principais agentes que levaram a iniciativa adiante. De uma forma ou de outra, o processo foi bem-sucedido. O Marco Civil traduz os princípios da Constituição democrática brasileira para o ambiente online. É uma vitória para a democracia e para o que ela representa. Nesse sentido, o Marco Civil brasileiro vai na direção oposta de outras leis que foram aprovadas recentemente em países como a Turquia ou a Rússia que se expandem os poderes dos governos sobre a forma pela qual os particulares utilizam a rede. A lei brasileira pode assim ser um exemplo para os países dispostos a levar a sério a importância da rede para facilitar o desenvolvimento de uma esfera pública rica e aberta.

2. Um Breve Histórico da Lei O Marco Civil foi criado como parte de uma reação pública forte contra um projeto de lei sobre crimes cometidos através da Internet (cibercrimes) no Brasil. O PL nº 84/99, de autoria do Deputado Luiz Piauhylino, recebeu um substitutivo do Senador Eduardo Azeredo que culminou com a associação do Senador (e posteriormente Deputado) com o destino do projeto. A partir de 2007 o projeto de lei passou até mesmo a ser apelidado de “Lei Azeredo”. Caso tivesse sido aprovado, o projeto teria estabelecido penas de até quatro anos de prisão para quem violasse os mecanismos de proteção de um telefone celular (“jailbreak”) ou para quem transferisse músicas de um CD para outros dispositivos, por exemplo. Com um alcance tão amplo (que se aproximava das discussões sobre os projetos de lei SOPA e PIPA nos Estados Unidos), o projeto de lei teria transformado em criminosos milhões de usuários de Internet no Brasil. Mais ainda, ele teria restringido oportunidades de inovação, lançando à ilegalidade práticas necessárias para atividades típicas de pesquisa e desenvolvimento. 45

Fabro Steibel Carlos Affonso Souza Ronaldo Lemos

Amplo movimento de reação surgiu contra a Lei Azeredo. Um dos primeiros grupos a levantar a sua voz foi o setor acadêmico. Esse grupo foi então seguido por uma forte mobilização social, que incluiu uma petição online que em um curto prazo recebeu cento e cinquenta mil assinaturas. O Congresso, em seguida, tomou conhecimento da reação e, graças à mobilização, iniciou uma discussão sobre o tema no Poder Legislativo. As vozes contra a “Lei Azeredo” foram muitas. No entanto, não houve consenso claro sobre que alternativa deveria ser defendida. Se um projeto de lei criminal não era a melhor maneira de regular a Internet no Brasil, então qual deveria ser a alternativa? Em maio de 2007, um artigo na Folha de São Paulo, de autoria de Ronaldo Lemos, trazia a proposta de que, em vez de um projeto de lei criminal, o Brasil deveria ter um “marco regulatório civil” para a Internet, um “Marco Civil”76. Essa foi a primeira vez que o termo apareceu em público. A ideia decolou e foi acolhida pelo Ministério da Justiça. Em 2008, o Ministério convidou um grupo de professores, incluindo parte dos autores deste artigo, que coordenavam na época um centro de pesquisas na Fundação Getulio Vargas, para criar um processo aberto e multissetorial para a elaboração de uma maneira alternativa para regular a Internet. Ficou claro para os envolvidos que não se poderia regular a Internet sem usar a própria rede para esse fim. Decidiu-se então lançar uma plataforma online para debate e colaboração sobre anteprojeto de lei, cujos arquivos ainda estão disponíveis em www.culturadigital.org/marcocivil. A consulta foi dividida em duas fases. A primeira envolveu a consulta do público em geral sobre uma lista de princípios propostos para o debate (ou seja, liberdade de expressão, privacidade, neutralidade da rede, direito de acesso à Internet, responsabilidade dos intermediários, abertura e promoção da inovação). A segunda envolvia examinar o anteprojeto de lei, artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. Quando a consulta terminou, o Governo, com o apoio de quatro ministérios (Ministério da Cultura, Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério das Comunicações e Ministério da Justiça) enviou o projeto de lei ao Congresso no dia 24 de agosto de 2011. Depois de intensos debates no Congresso, a Lei foi finalmente aprovada em 23 de abril de 2014.

Marco Civil da Internet: uma Construção Multissetorial

2.1. As definições político-econômicas do Marco Civil Em 2007, a eleição de Lula foi um evento importante para temas relacionados à internet dada a seleção do desenvolvimento de tecnologias e o uso da internet como pautas de relevo para o governo. Além disso, a nomeação de Gilberto Gil como Ministério da Cultura trouxe novas perspectivas para questões sobre Internet e cultura digital no Brasil. Gil investiu em estúdios de multimídia por meio do Programa “Cultura Viva”, buscou desenvolver novas narrativas para um programa de Cultura Digital Brasileira e identificou políticas públicas relacionadas à internet. Entre essas políticas do Fórum de Cultura Digital estava justamente a plataforma que foi utilizada para a consulta do anteprojeto de lei. Anos mais tarde, quando a legislação estava pronta para votação, em julho de 2013, na esteira das primeiras divulgações de Edward Snowden relativas aos programas de vigilância implementados pela Agência de Segurança Nacional dos EUA, o jornalista Glenn Greenwald publicou um artigo no jornal O Globo confirmando que o Brasil era também alvo de vigilância do governo norte-americano. O governo brasileiro não hesitou em reagir e começou a exigir de representantes diplomáticos uma explicação. Como resultado disso, a questão da regulação da internet tornou-se novamente uma prioridade para o governo brasileiro e assim o Marco Civil saltou para o topo da agenda política. Até então o governo havia percebido que o Marco Civil poderia ser uma resposta eloquente para a questão da vigilância, mas gradativamente foi consolidada a noção de que o Marco Civil poderia desempenhar especialmente a função de posicionar o Brasil como um líder global nos debates sobre governança e regulação da Internet. Em setembro de 2013, a presidente Dilma Rousseff concedeu regime de urgência constitucional para o projeto de lei, impedindo assim que o Congresso viesse a votar outras matérias até que a votação Marco Civil foi concluída. Como a votação do Marco Civil se alongava no tempo, a pauta do Congresso chegou a ficar trancada. Em 25 de março de 2014 o projeto de lei foi aprovado pela Câmara dos Deputados, e logo em seguida em abril, durante a Conferência NETmundial, foi promulgada. Vale ressaltar que, na primeira fase de consulta, o Ministério da Justiça apresentou uma proposta dividida em três vertentes que representavam as principais partes interessadas: cidadãos (em resposta ao debate com foco na liberdade de expressão, a retirada de conteúdo, acesso e privacidade); empresas (em resposta

76 FOLHA DE SÃO PAULO, 2007.

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Fabro Steibel Carlos Affonso Souza Ronaldo Lemos

a discussões sobre a responsabilidade do intermediário em relação a conteúdo de terceiros e neutralidade da rede) e governo.

2.2. Os mecanismos de consulta Consultas administradas pelo governo não eram uma novidade no Brasil. No entanto, para além de algumas iniciativas experimentais, o Marco Civil foi o primeiro a ser executado totalmente online. A iniciativa foi um esforço conjunto do Ministério da Justiça (iniciador do projeto) e o centro de pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) como parceiro acadêmico. Além dessas organizações, o projeto também recebeu apoio direto do Ministério da Cultura e a assistência de outros ministérios, como o Ministério das Relações Exteriores, e contribuições ad hoc de organizações da sociedade civil e ativistas da Internet. O objetivo geral da consulta foi a elaboração de uma Lei sobre direitos na Internet a ser submetida à votação do Congresso. O projeto foi concebido para sugerir um conjunto de princípios e direitos para orientar a futura legislação sobre Internet. Assim, a consulta foi concebida como uma prática colaborativa. O projeto se desenvolveu entre outubro de 2009 e maio de 2010, resultando em um fórum online onde políticos, acadêmicos, artistas, ONGs, empresas privadas, indivíduos e outras partes interessadas poderiam comentar sobre a futura legislação aplicável à internet brasileira. O projeto fez uso de várias ferramentas da web 2.0 (principalmente plataforma Wordpress, Twitter, RSS feeds, e blogs) e foi dividido em duas rodadas de discussão: durante a primeira fase as pessoas foram convidadas a comentar sobre um “livro branco” com um conjunto de geral de ideias globalmente orientadas. Na segunda fase as pessoas foram convidadas a comentar o projeto de lei como formatado para ser enviado ao Congresso. A primeira rodada de debate testou um conjunto de padrões normativos, pré-definidos por aqueles que organizavam a iniciativa, que foram considerados importantes para incluir na legislação futura; enquanto a segunda rodada foi direcionada ao recebimento de feedback sobre o projeto de lei em si. Nessa fase não se comentou apenas conceitos, mas sim a redação proposta para o texto em si. Durante os dois períodos de consultas participantes poderiam comentar sobre temas pré-definidos, concentrando-se em três eixos de discussão: direitos individuais e coletivos (ou seja, privacidade, liberdade de expressão e direitos

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Marco Civil da Internet: uma Construção Multissetorial

de acesso), os princípios relacionados aos intermediários (isto é, neutralidade da rede e direitos civis) e diretivas governamentais (isso é, abertura, infraestrutura e capacitação). Portanto, embora o projeto de consulta online fosse uma prática colaborativa, as partes interessadas foram convidadas a trazer ideias para o debate enquanto o processo de tomada de decisão final restou aos organizadores da iniciativa e mais especificamente aos representantes governamentais. Os comentários não foram moderados, mas acompanhados em tempo real por pesquisadores dedicados à iniciativa. Da fase um para a fase dois, os pesquisadores envolvidos no projeto se reuniram por dias e após compilar os comentários, minutaram uma primeira versão do projeto de lei. Um fato curioso do processo foi a percepção de que uma dada redação sobre o tema da remoção de conteúdos não havia recebido apoio quando apresentada. Reunidos, os responsáveis pela iniciativa decidiram apresentar uma nova redação enquanto a segunda fase de consulta ainda se encontrava aberta. Em outro momento da consulta um processo de votação foi estabelecido, mas rapidamente removido devido a um desequilíbrio percebido do debate. Segundo notaram os organizadores da iniciativa, as contribuições mais antigas tendiam a receber mais votos do que as mais novas, o que diminuía os incentivos para se escrever novos comentários.

3. Práticas bem sucedidas de multissetorialismo no Marco Civil A negociação política sobre os termos do Marco Civil era extremamente complexa e levou anos para ser completada. A força motriz por trás da iniciativa foi a natureza multissetorial que cercava a elaboração do projeto de lei. Era claro, desde o início, como diferentes partes interessadas se posicionaram nas principais questões políticas. Não só isso, mas também foi possível para as partes interessadas trazer publicamente as suas posições. Os formuladores de políticas por trás do Marco Civil haviam criado uma consulta online que atraiu considerável atenção da mídia. Sendo assim, optaram por rejeitar as contribuições recebidas por e-mail apenas reconhecendo aquelas que fossem publicadas online. Dessa forma, era requerido que as partes interessadas expusessem publicamente os seus argumentos ao escrutínio público. Isso ajudou a reduzir a assimetria de informações e facilitou as negociações. Ela ajudou assim a fechar 49

Fabro Steibel Carlos Affonso Souza Ronaldo Lemos

acordos e a estabelecer compromissos. O Ministério da Justiça, por exemplo, precisou ceder em seu posicionamento inicial sobre a guarda de logs; empresas de tecnologia e empresas de telecomunicações concordaram com o notório fato de que existiam fortes diferenças entre os posicionamentos dos dois setores sobre a neutralidade da rede; e a sociedade civil foi indiretamente forçado a reconsiderar a sua posição no que diz respeito de remoção expressa da pornografia de vingança como forma de salvar todo o regime de responsabilidade civil que criava uma salvaguarda para provedores como veículos para a promoção do discurso na rede. Para ilustrar o ponto acima, na Tabela 1 mapeamos as principais controvérsias do Marco Civil e como as principais partes interessadas se posicionaram ao longo do processo77. Ela lista os principais interesses envolvidos na negociação do projeto, bem como as principais questões em disputa. Ela também lista a respectiva posição de cada grupo de interesse, ajudando assim a visualizar as disputas e como elas foram incluídas na lei aprovada. Empresas de telecomunicações, por exemplo, eram contra ou neutras durante todo o processo em torno das questões-chave do Marco Civil, enquanto a sociedade civil era a favor de quatro das seis questões analisadas e neutra sobre outros dois. Os dados comparando a posição dos setores aqui mencionados sugerem, quando comparados com o texto final da lei, que a transparência sobre a posição de cada setor forçou acordos entre os mesmos e trouxe mais clareza e transparência para as negociações.

Marco Civil da Internet: uma Construção Multissetorial

Tabela 1: Resumo da posição dos setores vs. Temas do Marco Civil

Neutralidade da rede

Privacidade fortalecida

Garantias para não responsabilização do discurso

Retenção de dados

Localização forçada de dados

Garantias para não responsabilização - direito autoral

Remoção expressa para pornô de vingança

Empresas de telecomunicações

Contra

Contra

Neutras

Neutras

Neutras

Neutras

Neutras

Sociedade Civil

A favor

A favor

A favor

Contra

Contra

A favor

Contra

Empresas de Internet globais

Neutras

Contra

A favor

Neutras

Contra

A favor

Neutras

Empresas de Internet brasileiras

A favor

Contra

A favor

Contra

Contra

Neutras

Neutras

Radiodifusores

A favor

A favor

A favor

Neutras

Neutras

Contra

Neutras

Governo (Poder Executivo)

A favor

Neutro

Neutro

A favor

A favor

Neutro

A favor

Polícia Federal / Ministério Público

Neutro

Contra

Contra

A favor

A favor

Contra

A favor

Rejeitada

Rejeitada

Aprovada

Temas/ Atores

Lei aprovada

77 Os dados das tabelas 1, 2 e 3 são baseados na análise prévia dos autores durante os anos de consulta sobre o texto do Marco Civil. Essa análise procura perceber as movimentações de cada setor como um todo, sendo claro que diferentes agentes dentro de um setor podem ter manifestado posições distintas ou com diferentes graus de intensidade ao longo dos sete anos que levaram à aprovação do texto. Um exemplo pode ser visto na posição das empresas de internet globais, que de início foram muito mais ativas na questão da responsabilidade civil (remoção de conteúdo) e a garantia de uma salvaguarda que não as responsabilizasse pelo não atendimento de notificações privadas. Uma vez consolidado o texto do atual artigo 19, grande parte da mobilização do setor se voltou ao combate das medidas sobre localização forçada e, em menor escala, à retenção de dados. Sendo assim, poder-se-ia mesmo afirmar que esse setor terminou sendo definitivamente contrário à retenção de dados, mas em um primeiro momento, como destaque foi dado a outros pontos mais urgentes, optamos por manter a marcação como “neutra”, até mesmo apontando a possibilidade de acordo envolvendo a permanência de uma certa e limitada retenção de dados em troca de se assegurar a salvaguarda para provedores e a não implementação de localização forçada.

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Aprovada Aprovada Aprovada Aprovada

Nas Tabelas 2 e 3 também fica claro que apenas o multissetorialismo não pode explicar os resultados dos processos políticos. O que queremos dizer com isso é que nenhuma das partes interessadas só ganhou em todas as questões-chave, e nem pode ser encontrada uma questão de política na qual haja um alinhamento claro entre todas as partes interessadas. A Tabela 1 expõe a posição de cada ator no que diz respeito de cada questão. Considerando os respectivos valores como um para a favor, 0 para neutro e -1 para contra, notamos que, das sete questões mapeadas, empresas de telecomunicações foram os atores que mais se opunham ao Marco Civil. Elas se opunham especialmente à neutralidade da rede e às provisões sobre privacidade (duas questões que foram aprovadas no projeto de lei. Como esperado, o governo (ou seja, Poder Executivo) foi o

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ator que mais apoiou o projeto (+4), não se posicionando contra as principais questões, mas perdeu no que diz respeito a localização forçada de dados.

Contra (-1)

1

4

1

2

3

2

1

Tabela 2: Resumo dos posicionamentos (a favor, neutro, contra) vs. atores

Total dos temas

3

-2

3

0

-1

0

3

Rejeitada

Rejeitada

Aprovada

Temas/Atores

A favor (+1)

Neutro (0)

Contra (-1)

Total por ator

Empresas de telecomunicações

0

5

2

-2

Sociedade Civil

4

0

3

1

Empresas de Internet globais

2

3

2

0

Empresas brasileiras de Internet

2

2

3

-1

Radiodifusores

3

3

1

2

Governo

4

3

0

4

Ministério Público / Polícia Federal

3

1

3

0

Total

18

16

15

-

As tabelas em conjunto ilustram a complexidade da negociação Marco Civil, tanto em termos do número de partes envolvidas como sobre a variedade de assuntos abordados. Dito isto, podemos argumentar que, enquanto o multissetorialismo traz transparência à forma como o processo de formulação de políticas é convocado, ao mesmo tempo ele não pode prever o resultado que a decisão política terá. O Marco Civil foi uma conquista importante não só para o Brasil, mas também em nível mundial. É importante por causa de sua substância e também o seu processo, representando a conexão intrínseca entre o processo aberto e colaborativo e os resultados substanciais alcançados.

A Tabela 3 ilustra outro resultado: como as partes interessadas divergiram durante o debate. Isto significa que nenhum problema foi um grande ponto de consenso entre todas as partes interessadas, sendo uma distribuição de opiniões entre todas as posições possíveis o resultado padrão encontrado. Lendo junto as três tabelas, podemos ver, por exemplo, que o tema que enfrentou mais oposição (isto é, privacidade reforçada) e os três que tiveram mais apoio (neutralidade da rede, garantias para o discurso e remoção expressa de pornografia de vingança) foram igualmente incluídas no projeto de lei aprovado. Tabela 3: Resumo dos posicionamentos (a favor, neutro, contra) vs. temas

Temas/ Atores

Neutralidade da rede

Privacidade fortalecida

Garantias para não responsabilização do discurso

A favor (+1)

4

2

Neutra (0)

2

1

Legislação Aprovada Aprovada Aprovada Aprovada aprovada

Retenção de dados

Localização forçada de dados

Garantias para não responsabilização - direito autoral

Remoção expressa para pornô de vingança

4

2

2

2

4

2

3

2

3

2

4. Desafios do Multissetorialismo no Marco Civil É importante mencionar que multissetorialismo se tornou hoje em dia um lugar comum repetido como um mantra e que por isso a sua simples menção não é suficiente. Um esforço de negociação intenso foi necessário para resolver as contradições e disputas envolvidas no Marco Civil. Multissetorialismo foi uma partida útil (e importante) a fim de obter resultados eficazes, gerando debates permanentes e negociações que exigiam que os atores deixassem de lado o radicalismo e a polarização, estando prontos para fechar compromissos ao longo do processo. Essa é sem dúvida uma das principais lições do Marco Civil.78 O primeiro desafio do Marco Civil, no entanto, estava atraindo um número considerável de contribuintes e envolvendo os mesmos em uma ampla discussão. Com base em extensa análise de 15 anos de consultas online, podemos argumentar que os números globais obtidos pelo Marco Civil em termos de autores e comentários recebidos é significativa79. Mais de dois mil comentários 78 Os dados das tabelas 4 e 5 são baseadas as análises prévias constantes em: STEIBEL, BELTRAMELLI, 2012. 79 COLEMAN & SHANE, 2011.

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Marco Civil da Internet: uma Construção Multissetorial

foram publicados em consulta. Excluindo aqueles que continham comentários muito simples (por exemplo, sim ou não, links do twitter ou referências externas sem comentários), descobrimos que a consulta online Marco Civil foi um processo multissetorial que recebeu 1.507 comentários e atraiu 287 participantes (apenas 22 deles engajaram-se em ambas as fases de consulta). Tabela 4: Números da consulta pública do Marco Civil

Tabela 5: Perfil do fórum do Marco Civil Total #

#

Sem comentários recebidos

17

0,13

De 1 até 9 comentários

54

0,43

Número de comentários por fórum

Fase 1

Fase 2

Total

De 10 até 25 comentários

62

0,49

#

#

#

Mais de 25 comentários

5

0,04

Número de comentários

623

884

1.507

Números de autores por fórum

Duração da consulta

99 days

52 days

151 days

Sem autores

17

0,13

Média de comentários por dia

6,3

17,0

10,0

Sem autores até 5 autores

62

0,49

De 6 até 25 autores

33

0,26

Mais de 25 autores

32

0,25

Número total de fóruns na Primeira e na Segunda Fase

127

1,00

Número de contribuições

Número de comentadores Autores das Fases 1 + 2 (repetidos ou não)

127

160

287

Todos vs. Autores que retornaram

127 (0)

160 (22)

287 (22)

Se atrair um grande número de comentários e colaboradores foi um desafio, um segundo desafio foi fazer com que todos os tópicos para debate estivessem abertos todo o tempo da consulta. Quando olhamos para o perfil de consultas por fórum, descobrimos que nem todas as seções do Marco Civil foram devidamente discutidas (mesmo estando abertas para o debate). Nosso objeto de análise aqui é o fórum. Um fórum para a criação de políticas é definido como uma seção de comentários independente na consulta principal, que se refere ao modo como essa é codificada em Wordpress para ser uma seção autônoma. Assim, aqueles que participam do fórum só podem ver as contribuições deixadas no mesmo fórum. Como a Tabela 5 sugere, excetuando-se os 127 fóruns políticos abertos para discussão no Marco Civil (Fase 1 e 2 todos juntos), em 13% deles não tivemos autores ou foram recebidos quaisquer comentários. É verdade que em 4% mais de 25 comentários foram recebidos e em um em cada quatro fóruns (25%) mais de 25 colaboradores participaram. No entanto, o quadro geral sugere que o Marco Civil foi caracterizado por fóruns políticos, onde cerca de 10 a 25 observações foram deixadas e em geral não envolveu mais de cinco autores.

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Um terceiro desafio enfrentado pelo Marco Civil foi identificar apoio e divergência. Se analisarmos a variação no número de comentários que apresentaram apoio, oposição, ou divergência na política específica consultada (não emitem assim uma opinião sobre o Marco Civil como um todo, mas apenas em relação à política específica), verificamos que no geral a maioria dos comentários divergiu da consulta proposta. A divergência aconteceu em dois casos principais: quando o autor decidiu ignorar a política sugerida e sugerir uma alternativa a ela; e quando um autor ignora a política sob consulta e em vez disso apoia, opõe-se, ou diverge da contribuição de outro autor. Levando em consideração que três em quatro comentários se enquadram nesta categoria (75%), pode-se argumentar que o Marco Civil iniciou um debate vigoroso, onde a proposta de política original foi brevemente revisada e seguido por uma vasta gama de posições alternativas sugeridas por diferentes partes interessadas.

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Table 6: Apoio ao texto proposto na consulta do Marco Civil Posição dos comentários sobre o texto sugerido

MC

Total

Apoio

168

,11

Oposição

201

,14

Divergência

1.138

,75

Total de comentários recebidos

15.07

1,0

5. Conclusão Tomados em conjunto, os três desafios (um significativo mas ainda limitado número de contribuições; fóruns políticos caracterizados por um número limitado de comentários e contribuintes; e as divergentes orientações políticas dos colaboradores), pode até parecer que o Marco Civil foi uma experiência limitada. Na verdade, é importante perceber como a iniciativa de se criar um Marco Civil para a Internet da forma como foi realizada se tratou, de fato, de um experimento80 muito bem sucedido. Devemos também considerar que a consulta online foi executada simultaneamente com eventos presenciais em todo o país, que os debates políticos foram expostos e analisados pela mídia, diversas audiências públicas e outras formas de consulta online foram realizadas pelo Poder Legislativo, e vários debates paralelos foram iniciados na sociedade civil, no setor empresarial, na comunidade técnica e na academia. Os desafios enfrentados pelo Marco Civil ilustram a importância do multissetorialismo. É justamente através do multissetorialismo que são formuladas políticas mais acessíveis, participativas, e publicamente responsáveis. Como discutimos acima, o multissetorialismo isoladamente no caso do Marco Civil não consegue explicar os resultados finais do projeto de lei aprovado no Congresso. No entanto, ficou claro durante os sete anos dessa iniciativa como as principais partes interessadas se posicionaram em torno dos principais temas-chave, forçando os agentes políticos a negociar e a colaborar. A experiência com a consulta também trouxe algumas lições muito relevantes. Por exemplo: para executar consultas online com várias partes interessadas é preciso antes de mais nada compreender o papel das instituições que apoiam a iniciativa. Seis fatores foram cruciais para essa conclusão: (a) a existência

de uma instituição governamental com real interesse na participação pública direta; (b) uma comunidade online ativa com forte interesse no tópico em discussão; (c ) uma instituição que opera nos moldes de think tank disposta a trazer os seus próprios conhecimentos e influência para o projeto; (d) uma interface de web 2.0 capaz de envolver os responsáveis ​​políticos e os cidadãos em uma estrutura narrativa coerente para deliberação; (e) formuladores de políticas capazes decidir sobre quais temas deliberar, qual tecnologia seria implementada, e como as contribuições seriam traduzidas em um documento final formatado para servir ao seu propósito (no caso um projeto de lei); e (f) recursos suficientes, apoiados por aqui pelo Ministério da Justiça, para custear o projeto e promovê-lo online e offline. Há, no entanto, uma cultura complexa de perpétuo experimentalismo envolvido na iniciativa. Até certo ponto, consultas online se assemelham à criação de um ambiente completamente novo para a elaboração de políticas. Por exemplo: os tomadores de decisão se viram obrigados a compreender a essência de ferramentas como Twitter e e-mail e decidir se eles eram úteis ou não como ferramentas incorporadas ao processo de consulta. Com base em experiências anteriores com fóruns de política offline, eles estavam dispostos a evitar o recurso exclusivamente a ferramentas de comunicação um-para-poucos em favor de um fluxo de comunicação muitos-para-muitos. Daí a decisão (atingido após um certo período de tentativa-e-erro) de se usar o Twitter (e não o e-mail) para interagir com o público em geral. A consulta também deixou duas importantes contribuições para os desafios futuros da Lei no Congresso: o papel da multissetorialismo e a importância da transparência. Embora não tenha sido possível controlar futuros resultados políticos da experiência uma vez que a consulta terminou, o fato de que o projeto de lei foi elaborado após a contribuição pública de várias partes interessadas, com tempo para discussão e intercâmbio de ideias, acabou fortalecendo o texto e evitando modificações que fossem no sentido exatamente oposto daquilo que resultou da consulta. Além disso, a comunidade política envolvida nas fases iniciais da legislação garantiu um debate intenso e permanente em torno do projeto de lei, que durou até a aprovação do projeto de lei e seguiu adiante para ilustrar os rumos de sua regulamentação e das futuras leis sobre o tema.

80 O’REILLY, 2010; p. 11-38.

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6. Referências BBC. Sir Tim Berners-Lee: World Wide Web needs bill of rights. 12.03.2014. Disponível na internet em: http://www.bbc.com/news/uk-26540635. COLEMAN, S. & SHANE, P. M.. Connecting democracy: online consultation and the flow of political communication. Cambridge, Mass.; London: MIT Press, 2011.

Breves Considerações sobre o Direito ao Esquecimento no Brasil: Lições do Supremo Tribunal Federal no Caso das Biografias não Autorizadas

FOLHA DE SÃO PAULO. Internet Brasileira Precisa de Marco Regulatório Civil. Disponível na internet em: http://tecnologia.uol.com.br/ultnot/2007/05/22/ult4213u98.jhtm. Maio 2007. O’REILLY, Tim. Government as a Platform. In: LATHROP, Daniel; RUMA, Laurel (eds.). Open government: Collaboration, transparency, and participation in practice. O’Reilly Media, Safari Books Online, 2010, p. 11-38. STEIBEL, Fabro; BELTRAMELLI, F.. Online Public Policy consultations. In: GIRARD, B. Impact 2.0: New mechanisms for linking research and policy. CreateSpace, 2012.

Mario Viola81 Vanessa Vargas82

1. Introdução Em 2014 a decisão do Tribunal de Justiça Europeu (TJE) sobre o caso Google Espanha a respeito do direito ao esquecimento provocou discussões em ambos os lados do Atlântico e em ambos os hemisférios. Alguns argumentam que a abordagem adotada pelo Tribunal de Justiça - o que coloca nas mãos de um jogador particular a decisão se deve ou não remover resultados de consultas em um motor de busca - vai contra a liberdade de informação e liberdade de expressão, enquanto outros defendem que a decisão garante um nível mais elevado de proteção da privacidade.83 Na América do Sul, a proteção dos dados pessoais é inspirada na perspectiva europeia por causa dos laços históricos e culturais entre a Europa Continental e América do Sul, que se estendem para a cultura jurídica e desenho institucional. Assim, na proteção de privacidade a América do Sul está ligada ao princípio do respeito da dignidade humana e, por isso, a maioria dos países sul-americanos já reconheceram o habeas data como um direito constitucional. Além disso, cerca de metade dos países da América do Sul já adotou uma nor81 Coordenador da área de privacidade e proteção de dados do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Professor do Instituto Brasileiro de Mercados de Capitais (IBMEC). Doutor em Direito pelo Instituto Universitário Europeu (Itália). Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 82 Pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). 83 Veja essa discussão em SARTOR, CUNHA, 2015, p. 119-121.

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ma geral de proteção de dados pessoais inspirada na Diretiva Geral da União Europeia de Proteção de Dados. O Brasil, entretanto, ainda não adotou uma lei geral de proteção de dados pessoais.84 Apesar disso, como consequência das revelações de Snowden em relação ao monitoramento de e-mail e telefone celular da presidente da república por agências de inteligência dos Estados Unidos,85 o Brasil assumiu a liderança internacional nas discussões sobre privacidade e proteção de dados na web.86 Além disso, o Superior Tribunal de Justiça, a mais alta corte de apelação para questões não constitucionais, recentemente reconheceu a existência de um direito a ser esquecido em dois casos relativos à transmissão de TV87. Como se não bastasse, em 2014 o Brasil adotou o chamado Marco Civil da Internet, garantindo imunidade a provedores de serviços de internet para conteúdo gerado por usuários, que somente serão responsabilizados após receberem uma determinação judicial e não retirarem o conteúdo, sendo a única exceção a esta regra os pedidos de retirada de conteúdos que envolva imagens, vídeos e outros materiais que contenham nudez ou atos sexuais de natureza privada, situações em que uma ordem judicial não é necessária.88

84 Vide http://www.dataprivacylaws.com.ar/2015/01/28/brazil-new-data-protection-bill/ (Acessado em 16 Janeiro de 2016). 85 Vide http://www.theguardian.com/world/2013/jun/06/nsa-phone-records-verizon-court-order (Acessado em 15 Janeiro de 2016). 86 SARTOR, CUNHA, 2015, p. 114. 87 Casos do Massacre na Candelária e Aída Curi. 88 Vide Artigos 19 e 21 do Marco Civil da Internet: Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

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Breves Considerações sobre o Direito ao Esquecimento no Brasil: Lições do Supremo Tribunal Federal no Caso das Biografias não Autorizadas

2. O direito ao esquecimento no Brasil sob uma perspectiva de um caso concreto A Constituição prevê89 como dos direitos fundamentais a liberdade de expressão e o direito de resguardar a intimidade e privacidade. Esses direitos se esbarram e geram polêmicas quando o assunto é a “exposição” da vida privada. Um dos exemplos desse conflito de direitos fundamentais se deu no caso das biografias não autorizadas. Anderson Schreiber define que a biografia é a história escrita da vida de uma determinada pessoa, que geralmente é feita sobre figuras públicas e de reconhecimento nacional ou internacional, como políticos, escritores, cientistas, esportistas, artistas ou de pessoas que deram uma contribuição importante para a sociedade. Biografia é um livro de História. O biografado é a janela para entendermos o seu tempo, a sua época.90 Segundo esse entendimento, a biografia de pessoa pública nada mais é do que o relato de fatos verídicos da vida de pessoas conhecidas. A restrição a publicação de biografias não autorizadas feriria o princípio da liberdade de expressão e informação, o que poderia afetar a memória real do país. Essa questão foi levada aos Tribunais, sendo exemplos os casos das Biografias de Roberto Carlos e Manuel Francisco dos Santos (Garrincha). Esse cenário motivou a apresentação de um projeto de lei, 393/2011,91 que tramita no Congresso Nacional, com a finalidade de alterar os artigos92 20 e 21, do Código

89 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; 90 SCHREIBER, 2013, p. 130. 91 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=491955. 92 Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

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Civil, a fim de autorizar a publicação de biografias no Brasil sem prévio consentimento. Simultaneamente a esse projeto de lei, a Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL) ingressou em 2012 com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), distribuída sob o número 4815, para questionar o alcance da interpretação dos artigos supracitados. Na referida ação a ANEL fundamentou que os dispositivos conteriam preceitos conflitantes com a liberdade de expressão e de informação, objetivando assim que fosse dada interpretação segundo a Constituição Federal aos artigos em comento, de forma a afastar a necessidade de anuência da pessoa biografada ou de seus sucessores para a publicação de obras literárias. O Ministério Público Federal manifestou-se favoravelmente na ação supracitada, defendendo a desnecessidade de autorização para que uma obra venha a público, a partir de uma leitura dos artigos 20 e 21 do Código Civil de que deveria prevalecer a liberdade de expressão sobre os direitos da personalidade. Em 10 de junho 2015 a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815 foi julgada procedente para dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para declarar inexigível autorização de pessoa biografada ou coadjuvantes.93 Foram consideradas as seguintes questões na procedência da Ação: a) a Constituição da República assegura como direitos fundamentais a liberdade de pensamento e de sua expressão, a liberdade de atividade intelectual, artística, literária, científica, cultural; b) a Constituição da República garante o direito de acesso à informação, no qual se compreende o direito de informar, de se informar e de ser informado, a liberdade de pesquisa acadêmica, para o que a biografia compõe fonte inarredável e fecunda;



Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

93 “Acórdão (ADIN 4815): Em 10 de junho de 2015, acordaram os Ministros, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, julgou procedente o pedido formulado na ação direta para dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas).

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Breves Considerações sobre o Direito ao Esquecimento no Brasil: Lições do Supremo Tribunal Federal no Caso das Biografias não Autorizadas

c) a Constituição brasileira proíbe censura de qualquer natureza, não se podendo concebê-la de forma subliminar pelo Estado ou por particular sobre o direito de outrem; d) a Constituição vigente garante a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da dignidade da pessoa, estabelecendo a consequência do descumprimento dessa norma pela definição da reparação de contrariedade a ela por indenização a ser definida; e e) norma infraconstitucional não pode cercear ou restringir direitos fundamentais constitucionais, ainda que sob o pretexto de estabelecer formas de proteção, impondo condições ao exercício das liberdades de forma diversa daquela constitucionalmente permitida, o que impõe se busque a interpretação que compatibilize a regra civil com a sua norma fundante, sob pena de não poder persistir no sistema jurídico;

O Supremo Tribunal Federal entendeu que a liberdade de expressão e o direito à informação devem prevalecer em relação ao direito da Privacidade e intimidade quando há relevante interesse público. Além disso, ressaltou que a expressão é livre e que qualquer censura prévia é vedada no sistema brasileiro, cabendo àquele que tiver algum direito da personalidade violado em razão da divulgação de obra ou de conteúdo buscar a devida reparação.

3. O direito ao esquecimento da União Europeia no cenário brasileiro Sobre o caso contra o Google Espanha e o Google Inc., o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) reconheceu a existência de um direito ao esquecimento, que autoriza as pessoas a solicitar aos motores de busca (no caso do processo ao Google) a exclusão de resultados de pesquisas realizadas no motor de busca que se relacionem ao seu nome. Essa decisão foi adotada num processo de reenvio prejudicial estabelecido a partir de um pedido apresentado pela Audiência Nacional espanhola, em um caso apresentado pelo Google Espanha e o Google Inc. contra a Autoridade de Proteção de Dados Espanhola (Agencia Espanhola de Proteção de Dados AEPD) e um cidadão espanhol. Segundo o TJUE, “o operador de um motor de

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busca é obrigado a remover da lista de resultados exibidos após uma pesquisa feita com base em ligações do nome de uma pessoa para páginas da web, publicado por terceiros e que contém informações relativas a essa pessoa, também no caso em que o nome ou as informações não são apagados antes ou simultaneamente a partir dessas páginas da web, e até mesmo, conforme o caso pode ser, quando da sua publicação em si mesmo nessas páginas é legal.”94 Além disso, o TJUE considerou que um pedido para remover um link específico poderia ser dirigido ao motor de busca sem a intervenção de qualquer autoridade judicial ou administrativa. O Tribunal considerou ainda que o direito ao esquecimento não exige prova de qualquer dano sofrido pelo titular dos dados em causa. O TJUE baseou a sua decisão no artigo 12 (b) e artigo 14 (a), da Diretiva 95/46. O Artigo 12 (b) confere aos titulares dos dados os direitos de “retificação, a extinção ou o bloqueio dos dados cujo tratamento não cumpra o disposto na presente diretiva, nomeadamente devido ao carácter incompleto ou inexato desses dados”, enquanto o artigo 14 (a) reconhece a possibilidade de um titular de dados “se opor a qualquer momento, por razões imperiosas e legítimas relacionadas com a sua situação particular, para o tratamento de dados que lhe dizem respeito” pelo menos nos casos referidos no artigo 7 (e) e ( F ).95 Antes de passar para o cenário brasileiro, é importante para diferenciar o direito ao esquecimento do direito de exclusão de dados e do direito de ter certos resultados de pesquisas em motores de busca excluídos. A diretiva da UE 95/46 e o texto de compromisso do Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à proteção das pessoas no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (Regulamento Geral Proteção

94 Corte da Justiça Europeia. Caso C‑131/12. P. 88. 95 Artigo 7º - Os Estados-Membros devem prever que os dados pessoais só poderá ser efetuado se: (...) (E) o tratamento for necessário para o desempenho de uma tarefa realizada no interesse público ou no exercício da autoridade pública investido no tratamento ou um terceiro a quem os dados sejam comunicados; ou (F) o tratamento for necessário para os fins dos interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou pelo terceiro ou terceiros a quem os dados são divulgados , exceto quando tais interesses são substituídas pelos interesses de direitos e liberdades fundamentais da pessoa em causa, protegidos ao abrigo do artigo 1 (1).

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Breves Considerações sobre o Direito ao Esquecimento no Brasil: Lições do Supremo Tribunal Federal no Caso das Biografias não Autorizadas

de Dados)96 – aprovado pelo Conselho da UE, o Parlamento Europeu e a Comissão97 – são úteis para tal distinção. O direito do esquecimento é reconhecido pelo artigo 12 (b) da Diretiva 95/46 , que permite que as pessoas exijam dos responsaveis pelo tratamento de dados que apaguem seus dados pessoais se esses dados estiverem incompletos ou incorretos . O artigo 17 do texto de compromisso do Regulamento Geral de Protecção de Dados fornece ao titular do dado o direito ao esquecimento e de exclusão de dados como um único direito. Como destacado na exposição de motivos da Proposta de Regulamento Geral de Proteção de Dados : É mais elaborado e especifico o direito de exclusão de dados previsto no artigo 12 (b) da Diretiva 95/ 46 / CE e fornece as condições do direito a ser esquecido, incluindo a obrigação de o responsável pelo tratamento que tornou públicos os dados pessoais a terceiros, apagar todos os links para cópia ou replicação dos dados pessoais. Ele também se integra o direito de ter o tratamento restrito em certos casos, evitando a terminologia ambígua ‘bloqueio’.98

O texto de compromisso do Regulamento Geral de Proteção de Dados estabelece seis opções para o exercício deste direito: (A) não são mais necessárias em relação aos fins para os quais foram recolhidos ou outro tratamento dos dados; (B) o titular do dado retira o consentimento em que o processamento é baseado nos termos do ponto (a) do artigo 6 (1), ou ponto (a) do artigo 9 (2), e onde não há outro fundamento legal para o processamento dos dados; (C) o titular do dado opõe-se ao tratamento de dados pessoais nos termos do artigo 19 (1) e não há motivos legítimos primordiais para o tratamento, ou os dados sujeitos a tratamento de dados pessoais nos termos do artigo 19 (2) ; (D) que tenham sido tratados de forma ilegal; (E) os dados devem ser apagados para 96 Disponível em: http://www.statewatch.org/news/2015/dec/eu-council-dp-reg-draft-final-compromise -15039-15.pdf. (Acessado em 17 janeiro de 2016). 97 O Conselho, a Comissão e o Parlamento chegaram a um acordo em 15 de Dezembro de 2015 relativamente um texto de compromisso do Regulamento de Protecção de Dados. Veja http://www.consilium.europa.eu/ en/press/press-releases/2015/12/18-data-protection/ (Acessado em 15 de janeiro de 2016). 98 COMISSÃO EUROPEIA. Exposição de motivos da Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (regulamento geral sobre a proteção de dados). Disponível em http://ec.europa.eu/justice/data-protection/document/review2012/com_2012_11_ en.pdf (Acessado em 16 de janeiro de 2016). p. 9.

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cumprir uma obrigação legal prevista no direito da União ou Estado-Membro a que o tratamento esteja sujeito; (F) os dados foram coletados em relação à oferta de serviços da sociedade da informação referida no artigo 8 (1)99 Além disso, o Parágrafo 2ª do referido artigo 17 cria uma obrigação para os responsáveis pelo tratamento de informar terceiros os tratamentos de dados em relação aos quais o titular de dados tenha exercido o direito previsto no artigo 17 (1) do texto de compromisso do Regulamento Geral de Proteção de Dados. Em nossa opinião, no entanto, o direito ao esquecimento é diferente do direito de excluir links de resultados de pesquisas efetuadas em motores de busca. O direito de exclusão está relacionado à inexatidão ou incompletude de dados enquanto o direito de ter certos resultados da pesquisa excluidos diz respeito à possibilidade de se opor a um tratamento específico dos dados pessoais que é necessário para fins de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou por terceiro ou terceiros a quem os dados sejam comunicados. O direito ao esquecimento, por sua vez, está relacionado com a idéia de perdão100 e também para a ideia de manter sua informação pessoal atualizada (por exemplo, mostrar na TV o caso de alguém que foi absolvido de um crime muitos anos antes, como sendo suspeitos de ter cometido tal crime, ou no caso de alguém que usou drogas no passado como um adolescente e não mais utiliza, mas ainda tem essa informação divulgada ao público). É verdade que, em certos casos de links obtidos como resultados de pesquisas efetuadas em motores de busca pode ser uma forma de assegurar o pleno exercício do direito ao esquecimento, mas essa medida, por si só, nao pode ser enquadrada como tal, apesar de poder, em algumas situações, contribuir ao pleno exercício de tal direito.

4. Conclusão Analisando-se a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso das biografias não autorizadas, tem-se como inferir que caso esta corte venha a ser instada a se manifestar sobre o direito ao esquecimento em caso similar àquele submetido ao Tribunal de Justica da Uniao Europeia adotara’ posicionamento diametral-

Breves Considerações sobre o Direito ao Esquecimento no Brasil: Lições do Supremo Tribunal Federal no Caso das Biografias não Autorizadas

mente oposto. Essa afirmação se prende ao fato de que o STF na citada ADIN priorizou a liberdade de expressão em detrimento da proteção da privacidade. Como se não bastasse, em outra oportunidade a nossa Suprema Corte se manifestou contrariamente à possibilidade de censura previa na internet, ao afirmar que “Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação”.101 O tema é recente no país e nossa corte maior provavelmente terá a possibilidade de estabelecer os limites para o exercício de eventual direito ou mesmo de reconhecer a sua inexistência no ordenamento brasileiro.

5. Referências COMISSÃO EUROPEIA. Exposição de motivos da Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (regulamento geral sobre a proteção de dados). Disponível em http://ec.europa.eu/justice/data-protection/document/review2012/ com_2012_11_en.pdf (Acessado em 16 de janeiro de 2016). PAGALLO, Ugo; DURANTE, Massimo. Legal memories and the right to be forgotten. In: FLORIDI, Luciano. Protection of Information and the Right to Privacy – A New Equilibrium? Law, Governance and Technology Series, Volume 17, Springer, 2014, p 17-30. SARTOR, Giovanni; CUNHA, Mario Viola de Azevedo. Il Caso Google e i rapporti regolatori EUA / UE. In: RESTA, Giorgio; ZENO-ZENCOVICH, Vincenzo. Il Diritto all’obbio su internet dopo la sentenza Google Spain. Roma Tre-Press: Roma, 2015, p. 119-121. Disponível em: http://ojs.romatrepress.uniroma3.it/index.php/oblio. (Acessado em 16 de janeiro de 2016). SCHREIBER, Anderson. Direito e Mídia. São Paulo: Atlas, 2013.

99 Artigo 17(1). 100 Veja PAGALLO, DURANTE, 2014, p 17-30.

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101 STF. ADPF 130. Brasília. Rel. Min. Ayres Britto. DJE de 6-11-2009.

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADIN 4815. Brasília. Rel. Min. Cármen Lúcia. DJE nº 18, 29/01/2016. _____. ADPF 130. Brasília. Rel. Min. Ayres Britto. Plenário, DJE de 6-11-2009.

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1. Introdução “A Ciência da Computação tanto não é sobre computadores quanto a Astronomia não é sobre telescópios”. Edsger W. Dijkstra Os primeiros quinze anos deste milênio têm sido marcados pela combustão de protestos multitudinários no mundo, com as mais variadas pautas de reivindicação. “Revoluções”, “levantes”, “primaveras”: a referência costuma variar, mas, de modo geral, elas parecem comungar das bandeiras que reclamam maior participação popular no debate na e condução de assuntos públicos. A experiência brasileira, em particular, ficou lembrada nos protestos de junho de 2013. Eles inauguraram um ciclo, ainda sem arrefecimento, de agitação política no país -- piorado, um ano depois, pela derrota (por 7 x 1) para o time alemão na Copa do Mundo de Futebol. Anfitriã do campeonato mais famoso da história, a lendária seleção amarela fora “humilhada em casa”, e isso provocou um choque anafilático na autoestima dos brasileiros: o fim da antonomásia do “país do futebol”. Na atmosfera dos primeiros protestos de 2013, muitos tentaram diagnosticar e explicar do que se tratava. “O gigante acordou”, era o bordão mais cantado país afora, e isso fez entrar em disputa variadas leituras (das científicas às mais líricas) sobre o caráter das multidões. Não se pode deixar de notar pinceladas de romantismo em diversos quadros teóricos rascunhados a esse respeito -- o que não deixa de ser compreensível, já que também o pesquisador é produto do 102 Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (PPGDC/UFF).

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mundo social que ele próprio busca conhecer; o “pré-construído está em toda parte”, e é naturalmente difícil imunizar-se das emoções para estudar o objeto quando se está mergulhado nele (BOURDIEU, 2011, p. 32-33). Como desabafou Bourdieu, a função do pesquisador, sobretudo pelo método sociológico de leitura, não é fazer profecia da desgraça, mas sim verificar, primeiro, por que se parte inconscientemente de certas questões para estudar os objetos. Não refletir sobre a própria forma com que se faz investigações (o como e o porquê de sê-lo) é condena-se como mais um instrumento daquilo sobre o que se propõe pensar (BOURDIEU, 2011, p. 34). A ideia desta investigação surgiu com a observação da animosidade registrada na internet brasileira a partir de 2014. Ano de eleições presidenciais, chamou atenção o uso do loop viral para difamar e defender os candidatos à presidência do país. Tornou-se de conhecimento público que circularam ali informações descontextualizadas, dados estatísticos e pesquisas de intenção de voto manipulados e até imagens adulteradas -- colocadas nas espirais de conteúdo compartilhado. Partindo disso, cogitou-se como primeira hipótese que a tecnologia de efeito viral pudesse estar sendo utilizada como ferramenta política de desinformação (ao menos no âmbito eleitoral). No decorrer da pesquisa, o contato com documentos e entrevistas divulgados publicamente, e com a informação da existência de organizações que prestam serviços de “consultoria de revoluções” provocou uma guinada na hipótese primária. Acareando a dinâmica dos fatos com discursos e políticas institucionais, acoplei ao trabalho as seguintes interrogações: o direcionamento do conteúdo exibido online pode estar vinculado à espoletagem encomendada das multidões organizadas nos últimos quinze anos? Teriam as “primaveras” políticas do terceiro milênio alguma relação com a programação do que se vê na internet? Dentre os exames sobre a combustão do Junho de 2013, em um seminário promovido pela Universidade Federal Fluminense, Marcus Fabiano Gonçalves ressaltou que estava reanalisando seu próprio diagnóstico, também minutado ainda no afã coletivo 103. Fisgara-lhe a atenção um experimento de “contágio emocional” através do Facebook, então recém-publicado: controlou-se a exibi103 O evento Quem tem medo do Poder Constituinte? Mobilizações Populares e Crise de Representatividade, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Direito e Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGSD), sediou o debate, no dia 05 de novembro de 2014. O professor Marcus Fabiano Gonçalves contribuiu significativamente para a realização desta pesquisa, com indicações de materiais de estudo e discussões, a quem é devido nosso agradecimento. Seu ensaio mencionado, ora revisão, Sem Vandré

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ção dos temas de quase 700.000 murais de notícias do site para testar as reações emocionais dos donos desses perfis. Para Gonçalves, isso compele que consideremos também a possível influência do controle dos algoritmos das redes sociais na imantação empática de comportamentos emocionais, incluindo a indignação com o estado das coisas nos países. Isso põe em cheque a imaginada espontaneidade e auto-organização de eventos como a “Primavera Árabe”, e faz cogitar a possibilidade de estar sendo empregado o que chamou de “desrandomização proposital” para provocar a combustão de protestos através do contágio emocional. A ciência é feita a partir de hipóteses -- submetidas metodologicamente aos exames de veriticidade/falseabilidade. É de honestidade científica informar que esta é uma pesquisa que se pretende indiciária ao propor uma análise conjectural dos temas, não cabendo aqui qualquer juízo de certeza. A proposta é testar o encaixe de peças em um estágio mais avançado de especulação, desde que com a necessária autovigilância às tentações românticas ou paranoicas, que prejudicam conclusões maduras a respeito. O capítulo 2 explora o processo de captura e significação da vida através do poder simbólico, e sua capacidade de conduzir a percepção e a formação cognitiva dos indivíduos, a partir da leitura sociológica de Pierre Bourdieu. Com base em Adorno e Horkheimer, é ali exposto o processo histórico que priorizou o entretenimento puro e baniu as artes para o estreito mundo da diversão quando corroeu sua ambição moral, enquanto cultura erudita e de formação. Ainda no mesmo capítulo, com os estribos de Villém Flusser e Jean Baudrillard, estudamos a primazia das imagens nos tempos atuais: a incapacidade de interpretar suas representações e a implicação disto na abstração de sentido social e ambição política das populações atuais, modeladas sob o formato de massas. No capítulo 3, abordamos organizações que profissionalizaram o ativismo político nos últimos anos, e que respondem pela indução sistemática de movimentos multitudinários espalhados pelo mundo para desestabilizar governos. Partindo de entrevistas e reportagens investigativas, e com apoio na desconstrução geopolítica de William Engdahl, analisamos sua condição de prestadores de serviços de “consultoria” e “treinamento”, em grande parte financiados pelos setores público e privado estadunidenses. nem Lindberg: O Movimento é Sexy (Povo, Partidos, Vândalos e Facismo), está disponível em: . Acesso em: 02.01.2016.

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O capítulo 4 problematiza, a partir do estudo das comunicações de Armand Mattelart, os efeitos da tecnologia de indexação semântica que, operado por sistemas de inteligência artificial a partir dos hábitos do usuário, tem o poder de controlar o que ele vê em sua tela, tornando-se ferramenta de (in)formação cognitiva. Já se sabe que, desde o século XX, orquestrar crises político-econômicas pelo mundo tornou-se uma estratégia trivial de alguns governos para lograr e conservar sua hegemonia no mercado global (a exemplo dos golpes de Estado na América Latina na década de 1960). No tempo da comunicação de massas, o emprego do soft power se tornou valioso instrumento para a dispensa do uso de força bruta ao reduzir o custo político comparado ao das incursões militares: imunizar a política externa de ser associada a massacres de milhões de pessoas é, além de vantajoso em todas as perspectivas, juridicamente seguro para seus maestros. Se o conluio com as mídias tradicionais foi fundamental nesses processos, em contrario sensu, o papel simpático das tecnologias da informação precisa ser acompanhado ceticamente, sobretudo porque as principais entidades que as mantêm estão vinculadas à jurisdição das potências informáticas. Calcada na ideia de que não se chega ao concreto combinando abstrações (BOURDIEU, 2011), esta pesquisa é baseada na epistemologia materialista -pela qual deve-se partir da práxis para a teoria, e não o contrário. Se o conceito de verdade é relacional, apenas pensando relacionalmente se pode chegar à verdade das instituições, por que uma instituição “nada é fora de suas relações com o todo” (BOURDIEU, 2011, p. 29). Emprega-se aqui, pois, a orientação de Bourdieu no sentido de analisar as redes de relações objetivas entre os agentes e instituições abordados para se verificar, ainda que de forma ensaística, a hipótese de que a programação, sobretudo das redes sociais, possa estar servindo à precipitação de governos para atendimento a interesses geopolíticos.

2. Poder simbólico e idolatria: da captura à condução cognitiva Ao longo do último século, o sistema global de produção e distribuição de riquezas pôs em evidência o comportamento individualista. As transformações nas relações de trabalho, notadamente a concorrência absoluta (não apenas entre instituições, mas entre colegas, através das premiações por produtividade) 72

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e a alta rotatividade acabaram por encerrar as práticas corporativas que estimulavam a lealdade e a cooperação entre os indivíduos (SENNET, 2009). As necessidades do mercado de trabalho tornaram-se o parâmetro das necessidades pedagógicas: os sistemas de ensino -- que são programas de cultura por excelência --, incorporam e priorizaram a tarefa de trabalhar no ambiente escolar as demandas de conhecimento técnico-profissionais para abastecer o mercado (BOURDIEU, 2013), replicando ali a lógica da concorrência em tributo aos discursos de alpinismo social (LA EDUCACIÓN PROHIBIDA, 2012). Ao contrário do que se fez convencer em nossos dias, cultura não se confunde com entretenimento. Ela é um conjunto compartilhado de esquemas fundamentais assimilados previamente, a partir dos quais se articulam uma série de esquemas particulares (BOURDIEU, 2013, p. 208). As culturas são sistemas simbólicos estruturais que se desenvolvem a partir da criação acumulativa da mente humana; é a partir de uma cultura que o ser humano condiciona sua visão de mundo, suas apreciações morais e valorativas, seus comportamentos sociais e até mesmo suas posturas corporais (LARAIA, 2008, p. 61-68). As culturas são, antes de qualquer coisa, “programas de pensamento” (BOURDIEU, 2013, p. 215). Afortunado pela proximidade com as artes, o que é próprio do ambiente parisiense, foi Pierre Bourdieu quem mais profundamente analisou os sistemas simbólicos, e o fez de forma decompositiva (desmontar para entender) a fim de por à mostra as relações de poder aí subjacentes. Com a perspicácia que lhe é própria, Bourdieu buscou nas coisas mais triviais do cotidiano social compreender como se dá a produção e o exercício do poder através dos símbolos, e os teorizou como poder simbólico, que se tornaria, doravante, o conceito operacional de sua obra. Em que pese outros autores (inclusive cronologicamente anteriores a ele) tenham também se dedicado ao estudo da percepção da vida como espetáculo, foi a sociologia das formas simbólicas que teve o mérito (não de diagnosticar, mas) de analisar e explicar como o poder simbólico contribui para a formação da ordem gnosiológica: como ocorre o processo de objetivação -- transformar uma versão do mundo em prova de verdade. Os símbolos são instrumentos que, por excelência, têm o condão de reunir indivíduos; eles comunicam pessoas no seu entorno, e por isso formam a ideia de um “consenso” (BOURDIEU, 2011). Entre tanto, não fornecem mais do que uma aparência de integração para estabelecer e legitimar um certo estado de coisas. A integração pelos símbolos é ilusória porque na prática não existe 73

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um “consenso social” (nem “vontade geral”; nem “bem comum”) 104 -- mas sim uma franca e incessante disputa entre frações da sociedade para decidir quem poderá (im)por a definição do que é e de como deve ser o mundo social conforme seus interesses (BOURDIEU, 2011). Os símbolos comunicam: eles são portadores de mensagens subliminares. E por serem sub-liminares, elas não são imediatamente perceptíveis. Com olhar atento, isso é observável, p. ex., no campo do direito -- na medida em que sua produção não se dá na instância prática (material) das relações sociais, mas na ideal. O modo de se pensar e de se produzir o direito que se fez hegemônico no último século dispensou os demais ramos dos saberes sociais, e o resultado disso foi 1) a ascensão de uma disciplina completamente alheia à realidade, incapaz de fornecer respostas aos problemas dela, e 2) o crescente descrédito (e até desconfiança) de seus atores. O substrato epistemológico do direito de nossos dias, puramente positivo (do latim, positum: posto), é deontológico. Ele é endereçado a um estado ideal, a um dever-ser (sollen), ou ainda, a um como deve ser o estado das coisas: quem pode mandar; quem é mandatário; quem deve obedecer; como deve ser a conduta do indivíduo; como deve ser a atividade do Estado ou da empresa. Mas interrogações precisam surgir dali: a que expectativa esse como deve ser obedece? Quem constrói a referência do que é o ideal? Ou, ainda: quem é responsável por “estruturar essa estrutura?” (BOURDIEU, 2011, p. 08). Na contramão do aceite beata de conceitos prontos, colocar em dúvida os esquemas que edificam hoje o raciocínio jurídico denuncia que o direito não é mesmo o prédio da civilidade imaculada, mas sim o “lugar de concorrência” pelo monopólio de quem terá o poder legítimo de dizer o direito (BOURDIEU, 2011, p. 220). Trata-se de uma disputa interna, cujo resultado só é “capaz de destruir a hierarquia, mas não o próprio jogo” (BOURDIEU, 1983, p. 158).

104 Norbert Elias (1994) rastreou a concepção epistemológica que gerou as construções que pressupõem a existência de uma alma collectiva. Ele descortinou a concepção matematicizada que imobilizou as ciências sociais produzindo aberrações teóricas (e retóricas) como as de que “o indivíduo é parte de um todo maior, que ele forma junto com os outros” (ELIAS, 1994). Refutando a noção de sociedade reduzida à soma de muitos indivíduos privados, e de que existiria uma mentalidade de grupo, identificável pela acumulação das mentalidades individuais, ele atentou para as peculiaridades -- não dos indivíduos, mas -- das relações entre eles estabelecidas. Partindo da antiga reflexão aristotélica de que não se compreende a estrutura de uma casa analisando cada pedra em separado, Elias sintetizou que “o todo (social) é diferente da soma de suas partes” (ELIAS, 1994, p. 14-16).

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Uma sociologia da produção normativa desconstrói o modo com que a ilusão do formalismo idealista mascara as ideologias subjacentes ao prestigiar o aspecto, a forma, tratando as regras e o mundo jurídicos como se fossem objetivos, autogerados e autossuficientes (BOURDIEU, 2011). Os automatismos semânticos -- enquanto hábitos do raciocínio do jurista --, acabam encorajando renúncias de pensamento e camuflando os constructos retóricos que permitem apresentar interesses privados como se universais fossem (p. ex., através de uma série construções sintáticas, do uso de tempos verbais específicos e de pronomes impessoais) (BOURDIEU, 2011). Quando apresenta versões sob o aspecto de “conceitos” (denotação), a estratégia linguística dilui o que é subjetivo (conotação) em uma aparente naturalidade (SANGUINETTI apud COELHO, 1967). A linguagem funciona, assim, como depósito de pré-construções fingidas em embalagens desinteressadas -- instrumentos inconscientes de construção do mundo social (BOURDIEU, 2011). O poder simbólico é, portanto, esse poder de constituir toda uma “realidade” a partir da maneira como se apresenta (no caso do direito, da maneira como se enuncia) (BOURDIEU, 2011). Mas ele é um “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo quem o exerce” (BOURDIEU, 2011, p. 04). Tal poder não está restrito ao discurso. (Aliás, ele sequer está restrito ao campo da comunicação, mas, para fins deste artigo, permaneceremos neste terreno). Na primeira metade do século XX, surgiram os primeiros movimentos de mistura na paleta cultural dos grandes centros mundiais. Nas expressões estéticas (da pintura à arquitetura), musicais e literárias, os estilos foram perdendo seus traços originais para adquirir cada vez maior semelhança, por mais que pudessem carregar as mais opostas cargas ideológicas (ADORNO & HORKHEIMER, 1985). As tendências iam sendo conduzidas em um mesmo ritmo -- em escala mundial --, marcado pela pulverização de mercadorias padronizadas para satisfazer necessidades cada vez mais iguais (ADORNO & HORKHEIMER, 1985). Era o início da fabricação de uma cultura. Para além da produção de mercadorias, a automação do sistema industrial alcançou também um poder de transformação do pensamento sobre a existência do homem, sobre sua vida e sobre o funcionamento da sociedade. Isso porque nas mais variadas épocas a tecnologia arrebata mudanças, mais ou menos radicais, no modo de (ver a) vida em comunidade. Roda, ferro, pólvora, vapor, rádio e automóvel provocaram, cada um à sua maneira, uma série de reformas irretornáveis. 75

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A sensível historiografia de Lynn White explicou como a pulverização de instrumentos aparentemente insignificantes conseguiu modificar psíquica e socialmente, p. ex., o homem da baixa Idade Média -- a importação do estribo (inventado no Oriente) propiciou a formação das unidades de choque formadas por combatentes montados, fazendo ali surgir um novo e diferenciado grupo social na Europa daquele período -- o dos “cavaleiros” (apud MCLUHAN, 1964, p. 205) 105. Na barulheira das máquinas do século XX, a intenção e a intensificação quantitativas da produção em massa golpearam a qualidade dos bens de consumo, acarretando indesviáveis transformações sociais e culturais que se dariam a partir dali (MORIN, 1977, p. 28). Em 1942, Theodor Adorno e Max Horkheimer surgiram como primeiros críticos desse fenômeno (a “indústria cultural”), que foi se desenvolvendo em todos os regimes da época, variando apenas o conteúdo, conforme o grau de intervenção estatal (MORIN, 1977). Dali, a indústria cultural se tornaria inescapável, e faria confundir arte e entretenimento puro. Passar ao largo das transformações do mundo das artes prejudica a compreensão do desabamento das estruturas sociais e mentais vigentes nas épocas, porque somente nele se materializam as revoluções éticas e estéticas (BOURDIEU, 2011). Na longínqua década de 1940, no frisson da novidade da imagem eletrônica, já se compreendia isto: quanto mais sofisticada é a técnica da produção do espetáculo, mais o espectador tende a observar “a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 104). Vinte anos depois, na França do glamour da moda, Guy Debord alertava para a falsa imparcialidade das imagens -- e que, com técnica foto-cinematográfica, é possível criar uma percepção “espetacular” da vida. Some-se a isso atuação da CIA106 no ataque à arte de conteúdo social nos anos de Guerra Fria. No pós-guerra, o patrocínio serial da CIA a eventos, ex-

105 Sabe-se que o uso militar da cavalaria já havia sido utilizado séculos antes na própria Europa, mas o fato é que equipar uma unidade montada de batalha no período medieval demandava abundância financeira, exigindo uma proporção dos recursos de dez camponeses para a indumentária de cada cavaleiro: “Carlos Magno pediu a seus homens menos prósperos que fundissem suas propriedades para armar um único cavaleiro. A pressão da tecnologia bélica produziu gradualmente o desenvolvimento de classes e de um sistema econômico habilitados a armar numerosos cavaleiros com armadura completa” (WHITE, apud MCLUHAN, 1964, p. 205). 106 Central Intelligence Agency, do departamento de defesa dos Estados Unidos.

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posições e artistas por meio de “organizações filantrópicas” associadas (como a Ford Foundation e a Rockfeller Foundation) seguiu a cartilha política que visava descreditar o engajamento vinculado às ideias de substância moral, encorajando a arte abstrata (SAUNDERS apud PETRAS, 2016) 107. No campo da produção imagética, uma vez que os espectadores identificam seu dia-a-dia nas imagens, perde-se magicamente a barreira entre o vivido e o assistido: a visão do mundo torna-se mesmo espetacular e -- por isso, refém das soluções pedagógicas ali propostas, frequentemente inclinadas ao consumo estéril de bens materiais para suprir as necessidades fabricadas (DEBORD, 1967). “A realidade surge no espetáculo e o espetáculo é (tido como) real” (DEBORD, 1967, p. 15). Os indivíduos reconhecem que uma pintura é obra da interpretação humana porque é feita pela mão humana, mas acreditam que das imagens produzidas por aparelhos técnicos (p. ex: fotografias; cinematografias) mostram o mundo como ele é (FLUSSER, 2011). A exibição das imagens afirma sua aparência como realidade e, dali, constrói uma unidade de pensamento: quanto maior o número de espectadores, maior a absorção inconsciente da mensagem -- disfarçada na crença de que as imagens são imunes a subjetivações. As pessoas acreditam na pureza das “imagens técnicas” (assim as chamou Flusser), e isso municia estratégias de se apropriar de conceitos abstratos como se fossem entidades personificadas para depois representá-las politicamente (p. ex.: nação; povo; justiça). Tal como no passado, as características da atual sociedade da informação também não estão descoladas de uma contingência tecnológico-paradigmática na qual se observa e se organiza a primazia das imagens técnicas. Os desvios (e conduções) de percepção surgem quando a representação estética do estado das coisas é tomada como seu retrato, e é aí que os grupos que controlam o mundo social são legitimados -- porque, assim, eles adquirem, antes de tudo, o poder de dizer como é e como deve ser o mundo social. É na superfície da imagem técnica que a inter-relação das ideias adquire algum significado; portanto, a ideia é, necessariamente, o elemento que constitui toda imagem (FLUSSER, 2011).

107 Vide PETRAS, James. A Guerra Secreta da CIA contra a Cultura. In: Revista Sibila. Publicado em: 06.02.2016. Disponível em: e SAUNDERS, Francis Stonor. Quem Pagou a Conta? - A CIA na Guerra Fria da Cultura. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Record, 1999.

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E ideias são frutos da subjetividade humana. A filosofia de Vilém Flusser nos abastece na compreensão de que as imagens (da pintura à fotografia) nada mais são do que superfícies que pretendem representar alguma coisa, e por isso, são “essencialmente conotativas” (subjetivas) (2011, p. 21). As imagens não retratam -- elas representam. As imagens têm o propósito de “representar o mundo ao homem”, porque não pode ser imediatamente acessado; o propósito delas é servir como “mapas do mundo, mas acabam transformadas em biombos” (FLUSSER, 2011, p. 23). As imagens, portanto mediam (daí a palavra inglesa “media”; em nossa língua, “mídia”) incessantemente a relação do homem com mundo (FLUSSER, 2011; DEBORD, 2009), mas esta relação se torna perturbada no instante em que essa representação é confundida com a realidade. Também é perturbada hoje a ação comum entre indivíduos. Perdeu-se a referência do comum, do social. Essa perturbação (se) caracteriza (pel)a tecnologia da interconectividade. E a tela-mundo escancara o espetáculo das catástrofes do século XXI, mas esconde seus roteiristas. O brilho da frivolidade, do entretenimento fútil, agora carboniza o conteúdo moral das produções que são espontaneamente socializadas (arte no aspecto, mas não na essência); e os dominados bajulam o domínio exercido pelo poder simbólico. A erosão das entranhas culturais, que tipicamente podem despertar a sensibilidade crítica (p. ex., literatura; música; cinema), denunciam a miséria dos debates contemporâneos das massas, que renunciam voluntariamente o pensamento livre -- real motor do progresso humano -- para adorar as aparências. Supor que revoluções vêm sendo motivadas simplesmente porque “o povo não aguenta mais” seria superestimar a inteligência dos que estão nadando na alienação dos consumos, algo bem próximo de um apelo à superstição. Perceber como as sociedades contemporâneas se transformaram em “aglomerados de solidões iludidas” (DEBORD, 1973) é fundamental para analisar se existe potência orgânica nos indivíduos para se afirmarem como sujeitos de sua própria história. Não se pode deixar de considerar as massas -- atual formato das populações --, porque “o que lhes dá é sentido e elas querem espetáculo. Nenhuma força pode convertê-las à seriedade dos conteúdos” (BAUDRILLARD, p. 15).

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3. A pilotagem invisível das multidões “Essas não foram revoluções espontâneas como as dos anos 1990 -- esqueçam esta ilusão; apenas um entendimento muito superficial acreditaria nisso durante muito tempo” (In: The Business of Revolution, 2011). A declaração soa como pessimista, mas foi dita por quem tem alguma autoridade no assunto, durante um seminário na Universidade de Columbia, em 2011 108. Ela diz respeito às “primaveras” que ganharam os noticiários internacionais nos últimos anos. A frase é de Srdja Popović, instrutor-chefe da Otpor 109 -- organização não-governamental sérvia que presta consultoria especializada e treinamento em ativismo político através de seu Center for Applied Nonviolent Action and Strategies (CANVAS) 110. Formada por ex-líderes do movimento estudantil Otpor! (Resitência!), o grupo profissionalizou a atividade após a derrubada do Slobodan Milošević, o Açougueiro dos Bálcãs, do governo da extinta Iugoslávia 111, nos anos 2000 112. Após a renúncia de Milošević 113, deu-se início o processo de institucionalização da Otpor no ano de 2005, com influência no próprio parlamento de Belgrado (The Business of Revolution, 2011); a partir dali, o grupo passou a atuar no 108 O evento mencionado foi o From Belgrade to Cairo: The Strategy and Organization of Non-Violent Revolution foi promovido em 07 de abril de 2011 na Columbia University. A respeito, ver < http://ece. columbia.edu/serbian-studies>. Acesso em: 02.01.2016. 109 Sobre a Otpor, vide The Business of Revolution. (Documentário). Journeyman Pictures. Postado em 27.05.2011. Disponível em: . Acesso em: 11.02.2016; Revolução à Americana. (Reportagem). Natália Viana. Agência Pública. Postado em 18.06.2012. Disponível em: . Acesso em: 12.02.2016; VOZ DA RÚSSIA. Otpor! - A Melhor “Marca” Sérvia. (Reportagem). . Acesso em: 03.02.2016. 110 Vide CANVAS - Center for Applied Nonviolent Action and Strategies. Disponível em: . Acesso em: 12.02.2016 . 111 A República Federal da Iugoslávia existiu entre 1992 e 2003, então formada pelas repúblicas da Sérvia e de Montenegro -- hoje politicamente independentes --, tendo como capital a cidade de Belgrado. Ela surgiu a partir da fragmentação da República Socialista Federal da Iugoslávia, que abrangia também as atuais Croácia, Eslovênia, Macedônia, Bósnia e Herzegovina. 112 A respeito do desempenho do movimento Otpor! na Revolução da Sérvia, vide documentário “Bringing Down a Dictator” em: . 113 Slobodan Milošević foi extraditado ao Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia, das Nações Unidas, sediado em Haia (Países Baixos), em 2001.

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recrutamento e preparo de movimentos de oposição em uma série países, ensinando a metodologia revolucionária que fora exitosa na experiência balcânica. Hoje, pública e oficialmente, a Otpor divulga sua atuação de “consultoria”: na expressão de Popović, seu objetivo é “treinar revoluções” (in: The Business of Revolution, 2011). Baseando-se em levantes históricos, como os liderados por Gandhi e Martin Luther King, a Otpor trabalha debruçada sobre um programa de técnicas necessário para formar pivôs de protestos multitudinários (p. ex., o uso de potência jovem, elaboração de logos e frases de efeitos, canções-hino e a própria divulgação da mensagem do movimento) (in: The Business of Revolution, 2011). A exploração do poder simbólico é leitmotiv do inflamamento do espírito de solidariedade e unidade em todos os movimentos. Faz parte do material didático o famigerado livro de Eugene Sharp 114, Da Ditadura à Democracia, escrito na década de 1990, que tem como base a resistência civil e pacífica. Hoje, em tempos de franca decadência do hábito da leitura no mundo, a Otpor utiliza também um jogo eletrônico 115 para o treinamento dos ativistas, adquirível pela internet. Usado como simulador digital de manifestações, o game aprimora a visualização dos tópicos abordados e torna o aprendizado mais interessante, por seu aspecto lúdico (in: The Business of Revolution, 2011). Uma leitura inicial do material promocional da Otpor sugere tratar-se de uma divulgação solidária das utopias libertárias de quem viveu e enfrentou a repressão estatal para que viessem dias mais livres. Ensinar ao mundo a trilha revolucionária exitosa na condução do totalitarismo ao processo democrático é, inegavelmente, admirável. O objetivo deste trabalho não contempla a análise da atuação da Otpor sob o prisma ético, mas a questão se torna problemática quando ela é profissionalizada: se há prestação de serviços de “consultoria e

114 Eugene Sharp é professor emérito de Ciências Políticas da Universidade de Massachussetts, membro do Albert Einstein Institute (AEI). Dedica-se ao estudo das estratégias de resistência não-violenta, e vem inspirando movimentos multitudinários de índole democrática em todo o mundo. Tendo seu trabalho premiado pela Ford Foundation e pela RAND Corporation, Sharp e o AEI foram acusados de trabalhar intelectualmente para a CIA e para o Pentágono, sobretudo pelo fato de seus trabalhos terem influenciado apenas a queda de administrações não alinhados com a política estadunidense. No entanto, foi defendido publicamente, em 2008, em um manifesto coletivo assinado por diversos acadêmicos e ativistas de oposição ao governo dos Estados Unidos, inclusive Noam Chomsky. Disponível em: . Acesso em: 16.02.2016. 115 O game People Power está disponível em: < http://peoplepowergame.com/>. Acesso em: 01.02.2016.

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treinamento”, significa que há uma relação contratual envolvida. Em outras palavras, significa que alguém paga por esse know-how para ver resultados. Nos Estados Unidos, William Engdahl alerta que, por detrás da retórica romântica, organizações como a Otpor não atuam sozinhas nem despretensiosamente 116. Ele defende a tese de que as revoluções coloridas 117 foram marionetadas pelos Estados Unidos no intuito de promover a substituição dos governos locais por frações políticas segundo seus interesses de economia de mercado. Engdahl afirma categoricamente que “o Pentágono está projetando a desestabilização e a troca de regimes”, e que o grupo sérvio opera apenas sob diretrizes de Washington, inclusive no tocante ao financiamento (in: The Business of Revolution, 2011). Em entrevista gravada, Popović se orgulha de incontáveis movimentos no mundo utilizarem hoje o símbolo (do punho fechado) 118 da Otpor, e por já terem trabalhado com mais de 37 países depois da revolução sérvia, obtendo sucesso em cinco outras antes mesmo da eclosão dos movimentos no Oriente Médio (Geórgia; Ucrânia; Líbano; Maldivas; Egito; Tunísia) (in: The Business of Revolution, 2011). Dois ex-líderes do grupo opositor ucraniano Pora! -- que atuou na Revolução Laranja (2005) 119 --, confirmaram que os condutores do movimento também receberam instruções e treinamento com base no livro de Sharp, além de patrocínio de “um cara de Belgrado”, em referência a Popović (in: The Business of Revolution, 2011). Segundo Mychailo Swystowitsch, além da revolução ucraniana, também recebeu financiamento estadunidense a Revolução Rosa (Geórgia, 2003), da qual participou o megaempresário estadunidense George Soros, através de suas instituições não-governamentais (in: The Business of Revolution, 2011). Na análise geopolítica de Engdahl, os eventos ocorridos no norte da África e no Oriente Médio merecem atenção pelo fato de serem anteriores a 2003 -116 Vide ENGDAHL, William. Color Revolutions. Disponível em: . Acesso em:01.02.2016. 117 Iniciadas a partir dos anos 2000, nos países ex-integrantes do bloco soviético. 118 Apesar de a Otpor reivindicar o ícone do punho cerrado e erguido como originalmente seu, esta tentativa de captura simbólica não procede. Diversos movimentos de bandeira libertária já o utilizaram em episódios diversos, muito anteriores ao seu surgimento. 119 A Revolução Laranja,terminou com a derrubada do então presidente ucraniano Viktor Yanuschenko, em 2005.

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ano em que George Bush anunciou um estupendo projeto para a região médio-oriental a fim de torná-la um paraíso para o livre mercado (in: The Business of Revolution, 2011) 120. Sua análise é confirmada por dois comentários de Ivan Marović, um dos fundadores da Otpor: 1) explicando como diversos países contribuíram financeiramente para a oposição a Milošević, ele afirmou que “os americanos têm um ‘braço’ formado por ONGs 121, muito ativo no apoio a certos grupos” (AGÊNCIA PÚBLICA, 2012) ; 2) o patrocínio para o desenvolvimento do game utilizado no CANVAS é oriundo de organizações estadunidenses (in: The Business of Revolution, 2011). A Otpor se defende publicamente de servir como braço técnico do governo estadunidense na implosão de governos sob o argumento de seu maior financiador ser o sérvio Slobodan Djinović, também membro dali (in: The Business of Revolution, 2011). Porém, a equidistância alegada foi combalida por um furo de reportagem do portal de jornalismo investigativo Wikileaks em 2012, que publicou o vazamento de um relatório elaborado pelo CANVAS/Otpor sobre a situação política na Venezuela para a Stratfor 122-- agência privada de inteligência geopolítica global estadunidense (AGÊNCIA PÚBLICA, 2012). Também corrobora a tese de Engdahl o depoimento de um dos líderes da Revolução da Tunísia (2011), que também declarou ter recebido treinamento do “homem de Belgrado” sobre as estratégias de movimento popular inspiradas no caso sérvio para atacar o regime de Ben Ali (in: The Business of Revolution, 2011). O tunisiano entrevistado, Amine Ghali, é membro da Freedom House 123. A Freedom House consta em uma lista de grupos empresariais, fundações e organizações não-governamentais que foram convidados a se retirar da Rússia 120 As declarações públicas de Bush a esse respeito podem ser também conferidas no documentário ali indicado.

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em 2015 e declarados indesejáveis. Esses grupos foram acusados de conspiração, em conluio com os Estados Unidos, para a desestabilização de governos na cavada de influência política e econômica nessas regiões. A lista inclui também a Newtork Endownment for Democracy (NED) 124 e as organizações de George Soros -- notadamente a Open Society Foundation (OSF) 125. Também em entrevista à Journeyman Pictures, outro membro da Freedom House, Adrian Karatnitski, aponta no mapa mundi os países considerados mais “problemáticos” para atuação: China, Rússia, Irã e Arábia Saudita (in: The Business of Revolution, 2011). A dificuldade encontrada para pilotar invisivelmente as multidões nesses países concorre com o fato de serem os principais aplicadores de filtragem de conteúdo na internet.

4. Exibição de conteúdo online: programação, mercado e geopolítica O mundo da informação digital foi organizado em metáforas 126. A metáfora dos pacotes e do carregamento (download/upload); da entrada e saída (login/ logout); da rede e dos nós; da teia; da navegação. Foi remetendo a linguagem da informática à representação dos ícones que se permitiu aos leigos visualizar o design da hipermídia e lidar com a cibernética. A palavra “cibernética” deriva do grego kybernetes (timoneiro; piloto de um barco). Cunhado por Norbert Wiener no bojo da epistemologia do pensamento sistêmico, o conceito da Ciência Cibernética está em na ideia de controlar um sistema comunicando a informática com a engenharia. Ao contrário do uso vulgar em nossos dias, “cibernética” não qualifica aquilo que é

121 Marović citou, dentre tais organizações, a Network Endownment for Democracy (NED), a Freedom House e o International Republican Institute -- ligado ao partido republicano dos Estados Unidos (AGÊNCIA PÚBLICA, 2012). As duas últimas são financeiramente mantidas por fundos recebidos via U.S Agency for International Development (USAID), instituição de ajuda humanitária acusada de ter financiado os golpes de Estado na América do Sul nos anos 1960. A respeito, vide ALLARD, Jean-Guy; GOLINGER, Eva. USAID, NED y CIA - La Agresión Permanente, livro disponível para download em: . Acesso em; 16.02.2016.

124 Em 2010, a NED foi acusada em uma publicação do The New York Times de manipular a agitação política da Venezuela ao funcionar como canal da CIA para injetar financiamento destinado à oposição ao governo de Hugo Chávez. Vide U.S. Bankrolling is under Scrutiny to ties to Chávez Ouster. (Reportagem). Por Christopher Marquis. The New York Times. Disponível em: . Acesso em: 14.02.2016.

122 Vide . A Stratfor foi fundada por George Friedman, ex- oficial de inteligência dos Estados Unidos, autor do livro The Future of War: Power, Technology and American World Dominance in the Twenty-First Century, publicado pela editora Crown Publishers (1998).

125 Vide. Rusia prohíbe a las organizaciones de George Soros em su território. (Reportagem). Al Manar. Disponível em: . Acesso em 06.01.2016).

123 Vide . Acesso em: 29.01.2016.

126 Devo a base dessa desconstrução a Marcus Fabiano Gonçalves.

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virtual, mas sim o controle e a execução de ações no mundo físico partidos da computação de informações. A metáfora náutica para a conexão internacional dos computadores fez sugerir a liberdade de um oceano do conhecimento, simbolizada na tela eletrônica -- explorável por um usuário que motiva o movimento de sua embarcação (browser). Mas as correntes de um mar não-natural não podem fluir por leis naturais. Inquestionavelmente, o compartilhamento voluntário de informação tornou-se um hábito em nossos dias (até desagradável, em alguns aspectos, tendo em vista as imposturas narcíseas de autoexibição durante atividades personalíssimas do cotidiano). Uma enxurrada de bits é hoje lançada a cada segundo na rede internacional de redes de computadores (nter-net) sob o formato de hipertexto e imagens -- e é assim que notícias, denúncias, campanhas e entretenimento competem nos centímetros das telas eletrônicas pela atenção dos usuários. Tempo, espaço e conteúdo são dimensões dessa sobrecarga informacional contemporânea. Apesar da tendente diminuição das telas, em algum momento se chegará aos limites fisiológicos do homem, e é provável que as telas dos aparelhos já não possam ser ainda mais reduzidas do que já foram. Isso é compensado sintetizando-se os textos para fazê-los caber no campo visual. Por outro lado, permanece crescente o uso das imagens, produzíveis muito mais fácil e rapidamente. Entra aí o fator velocidade para otimizar a visualização. Velocidade não apenas para produzir e postar conteúdo das imagens, mas também velocidade na interface para sofisticar seu carregamento (download/upload). Os projetos das telecomunicações e da informática objetivam permitir cada vez mais que, em menor tempo/espaço seja possível acessar a maior variedade de conteúdo possível. E a exibição desse conteúdo na tela dos usuários também resulta de projeções. Armand Mattelart destaca como o advento da tecnoeletrônica impõe hoje uma redefinição na forma de se fazer relações internacionais. Somente se destacam países que têm a sensibilidade de perceber que a complexidade dos problemas das sociedades contemporâneas implicou a caducidade do uso da força pura para a consecução de seus objetivos geopolíticos (MATTELART, 2006, p. 99). Os Estados Unidos, p. ex., desenvolveram e se aperfeiçoaram muito bem nessa lógica, o que lhes permitiu expandir suas fronteiras culturais, sobretudo a partir da indústria do entretenimento -- o que torna difícil conter sua dominação econômica (e, indiretamente, política) em relação ao restante do mundo (MATTELART, 2006, p. 99). 84

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O projeto universalizante dos Estados Unidos irradia hoje a inovação tecnocientífica e a indústria cultural de massas, baseada no consumo (MATTELART, 2006, p. 98). Cativante, o entretenimento se encarrega da incussão do desejo, da fabricação diária de necessidades e da modelagem dos comportamentos e preferências. As novas formas de conflito são preconfiguradas pelo o uso do soft power (poder suave), enquanto conjunto de técnicas de indução comportamental (MATTELART, 2006, p. 99). Um exemplo disso é como Hollywood consegue, cinematograficamente, tornar admiráveis as atrocidades cometidas pelos Estados Unidos em países como o Vietnã e no Oriente Médio (ou, bem antes disso, apresentar os habitantes legítimos do continente americano -- os indígenas -como algozes de seu próprio processo colonizador). O soft power é o uso da técnica baseada na “atração exercida pelas ideias, ou na atitude a ser fixada na ordem do dia, de tal modo que ele modela as preferências dos outros” (NYE apud MATTELART, 2006, p. 138). É uso do poder de sedução -- exercida, sobretudo pelas produções culturais (p.ex.: cinema; música; moda) e pela oferta de mercadorias. Ele provoca o fascínio pelo modus vivendi do grupo social posto em evidência e, por último, a legitimação de seu modus operandi econômico e político (p. ex., “American Way of Life” e as resultantes “cartilhas” de “desenvolvimento e democracia”, seguidas religiosamente com alguma frequência). O soft power compreende os fenômenos de sacralização através de uma comunhão magicizante em torno de determinado objeto, tal qual ocorre no mundo da moda, em que as griffes transmutam -- não a natureza material, mas -- a natureza social (simbólica e econômica) dos objetos de venda, sacralizada por uma avaliação coletiva (BOURDIEU, 1983). Assistir anúncios comerciais televisivos produzidos há, pelo menos, quinze ou vinte anos permite perceber esse fenômeno de forma muito interessante. Surpreende a distância com que se consegue observá-los -- e não apenas pela constatação de que eles não já não provocam qualquer fascínio no espectador. Em muitos casos, a exibição performática dos atores ali participantes -- com o exagero das poses, caras e bocas -- chega a se aproximar do palharesco. Essa imunidade do espectador em relação desejo pelo produto ali anunciado deve em muito ao avanço técnico da cinematografia, no aprimoramento da produção de imagens (p.ex.: ângulos; cortes; timing das tomadas) e, evidentemente, das correspondentes técnicas de atuação perante câmeras. Isso desconstrói a relação 85

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técnica-resultado da seguinte maneira: quanto maior a excelência técnica da produção de sentido, mais intensa é a infusão do desejo. Na internet comercial, o dinamismo do usuário para clicar, teclar e “navegar” pode sugerir um escape ao soft Power, se comparado à passividade do espectador da televisão, que, no máximo, muda de um canal para o outro. Entretanto, a imbuição do desejo na web conta com a inteligência artificial, que responde, dentre inúmeras funções, pelo conteúdo aparente na tela dos usuários. Sua edição e exibição é definida através dos algoritimos. O algoritimo é o “coração” de todas as aplicações (tarefas) realizadas por uma máquina computadora (SANDERS, 2009), um conjunto finito de regras que determina uma sequência de operações de um sistema para produzir um resultado (CRUZ, 1997). À maneira de uma receita matemática, essa fórmula programa ações subsequentes, podendo ser usada para inúmeros fins (p. ex.: em sistemas de localização geográfica (GPS), de controle de tráfego (semáforos); iluminação pública). O conteúdo exibido on line deriva de uma programação de temas que é feita a partir de dados personalizados da navegação do usuário. Isso é possível graças a uma configuração específica da internet comercial (semantic web), que possibilita a atividade e a comunicação não apenas de seres humanos, mas também de máquinas. A semantic web é um conceito de rede tecido em 2001 para permitir que as máquinas compreendam o significado de palavras e trabalhem sobre esta lógica, tornando dispensável o comando humano 127. Para que isso funcione, é necessário que os aparelhos computadores tenham acesso a uma coleção de informações e um conjunto de regras de inferência que eles possam usar para conduzir um raciocínio automatizado (BENNERS-LEE; HENDLER; LASSILA, 2001). Trata-se de uma “tecnologia de representação de conhecimento” (BENNERS-LEE; HENDLER; LASSILA, 2001, p. 02), porque é essa configuração que permite indexar dos significados de palavras. E costurar (significados de) palavras é um poder de construção semântica, porque atrela uma qualidade a um objeto (p. ex., construir uma imagem da cidade do Rio de Janeiro como um

127 O conceito de semantic web foi desenvolvido em 2001, por Tim Benners-Lee, James Hendler e Ora Lassila. Sua configuração resultou do trabalho conjunto de uma série de atores, dentre eles, pesquisadores em Inteligência Artificial e parceiros industriais (W3C, 2013).

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lugar: 1) violento, se associada a conteúdos desta natureza ou 2) paradisíaco, se destacadas suas belezas naturais). Isso tem implicações profundas, e nos mais variados campos -- como o econômico (p. ex.: especulação mobiliária ou financeira das bolsas de valores, fazendo despencar ou disparar os preços), o individual (p. ex.: referência feita a alguém) e o político (p. ex.: tornando possível manipular a imagem que se tem sobre um partido eleito ou em processo eleitoral). “A Semantic Web pode escorar a evolução do conhecimento humano como um todo” (BENNERS-LEE; HENDLER; LASSILA, 2001, p. 02). De fato. (É relevante destacar que aqui se discute sobre os impactos na democracia de tecnologias, de fato, revolucionárias para o conhecimento e desenvolvimento coletivo, de modo que não se propõe debater sobre a ética desses projetos. A proposta é que se faça uma leitura relacional entre seus potenciais usos e fatos/ fenômenos em curso). O poder de construção de significado através da internet é devido aos algoritimos -- os “curadores do mundo para nós”, na expressão usada por Eli Pariser durante a conferência TED 2011 128. O Google, por exemplo, é um serviço de pesquisa escalável elaborado para operar com algo próximo a 100 milhões de webpages, e possui um motor de busca que é ativado quando se digita alguma palavra na caixa de procura; os resultados (sites; imagens) que aparecem na tela são buscados por um grupo de algoritimos denominado PageRank, que permite ao sistema raciocinar automaticamente sobre aquilo a que o usuário solicitou pesquisa (PAGE; BRIN, 200) É graças a essas fórmulas matemáticas que o Google pode indexar as páginas da web e, finalmente, exibi-las como resultado. Esse processo leva em consideração o histórico de navegação do usuário (p. ex., sites sobre automóveis ou esportes) -- previamente recolhido pelos cookies 129 , que registram tudo o que se acessa na internet comercial. O recolhimento dessas informações é feito sob justificativas oficiais de mercado. 128 Vide . Acesso em: 20.02.2016. 129 Os computadores domésticos possuem uma função chamada cookies (biscoitos). Quando o usuário acessa um site que utiliza essa função, seu servidor (ou seja, o computador no qual suas informações estão armazenadas) envia um pacote de dados para o navegador do usuário para coletar informações da navegação (modelo e sistema operacional da máquina; numero de IP; programa navegador; localização geográfica etc.). Quando o usuário retorna àquele site, o navegador envia de volta esse pacote para o servidor informando suas atividades prévias (visitas; compras; arquivos baixados ou carregados na rede). Os cookies lembram mesmo o caminho feito pelo usuário: no melhor estilo João e

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Ingênuo raciocínio poderia fazer supor que não há injeção de subjetividades nesse processo por se tratar de “raciocínio automatizado”, funcionando sob “controle do sistema”, e não por mão humana. É nesse ponto que tocou Flusser ao afirmar que as sociedades futuras serão “divididas entre duas classes: a dos programadores e a dos programados” (FLUSSER, 2013, p. 64). Se os indivíduos se informam e interagem uns com os outros com base na programação do que lhes é mostrado, quem programa o programador? Discutir sobre programação de temas exibidos é, na verdade, discutir sobre programação de percepção e pensamento. Ferramentas que têm o condão de determinar o que será e o que não será visto pelo usuário são ferramentas de formação cognitiva de indivíduos. Na metáfora náutica: o navegante não vence as correntes porque não é ele que motiva seu movimento, mas sim as correntes da hipermídia, definidas pelo programador. A Facebook Inc. também realiza edição algorítmica da web ao definir o que será e o que não será mostrado nos murais de notícias personalizados dos usuários de seu site (facebook.com), que abriga a maior rede social do mundo, com cerca de 1,6 bilhão de perfis (1 em cada 7 pessoas, em escala mundial) 130. Em 2014, o prestigiado periódico estadunidense Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) publicou um experimento social que manipulou, sem autorização, os murais de notícias de 689.003 mil usuários do Facebook para testes de reações emocionais. A pesquisa Experimental Evidence of Massive-Scale Emotional Contagion Through Social Networks 131 foi coordenada por um convênio entre a Universidade da Califórnia, a Universidade de Cornell e a Facebook Inc., e consistiu em submeter os indivíduos monitorados a manipulação emocional através do controle do conteúdo que surgia em seu mural (feed) de notícias e posterior observação das suas reações em suas atividades subsequentes no site.

Maria, as migalhas de informação deixadas em seu navegador informam aos portais da internet quais foram suas atividades para que, com base nisso, eles exibam banners de produtos e serviços de acordo com as preferências usuais do usuário monitorado. 130 Vide . Acesso em 19.02.2016. 131 A pesquisa foi realizada em 2012 e publicada em 2014 na 17ª edição do periódico, e a notícia foi recepcionada sob revolta e acusações de violação da ética da ciência e da ética das comunicações, já que os indivíduos testados através de seus perfis foram expostos tiveram seus estados emocionais manipulados sem seu consentimento. Disponível em: . Acesso em: 12.01.2016.

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O experimento produziu diversos resultados 132, concluindo que estados emocionais podem ser transferidos por “contaminação emocional” quando pessoas são “conduzidas” a experimentar as mesmas emoções que seus contatos sem seu conhecimento (KRAMER; GUILLORY; HANCOCK, 2014). Na publicação do PNAS, os pesquisadores afirmaram que o estudo forneceu “evidências experimentais de que o contágio emocional ocorre sem a interação direta entre as pessoas (a exposição à expressão emocional de um amigo é suficiente) e na ausência completa de sinais não-verbais (sic).” (KRAMER; GUILLORY; HANCOCK, 2014). (Também não cabe aqui o debate sobre a ética das intenções dos colegas acadêmicos envolvidos no experimento 133, já que este tópico se limita a tratar da potencial captura da tecnologia de manipulação de conteúdo online para fins geopolíticos). Em fevereiro de 2016, o Facebook incorporou à função de curtidas (likes) uma aplicação que permite aos usuários se manifestarem emocionalmente sobre as postagens, disponibilizando para clique quatro ícones (emojis) que detalham reações sobre as postagens. Isso dará à Facebook Inc. um poder ainda maior de mapeamento psicológico -- e às empresas que contratam seus serviços de marketing. Aliada à exibição programada do conteúdo dos murais, essa aplicação incrementa a pesquisa experimental de “contágio emocional”. As consequências das transferências calculadas de emoções podem ser ainda agravadas na esteira do efeito viral através da “compra de seguidores”. Com alguma frequência, ferramentas de marketing digital criam redes de perfis artificiais (socialbot zombies), utilizados para aumentar quantitativamente os seguidores -- e, consequentemente, atingir maior visualização, fazendo mover a roda dos algoritimos 134. No início de 2016, o CEO da Facebook Inc., Mark Zuckerberg, afirmou que o objetivo da empresa é ultrapassar a marca dos 5 bilhões de usuários até 2030. 132 Por exemplo, do sentimento que se chamou de solidão integrada (alone together) quando as cobaias eram expostas a conteúdos que ilustrassem felicidade alheia (KRAMER; GUILLORY; HANCOCK, 2014). 133 Vide defesa pública de Adam Kramer sobre as acusações de violação da ética das ciências em: . Acesso em: 27.02.2016. 134 Sobre o uso e funcionamento das botnets, vide . Acesso em 19.02.2016 e < http://www. pcworld.com/article/256240/how_companies_buy_facebook_friends_likes_and_buzz.html>. Acesso em 23.02.2016.

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A previsão da ONU é de que nesse ano a população mundial terá atingido a marca dos 8,5 bilhões de indivíduos 135. A pretensão numeral anunciada por Zuckerberg é um remate considerável reunido em poder de uma única empresa (que já foi denunciada de participar dos programas de ultravigilância global do governo dos Estados Unidos).

5. Conclusão Para além da opulência dos protestos multitudinários que têm ganhado o mundo no terceiro milênio, é necessário estudá-los ontologicamente em seus bastidores. A postura autovigilante para assegurar distância epistemológica (já alertava Bachelard), é imprescindível para que a própria observação do pesquisador não seja também embalada no calor dos acontecimentos e, em consequência disso, incline para conclusões apaixonadas -- ou, no extremo oposto, niilistas. A lição dos algoritmos é a da incoerência das metáforas da hipermídia -- e eis a mensagem sub-liminar da tela eletrônica: não é o usuário que motiva o movimento de seu navegador, porque ele na verdade está à deriva no fluxo programado dos dados. A liberdade do oceano da hipermídia não é a do navegante, mas a do programador, porque é ele quem define suas correntes. O usuário também não goza da mobilidade da rede (net), porque ele se situa nela na condição de nó (knot), enquanto quem a costura é, outra vez, o programador. Na teia (web), tampouco é do usuário o poder aracnídeo de tecer os fios. Somente uma leitura sociológica das camadas mais invisíveis dos fenômenos atuais abastece uma análise crítica das “revoluções”, e torna possível extrair dela a hipótese de que algumas multidões organizadas no entorno de objetivos políticos sejam massa de manobra de um “fingimento orquestrado de que as pessoas são donas de seu destino”, como definiu Baudrillard o problema das simulações nas sociedades de massas -- sociedades sem social. Por detrás do entretenimento e das aparências simpáticas, redes objetivas de relações imbricadas entre organizações não-governamentais, grupos corporativos, governos e serviços de inteligência precisam ser consideradas com serie-

135 Vide em . Acesso em: 25.02.2016.

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dade nas análises sobre o processo democrático na atualidade e, inserido nele, sobre as contingências das multidões. Ao cabo desta investigação conclui-se provisoriamente que a análise relacional 1) das instituições e atores que protagonizam as cenas das tomadas de decisões; e 2) dos projetos, programas e protótipos tecnológicos que estão na ordem do dia revela um feixe de vínculos objetivos que aponta para a plausibilidade da hipótese de que haja um emprego calculado das tecnologias de programação de conteúdo visual para indução perceptiva e espoletagem de movimentos multitudinários para a consecução de objetivos geopolíticos. Ainda que se confirme a hipótese da “cibernética das primaveras” em curso ou planejamento, por razões óbvias, não se pode cair no indutivismo e (des) considerar toda rebeldia popular organizada -- motor histórico do desenvolvimento da liberdade e da igualdade -- como obra dos segmentos que dominam as configurações globais do estado das coisas. Mas que se previna do autoengano: as populações de nossos dias fracassam em seus programas de progresso em razão das falhas de seu sistema operacional de produção e distribuição de riquezas -- hegemônico desde os últimos séculos. Embrulhada na mentira fundamental de que é da natureza humana cancelar o outro para o gozo solitário das conquistas, a sabotagem da prosperidade compartilhada é também a sabotagem da única possibilidade de evolução segura da vida no planeta -- a proteção mútua dos indivíduos. O espetáculo da interconectividade deixa à mostra o fermento tóxico das massas: o desenvolvimento da potência criativa do homem para a contrassolidariedade. E o efeito viral dos prazeres do consumo estéril atesta mesmo seu confinamento no idiotismo em plena era do abraço elétrico. Embora seja mais sedutor -- no aconchego da utopia --, esperar que a primavera da alteridade floresça selvagem no tempo do egoísmo reinante é trancar-se na ingenuidade útil -- “hipótese sempre hipócrita que permite salvaguardar o conforto intelectual dos produtores de sentido: as massas aspirariam espontaneamente às luzes naturais da razão” (BAUDRILLARD, 1985, p. 15).

6. Bibliografia ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Traduzido por Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 91

Leonardo Rezende Cecilio

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Rastros Digitais: entre a Superexposição e a Vigilância Julio Longo136

1. Introdução A quadra inicial do século XXI cada vez mais parece ser marcada por um fenômeno social que encontra ancoragem nas novas modalidades de mídia: a superexposição. Se, ao longo deste período, os grandes campeões de venda de espaço publicitário na televisão são os programas que se enquadram no gênero dos reality shows, na internet, por sua vez, são os sites de redes sociais que se destacam. Apesar das inúmeras diferenças, ambos têm em comum o fato de seu foco principal incidir no jogo da visibilidade. Somam-se ainda a este cenário aspectos da evolução tecnológica tais quais a integração de câmeras de fotografia e vídeo a dispositivos móveis de comunicação, tornando possível uma ampla circulação de imagens e vídeos, produzidos por uma multidão diversificada de indivíduos nos contextos e condições mais distintos. É verdade que a profusão de tais ferramentas pode representar uma oportunidade para o alcance dos “quinze minutos de fama” tão difundidos no imaginário coletivo moderno. Por outro lado, a demasiada exposição midiatizada da vida pessoal também pode acarretar efeitos colaterais indesejáveis. Decorrência do aviltamento do direito à privacidade, não faltam exemplos de relações sociais e profissionais estremecidas evidenciando uma dinâmica segundo a qual o controle, o rastreamento e a vigilância de pessoas no ciberespaço se configuram como possibilidades reais. Riquíssimas fontes de informação, as redes sociais de internet transformam agora o sem-número de detalhes cotidianos e pessoais de seus usuários, antes perdidos no fundo de memórias falhas, em dados potencialmente perenes e indefinidamente estocáveis. Não por acaso, a instrução de

136 Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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processos judiciais no Brasil tem passado a levar em consideração aquilo que é exposto nestes ambientes. A seguir são apresentados alguns casos que ilustram como o Judiciário brasileiro tem se valido destas informações. Os exemplos são recentes (decisões judiciais a partir de 2014) e tratam, especificamente, do site de redes sociais Facebook. Não será realizado nenhum tipo de análise acerca do mérito das questões decididas. O que se busca aqui é apenas ilustrar com casos concretos um panorama segundo o qual o excesso de exposição enseja vigilância.

2. Facebook e Judiciário O primeiro caso é o de um juiz cível que, em processo da comarca de Cruzeta, Rio Grande do Norte, declarou a parte ré como litigante de má-fé por solicitar uso indevido da justiça gratuita. Ao analisar o perfil da ré no Facebook, o magistrado observou que a mesma demonstrava ter plenas condições para o respectivo pagamento. Eis uma emblemática passagem da sentença: Quanto ao requerimento de deferimento de justiça gratuita, declaro a promovida litigante de má-fé, nos termos do art. 17, do Código de Processo Civil, considerando que nos termos do referido dispositivo legal reputa-se litigante de má-fé aquele que: (...) II - alterar a verdade dos fatos, o que ocorreu no presente processo, quando Ohana Galvão de Góes Bezerra afirmou “que sua situação financeira não lhe permite arcar com os custos da presente demanda sem prejuízo do seu próprio sustento ou de seus familiares” (fl. 52). Ao analisar as redes sociais, especialmente o facebook, observo claramente que a promovida alterou a verdade dos fatos para tentar a isenção do pagamento das custas processuais, quando na verdade tem perfeitas condições para o pagamento, isso partindo do pressuposto que uma pessoa, ao divulgar a presença no “showzão de Jorge e Mateus com os friends” na Vaquejada de Currais Novos, não está preocupada com o sustento da família, conforme alegou na contestação. Do mesmo modo, a “prainha show”, bem como os momentos felizes, E CAROS, assistindo aos Jogos da Copa do Mundo FIFA 2014, dão conta de que a Ohana Galvão de Góes Bezerra tem perfeitas condições de arcar com as custas processuais, bem como que é litigante de má-fé ao afirmar o contrário, ressaltando que as fotografias abaixo coladas foram retiradas do mesmo endereço referido na foto colada no item anterior.

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Assim, nos termos do art. 18, CPC, condeno Ohana Galvão de Góes Bezerra ao pagamento de 1% (um por cento) do valor da causa, bem como custas e honorários advocatícios (RIO GRANDE DO NORTE, Vara Única da Comarca de Cruzeta, Sentença 0100473-82.2013.8.20.0138, Marcus Vinícius Pereira Júnior, 2014).

Em outro caso, uma cozinheira que havia trabalhado em uma lanchonete sem ter sua carteira de trabalho devidamente assinada decidiu ajuizar uma ação reivindicando o pagamento de horas extras, férias e danos morais. Na audiência de instrução, ocorrida em abril de 2010 na 1ª Vara do Trabalho de Maringá, Paraná, houve um acordo no valor de R$10 mil, o qual não foi cumprido, dando, ensejo à fase de execução do débito trabalhista. Ao descobrir, através de informações que constavam no Facebook, que sua ex-patroa era também gerente da loja de materiais de construção do marido, a cozinheira solicitou a inclusão desta empresa no pólo passivo da ação, solicitação negada pelo juiz de 1ª instância. Todavia, ao analisarem o caso, os desembargadores da Seção Especializada do TRT-PR decidiram por unanimidade incluir no processo a referida loja de materiais de construção. A desembargadora relatora do acórdão afirmou que a prova usada era lícita, visto que a própria dona do restaurante havia publicado no Facebook a informação de que era também gerente da empresa do marido. Decidiu-se, deste modo, que uma publicação feita em um site como o Facebook, apresentava, sim, valor enquanto material probatório. Segue o teor da decisão: A admissão de elementos de prova atípicos (não previstos no ordenamento jurídico) no processo é tema que ganhou especial importância com a crescente utilização de dados extraídos da internet. De acordo com o art. 332 do CPC, de aplicação supletiva no processo do trabalho, na forma do art. 769 da CLT, “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”. Tal preceito consagra o princípio da atipicidade, segundo o qual são admissíveis todos os meios de prova, desde que moralmente legítimos, tipificados ou não no ordenamento jurídico. A apresentação de documento que evidencia o comportamento da parte fora do processo, extraído de sítio de relacionamento na internet aberto ao público, está de acordo com o princípio da atipicidade e integra o direito à prova, na medida em que o objeto é lícito e a obtenção regular. A aceitação de prova atípica não se confunde com a valoração da prova. Como qualquer outro elemento, a prova atípica deve 99

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ser livremente avaliada pelo juízo, à vista do artigo 131 do CPC. Cuida-se de técnica legítima de participação no processo de convencimento do julgador, de maneira a alcançar a verdade real e a efetiva prestação da tutela jurisdicional (PARANÁ, Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Acórdão 02223-2014, rel. Eneida Cornel, 2014).

O próximo caso é o de um reclamante que não havia comparecido a uma audiência de uma ação trabalhista. Para justificar a ausência, o mesmo teria chegado a apresentar atestado médico de dez dias de repouso domiciliar. Ocorre, entretanto, que na mesma hora em que estava agendada a audiência, o reclamante publicou uma foto no Facebook ao lado de um amigo, bebendo cerveja e identificando estar num parque turístico em Resende, Rio de Janeiro. Como consequência, a empresa reclamada aproveitou o deslize para constituir material probatório contra o funcionário, que acabou condenado por litigância de má-fé. A decisão foi tomada pela 32ª Vara do Trabalho de São Paulo, mantida pelo TRT-SP e pelo TST. Segue um trecho de acórdão proferido pelo TST discorrendo acerca de agravo de instrumento em recurso de revista. O acórdão faz alusão a um outro, anteriormente elaborado pelo TRT de origem: Consta do v. Acórdão: “[...] Em 16/08/2011 o reclamante protocolizou petição (fls.542/544), juntando cópia de atestado médico datado de 10/08/2011 no qual consta que o obreiro deveria ficar de repouso por 10 (dez) dias. Na audiência realizada, diante do atestado apresentado, o Juízo de origem redesignou a audiência de instrução. Ocorre que, às fls. 554/567, os reclamados peticionaram informando que, no período de dez dias de repouso indicado no atestado, ao contrário de estar em casa de repouso como deveria, o reclamante estava em parque turístico situado no município de Resende (RJ), em companhia de amigos, em bares e restaurantes, inclusive consumindo bebida alcoólica. Para corroborar suas afirmações juntaram cópias do ‘facebook’ do reclamante feitas através de ‘ata notarial’ (quando o tabelião acessa o endereço da página ou site e verifica seu conteúdo, atestando data, horário, endereço e sua veracidade). Como se vê às fls. 558 e 567, no dia 18/08/2011, o reclamante estava em bar bebendo com amigos. Nas cópias e pelo teor das conversas, o reclamante estava usufruindo de verdadeiras férias. Diante dos fatos ocorridos e das provas apresentadas, o Juízo de origem aplicou ao reclamante a pena de confissão quanto à matéria de fato. Insurge-se o recorrente contra a pena aplicada, arguindo sua incapacidade física 100

e psicológica para comparecimento nessa Justiça Especializada, asseverando que se tratava de um ato judicial de grande pressão psicológica. Em suma, suas argumentações não o levam a êxito. Diz que os diálogos do ‘facebook’ não induzem a nenhuma prática condenável por parte do recorrente e que as fotos incluídas não são atuais. Todavia, esquece-se de que não são meras cópias, mas, sim, cópias autenticadas por tabelião, das quais se conclui que o autor não estava impossibilitado de comparecer à audiência designada. [...] CONCLUSÃO. DENEGO seguimento ao Recurso de Revista.” (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho, Acórdão AIRR - 2079-25.2010.5.02.0032, rel. João Oreste Dalazen, 2014).

O caso seguinte é o de uma enfermeira que teria se ausentado do trabalho em um hospital por conta de um suposto problema de saúde, sendo depois demitida em função de registros no Facebook que a desmentiam. A ex-funcionária teria, entretanto, procurado a Justiça do Trabalho requerendo na inicial a nulidade da justa causa aplicada e o reconhecimento da dispensa imotivada. A empregadora contestou o pedido, alegando que a enfermeira praticou ato de improbidade ao apresentar atestado médico falso. Ouvidas testemunhas, o juízo de primeiro grau entendeu que não havia provas suficientes de que a dispensa tinha sido motivada e declarou a nulidade da justa causa. Curiosamente, tanto o hospital quanto a própria ex-funcionária recorreram da decisão de primeira instância. O hospital insistia que a enfermeira havia sido dispensada motivadamente, e a enfermeira pleiteava o pagamento de horas extras, manutenção do plano de saúde e indenização por danos morais. Assim, o processo foi encaminhado para instância superior, onde a 9ª Turma do TRT da 1ª Região confirmou a demissão por justa causa da funcionária, que teria apresentado um atestado médico falso para justificar sua ausência ao serviço. As fotos e comentários no perfil da enfermeira no site foram determinantes para a comprovação de que durante a vigência do período de afastamento do trabalho garantido por atestado médico ela participou da 16ª Maratona do Rio de Janeiro. Segundo o relator do acórdão no tribunal, as fotos encontradas no Facebook eram claras no sentido de provar que a enfermeira, uma vez que se encontrava em um evento esportivo, estava bem disposta, e não doente e com necessidade de afastamento, conforme havia alegado anteriormente à empresa. Segundo o desembargador Ivan da Costa Alemão Ferreira, teria ficado configurada quebra de confiança, o que justificaria a dispensa por justa causa, levando os desembargadores da 9ª Turma a acordarem, por unanimidade, negar 101

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provimento ao recurso da enfermeira e aceitar o recurso da empregadora, mantendo a demissão por justa causa: Enfim, uma coisa é certa. A autora se encontrava no evento esportivo, conforme fotos apresentadas, certamente postadas pela própria autora na internet. Tais imagens convencem que a autora estava bem disposta, e não doente com necessidade de 15 dias de afastamento. Entendo que, de fato, em função dos atestados médicos falsos houve quebra de confiança que justifica a justa causa (RIO DE JANEIRO, Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, Acórdão 48923771, rel. Ivan da Costa Alemão Ferreira, 2014).

História similar ocorreu em Eusébio, Ceará, onde um cozinheiro, inconformado com sua demissão por justa causa, ingressou, sem sucesso, com ação trabalhista contra o ex-empregador: Muito embora os atestados médicos [...] tenham declarado a suposta necessidade de afastamento do obreiro de suas atividades laborais, por motivo de enfermidade, as fotos extraídas de rede social (FACEBOOK) [...] demonstram inequivocamente que, nas datas ali compreendidas, o reclamante, na realidade, participava de eventos festivos, com o consumo, inclusive, de bebida alcoólica. Com efeito, é inarredável que a conduta adotada pelo reclamante é inteiramente reprovável e justifica a ruptura contratual por justa causa, eis que quebrada a fidúcia necessária para manutenção do vínculo de emprego (CEARÁ, Única Vara do Trabalho de Eusébio, Ata de audiência do processo nº 0000149-49.2015.5.07.0034, Kaline Lewinter, 2015).

A seguir é apresentado o caso de uma auxiliar administrativa da São Paulo Transportes S.A. (SPTrans), empresa responsável por administrar o transporte público do município, demitida em 2012 por justa causa após publicar críticas à Prefeitura Municipal de São Paulo em sua página no Facebook. Em desabafo, a empregada chama o prefeito de safado e de “corruptos coronéis” os indicados para ocupar os cargos na prefeitura. Segundo o entendimento da empresa, estaria configurado o cometimento de falta grave por parte da empregada devido ao conteúdo publicado. Insatisfeita com o motivo da dispensa, a mesma acionou a SPTrans na Justiça do Trabalho, que entendeu que a crítica havia sido direcionada ao governo municipal, e não à empresa, o que não configuraria motivo para demissão motivada. Segue trecho de acórdão proferido pelo TST: 102

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. DISPENSA POR JUSTA CAUSA. FALTA GRAVE. NÃO CARACTERIZAÇÃO. O Regional, avaliando a moldura fático-probatória que lhe foi endereçada concluiu que a manifestação da reclamante nas redes sociais - facebook - foi endereçada ao governo municipal da cidade de São Paulo e não à agravante (empregadora) e que o uso da expressão “coronéis”, de modo a depreciar a figura dos detentores do poder municipal, também não foi direcionada à reclamada. Restou, igualmente, assentado no acórdão regional que a situação, tal como delineada, não se enquadra nas alíneas “j” e “k” do art. 482 da CLT, tanto porque a alegada ofensa não foi feita em serviço, quanto porque não foi dirigida à empresa nem aos superiores hierárquicos da reclamante. Inferência outra exige o reexame de fatos e provas, o que impossibilita o processamento da revista, ante o óbice da Súmula nº 126 desta Corte Superior e afasta a alegada ofensa aos artigos legais apontados, tanto quanto a jurisprudência transcrita em revista. Agravo de instrumento conhecido e não provido (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho, Acórdão AIRR - 2678-80.2012.5.02.0003, rel. Breno Medeiros, 2014).

Estes são apenas alguns exemplos que evidenciam um fenômeno sustentado por uma relação diádica entre exposição e vigilância observado atualmente na internet. Apesar de seu relativo ineditismo, o mesmo já periga encontrar temerárias formas de legitimação. Neste sentido, o que se busca a seguir é negar com argumentos teóricos a possível naturalização de uma “necessidade de exposição”, reconhecendo que apesar de ser um fenômeno cuja exponencialização deriva diretamente dos recentes avanços tecnológicos, esta se trata, na verdade, uma construção histórica e socialmente realizada segundo valores e interesses específicos. Através dos conceitos de indústria cultural e de espetáculo, bem como do conjunto daquilo que pode ser descrito como “dispositivos137 de visibilidade” (panóptico, sinóptico, palinóptico e superpanóptico), será proposta uma explicação deste modus operandi que garante que a superexposição e possibilita a vigilância.

137 Em O que é um dispositivo?, Agamben define o termo enquanto o “conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é gerir, governar, controlar e orientar, num sentido que se supõe útil, os gestos e pensamentos dos homens” (2014, p. 37), em suma, “qualquer coisa que tenha a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (2014, p. 39).

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3. A indústria cultural O termo “indústria cultural” foi utilizado pela primeira vez no livro Dialética do esclarecimento, escrito por Theodor Adorno em colaboração com Max Horkheimer, em substituição a “cultura de massa”, uma vez que esta última expressão induziria inevitavelmente ao erro de julgar tratar-se de uma cultura emergindo espontânea e autonomamente do seio das massas, algo bastante diferente do que é proposto pelos autores. Para eles, a massa seria apenas o destinatário passivo, o consumidor de uma cultura produzida e distribuída segundo os princípios da indústria e sob a égide do capitalismo. Os meios de comunicação de massa, por sua vez, teriam se tornado uma forma de veiculação de bens culturais cujo resultado final acaba sendo uma absoluta mercantilização da cultura e homogeneização dos gostos. A artificialidade desta dinâmica estaria contida no princípio básico que consiste em apresentar aos consumidores tanto as necessidades como tais, que podem ser satisfeitas pela indústria cultural, quanto antecipadamente organizar essas próprias necessidades de modo que as massas a elas se prendam, sempre e apenas como eternos consumidores, como eternos objetos da indústria cultural. Para Adorno e Horkheimer, toda mercadoria cultural é esteticamente uniformizada em decorrência de um controle rigoroso da produção que se apresenta enquanto um imperativo imposto justamente pela técnica, o que, já de saída, confere certa coloração ideológica ao modo como esta última é trabalhada no âmbito dessa produção (FONSECA, 2014). Dois são os objetivos visados a partir deste rigoroso controle produtivo na indústria cultural: a rígida classificação das mercadorias culturais espelhadas na massa e a subdivisão das próprias massas em categorias de consumo que encarnam ideais de posição e ascensão social, uma vez que espelham a classificação mesma das mercadorias culturais que consomem ou que aspiram a consumir. À luz dos autores alemães: Distinções enfáticas, como entre filmes de classe A e B, ou entre histórias em revistas de diferentes preços, não são tão fundadas na realidade, quanto, antes, servem para classificar e organizar os consumidores a fim de padronizá-los. Para todos alguma coisa é prevista, a fim de que nenhum possa escapar; as diferenças vêm cunhadas e difundidas artificialmente. O fato de oferecer ao público uma hierarquia de qualidades em série serve somente à quantificação mais completa, cada um deve se comportar, por assim dizer, espontaneamente, segundo o seu nível, determinado a priori 104

por índices estatísticos, e dirigir-se à categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu tipo. Reduzido a material estatístico, os consumidores são divididos, no mapa geográfico dos escritórios técnicos (que praticamente não se diferenciam mais dos de propaganda), em grupos de renda, em campos vermelhos, verdes e azuis (ADORNO, 2009, p. 7).

A passagem denota o espelhamento entre consumidor e mercadoria, uma vez que a produção artística e cultural passa a se apresentar organizada sob os moldes das relações capitalistas, atendendo aos padrões econômicos de tal regime e reproduzindo-o mediante um trabalho sistêmico de reforço do fetiche da mercadoria. É preciso deixar claro, todavia, que a crítica adorniana é endereçada menos à arte enquanto produto ou à arte enquanto mercadoria do que ao próprio sistema responsável por operar tal ressignificação da arte. Assim, uma correta interpretação da categoria de indústria cultural não deve, de forma alguma, adstringir-se meramente aos seus efeitos materiais em relação à arte, mas, para muito além disso, deve reconhecer as suas implicações em um nível muito maior e que leve em consideração também os meios, veículos e canais de comunicação. Há que se reconhecer que um dos grandes méritos de Adorno e de Horkheimer quando da construção de sua crítica à indústria cultural foi o fato dos autores terem tido suficiente sensibilidade para perceber que seus efeitos não incidem exclusivamente sobre o circuito das artes, mas que, para bem além disso, seus desdobramentos são sistêmicos. A indústria cultural deve ser compreendida, por conseguinte, enquanto todo aquele arranjo capitalista que visa à produção em série de bens culturais para, de forma ilusória, satisfazer através de um consumo massificado necessidades que são artificialmente geradas. Refere-se, portanto, a todo o suporte instrumental que lhe é conferido pelos aparatos tecnológicos, e ao qual subjaz um considerável poderio econômico. Em outras palavras, refere-se à grande mídia. Tendo este encadeamento em vista, torna-se impossível dissociar a noção de indústria cultural do papel protagônico que é exercido pelos meios de comunicação de massa para sua manutenção.

4. O espetáculo O pensamento contemporâneo acerca da questão do espetáculo encontra sua gênese no livro A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord. O ponto de par105

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tida desta obra é uma feroz crítica a qualquer tipo de imagem que leve o homem a uma postura passiva de aceitação de valores preestabelecidos pelo capitalismo. Para Debord “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (2003a, p. 14). Ou seja, as imagens espetaculares não podem bastar-se por si sós, como se fossem uma espécie de entidade absoluta. Elas são, na verdade, relações sociais entre pessoas, relações estas mediadas por imagens. Dentre os diversos axiomas que integram a obra, talvez este seja o mais lapidar no sentido de sintetizar o fetiche imagético enquanto o espírito de uma época. Mas Debord prossegue: “Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência” (2003a, p. 16). Há, segundo o autor, no âmbito da linguagem espetacular, uma completa fusão entre meios e fins, uma vez que tal linguagem é constituída por “signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo o princípio e a finalidade última da produção” (2003a, p. 15). Ou seja, o espetáculo é, simultaneamente, tanto o projeto responsável pelo fornecimento dos alicerces quanto o próprio resultado do modelo de produção vigente. O autor francês enxerga a sociedade atual absolutamente contaminada pelas imagens que se constituem enquanto simulacros da realidade numa perversa inversão de valores que opta pela aparência em vez do ser, pela ilusão no lugar da realidade, enfim, por um imenso complexo de imagens e de representações em vez do realismo concreto e natural. À luz de suas formulações, esta inversão é de tal maneira produzida que a própria realidade vivida acaba por ser materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, esvaindo-se por entre a fumaça da representação e refazendo em si mesma a própria ordem espetacular. Na perspectiva assim delineada, toda a vivência nessas sociedades acabaria por se anunciar enquanto uma imensa e contínua acumulação de espetáculos que se repetem e se retroalimentam. Este panorama, segundo Debord, pode ser observado em todas aquelas sociedades nas quais estejam vigorando as condições modernas de produção industrial capitalista. Sua obra deixa claro que é impossível proceder a uma separação entre estas relações sociais mediadas por imagens e as relações de produção e consumo de mercadorias, viés este que aproxima sua teoria sobre a sociedade do espetáculo à crítica elaborada por Adorno e Horkheimer. De modo a garantir a reprodução deste sistema, aliás, a própria lógica de espelhamento entre mercadorias e consumidores apresentada por Adorno, 106

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repete-se também na relação observada entre espetáculo e espectadores. É o que Guy Debord formula ao retomar a discussão em Comentários sobre a sociedade do espetáculo: De acordo com os meios de pensamento das populações contemporâneas, a primeira causa da decadência está ligada claramente ao facto de que todo o discurso mostrado no espetáculo não deixa nenhum lugar para a resposta; e a lógica não se formava socialmente senão no diálogo. Mas também quando se propagou o respeito por aquele que fala no espetáculo, que é considerado ser importante, rico, prestigiado, que é a autoridade mesma, a tendência espalha-se também entre os espectadores, de quererem ser tão ilógicos como o espetáculo, para alardear um reflexo individual dessa autoridade (DEBORD, 2003b, p. 34).

Ou seja, o prestígio do qual gozam os ícones espetaculares é influência mais que suficiente para disseminar um anseio desenfreado por parte dos espectadores por ocuparem um papel protagônico e socialmente relevante – ainda que seja apenas no âmbito midiático – tal qual aqueles que ocupam as posições de vedetes dentro da dinâmica do espetáculo. Assim, Debord entende o espetáculo enquanto a principal produção da sociedade atual, em grande medida, por conta da influência que é exercida pelos meios de comunicação de massa, aquela que considerava como a “manifestação superficial mais esmagadora” da sociedade do espetáculo (2003a, p. 22). Através da mediação das imagens e mensagens, os indivíduos abdicam da dura realidade dos acontecimentos do cotidiano, passando então a viver em um mundo que é movido pelas aparências fruto do consumo permanente de fatos, notícias, produtos e mercadorias bombardeados diariamente por meios de comunicação de massa que, apesar de aparentemente invadirem a sociedade como simples instrumentação, estão muito distanciados da neutralidade.

5. O panóptico Muito se fala sobre o panóptico difundido pelo filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham, mas pouco é falado sobre o panóptico tal qual concebido pelo seu irmão, o engenheiro Samuel Bentham. Ignorar esta gênese implica compreender apenas parcialmente as reais intenções que moveram o projeto panóptico. Samuel Bentham chegou à Rússia em 1780 em busca de trabalho. Quatro anos mais tarde, passou a trabalhar para o príncipe Grigorii Potemkim, 107

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administrando suas manufaturas e atuando na construção naval. Em troca, o príncipe deu-lhe uma casa, criados, fundos financeiros ilimitados e servos para constituir sua força de trabalho. Ocorre que Samuel Bentham enfrentou problemas relacionados à qualificação destes camponeses russos, forçando-o a recrutar mestres-artesãos em Londres. Poucos anos depois, estes capatazes ingleses se tornavam cada vez mais difíceis de serem controlados por conta de questões relativas à sua falta de disciplina, tais como “preguiça, roubo, brigas, bebedeiras” (WERRETT, 2008, p. 178). É neste contexto que o projeto do panóptico se insere. Todavia é necessário ter em mente que a despeito deste condão disciplinar, havia por trás do projeto um esforço para tornar o processo produtivo mais eficaz. Ora, se a solução para a falta de qualificação dos camponeses russos foi a importação de trabalhadores ingleses, havia já aí um viés produtivo. Se, por questões culturais, estes capatazes ingleses apresentaram uma inconveniente indisciplina que acabou ensejando o projeto panóptico, há que se levar em consideração o que este mau comportamento comprometia, ou seja, a produção. Era a ela que a falta de disciplina representava uma inconveniência. Em suma, ainda que possa ser dito que o panóptico era um modelo voltado para resolver questões disciplinares, originariamente, tratavam-se de questões disciplinares que comprometiam a produção. Faz-se mister não desconsiderá-lo. Jeremy Bentham acabou por incorporar a ideia de seu irmão a um projeto elaborado em resposta a um concurso com vistas à construção de uma nova prisão na Inglaterra. A arquitetura deste sistema consiste em uma composição circular que tem no seu centro uma torre de vigilância e, em sua periferia, um conjunto de celas. Nesta torre, vazada de largas janelas que se abrem para o exterior, fica localizado o alojamento do inspetor. E, ao redor da torre, separada por uma área intermediária, uma construção em anel dividida em celas individuais isoladas umas das outras por paredes. A circunferência interior das celas é formada por grades – para não subtrair da visão do inspetor qualquer porção de suas áreas internas. Tal modelo arquitetônico não foi pensado como exclusivo para prisões. Trata-se, a bem da verdade, de uma “idéia de um novo princípio de construção aplicável a qualquer sorte de estabelecimento, no qual pessoas de qualquer tipo necessitem ser mantidas sob inspeção” (BENTHAM, 2008, p. 15). Foucault é ainda mais enfático em Vigiar e Punir ao afirmar que este modelo estrutural deve ser compreendido, para muito além de uma mera concepção arquitetônica, 108

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enquanto “uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (1987, p. 170). Uma característica que resta latente na própria etimologia da palavra “panóptico”, mas que merece ser reforçada para que seu significado possa vir a ser contrastado com conceitos mais recentes tais quais o de sinóptico e o de palinóptico, é a concentração da vigilância. Vigilância de várias pessoas que fica a cargo de um só vigia. O princípio de inspeção pressupõe-na ao outorgar ao inspetor a competência de ser “aquele que tudo vê”, ao possibilitar que ele vigie todas as celas sem ser visto, impossibilitando que os detentos saibam se há ou não alguém fisicamente presente na torre central a vigiá-los. Nas palavras de Foucault, no panóptico, “a visibilidade é uma armadilha” (1987, p. 166). Observa-se, assim uma relação de descompasso entre a invisibilidade do inspetor e a completa visibilidade dos presos, resultando em eficiência e economia no controle dos subalternos, uma vez que, tendo invadidas as suas privacidades de modo alternado, furtivo e incerto, o resultado é que os próprios detentos, inibidos, vigiam-se – não uns aos outros, mas a si próprios. Trata-se, portanto, de fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, ainda que descontínua em sua ação, de modo a “induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder” (1987, p. 166).

6. O sinóptico Originalmente proposto por Thomas Mathiesen (1997) enquanto um contraponto ao panóptico, o termo designa a situação em que um grande número de pessoas condensa seu foco em algo em comum. Ao contrário do panóptico, aqui muitos veem poucos. Apesar das significações diametralmente opostas, segundo o autor, há paralelos no desenvolvimento dos dois conceitos que, juntos, acabam servindo a funções decisivas de controle nas sociedades modernas. Mathiesen ressalta a maneira demasiadamente acelerada através da qual panoptismo e sinoptismo se expandiram entre a segunda metade do século XVIII e o início do século XXI, desenvolvendo um grau de interação tamanho que acaba, por muitas vezes, embaralhando um com o outro. Hodiernamente, contudo, o que se observa é que esta interação ganha novos contornos, alicerçando-se sobretudo nos meios de comunicação em massa, espaços sinópticos 109

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por excelência. Para muito além de configurarem-se enquanto sistemas em que muitos vigiam poucos, são, na verdade, modelos em que muitos acabam sendo influenciados por poucos. Mas esta não é uma afetação que atua, conforme suposto por Foucault ao analisar o panóptico, no âmbito disciplinar. Para Mathiesen, o sinóptico é um dispositivo com maior abrangência, que age e produz efeitos diretamente sobre a consciência como um todo. Ao atribuir esta consequência aos procedimentos desencadeados através dos meios de comunicação de massa, há certa aproximação com um processo que já houvera sido apresentado por Adorno e Horkheimer – de indústria cultural – e que passa a ganhar renovada relevância diante desta perspectivação. A pertinência aumenta ainda de maneira substancial ao se levar em consideração a proposição elaborada por Bauman de que as interações sinópticas são transportáveis ao ciberespaço:

através do ciberespaço. Ou seja, além de mais abrangente e mais eficaz, também é muito mais sutil.

O Sinóptico é, por sua natureza, global; o ato de vigiar desprende os vigilantes de sua localidade, transporta-os pelo menos espiritualmente ao ciberespaço, no qual não mais importa a distância, ainda que fisicamente permaneçam no lugar. Não importa mais se os alvos do Sinóptico, que agora deixaram de ser os vigiados e passaram a ser os vigilantes, se movam ou fiquem parados. Onde quer que estejam e onde quer que vão, eles podem ligar-se – e se ligam – na rede extraterritorial que faz muitos vigiarem poucos. O Panóptico forçava as pessoas à posição em que podiam ser vigiadas. O Sinóptico não precisa de coerção – ele seduz as pessoas à vigilância (BAUMAN, 1999, p. 60).

Apresenta-se em curso, contudo, para Bruno (2013), uma transformação ainda mais recente que resulta em um retorno do foco de visibilidade sobre o indivíduo comum, embaralhando ainda mais as já nebulosas fronteiras entre a vigilância e o espetáculo. Transformação que, por sinal, ganha em complexidade na medida em que o retorno da exposição do indivíduo comum à visibilidade, que se dá nos ambientes telemáticos e midiáticos, conta agora com um robusto suporte na internet e nos diversos dispositivos que constituem o ciberespaço. Observa-se uma crescente exposição deliberada da intimidade, da vida banal e cotidiana em reality shows, blogs e sites de redes sociais que acaba funcionando como um vetor de prazer, entretenimento e sociabilidade. No modelo panóptico, como já foi visto, a vigilância não pode prescindir completamente de alguma forma maior ou menor de coerção. No sistema sinóptico, mais sutil, a vigilância é consentida e desejada. E, por isso mesmo, basta-lhe a sedução. No palinóptico, por sua vez, o que ocorre é uma progressiva incorporação das respectivas díades dos modelos anteriores – “vigiar e ser vigiado”, bem como “ver e ser visto” – nos repertórios afetivos, atencionais e sociais dos indivíduos. Trata-se de um estágio altamente avançado de fusão entre o panoptismo e o sinoptismo, no qual a vigilância não apenas se apresenta como algo aceitável, mas, por muitas vezes, chega a ser propriamente requerida.

Assim, por um lado, Bauman reconhece a existência de uma nova dinâmica sinóptica por conta das facilidades proporcionadas pelo ambiente ciberespacial. E, por outro lado, reconhece outras duas mudanças fundamentais em relação ao modelo panóptico. A primeira é a de que os alvos do sinoptismo não são mais os vigiados, mas são agora os vigilantes. Ou seja, a modelagem de uma nova consciência à qual Mathiesen faz menção não se trata, tal como ocorre com um interno que se autopolicia diante da percepção da vigilância no modelo panóptico, de mudanças de comportamento que incidem naqueles que são vigiados. O sinóptico, ao contrário, produz subjetivações (que, em termos agambenianos, mais equivalem a dessubjetivações) nos próprios vigilantes. A segunda alteração é que, ao contrário do panóptico, em vez de coagir, o sinóptico seduz. Primeiramente através dos meios de comunicação de massa e, agora, cada vez mais, 110

7. O palinóptico Nem panóptico nem sinóptico, mas um modelo reticular e distribuído onde muitos vigiam muitos ou onde muitos veem e são vistos de variadas formas. Algo como um palinóptico, para brincar com o radical grego palin, que designa processos de dupla via. Ver e ser visto ganham aqui sentidos atrelados à reputação, pertencimento, admiração, desejo, conferindo à visibilidade uma conotação prioritariamente positiva, desejável, que ressoa nos sentidos sociais que a vigilância assume hoje (BRUNO, 2013, p. 47).

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8. O superpanóptico Em The mode of information, o historiador Mark Poster descreve o desenvolvimento das tecnologias comunicacionais sugerindo que a figura do panóptico encontra-se atualmente convertida em um “superpanóptico”. Para o autor, o elemento central para a compreensão desta mudança são os bancos de dados, que, ao superarem as limitações físicas do panóptico, se constituem enquanto novas formas de dominação dos sujeitos. Se no panóptico poucos vigiam muitos, no superpanóptico poucos vigiam muitíssimos, uma vez que, para muito além de ferramentas que permitem a vigilância de várias pessoas, os bancos de dados são sistemas que viabilizam o monitoramento e o acúmulo de informações de grandes contingentes de indivíduos. Conforme as observações de Poster: In the home networking information loop, one database (product information) generates another database (consumer information) which generates another database (demand information) which feeds the production process. In this context, the commodification of information creates its own system of expanded reproduction: producers have databases about consumers which are the commodities that may be sold to other producers (POSTER, 1990, p. 75).

As análises de Poster datam do início da década de 1990. Desde então, as tecnologias de difusão da informação experienciaram uma significativa evolução que se deve, em grande parte, à popularização da internet. Assim, não tanto o atingimento de um estágio de um superpanóptico, mas, principalmente, todo o ulterior desenvolvimento e confirmação deste modelo relacionam-se de modo intrínseco à evolução da internet. Para que fique mais claro, quando alguém, por exemplo, faz uma pesquisa online ou procura um determinado produto em um catálogo constante no site de alguma loja na internet, esta pessoa não apenas está acessando o banco de dados de uma empresa, mas está transformando a si próprio em unidades de informação que serão utilizadas para a composição de novos bancos de dados. Aliás, não é exagero dizer que qualquer sorte de comportamento online é suscetível de sofrer monitoramento, ser transformado em unidades de informação, arquivamento para composição de banco de dados e, consequentemente, integrar a dinâmica de vigilância do sistema superpanóptico.

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Uma reveladora matéria do The Guardian de 2007138 trata sobre uma patente da Google depositada naquele ano nos EUA e na Europa que revela os planos da empresa de aprimorar uma tecnologia capaz de extrair perfis psicológicos dos indivíduos a partir do monitoramento dos usuários de jogos online. O que já estava desde então sendo visado é a venda destes bancos de dados para empresas de publicidade, de modo a possibilitar o oferecimento de produtos mais condizentes com os interesses específicos, com a personalidade e o temperamento destes usuários. De acordo com a matéria, jogadores que, por exemplo, passam muito tempo explorando cenários virtuais podem estar mais propensos a realizar viagens ou podem estar interessados em férias, de modo que a tecnologia patenteada poderia direcionar-lhes propagandas de pacotes de férias. Já aqueles que passam muito tempo conversando com outros personagens seriam tachados como pessoas comunicativas e por isso receberiam propagandas de telefones celulares. Ao bater um Honda Civic num jogo de corrida de automóveis, a tecnologia poderia gerar um anúncio do tipo “se você estivesse dirigindo um Hummer, poderia ter se saído melhor nesta disputa”. O último exemplo apresentado na reportagem é uma situação hipotética na qual um jogador que, passando mais de duas horas jogando continuamente, acabaria programando o sistema para lhe enviar propagandas da Pizza Hut, Coca-Cola, de café etc. O que acontece no nível dos sites de redes sociais não está muito distante desta dinâmica superpanóptica, especialmente em se tratando do Facebook. O alicerce, contudo, é o crescente retorno da exposição do indivíduo comum.

9. Entre a superexposição e a vigilância No campo midiático, é bastante usual encontrarmos programas televisivos que, buscando construir mais apelo frente ao público para sustentar elevados índices de audiência, anunciam-se enquanto verdadeiros shows. Aliás, o próprio termo reality show, ao justapor realidade e espetáculo, acaba por constituir-se enquanto a ultimação, ao menos no âmbito do entretenimento midiático, da conversão propugnada por Debord de realidade em espetáculo. A linguagem empregada é qualquer coisa, menos inocente. Na indústria cul138 Disponível em . Acesso em 28 mar. 2016.

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tural nada é gratuito. “É hora de dar aquela espiadinha”, anuncia o bordão do respeitado ex-repórter formador de opinião convertido em vedete apresentadora do programa de televisão no qual se exibe, orgulhosamente, a “casa mais vigiada do Brasil”139. Julgamo-nos então na torre de vigilância. Pensamo-nos os vigias. Consciente ou inconscientemente, supomo-nos os detentores de poder numa relação panóptica. Eis a dádiva da sociedade do espetáculo. Conseguir blindar os olhos para a realidade de que somos, na verdade, aqueles que menos têm poder na relação sinóptica. Há, neste último modelo, uma inversão do vetor de poder. Quem detém o poder panóptico é aquele que vigia. Quem detém o poder sinóptico é aquele que se expõe. Assistir a um reality show não significa, absolutamente, vigiar seus participantes, como vendem os slogans maliciosamente fabricados pela indústria cultural. Significa, pelo contrário, submeter-se a alguns poucos afortunados que se expõem, vendem e ditam padrões de comportamento num regime de sinoptismo. É verdade que a grande mídia, desde a sua origem, tradicionalmente operou a partir de um regime de visibilidade cujo foco incide sobre o restrito mundo das elites, celebridades e pop stars do ramo do entretenimento. Há que se levar em consideração, todavia, uma transformação aparentemente sutil, mas que se revela um fator inédito: o crescente retorno do indivíduo comum à visibilidade. Não mais nas instituições disciplinares tal qual propugnado por Bentham e Foucault, mas, inicialmente, nos ambientes midiáticos tradicionais através dos reality shows televisivos nos quais participantes anônimos conquistam fama instantânea ao terem suas atividades mais quotidianas e seus diálogos mais banais registrados por câmeras e transmitidos a milhões de espectadores. Some-se a isso a própria essência narcisista da indústria cultural, bem como o espelhamento que é por ela promovido entre mercadorias e consumidores, e o que se tem em seguida é, para além da pura naturalização da vigilância, o estabelecimento de um ciclo retroalimentável que acaba por se tornar responsável pela disseminação no imaginário coletivo moderno de um estilo de vida desejoso pelo alcance dos quinze minutos de fama – talvez o grande mito da felicidade na indústria cultural – mediante uma díade de exibicionismo e voyeurismo. 139 A atração em questão é o Big Brother Brasil, versão brasileira daquele que é o principal expoente do já citado gênero dos reality shows e cuja primeira temporada mundial foi realizada em 1999 nos Países Baixos.

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Cria-se assim uma demanda que, por sua vez, encontra abrigo no ciberespaço, em especial nos sites de redes sociais, onde as tendências de exposição da intimidade ganham renovado impulso. Entre o final dos anos 1990 e a primeira década do século XXI, observou-se a explosão de surgimento dessa modalidade de site. O período, não por acaso, coincide com o da popularização dos reality shows, reforçando a tese da existência de uma crescente demanda por visibilidade que tende a buscar nas novas mídias de internet a sua satisfação. No Facebook, qualquer um pode, deliberadamente, optar por se expor a ponto de transformar sua “linha do tempo” em um diário aberto se assim o desejar. Os exemplos retirados de processos judiciais e aqui apresentados o comprovam. É disseminada a impressão de existir no Facebook algum espaço para reverter aquela equação. Ou seja, retomar o poder sinóptico através do ato de se expor. Erige-se, assim, enquanto decorrência destes dispositivos, uma nova subjetividade que se confunde com as próprias “narrações dos sujeitos” típicas dos espaços virtuais, acabando por formar, a partir do que Sibilia (2003) define como “imperativo da visibilidade”, os “sujeitos espectrais”, tal qual proposto por Agamben (2014). Não mais basta ter. É preciso mostrar que se tem. Não mais basta ser. É preciso mostrar que se é. A afirmação dos sujeitos decorre menos daquilo que é vivenciado e mais daquilo que se prova a terceiros que foi experienciado. Ao mesmo tempo, julga-se estar vigiando os outros, uma vez que, a depender das configurações de privacidade escolhidas pelos usuários, torna-se possível saber seus nomes, sobrenomes, data de nascimento, estado civil, local de trabalho, formação acadêmica, quem são seus amigos, quem são os membros de sua família, ler suas postagens e saber o que estão pensando, o que estão sentindo, conhecer suas visões políticas, ficar a par de seus gostos musicais, literários e cinematográficos, saber quais locais costumam frequentar a partir de aplicativos geolocalizadores, conhecer seus hábitos, suas rotinas etc. Enfim, a lista de informações passíveis de vigilância, ainda que dependa diretamente dos dados que são fornecidos por cada usuário, é surpreendentemente extensa. Supõe-se, como consequência, um modelo palinóptico, a via de mão dupla composta pela díade panoptismo e sinoptismo na qual todos podem vigiar e, concomitantemente, ser vigiados. Eis aí a consumação da nova dádiva do espetáculo e, mais especificamente, do Facebook. Ao nos expormos sobremaneira no ciberespaço, o que nos é escamoteado é que passamos a ser vigiados agora por um regime superpanóptico. De pretensos 115

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sujeitos da exposição a objetos de vigilância. Vigilância essa que se constitui através de mecanismos baseados em bancos de dados que viabilizam a pouquíssimos o monitoramento e o acúmulo de informações de um enorme contingente de indivíduos. O controle laboral, policial, judiciário ou administrativo, qualquer que se seja sua forma, constitui apenas uma de suas possibilidades. No superpanóptico, através das tecnologias de informação e de comunicação, as informações podem ser armazenadas e acessadas não apenas para fins de vigilância estatal como no panóptico, mas especialmente para fins empresariais e comerciais. Tudo isso realizado com pouquíssimo ou mesmo sem nenhum esforço, uma vez que se pode contar agora com a participação voluntária dos vigiados. O totalitarismo orwelliano torna-se praticamente obsoleto frente às novas técnicas de domínio das autonomias da vontade. Ao Facebook basta apenas um clique. “Ao clicar em Abrir uma conta, você concorda com nossos termos e que você leu nossa Política de Dados, incluindo nosso Uso de Cookies”140, diz o alerta da página inicial do site. Se até mesmo esta mensagem constante na pagina inicial do Facebook passa despercebida por muitos olhos, o que dizer da tal política de dados? Mas a “Declaração de Direitos e Responsabilidades” do site não deixa dúvidas: “Ao usar ou acessar os Serviços do Facebook, você nos permite coletar e usar tais conteúdos e informações de acordo com a Política de Dados e suas futuras emendas”141. O próprio Facebook deixa muito claro através deste documento que cada passo dado dentro ou fora do site que seja passível de captura, será por ele capturado. Diante da opulência deste que possivelmente é o mais emblemático representante da era do superpanóptico, o modelo panóptico de Bentham acaba por soar quase como uma inocente brincadeira de anjos barrocos. Ainda assim, há um ponto de similitude entre ambos que se torna essencial na medida em que resgata um importante fundamento presente na gênese do panoptismo e que talvez hoje tenha ficado em segundo plano em função das inúmeras abordagens que insistem em focar tão somente nos aspectos disciplinares do modelo panóptico. Conforme já visto, Samuel Bentham, o tantas vezes negligenciado irmão de Jeremy Bentham, enfrentou problemas com a sua força de trabalho desqua-

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lificada na Rússia, tendo que se socorrer de capatazes ingleses. Esses, por seu turno, eram indisciplinados, insubordinados e afeitos a brigas e bebedeiras que comprometiam o trabalho. Como solução, Samuel concebe o panóptico. Se a princípio, o modelo surge como uma tentativa de solucionar questões disciplinares, não se pode perder de vista que tal disciplina tinha um escopo específico que era o aumento da eficiência dos processos produtivos. A questão da produção está o tempo todo presente como pano de fundo na gênese panóptica. E ela é também central no superpanóptico. Isso talvez não fique tão evidente logo num primeiro olhar por conta da característica de intangibilidade daquilo que é produzido neste ambiente e pela forma aparentemente sutil através da qual este sistema conduz a produção. Mas não se pode deixar enganar. Cada segundo gasto num site de redes sociais como o Facebook é um segundo dedicado à produção de informações, à produção de dados, à produção daquilo que de mais valioso é atualmente gerado pela indústria da vigilância. Esses dados, por sua vez, cada vez mais são valorizados – inclusive enquanto mercadorias – na medida em que servem de insumo às atividades publicitárias que não farão outra coisa senão reforçar o próprio ciclo de consumo. O panóptico, por si só, ainda que enquanto metáfora, não consegue capturar a grandiosidade do que acontece agora na internet. No lugar de panóptico, um superpanóptico. Mais que apenas pertinente, o prefixo se faz imprescindível para designar o desenvolvimento dos mecanismos de vigilância, evoluídos agora a um nível tal que se tornam aptos à captura de, virtualmente, cada passo dado e cada rastro deixado no ambiente ciberespacial. Ironicamente, por outro lado, trata-se de uma evolução que retoma a própria gênese do modelo panóptico original por conta de seu viés produtivo. A diferença é que Samuel Bentham contava com camponeses russos desqualificados e cerca de vinte capatazes ingleses indisciplinados. Já Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, já conta – e apenas por enquanto – com a força laboral de 1,5 bilhão de usuários não assalariados, dóceis, adestrados, e que, em sua resignada complacência, são incapazes de distinguir a tênue linha que separa os cada vez mais sobrepostos terrenos da sociabilidade e da exploração.

140 Disponível em . Acesso em 28 mar. 2016. 141 Disponível em . Acesso em 28 mar. 2016.

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10. Referências

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ADORNO, Theodor. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel. (org.). Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Nacional, 1977.

Barbosa. Reclamado: Dom Pedro Brasil Empreendimentos Turísticos S.A. Juíza: Kaline Lewinter. Eusébio, 04 de maio de 2015. Internet Lab. Disponível em: . Acesso em 14 jul. 2015.

_____. Indústria cultural e sociedade. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Ebooksbrasil.com, 2003a.

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América Latina e Europa

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Políticas Públicas de Comunicação: Progressos e Desafios da Democratização da Comunicação no Equador142 Palmira Chavero143

1. Introdução As últimas décadas na América Latina vêm se caracterizando por uma recuperação do papel do Estado na comunicação. Tradicionalmente, os meios de comunicação têm sido um espaço livre de ingerência estatal, sob a premissa de que a regulamentação deste setor atentaria contra a liberdade de expressão, sendo comandados por meios de comunicação privados cada vez mais concentrados em menos conglomerados e impulsionados por motivações mais empresariais e ideológicas que sociais. Desta forma, a centralidade dos meios de comunicação nas democracias ocidentais foi dando lugar a um processo de midiatização (MAZZOLENI, SCHULTZ, 1999) em que os meios têm se convertido em verdadeiros atores políticos. Diante deste cenário, cada vez mais países da América Latina e do Caribe estão apostando em uma intervenção do Estado neste setor, materializada, em um primeiro momento, pela implementação de políticas públicas de comunicação, que cada vez mais vão além da defesa dos direitos e liberdades com a aprovação de leis de comunicação ou de mídia: Uruguai (2007), Argentina (2009), Bolívia (2011), Venezuela (2012), Equador (2013), Brasil e México. Essas leis estão complementando um cenário em que 19 países da América Latina e do Caribe, segundo a UNESCO (2011), contam com alguma norma sobre a liberdade 142 Tradução do espanhol por Bernardo Xavier dos S. Santiago: Mestrando pelo Programa de Pósgraduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Bolsista pela CAPES. 143 PhD em Ciências da Comunicação e Sociologia pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha). Professora Titular de Comunicação na Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (FLACSO)Equador. Pesquisadora do Grupo de Investigación en Gobierno, Administración y Políticas Públicas (GIGAPP).

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de informação: Antígua e Barbuda (2004); Belize (1994); Brasil (2011); Colômbia (1985); Chile (2008); República Dominicana (2004); Equador (2004); El Salvador (2011); Guatemala (2008); Guiana (2013); Honduras (2006); Jamaica (2002); México (2002); Nicarágua (2007); Panamá (2002); Peru (2002); São Vicente e Granadinas (2003), Trinidad e Tobago (1999) e Argentina (2003). Muitas das normas latino-americanas que regulam a comunicação (ou a mídia) têm dois pontos em comum: a sua intenção de romper com a concentração dominante e a aposta nos meios de comunicação comunitários como expoentes de uma comunicação alternativa, entendida como uma comunicação horizontal, democrática e social, que não se rege por critérios econômicos ou partidários. Estes pontos comuns supõem a recuperação de uma proposta comunicacional alternativa liderada pela ideia de democratização da comunicação, objetivo já levantado nos anos 80 no Informe McBride e retomado nos países da América Latina com os governos progressistas das últimas décadas. Desta forma, começa a se delinear uma marca em que o Estado está posicionado em favor do cidadão, protegendo juridicamente seus direitos à comunicação em detrimento do poder das grandes empresas, protagonizando um papel que alguns autores têm chamado de “ativismo estatal” (RODRIGUEZ, 2008; RAMOS, 2013) e, consequentemente, gerando desacordo (e oposição) dos grupos tradicionalmente privilegiados pela ausência de regulação do setor.

2. Comunicação no Equador Correa A chegada de Rafael Correa (Aliança País) à Presidência do Equador em 2007 marcou o início de uma série de mudanças na comunicação. Ainda que a Ley de Comunicación tenha sido uma das propostas de campanha Correa, a regulamentação leva vários anos para chegar. Antes da aprovação da lei, o novo governo adotou outras medidas de estatuto jurídico superior neste setor. A nova Constituição de 2008 elencou, pela primeira vez no país, o direito do cidadão à comunicação (art. 18):

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dos fatos, acontecimentos e processos de interesse geral, e com responsabilidade ulterior. 2. Aceder livremente à informação gerada em entidades públicas, ou nas privadas que manejen fundos do Estado ou realizem funções públicas. Não existirá reserva de informação exceto nos casos expressamente estabelecidos na lei. Em caso de violação aos direitos humanos, nenhuma entidade pública negará a informação.

Além deste artigo, a nova ordem constitucional dava um passo maior ao separar os estreitos laços que até então uniam os setores midiáticos e financeiros. O artigo 312 declara que144: As entidades ou grupos financeiros não poderão possuir participações permanentes, totais ou parciais, em empresas alheias à atividade financeira. Se proibe a participação no controle do capital, a inversão ou o patrimônio dos meios de comunicação social, a entidades ou grupos financeiros, seus representantes legais, membros de seu diretório e acionistas. Cada entidade integrante do sistema financeiro nacional terá uma defensora ou defensor do cliente, que será independente da instituição e designado de acordo com a lei.

Em 2009, o governo limita a isenção do pagamento de IVA145 sobre papel de jornal, privilégio desfrutado pelos proprietários da mídia impressa até então. Mas outras medidas também agravaram a relação entre o Governo e os proprietários dos meios de comunicação privados. Fruto da crise econômica de 1999-2001, a Agencia de Garantías de Depósitos (AGD) tinha apreendido alguns bens (cujos proprietários eram principalmente banqueiros), entre os quais havia vários meios de comunicação que, em princípio, passariam a redistribuídos. Um desses meios era El Telégrafo, que se torna em 2008 o diário público do Equador, aumentando o cenário dos meios de comunicação públicos, antes inexistentes no país.

Todas as pessoas, em forma individual ou coletiva, têm direito a: 1. Buscar, receber, intercambiar, produzir e difundir informação veraz, verificada, oportuna, contextualizada, plural, sem censura prévia acerca

144 Posteriormente (7 de maio de 2011), este artigo é submetido a consulta popular e a cidadania a respalda a proposta constitucional. 145 Nota do tradutor: IVA – Imposto ao Valor Agregado.

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Entretanto, o projeto de Ley de Comunicación se organizava através de um processo cujo desenvolvimento teve a participação, em um primeiro momento, de representantes de grupos afetados: profissionais, políticos, cidadãos e acadêmicos. Mesmo que o compromisso inicial fosse ter uma lei de comunicação em um ano desde a chegada de Correa, o primeiro debate não chegaria à Assembleia Nacional antes novembro de 2009. A partir desse momento, a proposta continuaria em um processo lento e tortuoso com vários impasses, entre os quais se incluiria a demissão da presidenta da Comissão Parlamentar, Betty Carrillo (CHECA, 2012). A consulta popular de 2011, além da questão mencionada anteriormente, incluía outra cuja aceitação permitia a Assembleia Nacional aprovar a lei em um período não superior a um ano e criar um Conselho de Regulação que regulasse a difusão de alguns conteúdos. ¿Está você de acordo com que a Assembleia Nacional, sem demoras dentro do prazo estabelecido na Lei Orgânica da Função Legislativa, expeça uma Lei de Comunicação que crie um Conselho de Regulação que regule a difusão de conteúdos da televisão, rádio e publicações de imprensa escrita que contenham mensagens de violência, explicitamente sexuais ou discriminatórios; e que estabeleça critérios de responsabilidade ulterior dos comunicadores ou meios emissores?

A complexidade de todo o processo fez com que o segundo debate ocorresse sem vontade política e com os acordos mínimos, acentuando o confronto já existente entre o governo e os meios de comunicação privados (CERBINO et al., 2012). O fim deste processo complexo vem em junho de 2013, quando o texto (uma versão não exatamente igual à que se havia consensuado) é aprovado na Assembleia Nacional, graças aos votos de 135 assembleístas do Alianza País e 3 independentes.

3. A Ley Orgánica de Comunicación do Equador A Ley Orgánica de Comunicación substitui a Ley del Ejercicio Profesional del Periodista (1975) e representa um ponto do embate que se acentua entre o governo Correa e meios de comunicação privados, que se convertem, respectivamente, em expoentes de dois atores maiores com pontos de vista opostos: a proposta de recuperar o papel do Estado que põem sobre a mesa alguns países 126

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da América Latina e do Caribe e a defesa das posições liberais de atores políticos e econômicos privilegiados pela desregulamentação durante décadas. Mas o que realmente supõem a lei e as políticas públicas englobadas por ela? Nesta seção, vamos fazer uma breve visita aos principais pontos da legislação. I. A redistribuição do serviço de radiodifusão, contida no art. 106, é uma das propostas fundamentais da lei, em consonância com outras leis de comunicação e mídia da região. Seguindo a proposta de outros países da região, a lei equatoriana exige uma redistribuição do serviço de radiodifusão em três partes, de modo que 33% se destine para meios de comunicação públicos, 33% para meios de comunicação privados e 34% reservados para a mídia comunitária. Esse percentual, conforme estabelecido por lei, será alcançado progressivamente, a partir de dados fornecidos pela Comisión de Auditoría de Frecuencias de radio y televisión da Agencia de Regulación y Control de las Telecomunicaciones146, da rescisão das frequências existentes e da retirada de frequências por descumprimento de obrigações ou confiscos. Esta proposta tem o objetivo acabar com o que alguns autores têm chamado na América Latina de “latifúndios midiáticos” (MORA, 2010), um conceito que explica a crescente concentração da propriedade dos meios de comunicação, o que simboliza, de acordo com Mora, a consolidação da associação dos meios de comunicação com os grupos hegemônicos na América Latina. Não em vão, no caso do Equador, vários grandes grupos, relacionados com o poder financeiro, controlavam a propriedade da maioria dos meios de comunicação (CHECA, 2012). II. Criação de órgãos de regulação. Conforme já vimos, a consulta popular respaldou a criação de um Consejo de Regulación, também em consonância com sugestões de instituições internacionais. No entanto, o texto final da lei cria dois órgãos, contidos nos artigos 47 a 59: o Consejo de Regulación y Desarrollo de la Información y la Comunicación (Cordicom), previsto no projeto, e a Superintendencia de la Información y la Comunicación (Supercom), uma nova entidade. Estas instituições são responsáveis por ​​ executar os regulamentos necessários para a implementação da lei, por monitorar seu cumprimento e pela redistribuição das frequências. Ao contrário de outras leis da região, também tem capacidade de regular o conteúdo da mídia (característica que compartilha com a legislação 146 É possível consultar o informe definitivo em http://www.arcotel.gob.ec/ventanilla-del-usuario/ informe-definitivo-de-la-comision-de-auditoria-de-frecuencias/.

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da Venezuela); em particular, além de regular os espaços em que é emitido cada tipo de mensagem, eles controlam a difusão de conteúdo violento, sexualmente explícito e discriminatório, contando para isso com poder de sanção. III. Proteção ao exercício da profissão de jornalista, através do reconhecimento do seu direito à confidencialidade das fontes (art. 40) e o direito ao sigilo profissional (art. 41). IV. Proteção ao cidadão como um consumidor de mídia, através do reconhecimento do seu direito à retificação (art. 23), direito de resposta (art. 24) e a criação da figura de defensor de las audiencias (art. 74), figura obrigatória para os meios de caráter nacional, que deve passar pelo reconhecimento e nomeação previa do Consejo de Participación Ciudadana y Control Social. V. Aposta na profissionalização da atividade jornalística (art. 42-44), através da implementação de um processo de profissionalização; em primeiro momento, isto supõe a titulação dos trabalhadores que passaram anos exercendo o jornalismo e comunicação sem diploma e a necessidade de se criar uma formação específica para o exercício da atividade. Além disso, supõem uma melhoria das condições de trabalho (especialmente econômica) dos profissionais de comunicação. VI. Ainda que a regulamentação da lei não contemple, a legislação incluiu o chamado “linchamento midiático” (art. 26), com o qual se tentava proibir a difusão de “informação que de maneira direta ou através de terceiros seja produzida de forma concertada e publicada reiteradamente através de um ou mais meios de comunicação com o propósito de desprestigiar uma pessoa natural ou jurídica ou reduzir sua credibilidade pública”. Este se tornou um dos artigos mais controversos da lei, ainda que o regulamento não o tenha desenvolvido. VII. Além de regular as faixas de horários e conteúdos discriminatórios, a Ley Orgánica de Comunicación (“LOC”) incorpora outros itens relacionados ao conteúdo, tais como os relativos à produção nacional. Neste sentido, a Seção VI está integralmente dedicada a desenvolver as formas de fomentar a produção nacional nos meios de comunicação, tanto no conteúdo (60% em meios nacionais) como em publicidade ou música.

4. Avaliação e implementação da Lei das Comunicações A aprovação de uma política pública exige acompanhamento e avaliação da sua implementação, o que nos permitirá conhecer o seu real impacto e con128

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tribuir também para complementar o componente estratégico do governo em questão (SUBIRATS, 2005). Uma das maneiras de se fazer uma avaliação correta das políticas públicas é através da aplicação de indicadores e outros instrumentos de avaliação. Entretanto, isso não significa que, na aplicação, é sempre possível contar com um conjunto de indicadores ideais para a avaliação técnica de todas as políticas públicas; pelo contrário, a tarefa requer a construção de categorias que abordem as especificidades de cada caso para uma correta análise individual (SUBIRATS, 2005). No caso da LOC equatoriana, não contamos com indicadores construídos para realizar esta medição, o que dificulta uma avaliação acadêmica; no entanto, mais de dois anos após a vigência da lei, parece ter passado um tempo prudente para produzir algumas avaliações parciais do que está significando a Ley de Comunicación e as decisões do governo Correa em matéria de comunicação para o Equador em diferentes níveis. Em primeiro lugar, cabe destacar a separação dos poderes midiáticos e financeiros, vínculo que se rompe constitucionalmente e que proporcionaria uma maior autonomia para os meios de comunicação, assim como empresas. No entanto, esta proibição – assim como a que afeta a possibilidade de estrangeiros possuírem meios de comunicação no Equador – não impede que cidadãos com propriedades ou interesses financeiros sejam proprietários de maneira indireta, ou seja, através de outro cidadão que não tenha nenhuma ligação com o setor financeiro. Em outras palavras, conseguiu-se desvincular o poder midiático e financeiro de forma direta (inclusive sendo confiscados meios possuídos por tais setores), mas dissolver completamente os fios que unem os setores se mostra uma tarefa mais complexa. Outra etapa importante para a democratização da comunicação, objetivo principal das leis de mídia na América Latina, é a criação de meios de comunicação de propriedade pública, que ficariam afastados de interesses comerciais e, a priori, também partidários, e que viriam para garantir o acesso dos cidadãos a um tipo de informação que outros meios de comunicação não abordam. O artigo 78 da lei define meios de comunicação públicos como: Os meios públicos de comunicação social são pessoas jurídicas de direito público. São criados através de decreto, ordenação ou resolução que corresponda à natureza da entidade pública que os cria.

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Os meios públicos podem se constituir também como empresas públicas no teor do estabelecido na Lei Orgânica de Empresas Públicas. A estrutura, composição e atribuições dos órgãos de direção, de administração, de controle social e participação dos meios públicos serão estabelecdiso no instrumento jurídico de sua criação. Sem embargo, a estrutura dos meios públicos sempre contará com um conselho editorial e um conselho cidadão, salvo no caso dos meios públicos de caráter oficial. Será garantida sua autonomia editorial.

Como uma subcategoria de meios de comunicação públicos, a lei reconhece a figura de meios de comunicação públicos oficiais, que são responsáveis por ​​ “difundir a posição oficial da entidade pública que os cria em relação aos assuntos de sua competência e os de interesse geral da cidadania” (art. 83)147. Na prática, embora haja uma percepção generalizada de que meios de comunicação públicos transmitem a posição do governo e são partidarizados (funcionam como oficiais), alguns estudos iniciais sugerem que não é assim (CHAVERO, 2015). Além da mídia pública e privada, a lei reconhece a existência de meios de comunicação comunitários, o que deve representar 34% do serviço de radiodifusão, e que o Estado ajudará a desenvolver através de um conjunto de políticas de ação afirmativa. No entanto, apesar de haver auditorias que demonstram concessões outorgadas de forma fraudulenta, pouco ou nada foi feito para avançar na redistribuição do serviço de radiodifusão e meios de comunicação comunitários representam apenas 3% da cadeia. O processo de reconhecimento ou criação de uma mídia comunitária não é fácil (a maioria delas eram listadas como meios de comunicação privados – a figura do comunitário não existia até a aprovação da lei), pois não só deve seguir os concursos para a concessão da frequência (convocados pelos órgãos encarregados, neste caso o Consejo de Regulación y Desarrollo de la Información y Comunicación), mas devem se submeter a um complexo processo que, na maioria dos casos, requer uma formação financeira e administrativa da qual carecem. A concorrência em um concurso para concessão de frequências implica, além do processo burocrático em si, a formulação de uma programação de con147 Para uma revisão mais detalhada da composição do sistema midiático equatoriano, ver: CHAVERO, P.; OLLER, M. Políticas públicas en comunicación y sistemas mediáticos. El caso de Ecuador. In: BARREDO, D.; OLLER, M.; HERNÁNDEZ, S. (Coords.). La Comunicación y el Periodismo de Ecuador, frente a los desafíos contemporâneos, 2015.

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teúdos e uma previsão da sustentabilidade financeira, a qual contradiz a própria natureza dos meios de comunicação comunitários, que não têm fins lucrativos e cujos integrantes muitas vezes não são profissionais. Por conseguinte, a concessão de frequências à mídia comunitária torna-se a bastante complicada e atrasa a redistribuição prevista pela própria lei. No que diz respeito à profissionalização, a lei estabelece que “as atividades jornalísticas de caráter permanente realizadas nos meios de comunicação, em qualquer nível ou cargo, deverão ser desempenhadas por profissionais em jornalismo ou comunicação, com exceção das pessoas que tenham espaços de opinão e profissionais ou especialistas de outros ramos que mantenham programas ou colunas especializadas” (art. 42). Atualmente este processo está em curso, liderado pelo Cordicom e por instituições de ensino, que estão conferindo qualificação técnica para os profissionais que trabalham no setor. No final de 2014, estavam inscritos 1.771 profissionais no processo de certificação profissional, de acordo com dados do próprio Cordicom148. Além do mais, este processo tem melhorado as condições econômicas dos profissionais (VIRTUE, 1994; CHAVERO, OLLER, 2015). No que diz respeito às funções dos órgãos de regulação, no final de 2014 haviam emitido 12 regulamentos, conforme dados do Cordicom, mas outros não menos importantes seguem pendentes. Diante disso, a atividade dos órgãos de regulação vem se destacando pela aplicação de sanções, nos últimos dois anos e em graus distintos, na mídia (sobretudo privada), dando ênfase na implementação da parte punitiva da lei, sem desenvolver da mesma forma as partes relativas a ações afirmativas. Até meados de 2015, a Superintendencia de Información y Comunicación, Supercom, havia tramitado 506 processos (tanto por denúncia cidadã ou ex officio). No total, 198 meios de comunicação haviam sido autuados dois anos após a vigência da lei149. Este foco na parte punitiva contribui para o aumento da desconfiança e da deslegitimação dos órgãos reguladores, mas também parece ter alguma influência sobre a própria prática profissional. Não em vão, a lei de comunicação e os organismos de regulação tornaram-se a principal fonte de influência externa reconhecida pelos jornalistas equatorianos; entre outras questões, eles dizem que a ambiguidade ou a incompreensão da LOC os 148 http://www.andes.info.ec/es/noticias/tras-decadas-abandono-trabajadores-comunicacion-empiezantener-reconocimiento-profesional. 149 http://www.telegrafo.com.ec/politica/item/ochoa-198-medios-fueron-sancionados-por-la-supercomde-1-144-registrados-en-el-pais.html.

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tornam muito cautelosos no exercício da profissão, principalmente por medo de sanções (OLLER, CHAVERO, 2015). No lado positivo, a criação desses órgãos significou o aparecimento de uma figura à qual os cidadãos podem provocar caso sintam seus direitos violados. Até o final de 2014, o Cordicom havia atendido 711 consultas cidadãs150, a maioria relativa à aplicação da norma, bem como atribuições e execuções do Cordicom. No entanto, a figura do defensor de las audiencias tem sido mais complicada; embora a lei (e sua regulamentação) a reconheça, a sua implementação teve que ser adiada várias vezes devido à falta de consenso sobre os requisitos e as condições em que o defensor de las audiencias desenvolveria suas atividades (como quem arcaria com os custos de contratação, um dos pontos mais controversos). Uma vez que todos os aspectos são consensuados e a contratação se dá por concurso público, este foi declarado deserto e mais de dois anos após a vigência da lei, os meios de comunicação nacionais ainda não contam com defensores para suas audiências. Um pouco mais de dois anos após a implementação da lei, está sobre a mesa uma das mudanças mais significativas na comunicação no Equador: a proposta do governo para reconhecer constitucionalmente a comunicação como um serviço público, modificação que será discutida na Assembleia Nacional, com previsão para ser votada no final de 2015. O debate em torno desta possibilidade está se deparando com uma polarização, de tal modo que o apoio ou a rejeição pública da ideia de tornar a comunicação um serviço público guarda mais relação com o posicionamento político frente ao governo de Correa que uma análise das implicações da medida. Assim, está para se ver se o intervencionismo estatal no setor da comunicação aumenta com esta medida, chegando a regular os espaços de comunicação até agora fora das funções do Estado (CHAVERO, OLLER, 2014). Se assim for, podemos estar passando de um monopólio dos meios de comunicação privados para um monopólio estatal sobre a comunicação, com o qual não só os meios de comunicação privados seriam desativados, mas também a mídia comunitária. Esta alteração viria a se somar às mudanças na Lei de Comunicação que vêm sendo anunciadas por meses e estavam previstas para serem anunciadas antes do final de 2015. As mudanças na norma poderiam significar um novo 150 http://www.cordicom.gob.ec/wp-content/uploads/downloads/2015/03/Informe-de-Rendición-deCuentas-2014.pdf

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obstáculo para a aplicação da lei e para a sua continuidade, confirmando a premissa de instabilidade institucional que caracterizou, historicamente, o Equador e outros países da América Latina e que acaba por dificultar a consolidação de um projeto.

5. Conclusão Nestas páginas, fizemos um breve percurso pelas políticas públicas em matéria de comunicação que estão sendo implementadas no Equador desde a chegada ao governo de Rafael Correa (e seu movimento Alianza País), lideradas pela Ley Orgánica de Comunicación aprovada em junho 2013. Como vimos, o longo e complicado processo de discussão da Ley Orgánica de Comunicación no Equador foi marcado por várias paralisações e ausência de consenso em torno de alguns dos principais pontos que devia conter a lei. Finalmente, o texto (com algumas modificações frente ao que se vinha trabalhando no projeto) é aprovado em junho de 2013, e sua regulamentação é aprovada em janeiro de 2014. Nestas páginas temos analisado brevemente os principais pontos da norma, que passam por: a redistribuição em três partes do serviço de radiodifusão (33% para públicos, 33% para privados e 34% para comunitários), o reconhecimento de direitos dos cidadãos-consumidores de mídia e dos jornalistas, a criação de órgãos de controle, a profissionalização dos trabalhadores do setor, a regulação de conteúdos, entre outros. A lei completa um processo que começa antes da aprovação da norma, com a desvinculação pela Constituição da República do Equador dos poderes financeiros dos grupos de midiáticos e a criação de meios de comunicação de propriedade pública, bem como os oficiais. A configuração das características da comunicação no Equador ainda não terminou, pois ainda estão pendentes outras ações, tais como o reconhecimento da comunicação como um serviço público, medida que será debatida nos próximos meses na Assembleia Nacional e que seria reconhecida constitucionalmente. As propostas normativas do Equador, no que diz respeito à desconcentração do setor de midiático e ao suporte para comunicação comunitária, são consistentes com a linha de outros países latino-americanos. Todos eles apostam em outro tipo de comunicação, um modelo em que o tecido comunicacional transcende os grandes grupos de mídia e se alimenta da multiplicidade de vozes, muitas provenientes da militância social, e propõe a democratização da palavra 133

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e, com ela, da comunicação, como um modelo latino-americano alternativo ao tradicional, em que uma minoria de grandes conglomerados se apropria da voz de grandes maiorias.

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1. Introdução Muitas das críticas feitas contra a nova Ley de Medios Audiovisuales154 estão afetadas por interpretações pouco afeitas à Constituição. Isso, normalmente, como resultado de se haver previamente partido de uma filosofia política conservadora ou cruamente liberal (filosofias que explicaram, em todo caso, mas nunca justificaram de todo, a Constituição de 1853, mas que dificilmente expliquem ou justifiquem a de 1994); ou de visões da democracia que pouco têm relação com nossos mais elementares acordos na matéria. Neste breve escrito, gostaria de definir alguns princípios muito básicos de interpretação constitucional, destinados a nos ajudar a pensar, especialmente, sobre a concepção que abraça a Constituição argentina155 em matéria de liber-

151 Artigo publicado, em espanhol, na Revista Argentina de Teoría Jurídica, Vol. 14 (Julho de 2013). Texto traduzido do original por Enzo Bello: Pós-doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto da Faculdade de Direito e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Integrante do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Constitucionalismo Latino-Americano (LEICLA). Editor-chefe da Revista Culturas Jurídicas (www.culturasjuridicas.uff.br). Consultor da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior (CAPES). 152 Mestre e Doutor em Direito pela University of Chicago. Professor da Universidad de Buenos Aires e da Universidad Torcuato di Tella. Diretor da Revista Argentina de Teoría Jurídica. Blog: http:// seminariogargarella.blogspot.com.br/. 153 Agradeço de modo muito especial a Julián Rotenberg e, sobretudo, a Nahuel Maisley pelo excepcional apoio que me brindaram na escrita deste texto. 154 Doravante “Ley de Medios”. 155 NT: optou-se por traduzir a expressão “nuestra Constitución” por “Constituição argentina”, de modo a melhor contextualizar a narrativa do autor. O mesmo vale para a expressão “nuestro constitucionalismo”, que foi traduzida por “constitucionalismo argentino”.

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dade de expressão. A partir dessa base, entendo que podemos estar em melhores condições para deixar de lado muitas das críticas que foram feitas à Ley de Medios, mas também, ao mesmo tempo, para reconhecer os gravíssimos problemas de redação e implementação que a afetam.

2. Princípios: filosofia política e concepção de democracia Minha proposta de interpretação constitucional parte de princípios muito básicos, suscetíveis de sofisticações conhecidas, que não necessito desenvolver para os propósitos deste trabalho156. Preliminarmente, entendo que a Constituição é – e deve ser entendida e mantida como – um pacto entre iguais. Ver a Constituição como um pacto entre iguais significa, primeiramente, que nada do que é expresso por ela deve ser visto como compatível com a afirmação ou amparo de desigualdades injustificadas. A Constituição é o pacto fundacional que configura nossa comunidade, e esse pacto republicano e igualitário rechaça tomar como dadas diferenças moralmente irrelevantes: do ponto de vista da Constituição, ninguém valerá menos, então, por nascer no Sul ou no Norte; por pensar como um federalista ou como um centralista; por subscrever ou não a religião dominante etc. Isto é o que gera o que Ronald Dworkin chamou de uma obrigação de igual consideração e respeito (DWORKIN, 1984). Este igualitarismo constitucional, pelo afirmado acima, já se distingue de modo significativo de duas das principais filosofias políticas que estiveram por trás da redação original da Constituição argentina: o conservadorismo e o liberalismo. O anti conservadorismo da Constituição é observado, facilmente, como implícito nas breves linhas anteriores. Diferentemente do que historicamente propôs o conservadorismo, a Constituição não reconhece as diferenças de religião, gênero, classe ou etnia como diferenças moralmente relevantes. Sob seu império não há reis, nem sangue azul, nem religião, nem raças superiores, nem pessoas que, por razão de seu gênero, mereçam um respeito superior ou inferior. Essa era a ideologia do conservadorismo, mas não é a ideologia da Constituição. E a ideologia da Constituição tampouco é o liberalismo, ao menos o liberalismo do século XIX que esteve por trás do afloramento da Constituição de 1853. Dito liberalismo – claramente, na versão de Juan Bautista Alberdi – era

156 Para tanto, veja-se: NINO, 1984.

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radicalmente antiestatal; hostil aos direitos sociais; crítico da participação das maiorias na política157. Nenhum desses núcleos duros do velho liberalismo pode ser considerado atualmente como parte integrante da Constituição: estão ausentes as razões públicas capazes de apoiar semelhantes reclames (RAWLS, 1991). Ademais, e o que talvez para muitos seja o mais importante, a Constituição de 1994 acabou com os compromissos ideológicos do liberalismo do século XIX, banindo-os de seu texto. Na atualidade, os direitos sociais são uma parte central, sólida, indubitável de seu corpo; do mesmo modo que o sufrágio universal, obrigatório e secreto – no qual cada pessoa conta como um, e somente como um voto – representa um aspecto indissociável do constitucionalismo argentino. Ademais, a atual Constituição não pode ser considerada estatal nem antiestatal: o arranjo institucional que se escolha a respeito deverá ser, simplesmente, o que instrumentalmente resulte mais ajustado a respeito dos direitos de todos e à garantia do autogoverno coletivo. Definitivamente, a coluna vertebral da Constituição argentina (me animaria a dizer, de qualquer Constituição democrática e republicana) reside na igualdade: ali dentro alojada a filosofia política da Constituição. Esta filosofia política igualitária nos ajuda a assinalar uma determinada concepção de democracia, à qual a Constituição se encontra atada. Apressar-me-ia a dizer que a mesma tem relação com o que Nino chamara de uma concepção deliberativa da democracia (NINO, 1996). De todo modo, outra vez, não necessito chegar tão longe para assinalar o que me interessa apontar. Basta-me afirmar que a concepção de democracia própria da Constituição argentina deve ser consistente, ao menos, com a ideia básica de igualdade da qual partimos. Somente esse fato já resulta relevante. Dali deriva, por exemplo, que a Constituição está interessada, antes de tudo, nas pessoas – os indivíduos – situadas em pé de igualdade: o que importa são elas, antes dos grupos aos quais eventualmente pertençam, e muito antes que os “poderes fáticos” que possam estar interessados em definir as orientações centrais da política pública. Esta ideia elementar resulta especialmente relevante no momento de se pensar em teoria da democracia. Para se avistar o seu conteúdo, pense-se no seguinte: alguém poderia dizer que a Constituição estadunidense nasceu atada a uma concepção de democracia diferente – que alguns descreveram como pluralista (DAHL, 1963). Tal concepção parecia estar voltada, sobretudo, aos 157 Em geral, veja-se: ALBERDI, 1920.

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grupos ou facções em que se encontrava dividida a sociedade, e aparecia orientada fundamentalmente a prevenir as mútuas opressões entre tais facções. Tratava-se, como uma vez afirmara Carlos Nino, de uma concepção “negativa” de democracia (NINO, 1996, p. 81). Para dizê-lo de um modo mais cru: o que se pretendia era reconduzir constitucionalmente a virtual guerra civil, conferindo patamar constitucional efetivo a cada uma das facções dominantes, e um poder institucional equivalente (metaforicamente, armas de calibre semelhante) a cada uma delas, de modo a assegurar a manutenção de uma “paz armada”. Ali, nessa – negativa, limitada, pobremente igualitária – leitura da democracia, reside, por exemplo, a essência do sistema de freios e contrapesos, que pode ser vista como a essência da Constituição estadunidense. Pois bem, a Constituição argentina de 1994 não merece nem deve ser lida sob o prisma de uma concepção de democracia desse tipo. Sua pretensão crucial não é a de dar abrigo e resguardo ao poder fático, mas a de permitir que a vida das pessoas seja o resultado do que elas decidam para suas vidas individuais e coletivas. Isso resta evidenciado, por exemplo, no duplo compromisso valorativo que marca a vida do constitucionalismo argentino: o compromisso com a autonomia individual e o compromisso com o autogoverno coletivo. O primeiro se expressa centralmente na declaração de direitos – a “parte dogmática” da Constituição –, enquanto o segundo encontra seu lugar primordial na organização da maquinaria democrática ou “parte orgânica” deste documento fundacional (GARGARELLA, 2005). Isso, como entendo, remete-nos à ideia principal da já citada postura democrática deliberativa: os assuntos públicos devem ser resolvidos – não a partir da decisão de uns poucos, nem de um acordo entre os grupos mais poderosos da comunidade, mas – conforme uma discussão que envolva todos os potencialmente afetados pela decisão que se vai tomar (HABERMAS, 1998). Nessa discussão igualitária, nenhuma pessoa vale mais que outra: todas se encontram situados em pé de igualdade. A partir dessa concepção – caso se queira, “positiva”, da democracia, dois são os elementos a serem salientados. Por um lado, a ideia de discussão pública, que contrasta, de modo mais óbvio, com a de “imposição de alguns”, mas também com a de “arranjo entre os grupos mais poderosos”, ou a de “negociação atrás da cena” (SCHMITT, 1992). A discussão pública vem a ser o meio “natural” do autogoverno coletivo que, obviamente, deve passar em algum momento por um processo de agregação de preferências, como o sufrágio. Mas essa votação não pode deixar de estar precedida da dis140

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cussão, que resulta imprescindível para que – no marco de uma comunidade de pessoas com racionalidade limitada e conhecimentos imperfeitos – cada uma clarifique suas próprias ideias, contraste-as com as das demais, aprenda com as outras, de modo que lhes deixe conhecer as razões de seus pontos de vista. O outro elemento central dessa visão da democracia é a inclusão de todos os afetados. Como aqui se parte – como partia John Stuart Mill, como partia Carlos Nino – do pressuposto de que cada um é o melhor juiz de seus próprios interesses, logo, é possível chegar à conclusão de que a ausência de certos pontos de vista da discussão dos assuntos comuns (e, obviamente, muito pior, como ocorre em democracias como a argentina: a ausência sistemática de certos pontos de vista) gera riscos muito altos de que a decisão não resulte imparcial. Em outros termos, gera o risco de que tal decisão seja enviesada indevidamente em favor dos (poucos ou privilegiados) que controlam o processo de tomada de decisões. A ideia de inclusão ampla contrasta com a aproximação que era própria das versões conservadoras da democracia elitista – como a que podia defender Edmund Burke, na qual a discussão se concentrava na elite dominante, nos “poucos iluminados” ou the wise few (BURKE, 1960). Assim, do mesmo modo que a noção de “discussão pública” contrasta com as abordagens meramente “populistas” sobre a organização do poder (abordagens tão em voga, ainda hoje, na região). Princípios como os citados podem ser de uma enorme ajuda, no momento de se pensar os conteúdos, alcances e limites dos diferentes artigos da Constituição.

3. Direitos: princípios constitucionais para a liberdade de expressão Nesta seção, mostrarei de que forma os princípios examinados no item anterior impactam a estrutura constitucional, particularmente na seção dedicada aos direitos. Deter-me-ei, de modo especial, a analisar de que modo eles nos ajudam a precisar o significado do fundamental direito à liberdade de expressão acolhido na Constituição argentina. Ao longo da história, entendo que foram sendo oferecidas várias leituras possíveis a respeito do catálogo de direitos e, muito em particular – no caso que nos ocupa – da liberdade de expressão. Existiu uma ainda presente, mesmo que debilitada, leitura conservadora da liberdade de expressão, 141

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que pretendia submetê-la a princípios aparentemente supra constitucionais, como os relacionados à religião majoritária ou (invariavelmente) verdadeira. Dalí derivaram decisões judiciais de todos os níveis, que aceitaram o estabelecimento de estritos limites sobre as denominadas publicações e exibições obscenas (caso Musotto da Câmara Nacional no Criminal e Correcional, no qual se apelara à necessidade de evitar a “corrupção e desintegração social”); o cristianismo foi invocado como razão para limitar os direitos dos homossexuais (caso CHA); ou foi considerada constitucional a restrição à circulação de publicações ideologicamente desafiantes, que foram tidas como contrárias à moral estabelecida (caso Bertotto). Vale dizer, tratou-se ou trata-se de uma visão ideológica que cruzou toda a história constitucional argentina e que teve impacto tanto sobre questões de moral privada como pública, esferas sobre as quais se procurou instalar firmes limites relacionados com valores religiosos e princípios de moralidade puritana. Esta proposta de interpretação constitucional encontra mais dificuldades, na atualidade, para ser invocada em decisões judiciais e do poder público, mas de nenhum modo pode ser considerada deslocada da vida institucional argentina. A sorte do liberalismo – um liberalismo em geral vinculado à defesa do estado de coisas dominante – foi diferente, sobretudo como fundamento de razões públicas invocadas pelos poderes de Estado e, em particular, pelo Poder Judiciário. Todavia, assume-se – com razão – o peso da ideologia liberal como ideologia primária nas origens do constitucionalismo, e dali se derivam, sem muito mais, e como se fosse suficiente, razões para ler a estrutura dos direitos a partir da ótica de um prisma liberal. Certamente, há razões independentes e compatíveis atualmente que permitem reconhecer peso próprio à leitura liberal da Constituição: o liberalismo encaixa bem na genuína preocupação existente em se assegurar (ao menos) um dos compromissos fundamentais da Constituição – aqui assumidos –, relacionado com a proteção da autonomia individual. Sem embargo, e pelo mesmo motivo, esse tipo de liberalismo não resulta especialmente atrativo para satisfazer o outro grande compromisso constitucional relacionado com o autogoverno coletivo. Pelo contrário, resultará um problema querer aplicar – como alguns tentam – os mesmos princípios aplicáveis sobre as vidas particulares no âmbito da vida pública. Em outros termos, o respeito à prioridade da escolha particular, que pode resultar defensável em termos da escolha de planos de vida individuais, não deve ser utilizado sem mais como princípio organizador da vida coletiva. 142

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Produto da mencionada aproximação desafortunada ao liberalismo é a também desafortunada leitura do direito de liberdade de expressão na chave liberal (ou, mais precisamente, liberal-conservadora). O que se diz, então, é que a liberdade de expressão requer (também) o “deixar fazer”, ou seja, que as palavras protetivas que dedica a Constituição à livre expressão implicam que (estritamente) nada pode ser feito na matéria (sobre o art. 32: “não restringir significa não restringir”, “não estabelecer a jurisdição federal sobre ela implica não estabelecer a jurisdição federal”); que “a melhor regulação em matéria de imprensa é a que não existe”. Não é esse enfoque, sem embargo, o que aqui se propicia, a partir do assumido compromisso com uma filosofia política igualitária e uma concepção robusta (deliberativa) da democracia. Contra a aproximação liberal assinalada, que recupera para a esfera pública o princípio do laissez faire, aqui se reivindica outro diferente, que implica ler a liberdade de expressão como um compromisso, em primeiro lugar, com um debate público robusto. Esta última interpretação parece “naturalmente” derivada de pontos de partida como os acima referidos: no momento de se tomar decisões públicas, ninguém está em condições de definir para todos o que é o que se deve fazer para o benefício comum; todos temos uma racionalidade e conhecimentos limitados; pertencemos a uma sociedade plural, composta por pessoas que razoavelmente diferem quanto aos seus ideais políticos, convicções pessoais, projetos de vida. Em resumo, necessitamos – de modo indispensável – da oportunidade de discutir e nos colocarmos de acordo sobre o que mais nos importa, e que refere a questões em torno das quais razoavelmente diferimos. As ideias de igualdade e democracia como discussão, então, aparecem entrelaçadas no espaço comum que as reúne. Afortunadamente, uma leitura como a sugerida forma parte central do texto escrito da Constituição argentina, que em numerosas oportunidades deixa claro seu aberto compromisso com a deliberação pública, e a ideia de que as decisões normativas devem resultar de um debate político coletivo (pense-se, por exemplo, em textos como os dos artigos 78; 83; 100, inc. 9; e 106). Afortunadamente, também, essa leitura deriva de algumas das decisões judiciais mais relevantes na história universal da liberdade de expressão – pense-se no caso New York Times vs. Sullivan – retomadas amplamente na Argentina; o que é assim advertido por alguns dos doutrinadores mais notáveis em matéria de liberdade de expressão – pense-se nos trabalhos de autores como Owen Fiss (1996, 1987) ou Cass 143

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Sunstein (1995). Não se trata, de todo modo, de se apoiar em argumentos de autoridade, porque isso não é necessário. Insisto: em uma sociedade de iguais, na qual se deseja levar a sério a diversidade de pensamentos e preferências existentes, é difícil não considerar que as decisões não devam resultar senão de um acordo deliberado, coletivo. A ideia de debate público robusto, como princípio fundamental em matéria de interpretação de liberdade de expressão, tem muitas e, em geral, óbvias implicações, que explorarei com maior detalhe adiante. Neste momento, sem embargo, adianto o seguinte. Primeiramente, essa ideia de debate público requer ações, mais do que “deixar fazer”. Requer, em particular, ações de um determinado tipo, relacionadas especialmente com os princípios de inclusão e debate público, em um marco social que segue fortemente caracterizado por situações de marginalização e exclusão social, e práticas de imposição e negociação por trás da cena. Mais especificamente, requer ações dirigidas à mudança social, e orientadas, portanto, a confrontar uma estrutura organizacional erigida sobre desigualdades históricas, injustificadas, e que cotidianamente reforçam e reproduzem a fratura existente na sociedade. Do contrário – e para dizê-lo de modo mais direto – o princípio do “deixar fazer” – como princípio para interpretar a liberdade de expressão – em um contexto marcado pelas desigualdades injustificadas, significaria se comprometer com a preservação e o predomínio dessas desigualdades (FISS, 1986).

4. Prática: liberdade de expressão na Ley de Medios Diante do descrito e examinado acima, estamos em melhores condições para estudar a nova Ley de Medios, como também os primeiros passos dados na sua implementação. A respeito, e em primeiro lugar, poderia ser ressaltada a pobreza de algumas das críticas que prontamente surgiram contra tal lei. À luz dos princípios enunciados, não resulta interessante a objeção de que a lei viola o art. 32 da Constituição porque o Congresso não deve ditar “leis que restrinjam a liberdade de expressão ou estabeleçam sobre ela a jurisdição federal”. Por um lado, e contra tal argumento, merece ser recordado que a liberdade de expressão não deve ser lida à luz de um princípio de laissez faire, que converte em direito vigente um estado de coisas desigual e injustificado, propiciador da ideia de que “a melhor Ley de Medios é a que não existe”. Contra essa interpretação, 144

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propomos aqui outra que exige o contrário: a liberdade de expressão se realiza somente quando são postas em marcha as condições de um debate público “robusto, vigoroso, desinibido” (conforme os termos do famoso caso New York Times), pelo qual deve-se dar boas vindas – ao invés de se rechaçar – a todas aquelas medidas capazes de tornar o debate mais inclusivo e mais amplo. Na linha do que afirmou a Suprema Corte estadunidense na decisão do caso Red Lion, poderíamos agregar que “já haverá tempo suficiente para invalidar a norma, se em seus efeitos concretos a mesma termina limitando, e não expandindo, o universo de vozes”. Em outros termos, e para encerrar este primeiro ponto, o art. 32 não vem a fulminar qualquer norma relacionada com a liberdade de expressão, mas a obstar aquelas que se dirijam a “restringir” a livre expressão, o que significa dizer que habilita as que buscam dar força à deliberação pública. Em sentido similar, tampouco parece interessante a maioria das coisas que se disse, em crítica à Ley de Medios, e em nome da propriedade privada e dos direitos adquiridos. O direito de propriedade é, na melhor das hipóteses, um direito instrumental e subordinado na hierarquia institucional, submetido a certas prioridades relacionadas com outros direitos mais básicos. Assim, a dignidade humana prima, e por isso ninguém pôde ver um problema na abolição da escravatura em termos constitucionais. Mesmo assim, é pouco o que pode dizer a ideia de direitos adquiridos frente a qualquer sensato intento que faça o poder público para a regulação dos abusos empresariais, dos empreendimentos monopólicos ou oligopólicos, das manobras destinadas a enganar usuários ou consumidores. Outra vez, a Constituição saúda e celebra a chegada de normas regulatórias da propriedade, destinadas a favorecer uma vida pública mais respeitosa de nossa igual dignidade – simplesmente, o que não é sempre óbvio, na medida em que o sejam. O fato de que a lei tenha uma origem “conjuntural”, que oculte intenções não atendíveis, que tenha em vista um conflito particular – o conflito existente entre o governo e o Grupo Clarín – tampouco nos serve para descartar o valor da Ley de Medios. Tudo isso forma parte da vida habitual e previsível de qualquer norma. Ela nascerá promovida, de modo habitual, por disputas e iras particulares, e o que importa é reconhecer se ela pode ser sustentada por razões públicas, atendíveis por todos, com independência de qual tenha sido seu ponto de origem (claramente, não seria aceitável o caso de que se tratara de uma “lei feita com nome e sobrenome”, isto é, uma lei basicamente dirigida a favorecer ou a afetar, de modo não razoável, uma pessoa ou grupo). 145

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O mesmo que se pode afirmar a respeito de algumas das principais críticas feitas à Ley de Medios pode se dizer de alguns dos principais respaldos que recebeu. Afirmou-se, em seu favor, que a Ley foi – como poucas leis – o resultado de um amplo consenso e debate, dentro da sociedade civil. Esse debate e esse acordo teriam abarcado organizações não governamentais, grupos de ativismo social, organismos de direitos humanos e especialistas em comunicação – um acordo que teria ficado plasmado nos chamados “21 pontos básicos. Em direção a uma nova lei de radiodifusão”158. De modo tão ou mais relevante, a elaboração da Ley havia estado rodeada – como poucas vezes – de uma chamada prévia para audiências públicas no órgão legislativo, que havia permitido se conhecer o ponto de vista dos mais destacados advogados e especialistas na matéria. Lamentavelmente, e contra o sugerido, entendo, por um lado, que a distância entre a Ley de Medios e os “21 pontos” resultou demasiado ampla. Isso, sobretudo, em questões centrais do acordo, como as referidas à independência e à não concentração de meios de comunicação, bem como à presença de meios de comunicação públicos não governamentais159. Mais grave foi o que ocorreu na esfera legislativa, na qual – uma vez mais – o Congresso foi o cenário de um desfile apressado – um amontoamento – de vozes diversas, que de nenhum modo – insisto, de nenhum modo – foram levadas em conta para a construção da decisão final. A Ley de Medios foi escrita de costas para tais vozes, o que representa uma dupla afronta ao ideal deliberativo. Não se trata, simplesmente, de que a decisão legislativa foi feita sem atender às objeções e propostas apresentadas pelas pessoas consultadas. Essas vozes consultadas terminaram servindo para revestir de legitimidade e amplitude uma Ley que pôde ter sido escrita, perfeitamente, na ausência de tais processos de consulta160. Ou seja, produziu158 Cf. http://www.paralavictoria.com.ar/documentos/21puntos.pdf 159 Apoio-me aqui em uma notícia de Ramiro Álvarez Ugarte, que pode ser encontrada em: http:// seminariogargarella.blogspot.com.ar/2009/09/el-proyecto-oficial-frente-los-21.html 160 A postura da Red Nacional de Medios Alternativos – inicialmente uma ferrenha defensora do projeto – é muito gráfica a respeito deste processo. Em um documento de maio de 2010, reconhece que “aceitando as regras do jogo impostas pelos impulsionadores da lei, participamos de fóruns e debates, que em muitas ocasiões consistiram simplesmente em exposições em defesa do projeto de lei.” E logo narra que: “às portas da aprovação definitiva do projeto, concebemos que a maioria das modificações que apresentamos em fóruns e audiências não havia sido incluída”. Veja-se o Documento de 14 de maio de 2010 da Red Nacional de Medios Alternativos, “Posición de la RNMA sobre la Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual”, disponível em: http://www.rnma.org.ar/nv/index.php?option=com_ content&task=view&id=997&Itemid=29.

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-se então –justamente contra o que dizem os defensores da Ley de Medios – um abastardamento e uma burla ao procedimento de deliberação democrática. Em termos procedimentais, a Ley de Medios não foi um bom exemplo do que o modelo da deliberação exige, senão uma amostra das manipulações que rechaça. Mas o que dizer da Ley de Medios em termos substanciais? Ainda que sejam muitas as questões que poderiam ser mencionadas a esse respeito, aqui me limitarei a assinalar umas poucas, de especial relevância para o ponto de vista teórico pelo qual se advoga. Em geral, poderia se dizer que a Ley de Medios era necessária e desejável – uma dívida da nova democracia argentina, que havia tentado infrutiferamente chegar a produzir uma norma semelhante7. Isso, em particular, tendo em conta os modos com que – graças à ação de sucessivos governos (incluindo, em particular, os de Carlos Menem e Néstor Kirchner) – foram favorecidas a privatização e a concentração da palavra, no marco de sociedades cada vez mais desiguais.

5. Valores: crítica à Ley de Medios A partir do paradigma igualitário e deliberativo que ao longo deste trabalho tenho defendido, três são as questões fundamentais que proporia levar em conta, prioritariamente, para valorar a Ley de Medios adotada, e a prática que começou a ser gerada a partir da sua edição: (i) a igualdade; (ii) a inclusão de vozes tradicionalmente ausentes; e (iii) a promoção do debate público. Entendo que os três valores fundamentais definidos pela perspectiva escolhida resultaram prejudicados, mais do que favorecidos, pela sanção e aplicação da Ley de Medios. O princípio igualitário, cabe esclarecer, não requer que todos os atores no cenário dos meios de comunicação tenham peso idêntico – não se defende aqui um sentido absoluto, rígido ou torpe de igualdade –, nem, muito menos, resiste a possibilidade de que o Estado se converta no principal agente regulador na matéria. Mas, conforme aclaramos, em um contexto de desigualdade estrutural e injustificada, resulta exigível a intervenção ativa e orientada do Estado contra esse estado de coisas injusto. O primeiro grande problema da Ley de Medios, sem embargo, deriva do modo com que persistentemente tendeu a confundir o Estado com o governo de momento. Como resultado disso, ao invés de insistir – como havia feito o projeto de Ley de Radiodifusión do Consejo 147

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para la Consolidación de la Democracia – na formação de comissões parlamentares plurais, ou comissões de especialistas e representantes da cultura, a Ley de Medios tendeu a deixar nas mãos do Poder Executivo o controle das principais ferramentas de aplicação e supervisão da norma161. Assim ocorreu, de modo especial, com a Autoridade Federal de aplicação da Ley de Medios – Autoridad Federal de Servicios de Comunicación Audiovisual (AFSCA) –, que veio a estar sob a órbita do Poder Executivo (título II, cap. 1 da Ley)162; com o Diretório da 161 Um documento de setembro de 2009, elaborado pela Asociación de Derechos Civiles (ADC), analisa em profundidade este aspecto da lei, e conclui que “no desenho institucional proposto se observam sérias deficiências que têm relação, principalmente, com a falta de autonomia que a Autoridad Federal de Servicios de Comunicación Audiovisual (AFSCA) – verdadeiro órgão decisório –, apresentaria frente ao Poder Executivo Nacional devido, em grande medida, à composição e estrutura de seu Diretório”. Segundo a ADC, trata-se de uma questão chave na regulação da matéria, dado que uma “autoridade de aplicação autônoma, que esteja protegida contra a indevida interferência política e de outra índole, é a única maneira de garantir um marco plural, diverso e democrático nas comunicações audiovisuais. O projeto elaborado pelo Poder Executivo não satisfaz esse critério e apresenta notórios equívocos. Se bem a proposta inclui aspectos positivos, estes ficam opacos pela falta de autonomia da nova autoridade de aplicação. Em sua redação atual, a Autoridad Federal de Servicios de Comunicación Audiovisual estaria integrada por uma maioria de membros designados pelo Poder Executivo, ficando sob o controle e a influência do governo de momento. A ADC considera que isso seria prejudicial, já que a falta de autonomia poderia impedir o exercício independente de sua função e, por conseguinte, atentar contra a liberdade de expressão”. Veja-se o Documento “Aportes para la discusión legislativa sobre una nueva ley de servicios de comunicación audiovisual. Observaciones sobre autoridades de regulación y medios públicos” da Asociación de Derechos Civiles, de setembro de 2009, disponível em: http://www.adc.org.ar/download.php?fileId=456. A ADC não foi a única a se expressar com preocupação a respeito deste tema. O responsável pela região do Committee to Protect Journalists, uma ONG que promove a liberdade de expressão em nível global, afirmou que “Enquanto esta legislação representa una melhora significativa em relação à lei da ditadura que substituiu, preocupa-nos que sua implementação pode ficar submetida à manipulação política”. As declarações foram feitas no momento da implementação da lei, e não só levaram em conta o texto da norma, mas também a prática do governo a respeito dela: “Sobre a base das recentes designações propostas para a autoridade de aplicação, preocupa-nos sua eventual autonomia. Seguiremos monitorando sua implementação para assegurar que a lei cumpra os objetivos propostos de criar um ambiente midiático mais plural e diverso”. Veja-se: http://cpj.org/es/2009/12/argentina-elcpj-monitorea-implementacion-de-nueva.php. 162 Afirma a ADC a respeito: “A independência deste organismo é de particular relevância para a adequada consecução de todas as suas funções. Entre elas é de especial menção que, de acordo com as disposições do artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, é fundamental que os processos de designação das licenças sejam abertos, públicos e transparentes, submetam-se a requisitos justos e equitativos que não imponham barreiras desproporcionais ou não equitativas de acesso aos meios de comunicação, e que se evite a designação, a retirada ou a não renovação das licenças por razões discriminatórias ou arbitrárias. Para que tudo isso seja possível é essencial uma autoridade de aplicação livre de pressões, tanto governamentais como de grupos econômicos e empresariais.” Em particular, neste caso, “a autoridade de aplicação deve gozar de autonomia, possuir

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AFSCA, que ficou composto por 7 membros designados – em sua totalidade – pelo Poder Executivo (art. 13); e com a prática da norma, que terminou sendo ainda mais favorável ao poder governamental de momento, dada a negativa do Executivo em designar algum dos membros que deviam ser propostos pela (terceira) minoria parlamentar163. A forte e muito grave dependência que se criou entre o Poder Executivo e os órgãos de aplicação e interpretação da Ley de Medios afetam seriamente o caráter democrático da norma, em termos deliberativos. Cabe destacar que critérios como os que aqui utilizamos para avaliar a norma são inteiramente coerentes com os exigidos pela Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos, para levar a cabo os processos de designação e regulação de licenças. Para a Relatoria, resulta imprescindível que tais tipos de processos sejam orientados por um órgão técnico, independente do governo, e com capacidade de se manter autônomo frente às pressões políticas de conjuntura164. Todos esses requisitos – todos – resultam violados gravemente pela letra e prática da nova Ley de Medios. uma estrutura que balanceie adequadamente a possibilidade de atuar de modo operativo e eficiente, e contar com uma representação plural. E isso porque somente dessa maneira poderá favorecer um marco plural, diverso e democrático nas comunicações audiovisuais”. Como consequência disso, a ADC propõe que devem ser realizadas sete modificações no texto da norma: a) que não dependa da Secretaría de Medios; b) que o Poder Executivo Nacional não eleja a maioria de seus membros; c) que a nomeação dos membros permita algum processo de participação cidadã; d) que a duração dos mandatos dos diretores não coincida com os presidenciais; e) que se detalhem as incompatibilidades dos diretores; f) que os diretores gozem de benefícios de estabilidade em seus cargos; e g) que sejam publicadas todas as decisões da AFSCA. 163 Não apenas a estrutura “política” da AFSCA responde majoritariamente ao oficialismo, senão que, na prática, também o funcionalismo técnico da entidade forma parte, em sua maioria, do partido do presidente do órgão, Martín Sabbatella. De fato, a AFSCA retém de 60 de seus empregados 8% de seus salários para financiar o Partido Nuevo Encuentro (veja-se: http://www.clarin.com/politica/ Sabbatella-recauda-AFSCA-partido_0_886711389.html). 164 Especificamente, a Relatoria afirma que “Neste processo é necessário garantir que não sejam impostas barreiras desproporcionais ou não equitativas de acesso aos meios de comunicação e que se evite a designação, a retirada ou a não renovação das frequências ou licenças por razões discriminatórias ou arbitrárias. É essencial que todo o processo de designação e regulação esteja orientado por um órgão técnico independente do governo, que goze de autonomia frente a pressões políticas conjunturais, e que se encontre submetido a todas as garantias do devido processo e que se submeta ao controle judicial”. Veja-se: http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/cd/sistema_interamericano_de_derechos_humanos/ index_AHDLE.html. A postura da Relatoria tem sustentação, por sua vez, em precedentes do sistema europeu de direitos humanos. Em 1986, a Comissão Europeia de Direitos Humanos afirmou que “Os Estados não têm uma margem de apreciação ilimitada a respeito dos sistemas de licenças. Em que pese que as empresas

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O segundo critério mencionado tinha relação com a capacidade da nova Ley para tornar a discussão pública mais inclusiva. Em princípio, outra vez, as promessas da Ley de Medios na matéria resultaram mais que significativas. Primeiramente, o texto da Ley se ocupa insistentemente das organizações sem fins lucrativos, e – de modo mais específico – no art. 89, inc. f, reserva “trinta e três por cento (33%) das localizações radioelétricas planificadas, em todas as faixas de radiodifusão sonora e de televisão terrestres, em todas as áreas de cobertura para pessoas de existência ideal sem fins lucrativos”. Lamentavelmente, sem embargo, e logo após de mais de três anos de aprovação da Ley de Medios, tais organizações seguem sendo as grandes esquecidas pela norma165. de radiodifusão não tenham a garantia de nenhum direito a uma licença sob a Convenção, é o caso, sem embargo, de que a recusa de uma licença por parte de um Estado não deve ser manifestamente arbitrária ou discriminatória, e, portanto, contrária aos princípios enunciados no Preâmbulo da Convenção, e aos direitos contidos nela. Por essa razão, um sistema de designação de licenças que não respeite os requisitos de pluralismo, tolerância e amplitude de critério sem os quais não há sociedade democrática possível (…) infringiria o artigo 10, parágrafo I da Convenção”. (Comisión Europea de Derechos Humanos, Application 10746/84 Verein Alternatives Lokalradio Bern v. Switzerland, (1986), p. 139-140.) Em 2007, a Corte Europeia de Direitos Humanos retomou esses argumentos e entendeu em um caso que a Bulgária havia violado a Convenção, dado que seu sistema de designação de licenças não dava suficientes garantias de falta de arbitrariedade: “a Corte nota que o NRTC [o equivalente búlgaro à AFSCA argentina] não realizou nenhum tipo de audiência pública e que suas deliberações foram mantidas em segredo, inclusive apesar de uma ordem judicial de que forneça aos demandantes uma cópia das minutas dessas deliberações”. (Corte Europea de Derechos Humanos, Glas Nadezhda EOOD and Anatoliy Elenkov v. Bulgaria, no. 14134/02, ECHR 2007). Em 2008, em um caso similar, a Corte afirmou que “a forma com que se aplicam os critérios de designação de licenças no processo de designação de licenças deve prever suficientes garantias contra a arbitrariedade, incluindo a argumentação adequada das autoridades de suas decisões denegando uma licença de radiodifusão” (Corte Europea de Derechos Humanos, Meltex Ltd and Mesrop Movsesyan v Armenia (App. No. 32283/04), judgment of June 17, 2008 ECtHR). 165 Conforme um dos principais especialistas na nova Ley de Medios, Martín Becerra, um dos problemas mais graves que afetam a prática da nova normativa tem relação com o “esquecimento dos setores sem fins lucrativos como destinatários centrais da política de meios de comunicação”. Veja-se: http://www. perfil.com/ediciones/2013/1/edicion_745/contenidos/noticia_0004.html. O esquecimento se distingue, claramente, analisando o apoio econômico previsto pelo Estado aos meios alternativos. Como destacam Henkel e Morcillo, “A lei deixa aberta, ante a total omissão de precisões, a definição a respeito das “prestadoras sem fins lucrativos”, colocando em igualdade de condições os meios populares, comunitários e alternativos com, por exemplo, a Igreja e as ONGs financiadas pelos mesmos grandes multimeios que hoje o governo afirma enfrentar. Ao mesmo tempo, nenhum parágrafo da nova lei garante uma forma de financiamento e de acesso aos recursos técnicos e materiais que os meios populares requerem para poder desenvolver suas atividades, pelo que qualquer variável de desenvolvimento independente dos mesmos ficara submetida, como na atualidade, às pressões da publicidade oficial ou privada. Somente um terço do espaço será reservado para as organizações sem fins lucrativos, enquanto os 66% restantes serão administrados pelo Estado Nacional e os grupos privados em

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Uma ilustração especialmente relevante, em tal sentido, foi que as autoridades do caso tiveram que deixar “sem efeito” o concurso público mais importante dos que haviam aberto, buscando instalar 220 novos canais de televisão em todo o país, por falta de interessados. Foi unânime, então, o reconhecimento de que o caráter “deserto” da concorrência se deveu, centralmente, ao alto custo dos encargos necessários para participar do certame (originalmente, entre 70.000 e 140.000 pesos na Capital Federal, e 42.000 e 105.000 pesos166 na província de Buenos Aires, conforme a zona e a quantidade de habitantes)167. Esses altos custos deixaram fora da participação uma enorme quantidade de organizações não governamentais e afins, desejosas de assumirem um papel de protagonismo nesta esperada nova etapa168. A posição assumida sobre o tema pelos representantes da Red Nacional de Medios Alternativos deixa poucas dúvidas acerca da marginalização efetiva à que foram submetidos os que aparentemente seriam os destinatários principais da nova normativa. Esses representantes salientaram então:

uma proporção desconhecida, já que o Estado poderá entregar ao usufruto privado parte do espectro que lhe corresponde por lei (como faz, por certo, com o resto dos serviços públicos), existindo concretamente a possibilidade de uma presença maior dos entes privados. Desta forma, a lei não divide o espectro em três terços, mas só atribui um terço às entidades privadas sem fins lucrativos, com o que fica aberta a possibilidade de que o que não seja utilizado pelos meios públicos ou estatais fique para ser explorado pelas entidades comerciais” (HENKEL; MORCILLO, 2012). 166 Nota do tradutor: de acordo com a cotação média da moeda em julho de 2013, quando este artigo foi originariamente publicado, na versão em espanhol, esses valores em pesos argentinos correspondiam a, respectivamente, 10.189, 20.378, 6.113 e 15.283 dólares. Fonte: http://economia.uol.com.br/ cotacoes/cambio/peso-argentina/?historico. 167 A própria AFSCA, em sua Resolução 929/2012, baseou sua decisão de suspender o concurso por duas razões: i) porque ainda estavam implementando medidas técnicas que permitiram o ingresso dos novos prestadores; e ii) as queixas dos meios alternativos, excluídos do processo pelos custos dos encargos. Nas palavras da Resolução: “Que, em particular, pessoas jurídicas sem fins lucrativos solicitaram a redução dos valores dos encargos argumentando que resultavam excessivamente onerosos para o setor”. Veja-se: Resolución N° 929-AFSCA/12, disponível em: http://www.afsca.gob.ar/pecfr/2012/ R20120929.pdf. 168 Em um documento de setembro de 2012, a Red apontou alguns dos motivos pelos quais a implementação da lei deixava esquecidos os meios alternativos. Ali, assinalava-se, entre outras questões, que os requisitos formais e materiais impostos aos concorrentes por licenças excediam largamente suas possibilidades. Por este motivo, a Red rechaçava “os comunicados oficiais que, utilizando a figura dos Meios Comunitários, Alternativos e Populares, justificam a suspensão de Resoluções e Concursos que em seu momento denunciamos como excludentes e que não nos contemplavam”. Veja-se o Documento “A tres años de la sanción de la nueva Ley de Medios”, disponível em: http://www.rnma. org.ar/nv/index.php?option=com_content&task=view&id=1551&Itemid=1.

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A lei estabelece, como requisito prévio à entrega de licenças, a obrigação de organizar e fazer público um Plano Técnico de Frequências: um mapa de todo o país que mostre como está o espectro (qual porção está ocupada, por quem e quanto fica livre). Uma vez elaborado, a AFSCA deveria, também segundo a lei, reservar 33 por cento para os meios de comunição sem fins lucrativos. O Estado não realizou este plano técnico e, em consequência, não fez a reserva dos 33 por cento. Sem embargo, continua com a entrega de licenças e a abertura de concursos. Este não cumprimento, além de não respeitar o que a lei exige, deixa a porta aberta para entrega discricionária das mesmas. Por outro lado, nos concursos convocados pela AFSCA, os meios de comunicação comunitários, alternativos e populares devem cumprir bases e condições de encargos que pouco contemplam a diferenciação entre as entidades com e sem fins lucrativos. Tampouco diferenciam e especificam os meios de comunicação dentro dos prestadores sem fins lucrativos, equiparando a qualquer meio comunitário com fundações ou associações ligadas a estruturas sindicais, eclesiásticas ou outras, cujo poder político e econômico está muito longe do que pudera ter uma assembleia de vizinhos autoconvocados169.

Entendo que estas objeções, provenientes de sujeitos da sociedade civil, ativamente partidários da norma, ajudam a dimensionar bem os problemas que a afetam na matéria. Obviamente, os problemas sugeridos se agravam se prestarmos atenção no modo com que, ainda hoje, seguem absolutamente ausentes do debate público as vozes e interesses de grupos marginados, desempregados estruturais, sujeitos em condição de pobreza extrema. O terceiro aspecto que restaria por examinar, para pensar como avaliar a nova Ley de Medios, seria o da sua contribuição ao debate público. A este respeito, as falhas há pouco destacadas – as falhas evidenciadas pela Ley, em relação com os organismos sem fins lucrativos – constitui uma primeira fonte de problemas sérios, para o objetivo de assegurar um debate público robusto, alimentado por pontos de vista contrapostos entre si. Tais vozes – as que atualmente ainda não se escutam – são as que mais resultam necessárias para enriquecer nossos debates. Sem embargo, a essa deficiência se somam ao menos outras duas. A primeira está relacionada com as licenças já outorgadas e 169 http://www.pagina12.com.ar/diario/laventana/26-205259-2012-10-10.html. Veja-se também o Documento “A tres años de la sanción de la nueva Ley de Medios”, disponível em: http://www.rnma. org.ar/nv/index.php?option=com_content&task=view&id=1551&Itemid=1.

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os processos de adequação170 ou venda de meios de comunicação já aprovados pela AFSCA. Esses processos foram realizados de modo tal que – não apenas não vieram a favorecer o fortalecimento do “terceiro setor” em matéria de comunicações, senão que – permitiram a concentração de meios de comunicação em poucas mãos. Mais especificamente, o trabalho da Autoridade de Aplicação favoreceu atualmente, de modo sistemático, grupos alinhados com o governo de momento, ainda que através de decisões diretamente violadoras da letra explícita da própria Ley de Medios171. 170 NT: no original, a palavra utilizada pelo autor é “desinversión”, que se refere às medidas de adequação a serem adotadas a partir do disposto no artigo 161 da Ley de Medios: “Adecuación.  Los titulares de licencias de los servicios y registros regulados por esta ley, que a la fecha de su sanción no reúnan o no cumplan los requisitos previstos por la misma, o las personas jurídicas que al momento de entrada en vigencia de esta ley fueran titulares de una cantidad mayor de licencias, o con una composición societaria diferente a la permitida, deberán ajustarse a las disposiciones de la presente en un plazo no mayor a un año desde que la autoridad de aplicación establezca los mecanismos de transición. Vencido dicho plazo serán aplicables las medidas que al incumplimiento en cada caso correspondiesen”. 171 Neste sentido, houve três casos paradigmáticos da – no mínimo – excessiva permissividade da AFSCA a respeito da adequação de grupos de meios de comunicação alinhados ao governo aos requisitos estabelecidos na lei. O primeiro deles foi o caso Telefé, o canal de televisão aberta com maior audiência da Argentina. De acordo com a lei, i) nenhum meio de comunicação pode ter mais de 30% de suas ações em mãos de capitais estrangeiros, e ii) nenhuma empresa pode prestar serviços públicos – como os de telefonia – e ser proprietária de meios de comunicação. O canal Telefé é de propriedade da Telefónica de España, que é, por sua vez, acionista da Telefónica de Argentina, provedora de serviços de telefonia (veja-se, a respeito, o trabalho publicado pelo atual Subsecretário da Presidência, Gustavo López, em: http://www.culturaymedios.com.ar/editorial_23.html). Portanto, a situação da Telefé é abertamente incompatível com os dois pontos da Ley de Medios, sob análise (veja-se¸ em geral, o informe da equipe de chequado.com sobre o tema: http://www.chequeado.com/el-explicador/1379ique-relacion-hay-entre-telefonica-y-telefe.html). Sem embargo, a AFSCA decidiu aceitar a situação atual da Telefé e não intimá-la a se adequar a esses dois pontos. A linha editorial da Telefé costuma ser afinada com o governo, ao ponto de o ex-chefe de gabinete de ministros e atual senador, Aníbal Fernández, ter uma coluna diária em seu noticiário. O segundo caso notório foi o dos distintos grupos proprietários de meios de comunicação que excediam a quantidade de licenças de acordo com a lei, e que para cumprir os requisitos de adequação repartiram as licenças entre familiares e testas de ferro dos antigos titulares. O exemplo paradigmático desta prática foi a situação do poderoso grupo Uno-Medios, que repartiu suas licenças entre seus dois proprietários, Daniel Vila e José Luis Manzano, e os filhos e o irmão de Vila. Isto foi aceito explicitamente pelo titular da AFSCA como compatível com a lei (veja-se http://www.lanacion.com. ar/1533177-sabbatella-sugirio-dividir-las-empresas-para-cumplir-con-la-ley). É evidente que este procedimento é contrário ao espírito da norma, e que constitui um salvo conduto para sustentar a concentração dos meios de comunicação, apesar da lei. Vila e Manzano, que originalmente se opuseram à lei, apareceram próximos ao kirchnerismo pouco tempo antes da aprovação da sua proposta de readequação (veja-se¸ por exemplo, o seguinte vídeo, no qual o ex-ministro menemista Manzano aplaude sorridente um discurso de Cristina Fernández de Kirchner, no final de 2012: http:// www.youtube.com/watch?v=5QHoeHij_IA).

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Em segundo lugar – e o que resulta tanto ou mais grave que o anterior – encontramos fatos como os seguintes, relacionados com a citada confusão entre Estado e governo: os meios de comunicação públicos têm sido manejados de modo abertamente partidário172; a televisão estatal é utilizada cotidiana e sistematicamente para ofender e caluniar integrantes da oposição173; as pautas pu

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blicitárias (na atualidade, uma das poucas grandes fontes de financiamento que permitem a sobrevivência dos meios de comunicação) têm sido manejadas de modo abertamente discricionário174; o governo desobedeceu sistematicamente, e durante anos, decisões da Corte Suprema exigindo dele a utilização equânime dos recursos de publicidade (i.e., depois do caso Perfil)175; que gerou pressões

O terceiro exemplo da parcialidade na aplicação da lei a respeito dos grupos de meios de comunicação alinhados com o governo é o da transferência dos meios de comunição do Grupo Hadad ao Grupo Indalo, propriedade de Cristóbal López, empresário muito próximo ao governo kirchnerista. A transferência é francamente incompatível com o artigo 41 da norma, que proíbe explicitamente este tipo de transações. A AFSCA, não obstante, decidiu aprová-la. Veja-se: http://www.lanacion. com.ar/1560010-el-gobierno-aprobo-la-transferencia-de-los-medios-de-hadad-al-empresariokirchnerista-cristobal-lopez. Em idêntico sentido, a opinião do advogado especialista em comunicação (candidato da oposição para a AFSCA, não designado pelo oficialismo), Alejandro Pereyra, em http:// www.lanacion.com.ar/1560162-las-contradicciones-en-el-relato-del-oficialismo.

videoclipes, de onde previamente a montagem despedaçou qualquer discurso emitido em algum canal ou diário inimigos. A manipulação sonora e visual através de montagem é um velho tema da teoria. A discussão, todavia, segue. Mas, sem se encarregar do refinamento desse debate, fica claro que não se pode apresentar o pensamento de ninguém por meio de três operações combinadas: cortar frases em picadinho, descontextualizá-las e repeti-las para que deem a impressão de que foram pronunciadas por um grave obsessivo. Todos os políticos da oposição são convertidos, assim, em marionetes de consolo de edição pelo Programa 6-7-8. Esta manipulação por montagem é a matriz ideológica e formal do programa, que poderia ser resumida em uma frase pronunciada por Perón que parece especialmente adequada a Kirchner: ‘Ao inimigo, nem justiça’” (SARLO, 2011).

172 O Observatorio Comunicacional de la Facultad de Ciencias de la Educación de la Universidad Nacional de Entre Ríos afirmou que “nunca ocorreu como na atualidade o caso de que o canal [estatal] chegue a tal nível de propaganda do próprio governo, a se tornar tão oficialista. Isto se observa não só nos conteúdos que difunde (músicas de uma só nota, funcionais ao partido no governo), mas também nas vozes que não têm possibilidade de se expressar e na informação que não aparece nesse espaço, quando se vê afetada a gestão oficial” (veja-se o documento “Canal 7 hoy: entre lo público y lo gubernamental”, disponível em: http://observatorio-comunicacional.blogspot.com.ar/2011/08/canal7-hoy-entro-lo-publico-y-lo.html). O mais impressionante é que isso não é negado pelos responsáveis por estas práticas, porém todo o contrário, reivindicado: o apresentador de “6-7-8”, o programa bandeira da TV Pública, Luciano Galende, por exemplo, diante da consulta sobre seu programa ser “de apoio explícito ao governo”, afirmou que “sim, claro que sim. Muito explícito. O 6-7-8 qualifica a si mesmo jocosamente de merda oficialista, e nisso somos mais honestos que outros. Dizemos o que somos”. E continuou: “Nós compensamos a mensagem hegemônica contra o governo e divulgamos seu pensamento” (veja-se http://elpais.com/diario/2010/07/28/internacional/1280268009_850215.html). Os exemplos deste tipo de práticas são inumeráveis: em 2009, durante a discussão da Ley de Medios, a TV Pública cortou sua transmissão logo após terem falado os senadores oficialistas (http://www.perfil. com/contenidos/2009/09/24/noticia_0037.html); em 2010, no marco da fúria oficialista pela rebelião qom, uma comunidade que se nega a vender sua dignidade e sua cultura por planos sociais, o canal estatal realizou um informe catalogado pelos próprios indígenas como “mentiroso” (http://www.perfil. com/contenidos/2011/05/24/noticia_0018.html); no início de 2012 foi designado Gerente de Notícias do Canal 7 um jovem jornalista sem maior mérito profissional, mas militante de La Cámpora (http:// www.lanacion.com.ar/1447346-un-joven-periodista-militante-de-la-campora-nuevo-gerente-denoticias-de-canal-7); e, nesse mesmo ano, para transmitir um programa de Luciano Galende – o oficialista apresentador do Programa 6-7-8 – a Radio Nacional tirou do ar programas locais em 48 emissoras estatais (http://www.lanacion.com.ar/1535690-para-transmitir-a-galende-sacan-del-aireprogramas-locales-en-48-emisoras-estatales).

174 Em um informe de 2011 em que estuda a publicidade oficial na Argentina, Martín Becerra afirma que “a gestão discricionária da publicidade oficial opera expondo excessivamente o governo, que já conta com vantagens comparativas pela visibilidade e pela capacidade de organizar a agenda pública que lhe outorga a própria função institucional, porque administra outros recursos que facilitam seu contato direto e intermediado com a sociedade e porque ao haver triunfado nas últimas eleições dispõe de uma maior proporção relativa de minutos de publicidade eleitoral gratuita” (BECERRA, 2011, p. 32). E logo conclui que “a publicidade oficial ao não estar regida por pautas objetivas, claras, públicas e equânimes em nível nacional (nem na maioria das províncias), distorce o jogo deliberativo e a capacidade de interpelação cidadã que têm as diferentes forças políticas em proveito do governo de momento. A quantidade de recursos que na Argentina são canalizados como publicidade oficial cresceu exponencialmente nos últimos dez anos e atualmente o Estado é o primeiro anunciante do sistema de meios de comunicação, atingindo o dobro, com a massa de recursos publicitários que administra, do segundo (a empresa Unilever)” (BECERRA, 2011, p. 31). Segundo notícias jornalísticas recentes, esses recursos teriam sido distribuídos durante o ano de 2012 em função da proximidade de cada grupo de meios de comunicação com o governo nacional (http://www.lanacion.com.ar/1556542nueve-empresas-se-quedaron-con-el-80-de-la-pauta-oficial). Como se explica no mesmo informe de Becerra, a Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos entendeu que esta prática viola o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica. Nas palavras da Relatoria: “Historicamente, uma porção considerável do capital produtivo dos meios de comunicação nas Américas se originou na designação de publicidade oficial pelos Estados. Este fato, somado à seletividade discricionária na colocação da publicidade, cria o perigo de autocensura para evitar penúrias financeiras que poderiam enfrentar os meios de comunicação aos quais se nega a publicidade do Estado”. E logo: “A obstrução indireta através da distribuição de publicidade estatal atua como um forte dissuasivo da liberdade de expressão. Ainda que a jurisprudência nesta esfera seja escassa dentro do sistema interamericano, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos oferece um marco legal contra essas violações indiretas, ao estabelecer que a designação discriminatória de publicidade estatal, com base na informação crítica de uma publicação ou uma rádio, viola o direito à livre expressão garantido pela Convenção”. (http://www.oas.org/es/ cidh/expresion/showarticle.asp?artID=270&lID=2).

173 O melhor exemplo deste ponto é, novamente, o programa da TV Pública, 6-7-8. Beatriz Sarlo o explica do seguinte modo: “Dividido o mundo de 6-7-8 em meios de comunicação que se criticam e meios de comunicação sobre os quais não se exerce nenhum exame, o programa, em verdade, não ‘fala dos meios de comunicação’, mas dos opositores. (…) A principal estratégia do programa consiste em apresentar os opositores do modo mais conveniente para as pesadas críticas que seguem os

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175 Veja-se os casos i) “Editorial Río Negro S.A c/Neuquén, Provincia del s/acción de amparo”, CSJN, Fallos 330:3907, 5 de setembro de 2007; ii) “Radiodifusora Pampeana S.A. c/ La Pampa, provincia de s/ acción

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destinadas a impedir que os meios de comunicação “opositores” cheguem a receber financiamento alternativo176.

BECERRA, Martín. Quid pro quo. La publicidad oficial en la argentina y sus múltiples facetas. 2011. Disponível na internet em: http://poderciudadano.org/wp/ wp-content/uploads/2011/12/InformeFinalPublicidadOficiaArgentina20111.pdf.

6. Conclusão

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Encontramo-nos frente a uma situação muito preocupante. Após três anos de aprovação da Ley de Medios, seguimos com o cenário de que os meios de comunicação alternativos não foram favorecidos em seu surgimento e desenvolvimento; os meios de comunicação privados passaram a se concentrar rapidamente em mãos amigas do governo; e o governo continua utilizando seus recursos e os meios de comunicação públicos que controla, de modo arbitrário e partidário. Como resultado, o debate público nacional segue afetado tanto em seus aspectos de inclusão como de intercâmbio de argumentos, e as vozes e interesses dos grupos mais fracos da sociedade seguem, portanto, efetivamente ausentes do processo coletivo de tomada de decisões.

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declarativa de inconstitucionalidad”, CSJN, Fallos 331:2893, 22 de dezembro de 2008; iii) “Editorial Perfil S.A. y otro c/ E.N. — Jefatura Gabinete de Ministros— SMC s/ amparo ley 16.986″, CSJN, Fallos 334:109; 2 de março de 2011. Veja-se a respeito, ademais, por exemplo, o comentário de Marcela Basterra (2009). 176 Um exemplo recente desta prática foi a proibição – ou ao menos, a sugestão fortemente coagida – de que os supermercados não publiquem seus produtos nos diários de notícias, fazendo com que estes percam uma fonte importante de financiamento.

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Muda, Tudo Muda: Sistema de Mídias e Regulação na Argentina Contemporânea177 Martín Becerra178 O enfoque funcionalista liberal se baseia geralmente naa falsa suposição de que os meios de difusão são organismos independentes e socialmente imparciais na sociedade. Isto ignora as estreitas uniões que podem existir entre os meios de difusão e as duas obras gêmeas formadas pelo Estado e pelas grandes empresas. E também ignora a pouco equitativa repartição de poder que existe na sociedade, e que pode ter como resultado que os meios de difusão sejam nomeados por cooptação, para servir aos interesses das instituições e dos grupos sociais dominantes. James Curran (1998: 203).

1. Mídias e democracia pós 83 Os 30 anos que separam o presente da recuperação do regime constitucional exibem mudanças significativas no sistema de mídias. Seus conteúdos, sua estrutura de propriedade, sua própria definição desafiada por novos contornos tecnológicos e sua discussão por parte da sociedade apresentam modificações notáveis. Embora a defesa ou destaque ao lucro tenha moldado boa parte das últimas três décadas como princípio orientador do funcionamento das mídias, nos últimos anos a discussão sobre a comunicação introduziu um complemento de tipo político. A análise dos meios de comunicação, hoje, não pode se eximir da consideração desse complemento político que polariza os atores (políticos, econômicos, jornalísticos) em duas posições. 177 Artigo publicado, em espanhol, na Revista Argentina de Teoría Jurídica, Vol. 14 (Julho de 2013). Texto traduzido do original por Anna Cecília Faro Bonan: mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista da CAPES. 178 Doutor em Ciências da Informação (Universidad Autónoma de Barcelona). É Pesquisador Independente no CONICET. Professor titular da Universidad Nacional de Quilmes (UNQ) e da Universidad de Buenos Aires (UBA). Seu blog é http://martinbecerra.wordpress.com/ e seu nome de usuário no Twitter @ aracalacana.

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Em matéria de conteúdos a mudança mais sobressalente desde a recuperação do regime constitucional é o desterro da censura direta exercida até os anos 80 não só por governos militares, senão também por civis no século passado (por exemplo, os fechamentos de jornais e revistas nos primeiros governos de Juan Perón; o manejo discricionário das quotas de importação de papel ou o Decreto 1774, que inaugurava as listas negras em 1973, sancionado pelo presidente interino Raúl Lastiri a dois dias da terceira assunção de Juan Perón). É dizer, a censura não era um fenômeno efêmero ou reduzido a ditaduras, mas formou parte da normalidade da atividade política no país antes de 1983. E apesar dos episódios isolados de censura das mídias durante o governo de Raúl Alfonsín e de casos esporádicos nas presidências de Carlos Menem, a progressiva conquista da liberdade de opinião nos meios de comunicação foi uma constante nos últimos 30 anos. Assim, a irrupção do processo de convergência tecnológica em curso, que une suportes de produção, edição, distribuição e consumo de mídias audiovisuais, gráficos, telecomunicações e redes digitais (Internet), representa uma força transformadora do setor, pois a referência aos meios de comunicação em sentido estrito deve mudar para compreender parte de seu atual desempenho social. É preferível aludir ao setor “infocomunicacional179” para assim dar conta de um sistema que inclui atividades contíguas com as mídias, mas que, longe de serem periféricas, se localizam no centro de seu circuito de produção e circulação social. A digitalização das tecnologias de produção e a competência de novas telas (Internet, televisão à cabo) afetaram as linguagens tanto audiovisuais como escritas (BECERRA, MARINO e MASTRINI, 2012). Os jornais e revistas agilizaram suas edições com desenhos que hierarquizaram o valor das imagens e reduziram a extensão dos artigos. A fundação de Página 12 em 1987 oxigenou o setor gráfico ao introduzir uma edição não engessada, sem os prejuízos políticos e culturais dos jornais mais consolidados do setor (que em vendas encabeçava Clarín, seguido por Crónica em suas distintas edições e logo por La Nación). Página 12 nunca logrou uma posição importante no mercado, mas sua presen-

179 A noção de infocomunicação é útil analiticamente para aludir, em um mesmo conceito a todas as indústrias e atividades de informação e comunicação (por exemplo, indústria gráfica – livros, revistas, diários; indústria audiovisual – televisão, cinema, rádio, fonográfica; indústria de telecomunicações; indústria de informática e microinformática etc.).

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ça operou como um revulsivo para a concorrência. Ademais, desde inícios da primeira presidência de Menem, Página 12 poliu um estilo narrativo, próprio do non-fiction, potencializou artigos de jornalismo de investigação e editou denúncias de corrupção do governo. Estes traços se generalizariam desde então. Os meios audiovisuais se reformaram tecnologicamente e reorganizaram seus processos produtivos através da terceirização de sua programação, o que habilitou o surgimento de uma grande quantidade de produtoras independentes, que revitalizaram esteticamente a televisão e o rádio, além de significarem uma economia de custos fixos nas emissoras, que delegaram o risco às novas produtoras. Várias destas foram mais tarde absorvidas pelos grandes grupos. A delegação do risco tem duas dimensões: por um lado, a possibilidade dos canais e dos rádios de se nutrirem com novas ideias que contraem riscos em termos de programação, tanto na ficção (CARBONI, 2012) como nos conteúdos; por outro lado, a derivação a terceiros de custos fixos em propostas cuja realização mercantil é, em sua fase de concepção, incerta. A organização do trabalho nos meios de comunicação foi atravessada pelos processos mencionados, num contexto de precarização crescente desde o fim da década de 1980 em diante, o qual foi acompanhado pela explosão de carreiras de comunicação social e cursos técnicos de jornalismo que institucionalizaram a formação profissional e forneceram ex-alunos não só aos meios, mas também a escritórios de relações públicas e comunicação institucional do Estado, as empresas e as organizações da sociedade civil. Mas nem tudo é novidade, já que se manteve inalterada a centralização geográfica da produção de conteúdos nas mídias: a zona metropolitana de Buenos Aires segue provendo mais de 80% da programação televisiva originada no país e nos meios gráficos o fechamento ou a absorção de jornais locais por conglomerados midiáticos com sede em Buenos Aires restringiu a produção local. Ademais, segue sendo extensa a prática de locação e sublocação de espaços, acrescentando complexidade ao peso do licenciado no controle dos conteúdos que emite. Esta prática, compartilhada por emissoras do interior do país e da Área Metropolitana de Buenos Aires, conduz a reformular os esquemas rígidos de vinculação entre a propriedade da mídia e a ideologia, toda vez que a inserção de intermediários (produtoras que comercializam espaços, que em alguns casos são produtoras diretamente vinculadas com condutores radiais e televisivos) amplia a complexidade acerca do controle final de cada produto emitido e conflita com a própria ideia de “proposta de programação”. 161

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Outro processo inevitável por ser distintivo do período é a concentração da propriedade dos meios de comunicação. Esta concentração, incentivada por uma das mudanças que, na democracia, piorou a Lei de Radiodifusão da Ditadura (Decreto 22285 de 1980), se desenvolve em duas fases: a primeira expansiva, a segunda defensiva. Os governos de Carlos Menem (1989-1995 e 1995-1999) estimularam a fase expansiva da concentração do sistema de mídias, primeiro com privatizações que beneficiaram grupos nacionais (Clarín, Editorial Atlántida) e logo permitindo o ingresso de capitais estrangeiros, em alguns casos alheios à economia dos meios de comunicação, e a progressiva inserção de capitais financeiros. A partir do segundo governo de Menem se produziu o ingresso de conglomerados como Telefónica, Prime ou, mais tarde, Prisa, e se financeirizou o sistema, com a chegada do Citibank associado ao banqueiro Raúl Moneta, do fundo de investimento HTF&M, ou da sociedade entre Clarín e Goldman Sachs. A qualidade estrangeira e financeirizada da concentração foram indicadores de que os meios de comunicação cotizavam tanto por sua influência político-cultural, como por sua função econômica. Esta dupla característica da comunicação (simbólica e econômica) foi analisada pela Escola de Frankfurt a partir da década de 1940 (ADORNO, 1967), mas a centralidade das indústrias da cultura e, em particular, dos meios de comunicação como veículos de valorização de outros capitais, além da sua própria constituição como setor dinâmico e economicamente crescente, corresponde à globalização das últimas décadas do século XX (MCCHESNEY, 2002; ARSENAULT e CASTELLS, 2008). Na Argentina a concentração do setor, sua mobilidade, estrangeirização e financierização estão contidas em tendências globais que, ainda assim, não alcançam para explicar as peculiaridades locais. Nesta fase expansiva da concentração o Estado autorizou a constituição de multimídias (via Reforma do Estado de 1989), outorgou privilégios impositivos, ampliou o limite de licenças acumuláveis por parte de um mesmo operador e legalizou as redes (esse último através Decreto PEN 1005/99). Com a assunção de Fernando de la Rúa (Alianza UCR-Frepaso) em 1999, o sistema de mídias estava protagonizado pelos grupos Clarín e Telefínica. Clarín baseou sua estratégia na expansão “conglomeral” a distintos meios de comunicação (tem posses em quase todas as atividades das indústrias midiáticas) e em particular no seu domínio do apetecível mercado de televisão à cabo, que ao finalizar a década de 1990 já lhe provia mais da metade de seus ingressos 162

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totais. Telefónica, por sua vez, domina o mercado de telefonia básica e móvel e gere nove canais de televisão aberta (Telefé na Ciudad Autónoma de Buenos Aires e oito no interior do país). De la Rúa, assim como seus antecessores Raúl Alfonsín e Carlos Menem, promoveu no interior de seu governo a redação de um projeto de lei sobre radiodifusão que substituiria o Decreto-Lei ditatorial, mas esta tentativa foi abortada na raiz pela resistência dos principais grupos de mídias (MASTRINI et al., 2005). Por sua vez, o presidente da Alianza vetou uma lei que o Congresso havia sancionado nos últimos dias de mandato de Menem para criar uma multimídia público-estatal com mandato de não “governamentalização”, criando, no lugar, o “Sistema Nacional de Medios Públicos”. A saída da crise de 2001 encontrou um Estado disposto a ajudar as empresas jornalísticas através da sanção de uma lei denominada “de preservación de bienes culturales” que foi, em rigor, uma salvaguarda das condições patrimoniais, concentradas e centralizadas em poucos grupos, que caracterizava o sistema de mídias. Essa lei, conhecida como “Lei Clarín” pela centralidade do grupo no sistema de mídias, beneficiou todas as empresas endividadas e conta com cláusulas específicas para proteger também os competidores do principal multimídias, como a Telefónica. Assim se iniciou a segunda fase do processo de concentração, em que os governos de Eduardo Duhalde (2002-2003) e Néstor Kirchner (2003-2007) apoiaram uma estratégia defensiva com políticas desenhadas na medida dos grupos mais importantes do mercado local. Se a década de 1990 foi expansiva e a concentração avançou em uma dimensão que Miguel de Bustos (2003) denomina “conglomeral”, o lustro após a crise do princípio do século atesta o desenvolvimento de uma defesa dos grupos concentrados para evitar a perda do controle dos setores que dominam. A definição da etapa 2002-2008 como de “concentração defensiva” do sistema de mídias explica, por exemplo, que nem o governo nacional nem os provinciais ou municipais – vale ressaltar que de distintas cores políticas – auspiciaram a abertura a competição do lucrativo mercado de televisão à cabo, que na regulação herdada da Ditadura era considerado “serviço complementar” e havia estimulado uma dinâmica distinta da promoção à concorrência de outros atores nesse segmento, que é o mais importante economicamente no sistema de mídias. Esta etapa, de “concentração defensiva”, finalizou junto com a presidência de Néstor Kirchner. Nas presidências de Duhalde e de Kirchner a adminis163

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tração da autoridade de aplicação audiovisual (o COMFER) foi funcional aos interesses dos grupos comerciais que operavam no setor. A crise do início do século operou como pretexto para esta segunda fase, que foi defensiva justamente porque o argumento de empresários e governos foi de que só uma blindagem ao ingresso de outros operadores poderia permitir a recuperação de seus níveis de atividade. A proteção ante a concorrência foi uma estratégia utilizada em outras fases de concentração na história das mídias na Argentina e habilitou uma reflexão fundamental acerca do vínculo necessário com a regulação estatal que necessitam os atores concentrados do setor para poder funcionar. Esta vinculação, na qual o Estado se constitui um dinamizador econômico indispensável do mercado infocomunicacional, excede a atual conjuntura onde a disputa entre o governo de Cristina Fernández e Clarín ajuda a entender alguns processos centrais, porém obtura a compreensão de continuidades históricas. Nesta revisão das políticas aplicadas no setor de mídias se constata que nas últimas décadas se concentrou fortemente a propriedade, o capital e a produção. Isso produziu a desaparição de empresas de comunicação medianas e pequenas, e deteriorou a diversidade de perspectivas.

2. Um ciclo, duas etapas. Política de mídias do Kirchnerismo (2003-2013) Como se infere dos parágrafos precedentes, o exame detalhado das políticas de mídias do kirchnerismo produz um panorama distante de ser homogêneo, a menos que se parta do juízo de que todo o atuado no período deve reivindicar-se ou repudiar-se a livro fechado e que, em consequência, se elimine a complexidade e o conflito inerente ao objeto de estudo. A análise anterior, na condenação ou na celebração, adverte que na política de mídias desenvolvida pelo kirchnerismo entre 2003 e 2013 se distinguem duas etapas. Ainda que haja centros de continuidade em todo o ciclo, há também diferenças sobressalentes entre ambas as etapas. O ponto de ruptura se localiza após a assunção de Cristina Fernández de Kirchner como presidente, que dissolveu os bons vínculos que seu antecessor, Néstor Kirchner, cultivou com o Grupo Clarín e com o resto dos grupos concentrados durante o lapso 2003-2007. Como se mencionou, quando Kirchner chegou à presidência em 2003, o sistema de mídias havia sofrido uma importante transformação e modernização, 164

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mas estava falido. O setor havia se concentrado em poucos grupos, nacionais e estrangeiros, alguns deles associados a capitais financeiros; a concentração era de caráter “conglomeral”, é dizer que os grupos transbordavam em muitos casos sua atividade inicial e haviam se expandido a outras mídias (multimídias) e também a outras áreas da economia, o que em vários mercados se traduzia em atores dominantes, havia reformado tecnologicamente o parque produtivo; a organização dos processos de criação e edição havia mudado pela terceirização da produção de conteúdos, o que, por sua vez, havia estimulado uma dinâmica base de produtoras de diferentes tamanhos; se forjaram novos padrões estéticos tanto na ficção televisiva como nos gêneros jornalísticos; havia ressuscitado a indústria cinematográfica pela Lei do Cinema de 1994 (MARINO, 2013); e havia incrementado a centralização da produção em Buenos Aires, algo que no seu último governo Menem legalizou através da autorização para o funcionamento de redes de radio e televisão. Estruturalmente a massificação da televisão à cabo da década de 1990 mudou por completo o setor audiovisual (que na atualidade parece incubar outra transformação de grande porte), que é a principal forma de acesso a informações e entretenimentos. Sinais de notícias, séries e cinema, esportes e infantis se somaram à dieta comunicacional dos argentinos, em alguns casos às expensas de outros consumos. No econômico, a TV à cabo disputou com a TV aberta o cetro do faturamento, o que atraiu a atenção de grandes grupos. Como se antecipou, a crise de 2001 causou uma importante retração dos mercados pagos de indústrias culturais (caíram os abonos da televisão à cabo, a compra de jornais, revistas, livros e discos e as entradas de cinema), reduziu dramaticamente o investimento publicitário e, em consequência, alterou todo o sistema. A televisão exibiu nas suas telas envios de baixo custo, talk-shows e programação de formato jornalístico que, por sua vez, comungava com a necessidade social de reflexionar acerca das causas e as consequências do colapso socioeconômico. A instituição midiática se interrogava acerca da crise de legitimidade das formas institucionais políticas (partidos, Estado) e econômicas (bancos), sem compreender, todavia, que a extensão dessa crise alcançava, também, os próprios meios de comunicação. As empresas de mídias, que em muitos casos haviam contraído dívidas em dólares na década anterior, registravam ingressos minguantes em pesos. Isto motivou o governo de Eduardo Duhalde a impulsionar uma lei aprovada na gestão de Kirchner: a de Preservação de Bens Culturais que, ao estabelecer 165

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um limite de 30% de capital estrangeiro nas indústrias culturais argentinas, impedia que credores externos reclamassem os ativos das empresas locais endividadas como parte do pagamento e tiveram que negociar a quitação e planos de financiamento de passivo. A Lei de Bens Culturais foi uma salvaguarda estatal às empresas de mídias que impregnou, como lógica de intervenção, a primeira etapa do ciclo kirchnerista. A renovação automática das licenças televisivas mais importantes dos dois principais grupos de mídias, Clarín e Telefónica, em dezembro de 2004, e, sobretudo, o Decreto 527 de 2005 mediante o qual Kirchner suspendeu o cômputo de dez anos para as licenças audiovisuais, constituem indicadores explícitos (há outros) de um Estado que socorreu os magoados capitais da comunicação. Enquanto isso, as organizações sem fins lucrativos continuavam sem acesso a licenças audiovisuais, o que contradizia o direito à comunicação e a tradição que vincula a liberdade de expressão com os direitos humanos, conforme a Declaração Universal de DDHH, a Convenção Americana de DDHH e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Nesse mesmo ano de 2005, a pedido da Corte Suprema de Justiça, o Congresso sancionou a Lei 26.053, pela qual se modificou o artigo 45 da então vigente Lei de Radiodifusão 22.285 de 1980 e se habilitou o acesso a licenças de rádio e televisão para pessoas e entidades sem fins lucrativos. Não obstante, este avanço legal não se traduziu na abertura de concursos para materializá-lo e, portanto, não afetou a lógica concentrada do setor. O oficialismo justifica sua intervenção a favor dos grandes grupos midiáticos na frágil legitimidade de origem do governo de Kirchner, que acedeu à presidência com 22% dos votos, tendo sido superado na disputa de março de 2003 por Carlos Menem (24,3%), que desistiu de se apresentar no segundo turno. Essa frágil legitimidade foi conjurada por um programa de ação inovador em vários aspectos. Assim, a recomposição da autoridade estatal através da designação de uma Corte Suprema de Justiça independente do governo, o impulso aos julgamentos das violações aos direitos humanos, a reabertura das negociações paritárias (fundamental, embora não unicamente salariais) e a recuperação macroeconômica ampliaram o apoio social e político ao presidente. A justificativa que ensaia a militância oficialista sobre as medidas transcendentes que adotou Kirchner potencializando a concentração do sistema de mídias e sua aliança com o Grupo Clarín e outros conglomerados midiáticos não basta, sem embargo, para explicar como – após as eleições presidenciais de 2007, quando Cristina Fernández foi eleita com uma diferença de mais de 20 166

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pontos sobre seus adversários, é dizer, com enorme legitimidade eleitoral e capital político – Néstor Kirchner autorizou em seu último dia de mandato a fusão entre Cablevisión e Multicanal (Grupo Clarín). A televisão à cabo representa mais de 80% dos ingressos do conglomerado conduzido por Héctor Magnetto180. A presidência de Kirchner apoiou a estrutura de mídias herdada, estimulando sua estrutura, em especial a concentração. Evitou nos fatos habilitar o acesso aos meios de comunicação por parte de setores sociais não lucrativos, concebeu um esquema de ajuda estatal em troca de apoio editorial, incentivou a melhora na programação do Canal 7, criou o sinal Encuentro. O setor se recompôs economicamente e experimentou uma primavera exportadora de conteúdos e formatos, facilitada pela competitividade do tipo de câmbio. Muitos jornalistas se incomodavam com a falta de intermediação que Kirchner exercitava, prescindindo de conferências de imprensa e entrevistas, entretanto, ao não promover grandes mudanças no setor, conviveu amavelmente com os acionistas dos grandes grupos. O clássico descuido das emissoras de gestão estatal começou a reverter-se a partir do governo de Fernando de la Rúa, porém foi com as presidências de Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner que se criaram novos canais (Encuentro, Paka-Paka, IncaaTV) e se potencializou a função do Estado como emissor. A criação do Programa Fútbol para Todos, desde 2009 (meses antes da sanção da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual), reforçou a evolução de uma tela que até então não disputava o interesse das audiências. O Estado incide no rating produzindo conteúdos de qualidade, apesar de que no segmento de informação política acentuou sua inclinação pró-governo e intolerante com as opiniões que não reproduzem a posição do Poder Executivo Nacional. É importante recordar que na história argentina as mídias estatais sempre foram oficialistas, tradição com a qual colaboraram gestões (nacionais e provinciais) de distintos signos políticos, não obstante o nível de confrontação promovido pelas emissoras estatais no último quinquênio tenha poucos antecedentes nos governos civis do século passado (entre esses antecedentes estão os dois primeiros governos de Juan Perón) (VARELA, 2005; SIVAK, 2013). Quando o presidente da Rádio e Televisão da Argentina, Tristán Bauer, afirma que o Canal 7 “es plural porque arrancamos la programación con el no180 Segundo os saldos contáveis informados pelo Grupo Clarín à Bolsa de Comercio, 89% de seu faturamento provém das atividades “televisão à cabo e Internet” (Cablevisión e Fibertel).

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ticiero del tiempo en todo el país” (entrevista de Emanuel Respighi em Página 12, em 28/4/2013), resume uma noção do público e que potencializa a posição oficialista representada na tabela de programação da emissora. Para Bauer “si por plural se entiende ser neutral, digo que no es neutral, como no lo es ningún medio (…) Nadie puede discutir la pluralidad de contenido de Canal 7”. A política conduzida pela presidente Fernández de Kirchner é a força gravitacional dos conteúdos jornalísticos do Canal 7 e da Radio Nacional, ainda que neste caso o informativo inclua uma participação das emissoras do interior do país e seu enfoque seja, pois, mais federal. A rádio se permite mais matizes críticos que não se observam na televisão. A programação de Canal 7 inclui telejornais nacionais (Visión 7 em sua versão matinal, de meio-dia, vespertina e noturna), um programa semanal de notícias internacionais que introduz análises e informes com tratamentos mais complexos (Visión 7 Internacional, aos sábados ao meio-dia) e um programa estrelar, 678, que se emite desde março de 2009 produzido pela produtora PPT (Pensado Para Televisión, de Diego Gvirtz). Com a exceção do futebol, 678 tende a devorar o resto da programação, tanto pelo seu conteúdo, pelo horário central em que é transmitido, por sua frequência diária (salvo os sábados), como pelos convidados, figuras relevantes do governo. O painel de 678 referencia sua intervenção em informes editados com lógica binária e estilo paródico. O objetivo, explícito, é desmontar o discurso de Clarín e outros meios críticos ao governo, aludidos como “la corpo181” ou “os meios hegemônicos”. A pretensão didática do ciclo se baseia em reiterações e charmes a uma audiência identificada com o kirchnerismo para reforçar suas certezas e impressões. A reprodução do discurso oficial no programa gera uma circularidade que evita nuances e ignora a crítica, construindo um desenho endogâmico que, neste aspecto, resulta semelhante à caracterização do discurso dos grandes meios comerciais os quais 678 confronta. Outro fator decisivo na metamorfose do sistema de mídias desde a recuperação do regime constitucional foi o surgimento incessante de novas plataformas de emissão. Primeiro foram as rádios FM, que desde 1980 modificaram o linguagem radiofônico e segmentaram públicos e gêneros. Ademais, na saída da ditadura o rádio se nutriu com a mobilização social através de experiências comunitárias e dos bairros que, apesar de estarem proscritas até então, lograram 181 Abreviação para “la corporación”.

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em 2009 seu reconhecimento legal (exceção da Lei 26053/2005 mencionada). A combinação de um processo social de expansão das liberdades individuais e coletivas com a disponibilidade de tecnologias da comunicação (FM’s) e um Estado que, desde 1981, carece de um plano técnico que ofereça informação pública sobre a quantidade de frequências radiais e televisivas em cada localidade do país, impulsionou um resultado que modificou o panorama das rádios desde o começo dos anos 80 até o presente (VINELLI, 2013). Para Fernando Ruiz, “lo distinto en América Latina en relación a otras zonas del mundo, es que el rotundo proceso de democratización política que se produjo en el continente durante los ochenta, impulsó un crecimiento enorme de la libertad de emisión en el mismo momento en que los medios estaban embarcados en un fenomenal cambio tecnológico” (2010: 34). A convergência entre tecnologia e sociedade é um eixo medular para se compreender mudanças do passado recente e do presente, já que o desempenho das mídias se realiza em sociedade com necessidades e expectativas variantes. O controle remoto e a migração para os receptores de cor tonificaram as formas de ver televisão, porém a partir de 1990 a paulatina massificação da televisão à cabo e seu menu multicanal introduziu uma oferta de dezenas de canais, muitos deles temáticos, em uma tela que só nas grandes cidades contava com mais de um canal de satélite até então. A aludida concentração em sua etapa expansiva complementou a massificação da televisão à cabo (e em medida mais moderada, do satélite). A paisagem das mídias teria logo uma transformação extraordinária com a Internet e mais adiante com as conexões ubíquas através de dispositivos móveis, a disseminação de redes digitais e de espaços que alternam o fluxo unidirecional com suportes analógicos próprios dos meios tradicionais. O peso das novas mídias se sente na balança das empresas que acusam um arrefecimento de ingressos publicitários, já que campanhas se canalizam também através dos meios digitais, e uma redução em suas audiências, seduzidas pela multiplicação da oferta. Genericamente, esses processos são aludidos com o termo “desintermediação”. Por sua vez, as novas plataformas de informação e entretenimento favorecem a extensão da discussão social sobre a função que desempenham as mídias, questionando sua imaculada concepção e a ideologia da objetividade. A centralidade das indústrias culturais e das mídias em particular convoca o interesse, a curiosidade e a reflexão de grupos sociais sobre quais são as regras do 169

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jogo neste setor estruturante do espaço público. Neste marco de secularização das mídias alguns atores da sociedade civil promoveram uma discussão sobre a regulação midiática que logrou articular demandas cidadãs e de grupos organizados (sindicatos de trabalhadores dos meios de comunicação, o movimento de rádios comunitárias, organizações de direitos humanos e ONGs, pesquisadores universitários) com as de maior inclusão para atores sociais postergados nas mídias (SEGURA, 2011). Em 2004 muitos desses atores integraram uma forma organizativa através da “Coalición por una Radiodifusión Democrática” que acordou uma plataforma de 21 pontos com os que postulavam uma mudança de paradigma regulatório no setor. Entre outros pontos, destacava-se o direito ao acesso a licenças de rádio e televisão por parte de atores não lucrativos no marco de uma concepção da comunicação como direito social, a promoção da diversidade, a não “governamentalização” dos conteúdos, mesmo nas gestões das mídias do Estado, a necessidade de restringir os níveis de concentração da propriedade, a não discriminação da concessão da publicidade oficial. A “Coalición por una Radiodifusión Democrática” representou no período prévio a 2008 uma força de perspectivas múltiplas, plurais e abertas à discussão. Sua plataforma teve eco em vários partidos políticos e em outras organizações não ligadas ao campo da infocomunicação. Entretanto a discussão, inédita, se ampliou recentemente, a partir de 2008, quando o governo de Cristina Fernández elevou a questão das mídias ao centro da agenda política. Com diferenças, outros países da região também atravessaram processos similares, com um grupo ativo na produção de debates sobre o rol das mídias tecendo propostas de reformas que são logo aproveitadas pelo poder político, quando este avalia que essas propostas resultam funcionais frente a uma conjuntura conflituosa com atores concentrados do sistema de mídias. As novas regulações na América Latina (em países com governos tão diferentes como o venezuelano, uruguaio, argentino, boliviano, equatoriano ou mexicano) se referem fundamentalmente a mudanças na estrutura de propriedade e na produção de conteúdos. O apoio de alguns governos da região a esta discussão é citado com frequência por quem resiste à abertura do debate sobre a função das mídias, alegando que, posto que a intenção dos governos costuma estar distante de ser consistente com a pretendida ampliação do direito à comunicação ou inclusive respeitosa com a liberdade de expressão, então a discussão mesma carece de valor. Este argumento, que representa uma variação da lógica ad hominem, resulta uma falácia dado que esconde a intenção de colocar uma 170

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barragem à consideração sobre o desempenho de um campo elementar como o dos meios de comunicação. A afirmação de que as intenções dos governos distam de ser prístinas, ao impulsionar as inéditas discussões e regulação sobre mídias em vários países da América do Sul, tem similitudes se analisado em detalhe o comportamento do Poder Executivo na aplicação discricionária da Lei de Serviços de Comunicação Audivisual 26522 após sua sanção pelo Congresso em 2009. Esta lei, fruto de inédito debate social sobre as mídias (que transborda inclusive o conteúdo concreto da norma), é em essência um giro copernicano na intervenção estatal no setor por Cristina Fernandéz depois do estímulo à concentração do mercado realizado durante a gestão de Néstor Kirchner. A partir da chamada “crise do campo” de março de 2008 (BECERRA e LÓPEZ, 2009), a então recente presidente enfrentou o grupo Clarín, que segue sendo, junto à Telefónica, o mais poderoso conglomerado comunicacional no país. O caso Papel Prensa, o questionamento à firma Fibertel, a gestação do Programa FPT, a adoção da norma japonesa-brasileira de televisão digital terrestre no plano que aspirava inicialmente diminuir assinantes da televisão à cabo e, posteriormente, a sanção da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual são manifestações da nova política de mídias. Esta lista seria incompleta se não mencionasse o incremento do financiamento de mídias alinhadas ao governo com recursos públicos, através da publicidade oficial, cuja distribuição discricionária foi condenada pela Corte Suprema de Justiça, ou se omitisse medidas que protegem o direito à liberdade de expressão, como a despenalização das figuras de calúnia e injúria em casos de interesse público ou a abolição ao desacato (BERTONI e DEL CAMPO, 2012). A competição entre a gestão de Cristina Fernández e o grupo Clarín conta com antecedentes em relações tormentosas entre governos e mídias ao longo do século XX, porém apresenta traços inovadores. Vários presidentes poderiam subscrever as filípicas de CFK contra “la corpo”. Yrigoyen, sobretudo em seu segundo mandato, ou Juan Perón desde as vésperas de sua assunção como presidente durante seus primeiros anos de governo, isto é, antes de cooptar rádios e jornais e convertê-los ao oficialismo, lidaram com a selvagem oposição de grandes mídias. Também foram vítimas do assédio midiático Arturo Illia, que era ridicularizado nas publicações em que emergia como astuto editor Jacobo Timerman, e María Estela Martínez de Perón nos meses prévios ao Golpe de Estado de Videla, Massera e Agosti. Após a ditadura, Raúl Alfonsín 171

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sofreu o embate das mídias privadas no final de sua presidência e Carlos Menem em seu segundo governo se arrependia de haver propiciado a formação de multimídias. Diferentemente da fábula da rã e do escorpião, as multimídias sobreviveram a Menem, sem advertir que o desprestígio da política, que estalou junto à crise econômica no final de 2001, também os alcançaria porque, na percepção social, as mídias formam parte de uma instituição que colapsou nos princípios desse século. O histórico de disputas entre governos e mídias não expressa, necessariamente, ausência de vínculos estreitos entre ambos. Em todos os casos mencionados houve setores do partido do governo que sustentaram ajudas e permissões generosas aos principais empresários da comunicação, o que reverteu em seu maior poderio. Como entender, senão, os frequentes encontros entre o ex-presidente Néstor Kirchner e Héctor Magnetto, CEO de Clarín, entre 2003 e 2008? Desde 1989, a crescente concentração da propriedade das mídias outorgou aos grupos uma entidade superior à das empresas jornalísticas do passado. Clarín, Telefónica ou VilaManzano são conglomerados que abarcam diversas atividades econômicas. As mídias são só uma parte de seus negócios e em muitos casos, é o interesse em outras áreas o que traça a linha informativa, subordinando-a. Se Botana com o jornal Crítica fustigava Yrigoyen, o poder de fogo dos conglomerados se diversificou com a concentração das últimas décadas. O enfrentamento entre o governo e Clarín produziu uma polarização que ultrapassa o sistema de mídias, mas que organiza as empresas jornalísticas em dois campos opostos. Estes ampliam a seleção intencional de fatos noticiáveis ao prévio cálculo acerca de se um acontecimento (ou uma fonte) é ou não convincente para o setor em que milita. A polarização corrói a possibilidade de encontrar vozes discordantes com a própria linha editorial e exacerba um ambiente endogâmico no qual se propaga a suspeita sobre a má intenção do outro (nunca a própria). O outro, o que pensa diferente, está comprado, seus motivos são espúrios, forma parte de uma conspiração. Este argumento resulta econômico: sustenta a convicção de que o divergente é corrupto ou está corrompido e assim se economiza o laborioso processo de construir uma argumentação coerente. O resultado é que se empobrece a discussão pública porque cada polo se sente eximido de demonstrar o que vocifera. Para Silvio Waisbord o privilégio da opinião frente aos dados torna dogmático o jornalismo.

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Se considerarmos o caso da cadeia Fox nos Estados Unidos, vemos que a tendência é ignorar dados que contradizem convicções ideológicas. Justifica-se apresentar informação enviesada para confirmar as certezas militantes e agradar aos aliados. Quando a opinião abunda, torna-se escasso o jornalismo que obtém dados originais e verifica promessas e pronunciamentos políticos. Analisar informação ou fazer investigações próprias é mais custoso que aplaudir o que diz o oficialismo ou a oposição (WAISBORD, 2011).

Assim, ainda que em Buenos Aires sejam editados mais de 13 jornais e funcionam 6 sinais televisivos de notícias, a concentração de sua propriedade e suas fontes de financiamento condicionam o enquadramento em torno do eixo oficialismo-oposição, resignando leves variações e subordinando a difusão informativa ao prévio propósito de adular ou atacar o governo. Este panorama foi se compondo enquanto o Congresso aprovava, pela segunda vez na história argentina, uma lei sobre rádio e televisão (a primeira havia sido em 1953; o resto de leis e decretos integrais sobre o setor foi disposto por governos militares). A lei audiovisual argentina se distingue das adotadas pela Venezuela em 2004 e pelo Equador em 2013 já que é respeitosa, em sua letra, aos conteúdos e à liberdade de expressão. Não obstante, as mudanças nas políticas públicas de comunicação é contemporânea à discussão instalada em vários países latino-americanos sobre a regulação das mídias e indústrias convergentes (telecomunicações, Internet). No plano local, a derrota nas eleições na metade de 2009 precipitou, neste e em outros âmbitos, novos modos de intervenção estatal. Desde então se incrementou a publicidade oficial com a qual se premia empresários de mídias afins e castiga os adversários. É uma lógica inerente a quase todo o arco político: gestões diferentes como as de Mauricio Macri ou Daniel Scioli replicam o uso discricionário de recursos públicos com fins propagandísticos e resistem a regulá-lo182. Mais recentemente, o governo foi denunciado por pressionar anunciantes privados (supermercados e telefônicas – ambos os setores concentrados com a vênia estatal) para que retirem seus anúncios dos jornais críticos ao oficialismo.

182 Sobre publicidade oficial, veja-se BECERRA, Martín, Quid pro quo: la publicidad oficial en la Argentina y sus múltiples facetas, Poder Ciudadano, Buenos Aires, disponível em http://webcache. googleusercontent.com/search?q=cache:gVG8c7kZdzoJ:poderciudadano.org/wp/w pcontent/ uploads/2011/12/InformeFinalPublicidadOficiaArgentina20111.pdf+&cd=1&hl=es&ct=clnk&g l=ar

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A Lei de Audiovisual 26522/09 tem caráter inclusivo ao compreender setores não lucrativos (cooperativas, mídias comunitárias) na gestão de licenças, estabelecer limites à concentração de propriedade, exigir das emissoras estatais pluralismo e diversidade, habilitar a participação de minorias políticas e sociais nos novos organismos de aplicação e controle e dispor de quotas de conteúdos locais e independentes. No entanto, nem o governo nem os principais grupos respeitam a lei após quase quatro anos de sua sanção. Isto é, a ausência de concursos, a falta de informações confiáveis sobre quem são os licenciados, o incentivo do governo para que a desconcentração se realize entre acionistas e chegados (estratégia fronteiriça com o “testaferrismo”183) de todos os grupos exceto o Clarín (que sustenta o pleito por dois artigos da norma, tema que ao final da edição deste artigo estava nas mãos da Corte Suprema de Justiça), o exagerado oficialismo das mídias estatais, a injeção de recursos para promover políticas carentes de controles sociais e políticos, se combinam para desatender a democratização prometida. Ademais, longe de concretizar a paulatina entrega de 33% de frequências do espectro radioelétrico para sua gestão por parte de atores sociais sem fins lucrativos (uma das maiores inovações da lei audiovisual), a maioria das mídias autorizadas a funcionar após a sanção da lei são as emissoras estatais. A lei exige que a política audiovisual se organize tomando como referência a elaboração de um plano teórico de frequências. Esta informação, essencial para conhecer quantas frequências há em cada localidade e quantas estão ocupadas e disponíveis, não foi construída pelo governo após quatro anos da sanção da norma. A ausência deste indicador elementar entorpece toda possibilidade de avanço na concreção de 33% para atores não lucrativos. A Lei Audiovisual, desde o momento de sua sanção pelo Congresso em outubro de 2009, foi objeto de controvérsia judicial. Clarín, o principal grupo multimídia, junto à Telefónica, obteve rapidamente uma medida cautelar que suspendeu alguns poucos, mas centrais, artigos. Em dezembro de 2012, o juiz Horacio Alfonso proferiu uma sentença endossando a constitucionalidade dos artigos impugnados por Clarín. Isto ocorreu após a própria Corte Suprema admoestar juízes e desembargadores pela demora na consideração do caso, e ao Governo pela sonolência na aplicação do resto da lei que não está objetada. 183 De ter “testa de ferro”, ou, como expressão popular no Brasil, de possuir “laranjas”.

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Em abril de 2013, a Câmara de Apelações Civil e Comercial alterou o disposto na primeira instância. Em uma decisão favorável ao Grupo Clarín, considerou a norma audiovisual como constitucional nos limites fixados à concentração de licenças abertas (rádio e televisão), porém inconstitucional nos limites estabelecidos para os serviços à cabo. Estes são os impedimentos de possuir mais de 24 licenças de cabo ou a superar o 35% do mercado por um lado, de contar com licença de TV aberta e à cabo em uma mesma zona por outro e, por último, de que o operador do cabo possa gerir mais de um sinal próprio. Assim, os desembargadores introduziram a discussão sobre a regulação do cabo, a qual a Corte deverá observar agora. Esta discussão toca a medula do sistema de mídias, já que Clarín exerce uma posição dominante no mercado do cabo (obtida graças à autorização do ex-presidente Néstor Kirchner, em dezembro de 2007, para a fusão de Cablevisión e Multicanal). De modo que o acórdão da Câmara preservaria o principal ativo de Clarín, enquanto uma eventual desconcentração dos serviços à cabo afetaria a configuração do conglomerado conduzido por Héctor Magnetto. Para a Câmara, a concentração dos serviços à cabo é condição necessária para possibilitar independência e sustentabilidade econômica. O acórdão baseia-se na suposição, compartilhada por uma parte da doutrina econômica, de que uma maior envergadura confere às empresas de mídias independência dos governos e lhes permite oferecer melhores serviços e menores preços a seus clientes. Na história da comunicação à cabo na Argentina, ambas as suposições se mostram falsas. O que determine a Corte excederá o caso Clarín e sua disputa com o governo. Com efeito, se a premissa da Câmara fosse correta, haveria de assegurar um alto nível de concentração para que outros atores alcancem a sustentabilidade inerente à liberdade de expressão. Posto que a concentração significa que muitos recursos são capturados por poucos autores, a premissa resulta irrealizável. Ao inverso: no caso dos meios de comunicação, a doutrina interamericana de Direitos Humanos defende que diminuir a concentração é um estímulo para que outros atores exerçam seu direito à comunicação. Nas palavras de Owen Fiss, a liberdade de expressão depende dos recursos dos que se dispõem e, se estes estão concentrados, a liberdade de expressão do resto, isto é, o interesse público se ressente. Porém diante do argumento da Câmara, que só concebe como ameaça à liberdade de expressão a ação estatal e não a de grandes grupos privados, o 175

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governo não ensaiou uma resposta adequada e se dedicou a questionar aos integrantes do foro por haver participado de atividades coorganizadas por Clarín. Na primeira instância, o juiz Alfonso ignorou a questão dos serviços à cabo. Tampouco os pareceres da procuradora geral, Alejandra Gils Carbó (que sendo promotora em 2006 havia opinado contra a fusão de Cablevisión e Multicanal assegurada por Kirchner), nem os escritos fornecidos pelo governo sustentam por que se proíbe a propriedade cruzada entre televisão aberta e à cabo ou por que se restringe os sinais de produção própria de uma mesma operadora de cabo. Em outros países, onde não existe esse impedimento, exige-se das operadoras de cabo, mediante regras de must carry, que transportem em igualdade de condições sinais da concorrência, mas sem limitar a quantidade de sinais próprios (Estados Unidos, México). Pode-se argumentar que em um país como a Argentina, onde mais de 80% dos lares assiste à televisão através do serviço à cabo, esse serviço não pode estar tão concentrado, pois os operadores se convertem em verdadeiros funis que exercem com abuso os preços das assinaturas, com políticas predatórias de concorrência, com a discriminação de conteúdos e com a absorção em condições privilegiadas da programação mais cobiçada (como os direitos de televisionar o futebol durante quase duas décadas). Também as Fin Syn rules (Financial Interest and Syndication) estabeleciam nos EUA limites para os sinais à cabo e a programação própria que um operador podia incorporar ao seu quadro, para impedir posições anticompetitivas. As regras contra a propriedade cruzada das mídias nos EUA foram altamente restritivas até 1996 (Lei de Telecomunicações), quando estava proibido que as cadeias nacionais de TV (CBS, ABC, NBC) fossem prestadoras de serviços à cabo. A Lei de Telecomunicações também permitiu que as empresas de telecomunicações sejam operadoras de cabo. Na Grã-Bretanha, após o escândalo das escutas protagonizado pelo principal grupo, News Corp, debate-se a adoção de um limite de 15% dos ingressos totais dos mercados de mídias nacionais184. Um grupo que supere essa porcentagem deveria se desprender de ativos. Porém uma proposta deste tipo precisaria, para justificar a adoção de regras restritivas, da demonstração de que o Estado tentou sem êxito aplicar leis de defesa da concorrência, que estimulou a abertura mediante venda de termos de

licença a novos operadores e que esses foram boicotados pelos atores concentrados, que impulsionou a presença de cooperativas e de novos canais e conteúdos. Requereria, ademais, um documentado conhecimento do setor. O governo, pelo contrário, congelou a abertura do cabo a novos operadores, potencializou a concentração após a intervenção da área de defesa da concorrência dependente da Secretaria de Comércio Interior, colaborou para estender licenças das operadoras a distritos vizinhos e só produz para informação quando intui que pode ser capitalizada imediatamente pelo oficialismo. A Corte Suprema deve decidir um conflito em que doutrinas de liberdade de expressão, de economia de mercado e defesa da concorrência, de preservação do interesse público e do poder estatal para regular um setor cardial na etapa de convergência de mídias e telecomunicações como é o serviço à cabo. O que decida ampliará a posição de uns e dinamitará a posição de outros. O governo se escusa e acusa como fonte da distorção entre suas políticas e a letra da norma audiovisual a suspensão de alguns poucos (ainda que centrais) artigos da lei por parte do Judiciário185, entretanto sua atenção ao resto da norma foi parca nos últimos anos. Quando quis respeitar a lei obteve magros resultados: por exemplo, o esforço para fomentar a produção local de conteúdos televisivos não suscitou, até agora, o interesse das audiências. Por outra parte, o governo resiste a cumprir o Decreto 1172/03 de Kirchner para garantir o acesso à informação pública do Poder Executivo, protagonizando litígios nos quais defende posições antitéticas às que inspiraram aquela medida (um caso emblemático é o do PAMI, no qual interveio a Corte Suprema em 2012). Não obstante, há mudanças evidentes que não têm, necessariamente, a lei audiovisual como guia, apesar de tanto o governo como a oposição invocá-la como justificativa. Nos últimos anos na Argentina houve mudanças significativas no mapa de mídias, com grupos em ascensão (Cristóbal López, Vila-Manzano, Szpolski) e um governo que atua como operador audiovisual com uma destreza no país e como financiador de empresas e produtoras. Clarín, contudo, vê em perigo o domínio que exerceu durante décadas com as recentes intervenções do governo em seus mercados de atividade. Telefónica mantém uma política de boa vizinhança com o oficialismo e capitaliza sua posição domi-

184 Veja-se http://www.levesoninquiry.org.uk/wp-content/uploads/2012/07/Annex-1-to-SubmissionbyClaire-Enders-Enders-Analysis.pdf

185 Veja-se http://martinbecerra.wordpress.com/2013/07/13/ley-de-medios-a-sentencia-notas-de-arballoybecerra/

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nante no mercado das telecomunicações, cuja regulação manstém inalteráveis vários princípios da Reforma do Estado de 1989. Assiste-se, logo, uma reconfiguração dos nexos entre mídias, negócios e política através de uma pugna por chegar a 2015 com uma relação de forças empresariais diferente da que expressou o campo midiático desde finais da década de 1980. A administração do Estado protagoniza essa disputa, de modo que a concorrência eleitoral será definitiva para proceder à análise dos tempos que virão.

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1. Introdução A lei de mídias não se originou em um projeto apresentado por um deputado ou um senador. Tampouco foi o produto de uma iniciativa do Poder Executivo. Foi fruto de um longo trabalho levado adiante por um heterogêneo grupo de movimentos sociais vinculados à comunicação (MSC), que depois os poderes formais converteram em lei. Diversos autores estudaram a relação dos movimentos sociais com o Direito. Entre eles, Reva Siegel, que destacou o rol desses movimentos no desenvolvimento do Direito Constitucional estadunidenseo. Porém, faz referência ao “silêncio perturbador que existe sobre os movimentos sociais na teoria constitucional dos Estados Unidos, reflexionando sobre as formas que os movimentos sociais serviram como fatores democratizantes no desenvolvimento constitucional dos Estados Unidos” (SIEGEL, 2005). Nesse contexto, o objetivo central do presente trabalho é analisar o papel que desempenharam os MSC no processo de transformação e democratização da legislação em matéria de radiodifusão na Argentina. Para isso, será visto qual foi o rol desses grupos frente ao Decreto-Lei da ditadura 22.285 e sua proposta de substituição por uma norma da democracia. Nessa ordem, será considerada a interpelação desses movimentos aos diferentes operadores jurídicos, e quais foram suas diversas estratégias frente ao poder. No princípio foram excluídos da ordem legal e perseguidos pelos organismos públicos; depois foram acolhidos com relativo êxito pelo Poder Judiciário e pos186 Mestrando em Direito e Pós-graduado em Direito Constitucional e Direitos Humanos pela Universidad de Palermo. Secretário da Comissão de Sistemas, Meios de Comunicação e Liberdade de Expressão do Senado da Nação Argentina. Docente de pós-graduação e autor de diversas obras sobre direito das comunicações. Advogado.

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teriormente se inseriram – ainda com críticas à norma de fato – nos diversos processos de normalização de emissoras levados adiante pelo Poder Executivo. Nesse caminho, nunca perderam de vista seu objetivo central, que foi a derrogação da lei sancionada pelo ditador Jorge Rafael Videla. Julieta Lemaitre Ripoll (2009) assinalou as diferentes ideias, objetivos e estratégias que têm os movimentos sociais, exemplificando a dificuldade de conciliar os interesses dos campesinos sem-terra com os das feministas acadêmicas. Depois, foi além ao destacar as contradições que apresentam os movimentos sociais frente ao Direito e às instituições: “é uma ambivalência que oscila entre a fé no Direito e a avaliação pragmática, inclusive pessimista, de suas limitações”. Nessa ordem de ideias, a leitura do trabalho permitirá apreciar, em primeiro lugar, como um heterogêneo coletivo integrado por diversas ONGs, rádios comunitárias e mídias alternativas, sindicatos, intelectuais, profissionais, comunicadores sociais, membros dos povos originários, entre outros atores, confluíram em um único movimento social denominado “Coalizão por uma Radiodifusão Democrática”. Ademais, serão analisadas as dúvidas e contradições daqueles sujeitos a respeito do Direito, sua confiança e suas críticas, mas também suas esperanças e sua aposta ao valor simbólico da nova lei de mídias. O certo é que em um complexo processo cultural, político, econômico e jurídico, esses movimentos sociais lograram, não só uma profunda transformação e democratização do marco regulatório da comunicação social, senão também uma mudança na criação do Direito.

2. Excluídos e perseguidos A Lei 22.285, sancionada em 1980, só permitia a operação de rádios e canais de TV por sociedades comerciais. Com essa exclusão, as entidades sem fins lucrativos não podiam aceder à radiodifusão. Depois, já na democracia, em abril de 1984, foram suspensos os concursos para adjudicar licenças para emissoras radiais e televisivas. Estabeleceu-se que dita medida estaria vigente até a promulgação de uma nova lei de radiodifusão, que substituísse à lei da ditadura. Neste marco, a demora em derrogar aquela lei de fato conduziu à extensão no tempo da suspensão dos concursos. Desse modo, consagrava-se um dobro impedimento – fático e jurídico – para as diferentes entidades sem fins lucrativos acederem às frequências radiais e 182

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televisivas. Porém, e aos poucos anos, diferentes movimentos sociais vinculados à comunicação social foram instalando pequenas rádios FM ao longo de todo o país, cumprindo um destacado papel social e cultural. Este heterogêneo grupo estava formado por associações de bairros, ONGs, comunicadores sociais alternativos, clubes e sociedades de fomento, pequenas cooperativas, igrejas e cultos de diversos signos, entidades culturais, boates, entre outros. Apesar das diferenças entre cada proposta comunicacional, todos compartilhavam uma situação jurídica que os colocava fora do Estado de Direito. Sua “marginação” legal obedecia à mencionada dupla restrição do marco regulatório vigente, com o qual foram declarados clandestinos e perseguidos pelos organismos estatais. A relação destes movimentos sociais vinculados à comunicação social frente ao Estado, ao Direito e às instituições, nesta primeira etapa foi de resistência e questionamento. Roberto Gargarella resume esse sentimento de frustração frente ao Direito por parte dos setores mais postergados no começo do seu livro El Derecho a la Protesta, no qual afirma “Em nosso país, como em outros, o Direito acostuma a se fazer o que não se deve, maltrata quem deve cuidar, persegue quem deve proteger, ignora aqueles que deve maior atenção e serve àqueles que deve controlar” (2005). Além disso, a restritiva legislação vigente na matéria era vista como o fruto do acordo entre o poder político e os grandes grupos de mídias, com o qual o Direito representava o status quo vigente. Os autores da escola Critical Legal Studies questionaram a suposta neutralidade do Direito, e, pelo contrário, viram-no frequentemente como uma manifestação dos grupos de poder. Rodriguez Garavito (1999) afirma que “… o discurso da coerência e a neutralidade faz parecer justo, natural, o funcionamento de um sistema jurídico que tende a favorecer os interesses dos grupos que contam com maior informação sobre as normas e com maior poder econômico para defender seus interesses”.

3. A aposta no Direito Com o passar do tempo e frente à persecução estatal, alguns dos movimentos que operavam emissoras comunitárias buscaram o Poder Judiciário para preservar seu funcionamento. O argumento central era que sua situação de 183

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ilegalidade não era consequência do seu ânimo transgressor, mas que o Estado tinha lhes fechado as portas da lei. Neste momento se aprecia uma mudança no enfoque destes movimentos em relação ao Direito. Agora não é visto exclusivamente desde seu caráter repressor, mas buscam o Direito para garantir a continuidade das suas emissoras. Há certa confiança e uma aposta no Direito. Julieta Lemaitre Ripoll descreve essa transformação na concepção do Direito por parte dos movimentos sociais. Para os ativistas o direito aparece por um lado como uma ameaça constante, ameaça de desmobilização, de ficar em puras promessas, de que a lei, no final de contas, sempre se põe do lado do mais forte. E por outro, aparece o direito como uma esperança não só de benefícios reais, mas da possibilidade de ressignificar identidades (2009).

Um bom número de julgamentos federais de diferentes províncias ditaram medidas cautelares orientadas a preservar o funcionamento destas mídias comunitárias. Ademais, esta proteção individual que supunha cada uma destas sentenças, além de proporcionar um resguardo jurídico a cada emissora, foi se convertendo num argumento político de alcance geral, de reclamação e de interpelação ao Estado. O CELS – Centro de Estudios Legales y Sociales explica que “Na medida em que a violação afeta um grupo generalizado de pessonas, as numerosas decisões judiciais individuais constituiram um sinal de alerta aos poderes políticos acerca de uma situação de descumprimento generalizado de obrigações em matéria relevante de política pública” (2008). Paralelamente, aparece outra aposta destes movimentos sociais frente à validez do Direito: o reconhecimento institucional que diversas localidades e municípios concederam a essas mídias, através de ordens e resoluções locais. Sem prejuízo de que a jurisdição em matéria de radiodifusão seja nacional, e que esses reconhecimentos locais não geraram demasiada proteção jurídica, o certo é que tais condutas refletiram duas coisas. Por um lado, a ratificação de seguir confiando no Direito por parte destes movimentos sociais vinculados à comunicação social. Por outro, começou-se a contar com uma visão mais complexa do Estado; pois se o Poder Executivo Nacional os perseguiam, alguns governos locais e vários tribunais os protegiam. A estas diferentes visões sobre o Direito se somava a própria dos movimentos sociais vinculados à comunicação, que acreditavam firmemente exer184

cerem o direito humano à comunicação, além do reconhecimento ou condenação das instituições. Esta especial complexidade na concepção do Direito é destacada por Martha Minow (2000), que afirma que “… o Direito não consiste meramente em regras formais, oficiais, adotadas pelas legislaturas, tribunais e a administração, nem somente nos procedimentos dessas instituições. O Direito consiste também em práticas de governo e de resistência que as pessoas desenvolvem por fora e além das instituições públicas”.

4. A normalização nacional Em 1989 foi promulgado o Decreto 1357, pelo qual o Estado Nacional instrumentalizou um processo de normalização de emissoras de FM que operavam à margem da lei, no qual participaram um bom número de rádios que se encontravam nessa situação. A participação destas emissoras comunitárias nesse processo volta a mostrar certo grau de confiança nas instituições por parte destes grupos; sem prejuízo de que muitos deles objetassem a Lei 22.285, que, de fato, impedia a participação das entidades sem fins lucrativos e sob a qual se instrumentalizava esse processo de normalização de rádios FM. Neste contexto, tem lugar um fato de especial transcendência: a ONG Carlos Mugica, que operava uma emissora na província de Córdoba, denominada La Ranchada, dada sua condição de entidade sem fins lucrativos, não podia participar do mencionado processo. Para remediar tal situação buscou o Judiciário, e após um longo trajeto processual, obtém da Corte Suprema de la Nación Argentina (“CSJN”) um acordo que declara a inconstitucionalidade do artigo 45 da Lei 22.285, que precisamente só permitia operar rádios e canais de TV à sociedades comerciais. Este acordo teve uma grande transcendência, pois conduziu ao Poder Legislativo a modificar essa restrição da Lei 22.285. Como assinala o CELS (2008), explicando as diferentes estratégias dos movimentos sociais que articularam reivindicações individuais e demandas políticas gerais: A esfera judicial não se apresenta exclusivamente como um espaço de resguardo dos direitos que se pretendem exercer no plano social ou insti185

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tucional, mas também como um âmbito através do qual é factível transmitir demandas ao Estado... Em princípio, toda estratégia de reivindicação de direitos, em especial em casos que expressam conflitos coletivos, tem um claro sentido político. Logo, um elemento central para se obter um resultado positivo nos pleitos judiciais é articular o político com o jurídico, de modo que a solução do caso legal contribua para transformar as deficiências institucionais ou as políticas de Estado.

Não obstante, a modificação legal, se por um lado foi importante, por outro não foi tão profunda como os movimentos sociais esperavam, o que gerou certo descontentamento com a solução institucional. Julieta Lemaitre Ripoll (2009) destacou as contradições que os movimentos sociais costumam apresentar a respeito do Direito, mostrando uma ambivalência que vai da esperança no Direito à desconfiança das instituições. “Esta ambivalência não parece ter solução, mas se mantém em uma oscilação e uma tensão permanentes”.

5. Acordos, leis, mídias e política Ainda que o objetivo imediato dos movimentos sociais de comunicação tenha sido assegurar o funcionamento de suas próprias emissoras, a aposta final foi sempre a derrogação da lei da ditadura e sua substituição por uma norma emanada da democracia. Neste ponto é preciso deter-se no marco regulatório da radiodifusão, que havia se formado a partir da Lei 22.285, em 1980, durante os posteriores 25 anos de democracia. Os governos constitucionais, com ligeiras nuances, estruturaram um estilo de vínculo com as grandes mídias, baseado num esquema no qual se realizavam diversas concessões, com a intenção de influir positivamente a linha editorial. Nesse contexto, o poder político contribuiu ao desenho de um sistema institucional orientado à concentração empresarial dos grupos midiáticos e à redução da concorrência. Raúl Alfonsín, inicialmente com certa razoabilidade, suspendeu os concursos para adjudicar rádios e canais de TV em abril de 1984, a fim de evitar levá-los a cabo com as pautas da lei da ditadura. Não obstante, a extensão no tempo dessa medida não só lhe quitou sua inicial legitimidade, como também, objetivamente, conduziu a manutenção das mídias existentes sem concorrência efetiva. 186

Carlos Menem foi quem mais concedeu medidas favoráveis às mídias, começando por eliminar o impedimento às empresas gráficas de possuirem emissoras audiovisuais. A partir dessa medida, Clarín adquiriu Canal 13 e Rádio Mire; Editorial Atlántida, por sua vez, ficou com Telefe e Rádio Continental. Deste modo, promoveu-se o fenômeno “multimídias” no país. Mas isso não foi tudo, as licenças passaram de 4 para 24, permitiu-se as redes de emissoras, eliminou-se a obrigação dos grupos de instalar emissoras em zonas fronteiriças e se estimulou a assinatura de tratados e acordos internacionais de investimento para formar um mercado de capitais em torno das mídias. Tempos depois, o ex-presidente Menem confessou – tardiamente – que a modificação do artigo 45 teria sido seu mais grave erro. Fernando De La Rua não modificou muito o cenário; embora conte no seu mandato com a promulgação da lei que determina a difusão dos jogos de futebol da seleção nacional em TV aberta (a única reforma legal que as grandes mídias não apoiaram). Porém, a partir do seu governo, foi suspensa a abertura de editais para novos circuitos fechados de TV; fato que durou – injustificavelmente – quase 9 anos e que manteve, durante esse período, os canais à cabo existentes sem nenhum tipo de concorrência. Depois da crise de 2001, e já no governo de Nestor Kirchner, foi sancionada a Lei de Proteção dos Bens Culturais, mais conhecida como Lei Clarín, que, basicamente, preservou as endividadas mídias nacionais de afundarem sob as exigências de credores estrangeiros. Para tanto, limitou-se a participação do capital estrangeiro a 30% do capital acionário e foram excluídas as mídias de comunicação do sistema de cramdoum; mecanismo que permite aos credores ficarem com a empresa em problemas. Assim mesmo, concedeu-se às rádios e canais de TV 10 anos a mais de licença, através do DNU 527/05 e, sob o final do seu mandato, foi aprovada a fusão CableVisión-Multicanal, revisada posteriormente por sua esposa. Deste modo, todo o marco regulatório em matéria de radiodifusão materializava esse pacto tácito entre as grandes mídias e o poder político, no qual este consentia a concentração e a falta de concorrência com o objetivo de receber um tratamento jornalístico favorável. Este tipo de legislação demonstra a contradição da teoria idílica e ingênua que supõe que as leis representam cabalmente a vontade dos cidadãos, que se expressam através de seus legisladores. Conforme dizeres de Elías (2011): 187

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Votar em um representante é relevante para muita gente, mas muito mais é que tipo de decisões tomam os representantes sobre aspectos centrais das vidas das pessoas e que nível de participação real pode ter cada indivíduo nas decisões sobre seus direitos... A ideia de que se estamos inconformados com as decisões que adotam nossos representantes, temos a possibilidade de votar em seu contrário e prévio convencer a um número suficiente de nossos co-cidadãos, lograr que percam seu posto é demasiado pobre.

Elías (2011) adiciona que a mera representação no Congresso, por mais valiosa que fosse, é insuficiente. O direito a participar através do voto é central na construção da legitimidade da ordem política, mas seguramente é insuficiente. A legitimidade passa também por certa qualidade dos resultados do processo político e pela possibilidade de ter uma participação efetiva nas decisões que envolvem os direitos de cada um.

6. A profundidade da mudança. O modelo de relação estruturado entre o poder político tradicional e as grandes mídias impediu que desde o setor político se substituísse o marco regulatório vigente em matéria de radiodifusão Paralelamente, os diferentes projetos de lei apresentados por senadores ou deputados, de diferentes partidos políticos, intensionados em sancionar uma nova lei de radiodifusão, nunca tiveram a força política necessária para obter a aprovação legislativa. Em 25 anos de democracia não só foi impossível aprovar uma nova lei de radiodifusão, mas nem sequer se logrou meia sanção legislativa. Inclusive, são escassos os casos em que houvesse um parecer favorável nas comissões. Estes dados evidenciam a dificuldade de mudar o statuo quo vigente na radiodifusão. A Coalizão por uma Radiodifusão Democrática (2010) o explica claramente em um comunicado de abril de 2010: Desde o ano de 1983, a maioria dos partidos políticos levou em sua plataforma o mandato de derrogar o decreto lei 22.285 de radiodifusão da di188

tadura. Recordemos também que, mais de 73 iniciativas legislativas foram apresentadas no Congresso da Nação e que devido à pressão dos grupos monopólicos nenhuma delas chegou sequer a ser debatida no recinto.

Desde a recuperação da democracia, em 1983, logrou-se reformar a Constituição Nacional, modificar várias vezes o valor monetário, acabar com o serviço militar obrigatório, firmar a paz com o Chile, privatizar dúzias de empresas – e depois voltar a estatizá-las – consagrar o divórcio, modernizar as relações de família e sancionar mais de três mil leis, mas algo não logrou a classe política: sancionar uma nova lei de radiodifusão. O difícil não era derrogar a Lei da ditadura 22.285. A verdadeira dificuldade era terminar com o quadro legal conformado pelo poder político e as grandes mídias. Isso, precisamente, é o que plasma a Lei 26.522 de Serviços de Comunicação Audiovisual. Nesse sentido, a sanção da Lei de Mídias não substituiu a Lei 22.285 da ditadura. Fez algo muito mais profundo. Deixou de lado um marco regulatório criado pelo poder político democrático e as grandes mídias de comunicação, durante 25 anos de sistema institucional. Nestor Busso (2009), ator central da Coalizão por uma Radiodifusão Democrática, sintetizou dessa forma em seu discurso de 21 de outubro de 2009, depois da aprovação da Lei 26.522, no Teatro Argentino de La Plata: “Tinhamos consciência do poder que enfrentávamos. O poder dos grandes grupos econômicos que pretendiam manter vigente o Decreto-Lei que eles em cumplicidade com a ditadura havia imposto em 1980 e haviam modificado em seu benefício nos anos 90”. Este fato, verdadeiramente revolucionário, não se originou no poder político formal; essa lei não nasceu de uma proposta de deputado ou senador algum, mas foi o trabalho levado adiante por um grupo de movimentos sociais vinculados à comunicação social, nucleados numa entidade denominada Coalisão por uma Radiodifusão Democrática, que foram os verdadeiros impulsores dessa lei.

7. 21 pontos e Lei No final de 2003, um variado grupo de movimentos sociais vinculados à comunicação conformou uma entidade denominada Coalizão por uma Radiodifusão Democrática, integrada por universidades, sindicatos de trabalhadores 189

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da comunicação, órgãos de direitos humanos, cooperativas, rádios comunitárias, movimentos de povos originários, representantes da cultura, entre outros. O objetivo central foi a sanção de uma nova lei de radiodifusão e para isso elaborou um documento intitulado “21 pontos para uma radiodifusão democrática”. Um ponto por cada ano de dívida com a liberação da palavra. O documento foi apresentado à sociedade no dia 27 de agosto de 2004 e foi discutido intensamente em diversos dias e fóruns organizados nas diferentes províncias argentinas. O documento, basicamente, continha um conjunto de princípios orientados para uma nova lei de comunicação audiovisual. Entre outras coisas, afirmava o seguinte: O direito a buscar, receber e difundir informações e ideias sem censura prévia. A radiodifusão é um serviço de caráter essencial para o desenvolvimento social, cultural e educativo da população, pelo qual se exerce o direito à informação. Deve-se garantir a independência das mídias de comunicação e se condena a concessão arbitrária ou discriminatória de publicidade oficial. As frequências radioelétricas pertencem à comunidade, são patrimônio comum da humanidade, e devem ser administradas pelo Estado com critérios democráticos e adjudicadas por períodos de tempo determinado a quem ofereça prestar um melhor serviço. A promoção da diversidade e do pluralismo deve ser o objetivo primordial da regulamentação da radiodifusão. Devem ser adotadas políticas efetivas para evitar a concentração da propriedade das mídias de comunicação. A propriedade e o controle dos serviços de radiodifusão devem estar submetidos a normas antimonopólicas. Não poderão ser titulares de licenças de serviços de radiodifusão nem integrantes de seus órgãos diretivos, quem ocupem cargos eletivos oficiais nacionais, provinciais ou municipais, funcionários públicos dos diferentes poderes, membros das Forças Armadas e de seguridade, como assim também aqueles que tiveram participação comprometida com violações aos direitos humanos. Existem três tipos de provedores de serviços de radiodifusão: públicos, comerciais e comunitários de organizações da sociedade civil sem fins lucrativos; por isso os planos técnicos deverão reservar ao menos 33% de frequências, em todas as faixas, para entidades sem fins lucrativos. As mídias estatais deverão ser públicas e não governamentais. A lei estabelecerá quotas que garantam a difusão sonora e audiovisual de conteúdos de produção local, nacional e própria. As repetidoras e cadeias devem ser uma exceção à regra de modo tal de priorizar o pluralismo e a produção própria e local. A autoridade de aplicação deverá respeitar em sua constituição o sistema federal e estará 190

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integrada ademais por organizações da sociedade civil não licenciatárias e por representantes das entidades representativas dos trabalhadores das mídias e das artes audiovisuais. Será criada a figura da Defensoria del Público de Servicios de Comunicación Audiovisual, com delegações nas províncias, que receberá e canalizará as inquietudes dos habitantes da nação. Finalmente, dizia que na nova lei deverá ser contemplada a normalização dos serviços de radiodifusão atendendo as necessidades daqueles impedidos de aceder a uma licença pelas exclusões históricas da Lei 22.285 e da administração arbitrária das frequências por parte do Estado Nacional. Esse documento foi levado em consideração, em muitos de seus aspectos, pelo governo de Cristina Kirchner e, a partir do mesmo, foi elaborada uma proposta de lei de serviços de comunicação audiovisual. Essa proposta foi submetida a um intenso debate em todo o país, através dos denominados Forúns Participativos de Consulta Pública. Foram realizados 24 fóruns, nos quais participaram diferentes atores e movimentos sociais vinculados à comunicação social. Todo este material foi analisado pelo Comité Federal de Radiodifusión (COMFER) e sobre essa base foi elaborado o Projeto de Lei de Serviços de Comunicação Audivisual, enviado pelo Poder Executivo ao Parlamento em 27 de agosto de 2009, dia da radiofusão. Néstor Busso (2011), protagonista da Coalizão, conta como o projeto foi levado ao Congresso: Era um dia ensolarado, antecipação da primavera. Desde muito cedo estava chegando muita gente à Casa Rosada. Enquanto se encerrava o discurso, iam sendo escutados os primeiros bumbos das organizações que acompanhariam o Projeto desde a Casa Rosada ao Congresso. Com o lema “Vamos pela nova lei”, uma caravana de carroças com consignas da Coalizão encabeçou uma multitudinária marcha que uniu as dez quadras entre a sede do Poder Executivo e o Congresso da Nação.

Logo, Busso (2011) agrega que: A Coalizão levou simbolicamente o Projeto firmado pela Presidenta ao Congresso porque considerou que era seu projeto. As rádios comunitárias, os sindicatos, os movimentos sociais, os estudantes de comunicação, os docentes, os religiosos, todos, todas, caminharam juntos com

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a imensa alegria pela concretização de uma ideia que havia começado cinco anos antes com uns dez ou quinze militantes sentados ao redor de uma mesa. Agora a último trama dessa história deveria se dar no parlamento.

Uma vez ingressado no Congresso, o projeto tramitou primeiramente na Câmara dos Deputados. Foi realizado um conjunto de audiências públicas, nas quais participaram diversos setores vinculados à temática da comunicação social. Em seguida, o projeto foi discutido nas diferentes comissões legislativas, onde se obteve seus pareceres respectivos. Na sessão da Câmara a iniciativa teve 147 votos favoráveis e 3 votos contrários. Boa parte da oposição se retirou do recinto. Posteriormente, o projeto foi remetido ao Senado, no qual também tiveram lugar diferentes debates e audiências públicas. Não obstante, o projeto não foi modificado na Câmara Superior. Nestor Piccone (2011), jornalista, sindicalista e membro da Coalizão explicou que: A tática na Câmara de Senadores foi a de tratar de corrigir, ainda que seja, alguns artigos. Fundamentalmente, aqueles que falavam da desmonopolização. A ideia foi a de lograr que com as correções o projeto voltasse aos deputados e que o tempo terminara jogando a favor e que a lei dormiu nas mãos da burocracia legislativa. Mas a vontade política de Cristina e a unidade popular impediram a manobra.

Assim, sem modificações, o projeto de lei foi aprovado na Câmara Superior do Senado por 44 votos favoráveis e 24 votos contrários. Finalmente, às 6 da manhã de 10 de outubro de 2009, com milhares de pessoas na Praça do Congresso, foi sancionada a Lei 26.522 de Serviços de Comunicação Audiovisual. Roberto Gargarella (2009) criticou o debate ocorrido no Poder Legislativo, fundamentalmente, em razão da negativa do Senado de realizar modificações no projeto remetido pela Câmara de Deputados: “Para quem pensa a democracia desde um compromisso com a discussão pública, o ocorrido não forma parte, meramente, do anedotário da lei aprovada. As falhas assinaladas, quanto aos procedimentos da deliberação legislativa representam, pelo contrário, fatos gravíssimos”. Apesar dessas observações, referidas ao debate instaurado no Parlamento, o tema teve um intenso debate no plano da sociedade civil, materializado em dezenas de fóruns e encontros levados a cabo em todo o país. 192

Frank La Rue (2009), Relator Especial das Nacões Unidas Sobre o Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, no caso, destacou enfaticamente este processo deliberativo que teve a lei, dado que a mesma surgiu “do documento de princípios proposto por organizações da Sociedade Civil, e posteriormente foi submetida à consulta popular em todas as regiões do país. Isto também constitui um grande precedente em matéria de propostas legislativas que estou seguro que o Congresso da República saberá valorar”.

8. A Coalizão. Acordos e Desacordos A tarefa levada adiante pela Coalizão por uma Radiodifusão Democrática foi de uma importância substancial no processo que conduziu à sanção da Lei de Serviços de Comunicação Audivisual. A derrogação do marco regulatório imperante em matéria de radiodifusão, que materializava esse acordo entre as grandes mídias e o poder político institucional, constituiu um fato de uma enorme transcendência. A democratização do campo das mídias, a aposta na desconcentração e a atenuação do poder dominante das multimídias são feitos incontestáveis. De todo modo, não é objeto do presente trabalho a análise pormenorizada da Lei 26.522, suas virtudes e debilidades, mas destacar o processo que conduziu à sua sanção e a importância do papel desempenhado pelos diversos movimentos sociais vinculados à comunicação. Nessa ordem, deve se assinalar que, além da ideia convocante e unificadora da Coalizão, de derrogar o referido marco regulatório, existiam em seu seio diversas correntes de opinião sobre essa temática. Cristian Jensen, chefe de assessores da Comissão de Comunicações e Informática da Câmara de Deputados e membro da Coalizão, explica deste modo: Vale destacar que este processo não transcorreu todo este tempo de maneira tranquila, não todo foi idílico, nem muito menos, devemos aprender a conviver com tensões internas, seja pelas diferentes culturas e interesses das organizações de origem, fortes personalidades, diversas pertenças políticas e de espaços de militância, tensões que exigiram dos integrantes desse espaço coletivo dar o melhor de cada um para evitar a explosão (JENSEN, 2011).

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Nesse sentido, Nestor Piccone, jornalista, delegado sindical e ator da Coalizão se refere a uma divergência existente nesse movimento social relativa à reserva de 33% do espectro para as entidades sem fins lucrativos. Como se indicou anteriormente, estes grupos aderiram à tese do Relator para a Liberdade de Expressão da OEA, que sustentava a necessidade de se assegurar o funcionamento de três tipos de meios de comunicação: os públicos, os privados comerciais e os correspondentes às entidades sem fins lucrativos. Desta forma, Piccone (2011) começa aclarando que “A Coalizão foi uma construção muito ampla e uma experiência inédita de unidade política. Seu ganho mais importante foi o de crescer e se ampliar desde um programa de 21 pontos, congregando em seu seio setores que por outros temas nem podiam se sentar em uma mesma mesa”. Logo, referindo-se ao tema, relata um fato protagonizado pelos representantes dos Povos Originários – que integravam a Coalizão -: “’Nós não somos uma pyme [pequena e mediana empresa] nem uma organização sem fins lucrativos; somos povos pré-existentes’. Não batalhavam no marco dos 33 por cento. E a Coalizão compreendeu o conceito e todos juntos incorporaram a reivindicação dos 21 puntos à ley e se logrou que cada etnia tivesse a possibilidad de aceder a um canal e a uma rádio” (PICCONE, 2011). Como consequência disso, no Título IX, a Lei 26.522 assegura aos povos originários o direito de aceder de maneira direta a diferentes meios de comunicação audiovisuais. A rigor, as diferenças internas dos movimentos sociais são muito comuns. Julieta Lemaitre Ripoll (2009) explica a dinâmica dos acordos e divergências dos movimentos sociais:

violência. E nesta reivindicação o direito se converte em estandarte” (LEMAITRE RIPOLL, 2009). Em nosso país, há numerosos exemplos de desacordos internos de movimentos sociais. Um deles é o que integram gays, lésbicas, travestis, transgênero, bissexuais e intersexuais, GLTTBI, conhecido também como o movimiento da diversidade sexual. Aluminé Moreno, por exemplo, expressa que a Marcha do Orgulho constitui um espaço muito valorizado pelo ativismo GLTTBI e, como tal, é muito disputado entre os diferentes setores, destacando-se que neste âmbito se expõem as discussões acerca das demandas e reivindicações que devem ser interpostas. Também recorda que:

Isso não quer dizer haja acordos unívocos entre os movimentos sociais sobre o conteúdo preciso do que quer dizer ser cidadão, sujeito de direito, humano. Para alguns movimentos, isto reflete ideais liberais universalistas sobre os direitos humanos e a relação entre o indivíduo e o Estado; para outros inclui variações sobre os direitos coletivos, as identidades étnicas, e, inclusive, críticas ao universalismo implícito nas ideais liberais tradicionais.

Retornando à Coalizão para uma Radiodifusão Democrática, pode-se apreciar que este movimiento social, como tantos outros, apresentava diferenças internas; entretanto, por sua vez, apesar das divergências, um denominador comum os “nucleava”: sancionar uma nova lei de mídias. Era, parafraseando Ripoll, seu estandarte.

Em seguida, a autora afirma que “o humanismo se converte em um denominador comum mínimo entre concepções jurídicas distintas sobre o conteúdo específico dos direitos. E o humanismo implica, como mínimo, uma reivindicação do valor do humano que é persistentemente uma reivindicação contra a 194

No ano de 2001 um grupo de ativistas organizou um espaço sob o nome “La Carreta”, com o objetivo de expressar dissidências a respeito das e dos organizadores da Marcha do Orgulho no referido às ordens convocantes. A partir desse momento, todos os anos se realizou uma Contramarcha com o objeto de propor uma série de reivindicações que se supõem marginalizadas do discurso oficial.

Para em seguida aclarar que: os desacordos acerca do valor da Marcha e a Contramarcha põem em evidência os diferentes modos de construir e, portanto, de visibilizar gays, lésbicas, travestis, transsexuais, transgêneros, bissexuais e interssexuais, como sujeitas e sujeitos de direito, as distintas possibilidades disponíveis para a formulação de reivindicações ao Estado e à sociedade e a ordem de prioridades que se atribui a esses reclames (MORENO, 2008).

9. À guisa de conclusão Como se indicou anteriormente, não é o objetivo do presente trabalho analizar o texto da Lei 26.522, seus acertos e erros; nem tampouco considerar a 195

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aplicação dessa norma por parte do governo ou estudar o processo de judicialização que tal lei gerou. Sem prejuízo, pode-se apontar que certas falências do debate legislativo – que pontou Gargarella – impediram algumas melhoras e correções que a norma demandava. Não obstante, é necessário afirmar categoricamente que a Lei 26.522 representa um avanço formidável em relação ao marco regulatório anterior à sua sanção. Boa parte dos princípios expostos nos 21 pontos foi adotada pela mencionada lei e isto é um passo adiante na democratização e na abertura do sistema de mídias. Sobre o tema em particular, foi decisivo o papel dos movimentos sociais vinculados à comunicação, nucleados na Coalizão por uma Radiodifusão Democrática. Este processo de transformação da legislação no campo audiovisual foi motorizado por estes grupos, ante a inação – ou aquiescência – dos setores políticos tradicionais. Por certo, uma vez que o tema esteve instalado no cenário público, existiu um acompanhamento por parte do poder político institucional para concretizar o objetivo de sancionar a nova lei. Como explica Sergio Fernández Novoa (2011), pela primeira vez se deu um trabalho conjunto das organizações que sempre pugnaram por mudar a lei (associações de meios comunitários, cooperativos, pymes [pequenas e médias empresas], sindicatos de trabalhadores da comunicação, setores universitários, povos originários, movimentos sociais e políticos, entre outros) com quem ocupavam lugares no Executivo e no Congresso. E assim foram sendo coordenadas ações defensivas e de avanço.

Um dos objetivos centrais dos MSC foi visibilizar o tema; concientizar a sociedade a respeito da importância da nova lei de mídias. Na contramão, a determinação das grandes corporações de mídias foi ocultar o tema. Como demonstra Susana Sel (2011), “a estratégia desses grupos, que rechaçaram totalmente o projeto, teve diferentes etapas, primeiro invisibilizando o tema, logo negando-o, e por último tergiversando-o, para evitar o debate generalizado de ideas e a participação popular em uma lei que habilita a diversidade de discursos e a pluralidade de vozes”. Nestor Piccone (2011) também opina: “O que surpreendeu foi que não houvesse negociação. Na mesma Coalizão se considerava que se os grupos midiá196

ticos tivessem participado da negociação haveria saído uma lei distinta e todos teriamos que havê-la aceitado”. Sem dúvidas, a contribuição e a participação das grandes mídias haveria enriquecido o debate. Porque não o fizeram? Gerentes de rádios e canais de TV explicam que os fóruns nos quais se debateu a lei eram adversos aos grandes grupos. O clima destes eventos, afirmam, era decididamente hostil, parcial e tendencioso. É provável que, em alguns encontros, houvesse situações como as descritas pelos titulares das mídias. Porém, não é menos certo que durante 25 anos a tática de negociar privativamente com os operadores políticos havia proporcionado excelentes resultados às grandes mídias. Na verdade, uma das grandes contribuições que trouxe o processo de discussão da lei de mídias foi colocar em cena o caráter complexo dos meios de comunicação. Ninguém duvidava que eram veículos da liberdade de expressão, mas poucos tinham a plena consciência que, ademais, eram poderosos atores econômicos e que perseguiam seus próprios interesses setoriais. Quanto a isto, não há nada de reprovável na defesa setorial de interesses privados. O problema é quando se apresenta sob uma roupagem de interesse público. Pior ainda é quando, desde posições de poder, digita-se a agenda pública. O êxito da Coalizão não foi só visibilizar o tema, mas também apresentar a Lei de Mídias como uma questão que vai além dos interesses setoriais, como uma questão que importa para toda a sociedade. Nesse contexto, a Lei de Mídias apareceu ligada a valores centrais no debate constitucional. A liberdade de expressão, o direito à informação, a democratização das mídias, o acesso às frequências por parte de todos os grupos sociais, entre outros tópicos, foram apresentados como questões substanciais de toda sociedade democrática. Como ensina Siegel, os movimentos sociais logram o êxito quando apresentam suas demandas específicas enquadradas em objetivos gerais. Por exemplo, indica que o movimento pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos alcançou plena aceitação social quando argumentou que o voto exclusivo masculino violava o princípio de que “sem representação não há taxação”, princípio pelo qual se lutou na revolução dos Estados Unidos contra a coroa britânica. Apelando aos princípios fundamentais e à memoria e tradição constitucionais daquele país, as mulheres asseveravam que os homens que desprezavam suas reivindicações violariam os direitos das mulheres da mesma maneira que o rei britânico havia violado os direitos dos colonos. 197

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Nesse sentido, finalmente, Siegel, expressa que: Para convencer os cidadãos que não pertencem a suas fileiras ou a funcionários do governo que reconheçam seus reclames, o movimento deve expressar seus valores como valores públicos. Um movimento pode realizar sua visão constitucional somente na medida em que seja persuasivo na apresentação de sua visão como uma visão nacional, requerida pelos princípios e em concordância com a memória que constituem a tradição constitucional da Nación (SIEGEL, 2005).

De certo modo, isto é o que logrou a Coalizão para uma Radiodifusão Democrática, ao apresentar sua demanda sobre a necessidade de se sancionar uma nova lei de mídias, como uma questão substancial para aprofundar a institucionalidade democrática argentina.

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Fábio Carvalho Leite

1. Introdução A ideia de regulação dos meios de comunicação, sob a égide da Constituição de 1988, sempre enfrentou dificuldades de implementação no Brasil. E, embora seja tentadora a leitura de que o apoio e a oposição à regulação corresponde a dicotomias como progressistas/conservadores, isso pode ser enganoso. Mesmo as propostas de classificação indicativa dos programas de televisão, por exemplo, que tem previsão constitucional expressa (art. 21, XVI, CRFB), encontraram forte resistência em setores com viés mais progressista na comunidade jurídica (BARROSO, 2001; 2008). Acredito que a resistência à regulação dos meios de comunicação se manifesta por diferentes razões, que devem ser bem compreendidas, pois variam também em grau de legitimidade. Assumindo o risco da simplificação de um quadro mais complexo, é possível identificar quatro obstáculos à ideia de regulação: (i) a experiência histórica de censura no período que antecedeu a promulgação da Constituição de 1988, que desempenha um papel compreensível no receio à regulação, ao menos no que tange ao controle de conteúdo; (ii) o interesse na manutenção do status quo pelos que dele se beneficiam, seja porque conduzem a programação nos meios de comunicação, seja porque com ela se identificam (ideologicamente); (iii) a defesa da liberdade de expressão como um princípio que necessariamente exclui o controle ou a regulação estatal; e (iv) o 187 Este trabalho é resultado de pesquisa financiada pela Faperj (Auxílio à Pesquisa – APQ1) e também de pesquisa realizada pela acadêmica Carolina Monteiro de Castro Silveira, bolsista de iniciação científica (CNPq).

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receio em relação ao controle por conta da indefinição e imprecisão dos limites à liberdade de expressão. Tais obstáculos não são auto-excludentes, podendo se combinar de diferentes formas. O interesse aqui, contudo, recai somente sobre os dois últimos pontos, embora por diferentes razões. A defesa do princípio da liberdade de expressão implica (ou ao menos deveria implicar) um conhecimento mais profundo acerca do seu conteúdo e de seus limites, e nesse aspecto, talvez por influência do trauma histórico destacado no ponto (i), a consistência jurídica do tema no Brasil tem deixado a desejar. Como bem observou Jane Reis Pereira “[o] debate sobre o choque entre liberdades comunicativas e a regulação do mercado audiovisual no Brasil tem assumido contornos maniqueístas, e não se sofisticou em escala proporcional à de outros temas importantes em nossa agenda constitucional” (PEREIRA, 2013: 170). Há uma mistura de preconceito (ainda que as razões sejam compreensíveis), desinformação, distorção – muito relacionada ao destacado no ponto (ii), que envolve um grupo que provavelmente abandonaria seus princípios se o status quo lhe fosse desfavorável – e um distanciamento das questões que efetivamente deveriam ser consideradas e que animam o debate sobre liberdade de expressão em outros países. A associação entre liberdade de expressão e total ausência de regulação dos meios de comunicação, por exemplo, é bem reveladora do nível do debate no Brasil. Não por acaso, ao analisar os argumentos apresentados pelos ministros do STF no julgamento da ADI 2.404, onde se discutiu a constitucionalidade da vinculação de horários de transmissão de programas de TV e rádio às faixas etárias correspondentes, Jane Reis destacou que: [f]oi citado o sistema norte-americano de classificação indicativa da indústria cinematográfica como bom exemplo de autorregulação do mercado, sem referência, contudo, ao fato de que, em relação à TV aberta, ainda vigora nos Estados Unidos uma barreira de horário que cerceia a exibição de conteúdo impróprio entre 6h e 22h, e que a inobservância de tais critérios pode ensejar a aplicação de sanções pela Federal Comunication Comission. (PEREIRA, 2013: 170)

O segundo ponto a ser destacado é o que parece ser o mais sensível, e talvez o obstáculo mais legítimo. Quando se trata de impor limites à liberdade de expressão, há uma dificuldade de controle de conteúdo, que decorre de diversos fatores, por melhores e mais legítimas que sejam as finalidades das limitações 202

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– dificuldade que seria mais bem compreendida se o debate no Brasil fosse mais profundo e superasse as simplificações dominantes. Não pretendo aqui discutir a ideia de regulação da mídia; ao contrário, assumo como premissa que algum grau de regulação é fundamental numa sociedade democrática. A simples constatação de que alguma forma de regulação é adotada nas democracias contemporâneas frequentemente apontadas como referência por setores de qualquer ponto do espectro ideológico brasileiro já seria bastante sugestiva. Também não pretendo abordar todos os aspectos que a ideia de regulação dos meios de comunicação envolve, como, por exemplo, o problema da concentração de veículos de comunicação por determinados grupos, gerando quase um monopólio da informação e de expressão em geral – o que, curiosamente, só é condenado quando há monopólio estatal (poder político), mas deixa de ser questionado por muitos quando o controle se dá por poucos e grandes grupos empresariais (poder econômico), ainda que o problema seja basicamente o mesmo. O aspecto a ser privilegiado aqui é o controle de conteúdo nos meios de comunicação, o que envolve uma série de dificuldades inerentes à complexa e sensível tarefa de impor limites à liberdade de expressão. Imagine, por exemplo, um programa de TV onde o apresentador faz um discurso discriminatório contra mulheres e homossexuais. No mesmo canal, há também um programa onde são exibidos videoclipes musicais, sendo que as músicas executadas têm letras que: condenam danças de casais homossexuais; defendem que um homem que fosse decidido e determinado deveria cometer atos de violência física contra a mulher; afirmam que um homem deveria espancar uma mulher se a encontrasse com outro rapaz; ou que ridicularizam um homossexual, que usa brincos, maquiagem e tem um cabelo diferente. Proibir programas como esses, e/ou impor multas à emissora pode até parecer algo simples, mas de fato não é. Ao menos se considerarmos que o primeiro programa citado é na verdade um programa religioso, onde o apresentador fez seu discurso citando trechos bíblicos188 e que no segundo programa foram exibidos os vide188 Trechos bíblicos: “Porém se isto for verdadeiro, isto é, que a virgindade não se achou na moça, Então levarão a moça à porta da casa de seu pai, e os homens da sua cidade a apedrejarão, até que morra; pois fez loucura em Israel, prostituindo-se na casa de seu pai; assim tirarás o mal do meio de ti” (Deuteronômio 22: 20-21); “Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela encontrar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa” (Deuteronômio 24: 1); “Melhor é morar só num canto de telhado do que com a mulher briguenta numa casa ampla” (Provérbios 25:24); “Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. Isso é abominável!” (Levítico 18:22)

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oclipes das seguintes músicas populares: “Vale tudo”189, do cantor Tim Maia, “Silvia”190, do grupo de rock Camisa de Vênus, “Santeria”191, do grupo norte-americano Sublime, e “Money for nothing”192, da banda inglesa Dire Straits. Pode-se até mencionar, como argumento, que, em janeiro de 2011, o Canadian Broadcast Standards Council, conselho que regulamenta as rádios canadenses privadas, decidiu proibir a execução da música Money for nothing, justamente por conta da passagem citada acima193, mas seria difícil defender que isso torna o caso mais fácil. Os programas de TV são os mesmos citados inicialmente, o que mudou foi apenas a forma de apresentá-los, e isso na prática faz diferença. Mas deveria? Por quê? O debate no Brasil sobre limites à liberdade de expressão não chega a esse nível de sofisticação, e a jurisprudência produzida a partir desse quadro reflexivo muito raso gera decisões baseadas em fundamentos indeterminados e/ou abrangentes, que alcançam apenas o caso concreto a ser decidido, sem qualquer reflexão sobre a aplicação a casos semelhantes – reais ou hipotéticos – a fim de testar a validade do argumento, o que acaba gerando, muitas vezes, decisões contraditórias para situações parecidas. Portanto, assumindo como premissa que a regulação dos meios de comunicação não apenas não conflita com a democracia, mas é também, em alguma medida, necessária a ela, pretendo levantar alguns aspectos importantes sobre a dificuldade na imposição de limites à liberdade de expressão, e que devem ser considerados para que não se ignorem os perigos existentes em qualquer projeto regulatório, por melhores que sejam as suas intenções. Em seguida, apresento alguns casos decididos pelos órgãos que integram o sistema de regulação na

189 Trecho da música: “Vale, vale tudo/ Vale o que vier/ Vale o que quiser/ Só não vale dançar homem com homem/ Nem mulher com mulher/ O resto vale”. 190 Trecho da música: “Todo homem que sabe o que quer/ Pega o pau pra bater na mulher / Ô Silvia, piranha!” 191 Trecho da música: “If I could find that heina/ And that Sancho that she’s found/ Well, I’d pop a cap in Sancho and I’d slap her down”. Tradução: “Se eu pudesse encontrar aquela mina/ e aquele Sancho com quem ela se meteu/ Bem, eu estouraria Sancho e eu a espancaria”. 192 Trecho da música: “See the little faggot with the earring and the makeup/ Yeah, buddy, that’s his own hair/ That little faggot got his own jet airplane/ That little faggot he’s a millionaire”. Tradução: “Olha aquele viadinho, usando brinco e maquiagem/ Pois é, cara, aquele cabelo é dele mesmo/ Aquele viadinho tem seu próprio jatinho/ Aquele viadinho é milionário!”. 193 Conforme noticiado pelo jornal ingles The Guardian: http://www.theguardian.com/music/2011/ jan/17/dire-straits-money-nothing-banned (acesso em 17.01.2011)

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Alemanha, verificando basicamente o que é questionado (a natureza dos temas que suscitam polêmicas) e como são decididos os casos. Trata-se de resultado parcial de pesquisa acadêmica ainda em andamento, mas que, dentro dos seus limites, pode contribuir para a reflexão sobre o tema no Brasil.

2. Alguns problemas e desafios sobre limites à liberdade de expressão no Brasil O maior problema da liberdade de expressão no Brasil talvez seja justamente a ideia de que não há propriamente um problema a ser resolvido. Há um senso comum (no campo jurídico, mas também fora dele) de que a liberdade de expressão é fundamental à democracia, que a censura foi banida expressamente pela Constituição de 1988, que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, que ela não exclui a condenação posterior (indenização por dano material, moral e à imagem, por exemplo), e que os limites à liberdade de expressão devem ser verificados a partir de uma ponderação com o(s) outro(s) direito(s) em conflito. Essas são ideias básicas, válidas para qualquer regime democrático, que devem funcionar apenas como premissas, mas que pouco informam sobre o modo como serão definidos os limites à liberdade de expressão. E é aqui que reside o problema. Imagine, por exemplo, que em determinada cidade, um jornalista escreve uma reportagem em tom crítico ao prefeito, com o título “Discípulo de Kadafi”, comparando sua permanência no governo municipal com a resistência do mencionado ditador em não abandonar o governo da Líbia, e afirmando ainda que o prefeito era “caloteiro” e “despreparado”. Na mesma semana, um vereador dessa mesma cidade, e que integra a base de apoio ao governo na Câmara Municipal, afirma em seu programa de rádio que determinado vereador da oposição “tem uma incrível facilidade de mentir”. Agora considere que tanto o prefeito como o vereador do partido de oposição tenham ajuizado, cada qual, uma ação cível pleiteando indenização contra o ofensor pelos danos morais causados à sua honra a partir da ofensa proferida. É provável que os juízes que apreciariam os casos recorreriam às premissas citadas acima, e chegariam a um resultado a partir de uma ponderação entre a liberdade de expressão do ofensor e a honra do ofendido. Portanto, os fundamentos em ambas as sentenças poderiam começar com “a digressão, tantas vezes fascinante, a respeito da obviedade democrática que é a necessidade de garantia da liberdade de Imprensa – de que o Poder 205

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Judiciário brasileiro é, historicamente, efetivo guardião, garantindo-a mesmo quando por ela atingidos seus próprios integrantes e, por vezes, em tolerados momentos de desbordamento” (Recurso Especial nº 959.330, Relator: Min. Sidnei Beneti). Em seguida, os juízes reconheceriam que “o exercício de qualquer direito deve-se adstringir ao âmbito da proporcionalidade, de sorte que aquele que, conquanto exercendo um direito reconhecido, atinge injustamente bem jurídico de outrem, causando-lhe mal desnecessário, comete abuso de direito, indenizável o dano também em resposta aos excessos do causador” (Recurso Especial nº 984.803 – Relatora: Min. Nancy Andrighi), e que a “discussão em espeque envolve dois direitos fundamentais de relevância ímpar no ordenamento jurídico pátrio: a liberdade de informação ou de comunicação e a tutela dos direitos da personalidade, entre os quais se destacam a honra, a imagem e a vida privada. Verificando-se que ambos foram albergados pelo texto constitucional, constando eles, aliás, do título que trata dos direitos e garantias fundamentais, tem-se que a solução se encontra no equilíbrio entre os referidos valores, de maneira que a preponderância de um dos direitos ou princípios diante das particularidades de uma situação concreta não resulta na invalidade ou exclusão do outro, mas de mera mitigação pontual do princípio contraposto” (Recurso Especial nº 818.764, Relator: Min. Jorge Scartezzini). Ou seja, “a solução deste conflito não se dá pela negação de quaisquer desses direitos. Ao contrário, cabe ao legislador e ao aplicador da lei buscar o ponto de equilíbrio onde os dois princípios mencionados possam conviver, exercendo verdadeira função harmonizadora” (Recurso Especial nº 984.803 – Relatora: Min. Nancy Andrighi). Até aqui, todos os magistrados que enfrentam casos semelhantes parecem estar de acordo, razão pela qual montei esse pequeno (monstro de) Frankstein com pedaços de acórdãos do STJ. A divergência vai surgir justamente no resultado dessa harmonização, onde os juízes dos casos acima podem decidir tanto a favor da liberdade de expressão do ofensor como a favor do direito à honra do ofendido. E “podem” nos dois sentidos do verbo: de fato e de direito. É dizer, (i) é possível que o façam e (ii) é permitido que o façam. Sobre o primeiro ponto, uma pesquisa194 realizada junto ao Superior Tribunal de Justiça, levantando decisões (em Recursos Especiais e apenas na esfera 194 Os relatórios desta pesquisa, por mim coordenada, estão disponíveis em: http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2013/relatorios_pdf/ccs/DIR/DIR-Luisa%20Soares%20 Ferreira%20Lobo.pdf

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cível) sobre os conflitos entre liberdade de expressão e direitos da personalidade em geral, no período de 2002-2010, revelou que, embora haja uma prevalência da tutela dos direitos da personalidade, não há uma constância nos processos se considerarmos as decisões das instâncias inferiores. Ou seja, um caso decidido pelo STJ em favor do direito à honra pode ter sido decidido pelo juiz e/ou pelo tribunal em favor da liberdade de expressão, e vice-versa, o que gera uma insegurança jurídica e, consequentemente, um convite ao ajuizamento de ações a cada nova situação de conflito entre aqueles direitos. O segundo ponto é o que mais interessa aqui, pois parece conferir um verniz de legitimidade a um quadro que contraria ao menos um princípio básico do Direito, que é a segurança jurídica. Como isso ocorre? E por quê? Sugiro ao menos duas explicações para esse fato: a compreensão de que a existência de fundamento jurídico (em obediência ao dever de fundamentação das decisões judiciais, conforme art. 93, IX, CRFB) é condição suficiente para a legitimidade da decisão, e a supervalorização das peculiaridades dos casos concretos, o que autorizaria o julgador a decidir um caso sem se preocupar com o reflexo de sua decisão (e respectivos fundamentos) para outros casos (que certamente não terá exatamente as mesmas características). Estes pontos estão relacionados entre si. Toda decisão judicial deve ser fundamentada. Trata-se de uma condição necessária contra o arbítrio do Estado, aqui representado na figura do Poder Judiciário, mas não de uma condição suficiente para tanto. Uma decisão pode ser fundamentada sem deixar de ser arbitrária. Alguns casos hipotéticos podem ilustrar esse ponto. Um juiz que profere sentença autorizando a matrícula de um candidato aprovado em exame vestibular para a Universidade X, mesmo sem atender ao requisito legal de comprovação de conclusão do ensino médio, sob o argumento (tão comum nos dias de hoje) de que a Constituição assegura o direito à educação e que o candidato demonstrou capacidade para ingresso no ensino superior, por ter sido aprovado no concurso vestibular. Considerando que estes são os fundamentos adotados pelo juiz para afastar a exigência legal, o Ministério Público decide ingressar com uma ação civil pública com o propósito de garantir este mesmo direito a todos os cidadãos (potenciais candidatos) que sejam aprovados em vestibular e pretendam se matricular em curso de nível superior sem terem concluído o ensino médio – ação que é distribuída ao mesmo http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2012/relatorios_ pdf/ccs/ DIR/ JUR-Paula%20 Chueke%20Rabacov.pdf.

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juiz. Uma decisão favorável implicaria autorizar a matrícula de qualquer candidato de qualquer idade cursando qualquer série de qualquer escola aprovado em exame vestibular para qualquer curso em qualquer instituição de ensino superior daquele Estado. Permitiria, por exemplo, que um aluno da 9 série do ensino fundamental, com 14 anos de idade, ingressasse num curso com mais vagas do que candidatos por ter sido aprovado num exame relativamente fácil numa instituição pouco conceituada. Afinal, se as razões para afastar a regra legal no primeiro caso foram apenas que “a Constituição assegura o direito à educação” e que “a aprovação em exame vestibular demonstra capacidade para ingresso em ensino superior”, não há como não reconhecer que tal aluno de ensino médio deveria ter direito de ingresso no curso para o qual foi aprovado. Afinal, ele atende a todas as razões que o juiz afirmou serem suficientes para deferir o pedido no caso anterior. Se o juiz julgar improcedente o pedido, sem apontar diferenças relevantes para o caso anterior – o que especificaria melhor o seu entendimento sobre a questão –, estará sendo arbitrário. E se, depois, julgar procedente novo pedido em ação individual a um aluno de 17 anos do 2 ano do ensino médio aprovado numa das mais conceituadas universidades do Estado, mas insistindo nos mesmos fundamentos indeterminados (direito constitucional à educação – o que o juiz entende por isso? O que o dispositivo efetivamente prescreve ou assegura?) e abrangentes (demonstração de capacidade a partir da aprovação no vestibular – o que, em tese, abrange qualquer um nesta condição), continuará sendo arbitrário – e isso a despeito de todas as decisões terem sido fundamentadas. É claro que o juiz pode chegar ao mesmo resultado nos três casos (procedência, improcedência e procedência) sem ser arbitrário, mas deveria adotar fundamentos mais específicos para diferenciar os casos, o que nos conduz ao segundo ponto. Cada caso é um caso. Todos os casos são singulares, e as regras jurídicas são elaboradas para serem aplicadas a diversas situações, a despeito das suas singularidades. A e B podem se encontrar na mesma situação e pleitearem o mesmo direito: por exemplo, ambos chegaram com um minuto de atraso ao local onde deveriam realizar prova em concurso público, e querem ingressar no local de prova alegando razoabilidade e a irrelevância de apenas um minuto de atraso. Mas A é rico, tem emprego fixo, mora ao lado do local do exame, acordou tarde porque saiu para se divertir na véspera, enquanto B é pobre, está desempregado, deve sustentar 5 filhos, mora em outra cidade, e foi surpreendido com a greve de ônibus. Os casos são diferentes, mas a regra aplicável será a mesma e o resultado 208

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será igual para ambos. Há situações, contudo, em que as diferenças implicam ou podem implicar um resultado diferente, em que as singularidades autorizam a não aplicação da regra jurídica, como o clássico exemplo de Schauer (2002: 32), onde a regra “é proibida a entrada de cães em restaurantes” pode não ser aplicada a um cego acompanhado de seu cão-guia. De todo modo, o que se constata é que (i) num Estado de Direito precisamos de regras, (ii) que serão aplicadas a casos distintos, (iii) mas que excepcionalmente podem não ser aplicadas em alguns casos porque haveria razões fortes, decorrentes de alguma(s) peculiaridade(s), que justificariam isso. Para as hipóteses de conflito entre liberdade de expressão e outros direitos constitucionalmente tutelados não há, com raras exceções, regras claras e precisas a serem aplicadas ou mesmo eventualmente afastadas. Essa situação confere uma certa discricionariedade ao julgador na resolução dos casos concretos, mas apenas num primeiro momento. Diante da ausência de regras legislativas específicas, cabe aos órgãos judiciários – com maior responsabilidade às instâncias superiores – construir entendimentos (“normas”) a respeito do tema e, claro, aceitar suas consequências. Um bom exemplo a este respeito foi a decisão da Suprema Corte dos EUA no julgamento do caso NY Times Co. vs. Sullivan (1964), quando enfrentou a questão relativa à responsabilidade da imprensa quando publica informações que não são verdadeiras ou totalmente verdadeiras e que mancham a reputação de ocupantes de cargos públicos. Trata-se de uma questão sensível, pois decidir em favor do jornal poderia significar quase um direito de faltar com a verdade concedido à imprensa, e à custa da honra e reputação de pessoas que estivessem ocupando cargos públicos. Por outro lado, decidir contra o jornal poderia inibir ataques e críticas ao governo e às autoridades públicas, já que todas as informações veiculadas deveriam ser verdadeiras e precisas, o que na prática inviabilizaria o trabalho da imprensa. Aliás, se tivesse sido condenado em razão do anúncio que deu origem ao caso, e considerando-se que mais de uma autoridade pública havia ajuizado ação por difamação contra o jornal, “o New York Times provavelmente chegaria a dever US$ 3 milhões – o suficiente para fechá-lo” (LEWIS, 2011: 70). A Suprema Corte, ao decidir em favor do NY Times, firmou um entendimento que ficou conhecido como “actual malice doctrine”, segundo o qual a imprensa só poderia ser condenada por difamação contra autoridades públicas se ficasse demonstrado que o autor ou o responsável pela publicação sabia que a notícia era falsa ou agiu com negligência im209

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prudente (reckless disregard) quanto à veracidade ou não dessas informações (LEWIS, 2011: 73). Poder-se-ia argumentar que este modo de resolução de conflitos é típico do modelo norte-americano, e válido apenas para países que adotam a common law ou têm uma cultura jurídica mais jurisprudencial. No entanto, destaquei este caso como exemplo justamente porque o entendimento firmado pela Suprema Corte dos EUA tem servido de parâmetro à jurisprudência de tribunais em diversos países e até mesmo das Cortes internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Poderia ainda dizer que foi invocada pelo STJ, no julgamento do Recurso Especial n.º 984.803/ES, mas, na verdade, a relatora, Min. Nancy Andrighi apenas citou trecho de uma obra acadêmica onde o autor explica o significado da “regra da actual malice”, e nada sugere que o tribunal tenha firmado orientação às instâncias inferiores, nem que se sinta vinculado a este entendimento para casos futuros195. É claro que a decisão tomada no caso NY Times foi fruto de uma ponderação, o que, ao menos em tese, é o que se pratica no Brasil. Mas as (poucas) semelhanças terminam aí. A Suprema Corte efetivamente decidiu e reconheceu o que decidiu – a prevalência da liberdade de expressão e de imprensa sobre a honra de ocupantes de cargos públicos – sem recorrer a termos como “harmonização de direitos”, dificilmente válidos para casos como este. E o tribunal não apenas enfrentou e decidiu esta questão sensível, como também aceitou as consequências da decisão nos termos em que foi fundamentada: a partir de então, se um ocupante de cargo público se sentir ofendido por uma reportagem que cita alguma informação falsa ou imprecisa a seu respeito já sabe que não fará jus a uma indenização por difamação, a não ser que o repórter ou editor soubesse que a notícia era falsa ou tivesse agido com negligência imprudente (segurança jurídica). Não importa quem é a autoridade, nem quem é o seu advogado, nem a ideologia do órgão de imprensa: as consequências seriam as mesmas (isonomia). No Brasil, a resolução dos casos segue um caminho oposto. Juízes e tribunais assumem como premissa que podem harmonizar a liberdade de expressão e os direi-

195 Vale aqui lembrar que o Ministro Gilmar Mendes, que é um dos mais polêmicos (se não o mais polêmico) integrante do STF, até a presente data saiu-se vitorioso em todas as ações que ajuizou por ofensas que recebeu (e também nas ações em que foi réu, pelas ofensas que proferiu), mesmo que as informações a respeito do ministro (ocupante de elevado cargo público) não fossem falsas.

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tos que a ela se contrapõem (Recurso Especial nº 984.803 – Relatora: Min. Nancy Andrighi), o que curiosamente resulta, na esmagadora maioria dos casos, na condenação de quem exerce a liberdade de expressão, como demonstrado na pesquisa jurisprudencial citada anteriormente. E como as decisões restringem-se aos casos concretos, não há fixação de regras e entendimentos que ultrapassem as partes do processo e orientem os próprios magistrados, as instâncias inferiores, a sociedade em geral e potenciais interessados na questão jurídica para casos futuros. Diante desse cenário, e retomando o exemplo citado no início deste tópico, onde um prefeito ajuizou ação contra um jornalista por ter sido chamado de discípulo de Kadafi, caloteiro e despreparado, e um vereador da mesma cidade moveu ação por ter sido chamado de mentiroso (tem uma facilidade incrível de mentir) por outro vereador em seu programa de rádio, os juízes que julgariam estes casos poderiam decidir pela improcedência dos pedidos, sustentando que “a liberdade de expressão protege a crítica, mesmo que seja ofensiva, sobretudo contra autoridades públicas”. Mas poderiam também decidir pela procedência dos pedidos, alegando que “a liberdade de expressão encontra limites no direito à honra” ou que “salta aos olhos, a meu juízo, que não se trata de simples manifestação do pensamento, mas de uma deliberada intenção de ofender a honra e a imagem da autoridade pública” (adaptação do fundamento adotado pela 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça ao dar provimento ao recurso especial n. 1.504.833/ SP, reformando decisão do TJSP). Poder-se-ia alegar que os casos são diferentes, e não poderiam ser decididos da mesma forma. Num caso, um jornalista afirmou que o prefeito era caloteiro e despreparado, e ainda o comparou ao ditador da Líbia, o que não poderia ser equiparado a uma situação onde um vereador afirma que outro vereador é mentiroso, o que seria aceitável na arena política. Talvez. Mas o fato é que nos casos reais que inspiraram estes casos hipotéticos ocorreu exatamente o oposto. O STJ, reformando o entendimento do TJSC (que era o mesmo da primeira instância), condenou o deputado estadual que afirmou que outro deputado do mesmo estado “tinha uma facilidade incrível de mentir” (REsp nº. 801.249/SC, relatora: Min. Nancy Andrighi), ao passo que o TJRJ julgou improcedente o pedido da Prefeita de Campos dos Goytacazes, Sra. Rosinha Garotinho, contra um blogueiro que publicou uma charge com o título “Discípulos de Kadafi”, comparando sua permanência no governo municipal com a resistência do mencionado ditador em não abandonar o governo da Líbia, além de uma notícia imputando à prefeita (autora na ação judicial) a mácula de “caloteira”, “despreparada” (Apelação cível nº 0018041-51.2012.8.19.0014). 211

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O mais curioso nesse caso é que o desembargador relator citou justamente um julgado do próprio STJ (REsp 744537) – como mero reforço argumentativo, claro – onde o tribunal superior julgou em favor da liberdade de expressão. Mais curioso ainda, a relatora era novamente a Ministra Nancy Andrighi. No Brasil, portanto, os casos sobre liberdade de expressão são decididos sem que nenhum entendimento concreto e específico seja firmado e, consequentemente, sem que nenhuma orientação seja oferecida para casos futuros ou até mesmo para evitá-los, conferindo à sociedade alguma segurança jurídica e evitando decisões contraditórias para casos semelhantes, o que pode gerar tratamento diferenciado a quem se encontra em situação semelhante. Não há uma resposta certa e minimamente segura sobre a licitude de manifestações, discursos, escritos, piadas, exposições artísticas ou músicas, quando estes afetam outros direitos constitucionais, como a honra, a imagem ou a liberdade religiosa, por exemplo. Nem mesmo a tão celebrada decisão do STF no julgamento do HC 82.424, que manteve a condenação, por crime de racismo, de um cidadão que havia publicado livros de conteúdo antissemita, foi capaz de firmar entendimentos seguros sobre a questão. Com raras exceções (Martins Neto, 2008: 14; Vojvodic et. al., 2009: 28-33), a doutrina jurídica brasileira não faz qualquer observação crítica ao julgado, o que seria compreensível se estivéssemos considerando apenas a condenação moral ao discurso claramente hostil aos judeus. Mas em relação à interpretação e aplicação do direito, à construção de sentidos, enfim, à fixação de um entendimento, o julgado deixou (e muito) a desejar. Por conta do peculiar processo decisório adotado no STF (Mendes, 2013; Vojvodic et. al., 2009; Rodriguez, 2013; Leite e Brando, 2015), onde cada ministro pode proferir um voto independente, abordando os pontos que julgar importantes e podendo restringir-se a eles, bastando ao final que sejam somados os votos pelos resultados a que chegam, sabemos apenas que, para o STF, o conceito de racismo não se limita ao aspecto biológico e inclui a discriminação contra judeus, e que, para a maioria dos membros do tribunal, o paciente daquele habeas corpus havia cometido o crime de racismo. Todos os outros pontos importantes para a definição dos limites à liberdade de expressão neste caso que envolve discurso de ódio permaneceram em aberto. Como demonstrado por Vojvodic et al. (2009: 32), não se sabe, a partir do julgado, quais são as condutas que configuram o crime de racismo: “Publicar um livro? Ter uma editora? Caso a conduta incriminadora seja a publicação de um livro, de que tipo – como um manifesto, incitação ao racismo, científico ou revisionista?” (Vojvodic et al., 2009: 32). 212

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Há, portanto, no Brasil, ao menos dois problemas (que estão relacionados entre si) a respeito do julgamento de casos envolvendo liberdade de expressão e seus limites: os fundamentos indeterminados e/ou abrangentes para a resolução dos casos e a certeza de que os fundamentos adotados não implicarão compromisso com casos futuros, ainda que estes estivessem teórica e/ou potencialmente incluídos naqueles. Adotar um sistema de regulação que envolva controle de conteúdo sem resolver esse problema implica estender à esfera administrativa todos os problemas identificados na esfera judicial, que resultam em tratamento diferenciado para questões semelhantes, sem uma fundamentação adequada ou convincente, gerando não raras vezes privilégios e condenações seletivas.

3. A regulação sobre conteúdo de programas de TV na Alemanha: análise de casos Neste tópico, serão apresentados alguns casos apreciados pelos órgãos reguladores da Alemanha – casos que foram levantados no âmbito do grupo de pesquisa sobre o tema regulação dos meios de comunicação – e que integra as pesquisas em desenvolvimento no Núcleo de Estudos Constitucionais da PUC-Rio. A pesquisa se iniciou há pouco mais de um ano, de modo que os resultados ainda são parciais e limitados, embora suficientes para os objetivos deste artigo. Os casos foram selecionados em parceria com a acadêmica Carolina Monteiro Silveira (bolsista de iniciação científica do CNPq) a partir da base de dados disponível no Merlin observatory, que listou 20 casos, julgados entre os anos de 2000 a 2014, envolvendo a regulação de conteúdo da programação de emissoras comerciais do sistema de radiodifusão na Alemanha, e foram analisados a partir do teor disponível nos endereços eletrônicos da autoridade reguladora federal alemã (die Medienanstalten)196, das autoridades reguladoras estaduais de radiodifusão e do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht)197. O sistema de radiodifusão na Alemanha compreende tanto emissoras públicas como emissoras privadas (estas, somente a partir dos anos 80), mas cada qual é regulada por uma legislação própria. Considerando-se os objetivos deste trabalho, a pesquisa realizada voltou-se apenas para as emissoras privadas, cuja 196 http://www.die-medienanstalten.de/ 197 http://www.bundesverfassungsgericht.de/en/index.html

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regulação jurídica envolve basicamente (i) uma lei geral – o “Interstate Broadcasting Treaty” (Rundfunkstaatsvertrag)198, promulgada por todos os estados-membros, e (ii) leis estaduais, que devem estar de acordo com a lei geral. As diretrizes a serem observadas envolvem pontos como, por exemplo, o dever de assegurar pluralidade de opiniões e participação de grupos minoritários e terceiros que possam contribuir para a pluralidade da programação, em especial nas áreas de cultura, informação e educação199; limites a propagandas comerciais (tempo, horário, vedações)200; direito de resposta201; além de uma proteção destacada aos direitos das crianças, contando com uma legislação específica (“Protection of Young Persons Act” e o “Interstate Treaty on Protection of Minors in the Media”) e autoridades reguladoras específicas, a saber: a Freiwillige Selbstkontrolle der Filmwirtschaft (FSK), que é um órgão de autorregulação, e a Kommission Jugendmedienschutz (KJM), que é a autoridade reguladora estatal, devendo ambas funcionar em regime de cooperação202. É interessante observar que esses pontos apresentados aqui como diretrizes são na verdade disciplinados de forma mais específica, o que reduz a discricionariedade dos órgãos de regulação e evita muitos dos problemas apontados no tópico 2, que decorrem da ausência de regras ou orientações jurisprudenciais mais específicas no Brasil para lidar com o sensível tema da liberdade de expressão e seus limites. 198 A versão antiga está disponível em < http:/www.iuscomp.org/gla/statutes/RuStaV.htm> e a atual versão em alemão em . 199 A fim de contribuir para a pluralidade da programação, as emissoras comerciais são obrigadas, por exemplo, a reservar 260 minutos por semana em sua programação para terceiros – sendo que 75 minutos deverão ser transmitidos entre 19h e 23h30. 200 Por exemplo: as transmissões de programas religiosos e programas infantis não podem ser interrompidas por propagandas; o tempo dedicado à propaganda não pode ultrapassar 20% da transmissão diária da emissora; e as propagandas não podem ser vinculadas a nenhuma programação de conteúdo editorial, de forma que devem ser anunciadas de forma distinta e separada da programação da emissora. 201 A resposta deve ser transmitida sem inserções, pelo mesmo tempo do programa que deu origem ao direito e está limitada aos seguintes fatores: (a) a parte afetada deve ter um interesse legítimo na resposta; (b) a resposta veiculada deve estar restrita a informações de fato e não conter acusações. 202 Como observou Carolina Silveira (2014: 6), “na medida em que o FSK encontra um problema na programação de determinada emissora, o órgão encaminha a situação para a KJM analisar e decidir qual medida será tomada. Em contrapartida, quando a FSK autoriza o conteúdo de determinada programação por entendê-lo adequado, a KJM só poderá adotar posição contrária à referida decisão se demonstrar que a FSK agiu contrariamente à lei, isto é, que a transmissão do programa viola dispositivo legal.”

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Em linhas gerais, a estrutura do sistema de regulação de radiodifusão compreende 1 (uma) autoridade reguladora federal (die Medienanstalten) e 14 (catorze) autoridades reguladoras estaduais203, com órgãos internos compostos por representantes de grupos sociais e especialistas no tema. As autoridades são responsáveis pela concessão das licenças, supervisão de todos os campos de regulação (proteção dos menores, propaganda, conteúdo da programação) e podem utilizar diferentes instrumentos e sanções, começando pela declaração formal de que houve violação das condições de licenciamento por parte de determinada emissora, até a aplicação de multas ou revogação da licença. No caso de questões envolvendo proteção aos menores, a autoridade, assim como a FSK, deve reportar a situação à KJM, que possui maior expertise no tema. As autoridades reguladoras estaduais formaram ainda uma associação204 (ALM), que criou diferentes grupos de trabalho específicos para determinados temas. A pesquisa sobre a regulação na Alemanha (Silveira, 2014), realizada no âmbito do grupo de pesquisa do NEC da PUC-Rio, analisou os 20 casos listados pelo banco de dados IRIS Merlin, decididos no período 2000-2014. Dos 20 casos, 4 não passaram pela esfera administrativa e foram levados diretamente ao Poder Judiciário. Os outros 16 casos foram decididos pela autoridade e, em seguida, pelo tribunal administrativo, sendo que 3 desses casos foram levados depois ao Poder Judiciário. Dos 13 (treze) casos que ficaram apenas na esfera administrativa (autoridade reguladora e tribunal administrativo), a decisão da autoridade reguladora foi reformada pelo tribunal administrativo em apenas 1 (um) caso. Nos 3 (três) casos que foram levados também ao Poder Judiciário, este manteve a decisão da autoridade reguladora confirmada pelo tribunal administrativo. Um destes três casos foi levado também à Corte Europeia de Direitos Humanos, que também manteve a decisão administrativa. Este quadro, embora resulte da análise de um universo limitado, sugere algum prestígio dos órgãos reguladores na Alemanha – o que corrobora a premissa citada na introdução e assumida neste trabalho de que, longe de ser uma medida autoritária, algum grau de regulação é fundamental numa sociedade democrática.

203 Embora a federação alemã tenha 16 estados, duas agências estaduais abrangem 2 estados cada uma, de modo que as 14 agências cobrem todos os 16 estados-membros da federação. 204 Association of State Media Authorities (Arbeitsgemeinschaft der Landesmedienanstalten, ALM, http:// www.alm.de).

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Em relação aos temas discutidos, a maior parte envolveu a proteção do direito das crianças (30% dos casos), a proteção da dignidade humana (15% dos casos) e anúncios publicitários, mais especificamente a associação de propaganda com a programação da emissora, o que é vedado pela legislação alemã (15% dos casos). Os outros 40% relacionam-se a temas variados. Para o presente trabalho, foram analisados 4 casos. O primeiro caso a ser destacado (MTV Music Channel vs. autoridade reguladora da Baviera205) refere-se ao programa I want a famous face, transmitido pela emissora MTV Music Channel, e que acompanhava as transformações de 12 jovens que recorreram à cirurgia plástica (aumento de seios, lipoaspirações, injeções) com o propósito de ficarem parecidos com seus respectivos ídolos. Os episódios haviam sido examinados e aprovados pelo FSK (órgão de autorregulação) para exibição no período diurno, mas a KJM (órgão de regulação estatal) entendeu que o programa só poderia ser exibido entre as 23h e as 6h. De acordo com a KJM, a decisão da FSK estava em desacordo com a lei de proteção aos menores (Jugendschutzgesetz), pois o programa não apenas não oferecia nenhuma abordagem crítica nem mesmo informações sobre os riscos à saúde decorrentes de intervenção cirúrgica, como ainda promovia a cirurgia estética entre as crianças, adolescentes e jovens. A MTV interpôs recurso ao tribunal administrativo do estado da Baviera, que, no entanto, manteve a decisão. O tribunal entendeu que o programa sugeria aos jovens, ainda em fase de desenvolvimento de sua própria identidade, que a aparência externa é o que mais importa e que esta pode ser livremente alterada, podendo ainda causar a impressão de que os problemas comuns de autoestima podem ser resolvidos por meio de intervenções de cirurgia estética, e ressaltando por fim os pontos já levantados pela KJM quanto à ausência de informações acerca dos prejuízos da cirurgia estética ou de qualquer abordagem crítica a este respeito. O caso é interessante porque o tribunal manteve a decisão de mudança de horário de exibição, a partir de fundamentos que atingem o próprio conteúdo do programa. Ou seja, não se cogitou sequer a hipótese de proibição da exibição, apesar das críticas dirigidas ao programa em si. Nota-se uma certa deferência à liberdade de expressão em seu viés mais individual. Por outro lado, é igualmente 205 Urteil des VGH vom 23. März 2011 (Az. 7 BV 09.2512 und 7 BV 09.2513) DE Administrative Court ruling of 23 March 2011 (case no. 7 BV 09.2512 and 7 BV 09.2513)

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interessante registrar a inconformidade por parte da emissora, que recorreu da decisão da KJM, insistindo assim na exibição do programa I want a famous face no período diurno. Este caso, decidido em março de 2011, foi o primeiro em que a KJM divergiu de uma decisão da FSK sobre faixa de horário apropriada para a exibição de um programa. O segundo caso (KJM vs. RTL – Die Autohändler206, decidido em fevereiro de 2007), refere-se à imposição de multa (no valor de € 1.005,29) pela KJM à emissora RTL em razão da exibição do programa “Die Autohändler”, onde duas mulheres que procuravam emprego de funcionárias da limpeza numa concessionária de automóveis sofreram um tratamento depreciativo e desrespeitoso por parte dos personagens principais do programa. Em determinado momento, por exemplo, um personagem jogou subitamente uma maleta contra uma das mulheres, chamando-a de “Toastbrot” (um pedaço de pão) e em seguida, referindo-se à sua aparência, perguntou se ela já havia trabalhado num trem fantasma. Não houve questionamento a respeito da faixa de horário, que já havia sido aprovada oportunamente pela FSK e pela KJM, pois o problema não envolvia o programa, mas um episódio específico. E como o problema era justamente o conteúdo deste episódio – considerado prejudicial à formação dos jovens vis-à-vis o objetivo da educação de promover a capacidade de aprender a respeitar o outro e o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres –, a questão foi levada diretamente à KJM. De acordo com a KJM, o modo como aquelas mulheres foram tratadas foi desrespeitoso, depreciativo e machista, mostrando que a contratação ao emprego no setor de limpeza da concessionária estava condicionada mais à aparência das candidatas do que às suas habilidades para o trabalho. O órgão regulador considerou ainda que os comportamentos exibidos no programa poderiam ser compreendidos pelo público jovem como algo que faz parte da vida cotidiana, devendo ser aceito de forma acrítica. Além da multa, a KJM ordenou também que não fossem mais exibidos programas com esse teor. O recurso interposto pela emissora à autoridade reguladora da Baviera fundamentou-se em questões processuais, mas a decisão foi mantida. O terceiro caso envolvia a exibição, pela emissora RTL, de cenas de maus tratos praticados por uma enfermeira num idoso de 91 anos. Tanto a autoridade reguladora da Baixa Saxônia como o tribunal administrativo (em grau de re206 Verwaltungsgericht Hannover, Urteil vom 6. Februar 2007 (Az.: 7 A 5469/06).

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curso) reconheceram o objetivo da reportagem de dar destaque aos problemas enfrentados por muitos idosos em situações semelhantes, mas consideraram que não era legítima a transmissão de imagens de forma estendida e detalhada em que um homem idoso impotente é submetido a maus-tratos e insultos por parte da enfermeira responsável pelos seus cuidados diários Embora o tribunal tenha feito considerações genéricas e abrangentes a partir do princípio da dignidade da pessoa humana em sua fundamentação, como afirmar que a dignidade é violada “quando as pessoas não são mais vistas como independentes, mas são exploradas para um fim específico, como para atingir um alto índice de audiência e receita através da degradação” e que “a pessoa afetada é transportada e exposta por razões de ganância econômica”, a decisão também foi específica (ou ao menos um pouco mais específica) ao reconhecer que a questão deveria ser abordada (por ser de grande importância para o debate público) sem o uso de imagens com ampla exposição de abusos e humilhações num senhor de 91 anos de idade, dependente e desamparado. Os limites da pesquisa não permitem afirmações categóricas sobre os efeitos da decisão para casos futuros, o que demandaria outro tipo de investigação. Mas, supondo que haja uma preocupação em firmar um entendimento sobre um tema tão comum (ao menos no Brasil reportagens como essa são transmitidas com alguma frequência), é possível identificar na decisão o entendimento de que as emissoras não podem transmitir imagens como aquelas “de forma estendida e detalhada”. Não ficou muito claro se estaria proibida a simples exibição da imagem, de forma rápida e sem exploração sensacionalista. De todo modo, parece que uma orientação ainda que mínima foi (ou teria sido) firmada a este respeito. O quarto e último caso foi apreciado tanto em âmbito administrativo como judicial, mas com pedidos distintos, já que o pedido formulado na esfera judicial ultrapassava a competência das autoridades administrativas. A abordagem aqui, no entanto, limita-se ao processo judicial, mais especificamente à decisão do Tribunal Constitucional da Alemanha, e que foi mantida pela Corte Europeia de Direitos Humanos (Tierbefreier vs. Germany207). Um jornalista havia assinado contrato de trabalho com uma empresa que realizava experimentos com animais (macacos) mantidos em seu estabeleci207 Disponível em: http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-140016> acesso em 20.06.2015.

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mento, o que era autorizado pela legislação do país. O jornalista coletou 40h de filme, a partir de uma câmera escondida, mostrando o tratamento recebido pelos animais, e o ofereceu a uma associação de proteção aos animais, que também é emissora de televisão alemã. A emissora exibiu o filme, com 20 minutos do vídeo, sob o título “Envenenamento por lucro”, onde fazia críticas à empresa, afirmava que o tratamento dado aos animais era cruel e violava a legislação vigente. Também publicou em sua página na internet mensagens de apoio a ativistas que depredaram o prédio da empresa – frases como, por exemplo: “a vida de um animal é mais importante do que uma porta quebrada, um laboratório destruído ou incinerado” e “a emissora nada tem a ver com o sangue artificial colocado por toda a empresa negociante de macacos, mas se solidariza com os ativistas que realizaram tal ato”; “a emissora protege e mantém relações com ativistas que se arriscam à acusação pública com a finalidade de salvar a vida dos animais”; “a emissora demanda imediata abolição dos experimentos com animais e não requer melhores condições ou tratamento”; “a empresa é uma assassina e torturadora”. A Companhia C, então, ajuizou ação em face da emissora e do jornalista visando à reparação dos danos causados por este último, além de requerer que a emissora não disponibilizasse o vídeo para download em seu website. A decisão do Tribunal Constitucional, determinado que a emissora não disponibilizasse o filme para download em seu website (mesmo entendimento das instâncias inferiores), foi pautada no conceito de “regras da batalha intelectual de ideias”, que, segundo o tribunal, não teriam sido respeitadas pela emissora. É claro que a Corte considerou a liberdade de expressão, mas não da forma vaga como fazem os magistrados no Brasil, ressaltando apenas os seus aspectos positivos, com os quais todos estariam de acordo. Ao contrário, o tribunal alemão afirmou que a liberdade de expressão protegia as postagens sensacionalistas, os comentários feitos pela emissora e mesmo o fato de o material ter sido obtido de forma ilícita, considerando-se que o tema (experimentos com animais) representa uma questão controvertida e de interesse público208, restando saber, é claro, se o tribunal assume as consequências dessas afirmações sobre liberdade 208 A título de exemplo vale mencionar o caso “Das Erste” (emissora de TV) vs. “Daimler” (a fábrica de carros), em que o jornalista assinou contrato de trabalho com a fábrica a fim de obter imagens que denunciavam a situação salarial ilegal dos trabalhadores da empresa. Neste caso o Tribunal entendeu que a relevância do tema para o debate público superava os danos sofridos pela emissora (Pressemitteilung des LG Stuttgart vom 9. Oktober 2014).

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de expressão em casos semelhantes, o que não foi possível identificar nos limites da pesquisa realizada. Pode-se dizer, então, que o tribunal reconhece uma proteção à liberdade de expressão a despeito do caráter sensacionalista e parcial do conteúdo. Ou seja, trata-se de um discurso efetivamente protegido, e não de mera garantia de ausência de censura prévia com uma possível (no Brasil, provável) condenação posterior. Portanto, o limite à liberdade de expressão não decorreu de seu caráter parcial, sensacionalista e/ou ofensivo à empresa, o que seria um argumento frágil, mas do desrespeito às “regras da batalha intelectual” – que ocorre quando a troca pública de opiniões é suprimida por intimidação ou agitação, ou quando uma impressão distorcida é criada a partir da omissão de informações ou a partir de informações inconsistentes. Segundo o tribunal, a emissora pode expressar sua crítica, mesmo que de forma parcial, mas, ao utilizar imagens obtidas ilegalmente, deve ao menos se preocupar com a exposição real dos fatos, sem distorcer informações. Nesse caso, levando em conta a clara intenção da empresa em influenciar o debate em seu interesse com a utilização de informações distorcidas e quebrando as regras da “batalha intelectual de ideias”, a liberdade de expressão deveria ceder frente aos direitos da empresa C. A emissora recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos, que, todavia, manteve a decisão, adotando basicamente os mesmos argumentos. Interessante registrar que esta decisão não firmou entendimento sobre o uso em geral de material obtido de forma ilícita – uma questão polêmica que continua em aberto209 – mas o fato de o vídeo ter sido feito a partir de uma câmera escondida sem conhecimento por parte da empresa tornaria legítima uma intervenção no que seria exibido ao público. É dizer, embora as linhas editoriais, as reportagens, os programas jornalísticos sejam em regra totalmente livres, podendo, consequentemente, ser parciais, o uso de material obtido de forma ilícita relativiza essa autonomia, impondo certos ônus à emissora para que sejam respeitadas as chamadas “regras da batalha intelectual”.

209 A título de exemplo vale mencionar o caso da emissora alemã “Das Erste” vs. a fábrica de carros “Daimler”, em que o jornalista assinou contrato de trabalho com a fábrica a fim de obter imagens que denunciavam a situação salarial ilegal dos trabalhadores da empresa. Neste caso o Tribunal entendeu que a relevância do tema para o debate público superava os danos sofridos pela emissora (Pressemitteilung des LG Stuttgart vom 9. Oktober 2014).

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A decisão neste caso revelou uma tomada de posição importante na difícil e sempre polêmica tarefa de encontrar um ponto de equilíbrio entre o privado (emissoras privadas) e o público (concessões públicas), o que parece ainda ser um tabu no Brasil. E a importância da posição assumida é ainda maior por ter sido referendada pela Corte Europeia de Direitos Humanos.

4. Conclusão O controle de conteúdo das emissoras de TV é um tema sensível, e assim deve ser compreendido. Afirmar que tal controle seria equivalente à censura, como alegam os opositores no Brasil, implicaria reconhecer que democracias contemporâneas como Alemanha, Austrália e Inglaterra, por exemplo, adotam mecanismos de censura. Precisamos superar esta objeção e elevar o nível do debate no País. Por outro lado, é importante reconhecer também que não se trata de uma tema simples, e que não é fácil estabelecer um ponto de equilíbrio entre a liberdade de expressão (em seus mais diversos aspectos) e a intervenção estatal legítima, geralmente baseada em princípios, valores e conceitos indeterminados. O presente trabalho voltou-se, portanto, a este último ponto, que não tem encontrado muito espaço no radicalismo do debate polarizado entre defensores e opositores a projetos de regulação dos meios de comunicação no Brasil. Há uma série de dificuldades inerentes à imposição de limites à liberdade de expressão em qualquer regime democrático, mas há algumas que decorrem de uma prática jurídica brasileira, de um modo de decidir os conflitos e que parece postergar indefinidamente a resolução das discussões sobre o tema: os fundamentos indeterminados e/ou abrangentes para a resolução dos casos e a certeza de que os fundamentos adotados não implicarão compromisso com casos futuros, ainda que estes estivessem teórica e/ou potencialmente incluídos naqueles. Nos casos que envolvem liberdade de expressão e outros direitos constitucionais quase sempre haverá bons argumentos para os dois lados, de modo que o julgador poderia decidir tanto em favor de um como do outro direito em disputa. E qualquer decisão deveria implicar não apenas a resolução do caso concreto, mas também uma tomada de posição a respeito da questão jurídica discutida. Uma decisão que se vale de conceitos abrangentes em seus fundamentos (por exemplo: as religiões, os humoristas etc.) para decidir um caso concreto com partes específicas (uma religião específica, um programa hu221

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morístico específico) cria uma expectativa de que todos aqueles teoricamente abrangidos pelo conceito alcançariam o mesmo resultado em lides futuras que envolvessem questões semelhantes. A decisão poderia também ser mais específica em seus fundamentos – por exemplo: condenando o humor que reforça a discriminação contra religiões de matriz africana, que são as mais oprimidas no País. Mas no Brasil experimentamos o pior dos dois mundos: a decisão tem fundamento abrangente, e só vale para o caso específico. E isso abre um campo para tratamentos discriminatórios, resultando em privilégios e condenações seletivas – e é desnecessário dizer o quão prejudicial isso seria numa sociedade desigual como a brasileira. Seria compreensível e até legítima uma resistência a um controle de conteúdo na programação televisiva sem que estas questões, que sequer são problematizadas no Brasil, sejam antes enfrentadas e resolvidas. A análise da experiência alemã revela que é possível impor limites ao conteúdo das emissoras, sem flertar com qualquer ideia de censura. Nos casos levantados pela pesquisa, as condenações impostas pelas autoridades reguladoras foram sempre confirmadas pelo tribunal administrativo, e mesmo pelo Poder Judiciário, quando os casos chegaram a esta esfera, o que sugere algum consenso quanto aos limites jurídicos desrespeitados pela emissora. Não foi possível, contudo, pelos limites da pesquisa realizada, identificar em que medida são firmados entendimentos que tragam algum grau de segurança jurídica sobre os temas apreciados, evitando novas decisões sobre questões já apreciadas, e com o risco de resultados contraditórios com os anteriores – tal como ocorre no Brasil no âmbito judicial. De todo modo, percebe-se naquele país uma compreensão de que a transmissão de um programa de TV impõe como ônus a observância de certos limites à autonomia e à liberdade de expressão, que não valeriam para uma revista ou um blog de internet, ainda que todos sejam privados. E embora seja interessante investigar uma posição crítica ao sistema de regulação na Alemanha, é provável que as objeções não sejam tão frágeis e superficiais como aquelas levantadas pelos opositores no Brasil.

5. Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. Constituição. Liberdade de expressão e classificação indicativa. Invalidades da imposição de horários para a exibição de programas televisivos. In: Revista de Direito de Estado, Ano 3, nº 11, 2008. 222

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A Democracia nos Media Portugueses: Pluralismo Político-Partidário na Televisão e na Imprensa José Santana-Pereira210 Susana Rogeiro Nina211

1. Introdução Nas democracias contemporâneas, a importância dos meios de comunicação social é incontestável. Os media são frequentemente designados por quarto poder, em acréscimo ao sistema de três poderes (separados) que está base do funcionamento das democracias: judicial, executivo e legislativo. Assim sendo, espera-se dos media um contributo para o funcionamento e para a qualidade das democracias. Para além de fomentar uma cidadania informada através da provisão de informação sobre assuntos importantes (CASTELLS, 2003), os meios de comunicação social devem promover a diversidade de pontos de vista sobre os eventos e os problemas importantes da sociedade, e criar fóruns em que candidatos e partidos políticos se apresentam e debatem ideias – um mercado livre de ideias, independente de interferências governamentais. Os media deveriam servir também como cães de vigia (watchdogs), examinando e acompanhando as ações dos políticos em nome dos cidadãos e contribuindo para a responsabilização das instituições políticas pelos seus atos e pelo seu desempenho (LANGE, 2004; VOLTMER, 2006). Para que estes papéis sejam cumpridos de maneira completa e inequívoca, o pluralismo político-partidário é essencial. Neste sentido, a discussão sobre o 210 Doutor em Ciências Políticas e Sociais pelo Instituto Europeu Universitário (IUE), Florença/Itália. É atualmente investigador no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa e Professor Auxiliar Convidado no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. 211 Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, vertente Ciência Política, pela Universidade da Beira Interior (Covilhã, Portugal). Atualmente é mestranda em Ciência Política no ISCTEInstituto Universitário de Lisboa.

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pluralismo e a diversidade dos meios de comunicação social “envolve a saúde das democracias, enquanto regimes políticos e organizações sociais que valorizam a via deliberativa, mediante a apresentação e discussão dos distintos pontos de vista, opiniões e sensibilidade que coexistem numa dada sociedade” (SILVA, 2013, p. 101). Nos meios de comunicação social, a existência de pluralismo e diversidade implica que partidos e formações políticas tenham um acesso equitativo aos media, para que os cidadãos compreendam o que os motiva e os distingue, para que em momentos eleitorais ou no dia-a-dia tenham ao seu dispor o necessário para efetuar uma escolha consciente e informada. Qual é a situação do pluralismo partidário nos media em Portugal, uma democracia jovem – a primeira da terceira vaga de democratizações (HUNTINGTON, 1991)? No estudo clássico dos sistemas de media ocidentais (HALLIN e MANCINI 2004), Portugal é descrito como um sistema pluralista polarizado, caracterizado, entre outras coisas, por um elevado paralelismo entre o sistema de partidos e o mercado dos media (com jornais e televisões altamente politizados defendendo e apoiando ideologias ou partidos concretos). No entanto, é relativamente consensual o facto de existir um menor paralelismo político no sistema português vis-à-vis o italiano ou o espanhol (TRAQUINA, 2010; SANTANA-PEREIRA, 2012; ÁLVARES e DAMÁSIO, 2013), aspeto que, aliás, os autores reconhecem (HALLIN e MANCINI, 2004, 2010). Afinal, o setor da imprensa espanhola tem sido designado por parlamento de papel (SHULZE-SCHNEIDER, 2009), enquanto que na Itália existem relações privilegiadas entre as esferas da política e da comunicação social (Ricolfi, 1997; Padovani, 2009). Já em Portugal, após a consolidação do regime democrático, o paralelismo político terá perdido relevância (HALLIN e MANCINI, 2004). Ao passo que os principais partidos se tornaram catch-all (tentando agradar a largos segmentos da sociedade e perdendo ou aligeirando a sua bagagem ideológica), os media terão seguido também um caminho de maior flexibilidade, diversidade ou neutralidade ideológica. No entanto, o estudo de Hallin e Mancini (2004) estabelece um retrato do pluralismo político que vai apenas até ao início do século XXI. O que tem acontecido na última década? Será que Portugal continuou o trilho de uma menor polarização e de um maior equilíbrio interno dos media em termos políticos? Este capítulo tem como propósito discutir o estado atual do pluralismo político-partidário nos media tradicionais em Portugal. Partindo de uma breve descrição do sistema de media e do sistema político português, faz-se uma breve 226

A Democracia nos Media Portugueses: Pluralismo Político-Partidário na Televisão e na Imprensa

apresentação das normas legais e da entidade que regula o pluralismo em Portugal. Em seguida, analisam-se dados recolhidos por esta entidade e por alguns estudos académicos, com o propósito de mapear o pluralismo político-partidário na prática, em momentos de rotina e em períodos de campanha para eleições legislativas e presidenciais.

2. O sistema de media e o sistema político português Portugal é, de acordo com Hallin e Mancini (2004), um sistema de media pluralista polarizado, caracterizado por um mercado de imprensa pouco desenvolvido, uma intervenção considerável do Estado no âmbito dos media, baixos níveis de profissionalização dos jornalistas e um considerável paralelismo entre imprensa e sistema partidário (ainda que, como vimos anteriormente, este paralelismo tenha perdido alguma intensidade, especialmente a partir dos anos 1980). Em termos de liberdade de imprensa, a situação em Portugal é comparativamente positiva, com níveis de ameaça à liberdade decorrentes das esferas legal, política e económica relativamente baixos. No entanto, os dados da Freedom House apontam para uma tendência de aumento destas ameaças entre 2003 e 2014, passando Portugal de um score geral de 14 (em 100) para um score de 18 no espaço de uma década (FREEDOM HOUSE, 2015). Do ponto de vista estrutural, o sistema mediático português caracteriza-se também por um nível considerável de concentração de propriedade dos media. Portugal é, tal como outros países da Europa do Sul, um país em que os padrões de concentração cross-media são preponderantes. Por exemplo, a Impresa controla o segundo canal generalista de sinal aberto mais visto em 2015 (SIC), vários canais temáticos por cabo, o semanário português de referência (Expresso) e uma revista de informação, para além de cerca de 20 por cento da agência noticiosa Lusa. A Media Capital controla o outro canal generalista privado de sinal aberto, líder de audiência em 2015 (TVI), canais temáticos, estações de rádio e um portal de internet. O Global Media Group, também acionista minoritário da agência Lusa, é proprietário da rádio TSF e dos jornais Diário de Notícias e Jornal de Notícias, sendo o último um dos diários mais lidos em Portugal. O diário não desportivo com maior circulação - o jornal de cariz popular Correio da Manhã - é propriedade da Cofina, que também detém o económico Jornal de Negócios e um canal por cabo. Por sua vez, o Estado Português contro227

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la a RTP, composta por dois canais de sinal aberto (um generalista - RTP1 - e outro mais alternativo - RTP2), vários canais por cabo e via satélite e algumas estações de rádio (entre os quais assume protagonismo a Antena 1), bem como mais de cinquenta por cento da agência Lusa. A concentração da propriedade dos media em poucas mãos é um fator de risco, sendo vista como uma ameaça à independência editorial (HANRETTY, 2014) e à pluralidade de pontos de vista no mercado mediático (DOYLE, 2002), com consequências tanto ao nível da diversidade política externa (pluralismo de pontos de vista oferecidos por diferentes media altamente politizados) como da diversidade política interna (neutralidade ou pluralismo no seio de cada órgão) (VOLTMER, 2000). O outro fator de risco com que o sistema mediático português se confronta é o impacto da crise económica na capacidade de sobrevivência dos jornais. Nos últimos dez anos, vários jornais conheceram problemas económicos graves, sendo que dois diários de âmbito nacional (Independente, 24 Horas) encerraram as duas portas e outros dois títulos (o diário i e o semanário Sol) anunciaram, em dezembro de 2015, o despedimento de dois terços dos seus colaboradores, o que não augura nada de bom para o seu futuro. O impacto de um mercado de imprensa frágil e economicamente em apuros é, como facilmente se compreende, negativo tanto em termos de qualidade do produto final como em termos de capacidade de resistência a pressões políticas e económicas (SANTANA PEREIRA, 2015). Quanto ao sistema político, Portugal é um regime semipresidencial, em que a chefia do Estado é entregue a um presidente da República eleito por sufrágio universal e que detém poderes consideráveis (embora inferiores aos do presidente francês, que efetivamente governa o regime semipresidencial mais famoso da Europa), e a chefia do governo é entregue a um representante de um partido político (normalmente o seu líder) com base nos resultados das eleições legislativas destinadas a selecionar os 230 deputados à Assembleia da República. Portugal caracteriza-se por uma grande estabilidade em termos de sistema partidário, até mesmo no atual período conturbado, decorrente da crise das dívidas soberanas e dos seus impactos económicos, financeiros e políticos, que afetou os sistemas partidários em vários países da Europa do Sul. Os partidos que, nos últimos anos, marcaram presença no parlamento são cinco: os partidos de centro-direita Partido Social Democrata (PSD) e de centro-esquerda Partido Socialista (PS), que, em conjunto, têm conseguido concentrar mais de dois terços dos votos dos portugueses; o partido de direita conservadora CDS-Partido 228

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Popular (CDS-PP); a coligação estável entre comunistas e verdes denominada Coligação Democrática Unitária (CDU); e o partido de esquerda radical Bloco de Esquerda (BE).

3. Legislação sobre pluralismo nos media em Portugal e a atuação da ERC O pluralismo e a diversidade política têm sido valores centrais das políticas e propostas legislativas que regem o sistema português, tanto ao nível europeu quanto nacional. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (de que Portugal é membro desde 1986) consagra, no artigo 11, que o direito à liberdade de expressão compreende a liberdade de opinião e liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos, reiterando, ainda, que devem ser respeitadas a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social. Por outro lado, o Conselho da Europa emitiu um parecer aos Estados-membros no qual constavam medidas para promover o pluralismo nos meios de comunicação (CONSELHO DA EUROPA, 1999). Para o Conselho da Europa, o pluralismo nos meios de comunicação deve contemplar a diversidade da oferta mediática e a pluralidade dos meios de comunicação, assim como a disponibilização ao público de conteúdos, perspectivas e opiniões plurais. O pluralismo político é entendido como “a necessidade de estar representado nos media um leque variado de opiniões políticas e pontos de vista no interesse da democracia” (CONSELHO DA EUROPA, 1999). Num documento de trabalho apresentado em 2007 sobre o pluralismo na comunicação social, a Comissão Europeia entende que a pluralidade e diversidade dos media é um conceito que engloba “um número de aspetos como a diversidade de propriedade, variedades de fontes de informação e de um leque de conteúdos disponíveis nos Estados-membros” (2007:8), remetendo para a tutela dos Estados-membros a questão da regulação da propriedade e concentração dos órgãos de comunicação social. Em Portugal, o princípio do pluralismo encontra-se expresso na Lei da Televisão, que estabelece no art.º 9 n.º 1 alínea c) que “constituem fins da atividade da televisão, consoante a natureza, a temática e a área de cobertura dos serviços televisivos, disponibilizar, promover a cidadania, a participação democrática e respeitar o pluralismo político, social e cultural”. No mesmo sentido, o art.º 34 229

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n.º 2 alínea b) exprime como uma das obrigações gerais dos operadores de televisão que explorem serviços de programação generalistas o dever de “assegurar a difusão de uma informação que respeite o pluralismo, o rigor e isenção”. Sobre os meios de comunicação social do setor público, o nº 6 do art.º 38 da Constituição da República Portuguesa impõe que seja assegurada a “possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião”. Este dever qualificado de respeito pelo pluralismo por parte do Serviço Público de Televisão é, ainda, consagrado no art.º 51 nº 2 alínea c) da Lei da Televisão que determina que “à concessionária incumbe, designadamente, proporcionar uma informação isenta, rigorosa e plural”. A monitoração do pluralismo político nos media é atualmente responsabilidade da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Em concreto, cabe à ERC, após legislação que em 2008 extinguiu a Alta Autoridade para a Comunicação Social, a regulação do pluralismo e diversidade nos meios de comunicação social, com competências específicas no controlo da concentração e proteção do pluralismo. Os estatutos da ERC, aprovados pela Lei nº 53/2005 de 8 de novembro, atribuem ao Conselho Regulador a competência para “promover o pluralismo cultural e a diversidade de expressão de várias correntes de pensamento” e para garantir a “efetiva expressão e confronto das diversas correntes de opinião em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial de cada órgão de comunicação social” (art.º 7, alínea a) e art.º 8 alínea e) dos Estatutos da ERC, EstERC). No esforço de defesa e garantia do pluralismo e diversidade dos meios de comunicação social, a ERC tem atuado como mediadora entre os media e os atores políticos, sociais e culturais, através de deliberações resultantes de iniciativa própria ou através de participação/queixa desses atores. O quadro 1 apresenta informação sobre todas as deliberações da ERC relativas a questões de pluralismo desde a entrada em funções desta entidade 2006 até outubro de 2015. Quadro 1- Deliberações da ERC relativas ao pluralismo (2006/outubro de 2015) Envolvimento de Meio Envolvido: partidos/candidatos/ TV membros eleitos (% do total) (% do total)

Ano

Total de Deliberações

Origem em queixa (% do total)

2006

3

100%

100%

100%

2007

14

86%

86%

64%

230

2008

3

100%

67%

33%

2009

10

90%

90%

60%

2010

13

85%

85%

38%

2011

14

93%

78,5%

36%

2012

7

86%

86%

43%

2013

8

100%

75%

62,5%

2014

6

83%

67%

67%

2015

7

86%

43%

28,5%

Total

85

89,4%

78,8%

50,5%

Fonte: Silva, 2013; ERC (www.erc.pt) Nota: Os dados de 2015 compreendem apenas o período entre janeiro e outubro.

Como se vê, o número de deliberações é relativamente baixo - em média, 8,5 deliberações por ano de atividade. Interpretamos estes dados como demonstrativos da inexistência de graves entraves ao pluralismo político partidário nos media portugueses na última década, mas do que ilustrativos de alguma incapacidade da entidade no sentido de deliberar sobre os mesmos – ainda que o trabalho da ERC esteja longe de ser consensual e isento de críticas. No quadro 1 há alguns aspetos que merecem realce. A atuação da ERC fica marcada, sobretudo, pela resposta a queixas e participações, com cerca de 90 por cento das deliberações não resultando de iniciativas próprias. As queixas apresentadas à ERC são na maioria dos casos originárias dos partidos políticos, membros eleitos e candidatos (78,8 por cento), constatando-se ainda, que o enfoque das deliberações relativas ao pluralismo revelam que no alcance nacional a televisão absorve cerca de 50 por cento das deliberações emitidas pela ERC. Em média, não existem diferenças substanciais entre o número de deliberações em anos eleitorais (quer se trate de eleições presidenciais, legislativas, europeias ou autárquicas) e anos de rotina no que diz respeito ao número de deliberações e da origem das mesmas, ainda que em anos eleitorais a proporção de deliberações envolvendo o meio televisivo - o mais importante em termos de comunicação política no país, dada a dimensão das suas audiências - é, em média, consideravelmente superior (66 por cento) do que em anos de rotina (45 por cento).

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4. O pluralismo político-partidário nos media portugueses em períodos de rotina Dissemos acima que Portugal é porventura um dos sistemas pluralistas polarizados em que o paralelismo entre a imprensa e o sistema de partidos ou, para utilizar a terminologia de Voltmer (2000), a diversidade externa - é menor. No entanto, a diversidade externa não tem apenas um reverso de medalha; de facto, um sistema com baixos níveis de paralelismo partidário pode, em teoria, apresentar uma das seguintes situações: uma maioria de jornais e televisões que apostam na neutralidade/diversidade/pluralismo interno ou uma maioria de atores que privilegia sistematicamente alguns partidos em detrimento dos restantes. Em Portugal, a situação aproxima-se mais do primeiro paradigma do que do segundo, ainda que o modelo português esteja longe de uma neutralidade absoluta. Comecemos por olhar para dados de 2009/2010 recolhidos pelo projeto European Media Systems Survey (POPESCU et al., 2012) com base num inquérito a especialistas em media e comunicação política. Em Portugal, os níveis de enviesamento político dos principais canais televisivos e dos jornais mais relevantes parecem ser relativamente e comparativamente baixos. Os canais de televisão são considerados como mais enviesados que os principais jornais, mas parece ter havido uma pluralidade dentro deste subsistema televisivo, com os canais do Estado a apresentar algum enviesamento pró-governo (PS) e os canais privados a exibir alguma simpatia pelos partidos de direita, ou seja, pela oposição com experiência governativa (POPESCU et al., 2012). Ademais, o enviesamento partidário dos canais do serviço público de televisão era considerado como sendo, moderado mas mais forte do que o expresso pelos canais privados. Dados da ERC recolhidos entre 2007 e 2010 tendem a apontar para uma maior presença de elementos do governo e do PS e de uma sistemática sub-representação do principal partido na oposição, ainda que se trate de um padrão que se esbate ao longo deste período; para além disso, a valência ou o tom associado às notícias nem sempre beneficiava de facto o primeiro.212 Este suposto desequilíbrio por parte da televisão de serviço público fez parte da agenda pública em 2009, tendo envolvido os partidos mais pequenos

212 Consultar os relatórios disponibilizados no site da ERC (www.erc.pt).

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representados no parlamento. O equilíbrio e o cumprimento das regras de equidade e respeito pelo princípio do pluralismo político-partidário no serviço público de televisão (RTP1 e RTP2) foi escrutinado e contestado pelos partidos da oposição parlamentar em 2009. De acordo com artigos publicados no Correio da Manhã a 8 de Novembro de 2009213 e no Diário de Notícias a 10 de novembro de 2009214, os pequenos partidos da oposição (CDU, BE e CDS-PP) queixaram-se de falta de pluralismo político na informação diária e não diária do serviço público de televisão, afirmando que as vozes políticas nem sempre são representadas de forma plural e reclamando um lugar mais ativo na agenda mediática da RTP. Ainda de acordo com os dados do inquérito a especialistas, a imprensa escrita que, como vimos, tende a ser menos partidária ou mais equilibrada internamente, não é homogénea: o Público (diário de referência) e o Jornal de Notícias são vistos como mais pluralistas que o Expresso ou o Correio da Manhã (conotados com a direita). Portugal é, depois da Dinamarca, o Estado-membro da União Europeia em que a orientação política dos jornalistas mais proeminentes é menos evidente para o público (POPESCU et al., 2012). Será que o retrato tirado à situação do pluralismo político partidário em 2009/2010 é representativo da relação entre media e partidos políticos na última década, ou espelha de forma demasiado restrita o contexto específico daqueles anos? Para responder a esta pergunta, usamos dados relativos ao pluralismo político-partidário na televisão portuguesa no ano de 2013, coligidos e disponibilizados pela ERC (2014). A análise compreende as peças jornalísticas em que o governo e os partidos políticos com e sem representação parlamentar estão presentes ou são referidos, transmitidas nos blocos informativos de horário nobre dos quatro canais de acesso livre. São considerados os casos em que as presenças surgem representadas em discurso direto ou indireto, ou sendo alvo de contraditório (Figura 1). Lamentavelmente, não existem dados comparáveis para a imprensa. Um dos padrões mais interessantes é o facto de os canais públicos (RTP1 e RTP2) não parecerem dedicar mais tempo ao governo e aos partidos que o 213 “CDS-PP apresenta na ERC queixa contra ‘Prós e Contras’” disponível em http://www.cmjornal.xl.pt/ tv_media/detalhe/cds-pp-apresenta-na-erc-queixa-contra-pros-e-contras.html 214 “PCP: exclusão de ‘Prós e Contras’ motiva queixa na ERC” disponível em http://www.dn.pt/tv-emedia/media/interior/pcp-exclusao-de-pros-e-contras-motiva-queixa-a-erc-1416264.html

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compõem (PSD e CDS-PP) que os canais privados SIC e TVI. Em todos os casos, há uma predominância do governo e de representantes dos partidos com responsabilidades governativas, numa proporção de três para dois - por cada três presenças destas entidades, encontram-se apenas duas presenças dos partidos da oposição representados no parlamento (PS, CDU e BE). Isto é devido, por um lado, à capacidade que os partidos no governo têm de falar e de criar eventos mediáticos usando dois chapéus distintos: o do governo e o do partido. Por outro, deve-se a um entendimento das atividades do governo por parte dos jornalistas e editores como assumindo uma importância crucial. A oposição extraparlamentar - ou seja, o conjunto de micropartidos de espectro nacional ou regional cujos resultados eleitorais nunca lhes permitiram assegurar pelo menos um assento parlamentar – é virtualmente invisível nos blocos informativos em 2013. Figura 1: Presenças Conjuntas do Governo e partidos do governo, oposição parlamentar e oposição extraparlamentar por canal em 2013

Fonte: ERC (2014)

Obviamente, o pluralismo passa por mais do que a mera presença ou ausência dos atores políticos - pressupõe alguma neutralidade na maneira como os mesmos são retratados. O relatório da ERC (2014) oferece dados sobre a valência, ou tom, associada à presença dos partidos políticos na televisão portuguesa. 234

Trata-se de um indicador que permite determinar se o enquadramento do ator ou partido político é positivo, neutro ou negativo. Em termos gerais, o governo e os partidos que o compõem são alvo de um tom negativo em praticamente metade das peças noticiosas (47 por cento), sendo as restantes peças caracterizadas por uma valência neutra ou positiva. Pelo contrário, os partidos da oposição com representação parlamentar são majoritariamente alvo de tons positivos, ainda que isto ocorra mais frequentemente no caso dos pequenos partidos de esquerda (CDU e BE) que no caso do PS, que governara o país até 2011. Quanto aos partidos sem representação parlamentar, estes parecem não despertar grandes paixões, sendo alvo de enquadramentos neutros em 75 por cento dos casos. Não existem diferenças substanciais entre canais televisivos no que diz respeito a esta questão (ERC 2014). Curiosamente, já o relatório de análise do pluralismo no serviço público de televisão de 2009 observara o mesmo padrão – uma maior tendência para que a valência reduza a notoriedade do governo e do partido que o controlava (PS) e um impacto positivo da valência na visibilidade dos partidos na oposição. A que se devem as diferenças entre 2009/2010 e 2013? Mais do que a uma grande volatilidade em termos de diversidade interna ou externa por parte dos vários meios de comunicação social, acreditamos que se devem, acima de tudo, aos enfoques distintos dos estudos da ERC e do inquérito a especialistas. De facto, é necessário sublinhar que os dados da ERC aqui analisados dizem apenas respeito à informação diária, sendo que os dados do inquérito a especialistas abrangem um entendimento mais alargado do pluralismo político que não se restringe necessariamente às peças jornalísticas nos programas informativos. O pluralismo político-partidário é necessário não apenas nos noticiários mas, evidentemente, noutro tipo de programas de informação. Em Portugal, o comentário político feito por personalidades direta ou indiretamente ligadas a partidos políticos (militantes, simpatizantes ou ex-membros das cúpulas) ocupa cada vez mais espaço nos jornais e nos canais de informação por cabo, não sendo também despicienda a sua presença nos canais generalistas, frequentemente sem contraditório, em modalidade de “comentário da semana”. Na televisão, os comentadores que têm direito a estes espaços exclusivos, ou aqueles que são presença constante em programas de comentário político são, de acordo com alguns críticos, quase sempre provenientes dos dois maiores partidos portugueses; noutras circunstâncias, critica-se a preponderância de comentadores de direita (ou de esquerda), a ausência de comentadores provenientes de partidos de 235

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esquerda radical ou a quase absoluta ausência de representantes de partidos sem representação parlamentar nos painéis de comentadores. Vejamos alguns casos. No fim de 2009, os comunistas e os conservadores de direita apresentaram à ERC uma queixa por alegada violação da obrigação de respeito pelo pluralismo informativo, da qual resultou a deliberação 2/ PLU-TV/2010 emitida a 17 de fevereiro de 2010. Na fundamentação da queixa, encontra-se o desequilíbrio de representação político-partidária do programa de debate da atualidade política e social Prós e Contras (RTP1), que já havia sido referenciado pela ERC como um exemplo em que o pluralismo político-partidário era insuficiente. Em junho de 2014, o jornal Público noticiava a exigência da ERC por um maior pluralismo nos espaços de opinião na RTP1, implicando a existência de comentadores mais diversificados politicamente.215 O aviso emitido pela ERC à estação pública decorreu das queixas contra a contratação, pela RTP, de José Sócrates (ex-primeiro ministro e ex-líder do PS) e Nuno Morais Sarmento (expoente do PSD e ex-ministro) como comentadores políticos semanais, pois colocavam em causa o pluralismo e diversidade visto representarem a opinião de apenas dois partidos políticos. Na deliberação 173/2014 (PLU-TV) resultante da queixa dos comunistas contra a RTP sobre os programas de comentário de José Sócrates e Nuno Morais Sarmento, por alegado privilégio dado aos PS e ao PSD em detrimento de outros partidos, a ERC impôs à RTP a “adoção de soluções que permitem uma maior presença, nos seus espaços de opinião de outros movimentos, forças políticas e correntes de opinião” (ERC, Deliberação 173/2014 (PLU-TV): 8) de forma a cumprir os princípios do pluralismo e da diversidade. Mais recentemente, a 10 de outubro de 2015, um artigo publicado no Público assinalava um problema semelhante nos espaços de opinião/comentário político da SIC e TVI que se encontravam a cargo de dois militantes e antigos líderes do PSD. A presença dos dois comentadores desrespeitava as deliberações da ERC e violava as obrigações legais do principio do pluralismo politico partidário, sendo de acordo com Alberto Arons de Carvalho (jornalista, professor universitário, e desde 2011 vice-presidente da ERC, mas também voz ligada ao PS…) “insustentável, quando, em plena campanha eleitoral, os referidos ex-dirigentes surgiam sucessivamente em horário nobre nos ecrãs televisivos vestindo, ora a 215 “ERC quer mais pluralismo na RTP além de Sócrates e Morais Sarmento”, disponível em http://www. publico.pt/politica/noticia/erc-quer-mais-pluralismo-na-rtp-alem-de-socrates-e-sarmento1663234

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camisola de participantes em atividades de campanha pelo seu partido, ora a de comentadores televisivos” (2015). Por último, vale a pena sublinhar que um dos principais comentadores da atualidade política, Marcelo Rebelo de Sousa (líder do PSD nos anos 1990) abandonou recentemente a sua carreira de 15 anos de comentário semanal nos noticiários de canais generalistas para concorrer às presidenciais de Janeiro de 2016. Marcelo é visto como o candidato favorito, vis-à-vis uma esquerda fragmentada e vários candidatos independentes com modesta expressão eleitoral, de acordo com as sondagens.

6. O pluralismo político-partidário nos media portugueses em períodos de campanha Se em períodos de rotina o pluralismo político partidário nos media é de grande importância, nos momentos que antecedem a ocorrência de eleições destinadas à seleção de representantes políticos a diversidade de pontos de vista políticos nos jornais e telejornais assume uma relevância ainda maior. Afinal, é no momento que antecede as escolhas de representantes por parte dos cidadãos eleitores que a necessidade de informação diversificada e completa se reveste de uma maior urgência, significado e impacto. Nesta secção, analisam-se dados relativos à presença de diferentes partidos e candidatos nos media em períodos de campanhas para eleições legislativas e presidenciais na última década, nomeadamente nas legislativas de 2005, 2009 e 2011 e nas presidenciais de 2006 e 2011. Comecemos pelas eleições legislativas. O estudo de Salgado (2009) sobre a análise da cobertura noticiosa da campanha para as eleições legislativas de 2005 analisou o volume e o enviesamento da informação transmitida/publicada naquele período. A autora observou uma predominância da cobertura noticiosa dos partidos com maior expressão eleitoral e dos seus líderes, ou seja, o PS (principal partido na oposição) e o PSD (o maior partido da coligação governativa), na imprensa escrita e na televisão. Quanto aos possíveis enviesamentos na televisão, 25 por cento das peças transmitidas apresentaram algum grau de enviesamento, sendo que 17 por cento exprimiam enquadramentos negativos e 8 por cento enquadramentos positivos. A RTP foi o canal que realizou a cobertura mais neutra, com apenas 14 por cento de peças com valência positiva 237

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ou negativa, sendo que a maioria das peças com enviesamento ou é positiva para José Sócrates (o challenger) ou negativa para Paulo Portas (líder do partido minoritário da coligação governante e ministro em funções). No caso das estações privadas, a SIC apresentou a cobertura mais isenta, com apenas 31 por cento de peças com enquadramentos não neutros. No entanto, as peças com enviesamentos no tom eram quase todas negativas: havia, nas notícias da SIC, uma prevalência de uma opinião desfavorável sobre os candidatos, com especial enfoque em José Sócrates e nos líderes dos dois partidos da coligação de governo. Na TVI, o operador privado cuja cobertura foi mais parcial, 56 por cento das peças transmitidas continham um enviesamento. Os alvos preferenciais dos enquadramentos negativos eram os candidatos dos dois maiores partidos, PS e PSD, apesar da cobertura da campanha de José Sócrates ter sido realizada de forma mais equilibrada do que a do primeiro-ministro Santana Lopes. Quanto à imprensa, Salgado (2009) destaca o facto de o jornal conotado com a direita Independente atacar bastante a esquerda e de o 24 Horas, dirigido por um simpatizante comunista, nunca ter publicado artigos de opinião contrários ao líder comunista Jerónimo de Sousa. Apesar disto, são relativamente modestos os níveis de enviesamentos observados nas outras publicações, muitas das quais são efetivamente mais relevantes do ponto de vista da qualidade e/ou apresentam valores de circulação mais elevados. Passados quatro anos, era o PS, liderado por José Sócrates, a apresentar-se às eleições enquanto partido no governo. Em abril de 2010, a ERC publicou um relatório sobre a cobertura jornalística das eleições legislativas de setembro de 2009 na rádio, imprensa e televisão. Centramos a nossa atenção nestes dois últimos meios, devido à sua relevância simbólica e em termos de estabelecimento de agenda (imprensa) ou à sua importância em termos de capacidade de captação de audiências e utilização diária no contexto português (televisão). De acordo com o documento da ERC, tanto os dois canais públicos como a SIC contemplaram, no “período em análise e nos seus espaços de informação a presença de representantes de todas as candidaturas, cumprindo o princípio geral de igualdade de oportunidades das diferentes candidaturas” (ERC 2010, p. 16). A exceção foi a TVI, que nos seus espaços informativos negligenciou quadro micropartidos de baixíssima expressão eleitoral. Quanto à imprensa, a ERC (2010) refere, que embora a presença dos representantes dos partidos/candidaturas de oposição extraparlamentar tenha sido bastante residual, vários jornais importantes (Correio da Manhã, Diário de Notícias, Público, Jornal i, Expresso) garantiram nas suas páginas a presença dos representantes de todas as 238

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candidaturas, em consonância com o princípio do pluralismo político-partidário. Os restantes títulos analisados (muitos dos quais correspondentes a revistas de informação ou diários de cariz mais popular) fizeram-no apenas parcialmente. Em termos gerais, não existem diferenças de monta entre os vários canais, jornais diários de referência e semanários. No entanto, alguns padrões identificáveis através da análise da Figura 2 merecem destaque. No que diz respeito à televisão, os canais privados SIC e TVI deram mais espaço ao partido no governo (PS) e ao principal partido na oposição (PSD) do que os canais públicos da RTP. Há, assim, entre os canais privados, alguma tendência para focar a cobertura da eleição no partido que controla o governo e no seu principal concorrente, fomentando uma bipolarização. Ao mesmo tempo, os partidos sem representação parlamentar recebem menos tempo de antena nos programas informativos noturnos dos canais privados. Figura 2: Presenças dos partidos nos media durante o período oficial de campanha para as eleições legislativas de 2009

Fonte: ERC (2010) Nota: Percentagens relativas à informação veiculada durante o período de campanha nos programas informativos noturnos de cada canal e na imprensa.

A tendência para atribuição de mais espaço aos dois principais partidos é também encontrada no jornal diário de implementação popular e maior circu239

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lação Correio da Manhã, que contrasta com os jornais de referência Público e Expresso e com outros títulos com grande circulação. Essa prevalência do PSD e do PS parece ocorrer em detrimento da cobertura dada aos pequenos partidos com representação parlamentar CDU, CDS-PP e BE (Figura 2). É curioso constatar que, nalguns casos, os padrões de meios de comunicação detidos pela mesma organização apresentam padrões muito similares: tal acontece com os jornais Diário e Jornal de Notícias, bem como com o Jornal i e o semanário Sol e, em menor grau, com os canais da RTP. No entanto, o mesmo não ocorre com os dois elementos da Imprensa aqui analisados, o canal privado SIC e o semanário Expresso, o que, contudo, pode ser devido aos constrangimentos associados aos diferentes meios (audiovisual e impresso) e a uma diferente periodicidade no contacto com as audiências. A presença residual, ou por vezes nula, da oposição extraparlamentar na cobertura noticiosa da campanha eleitoral já tinha sido assinalada quando da campanha para as eleições europeias de junho de 2009. Tal como a TVI24 noticiou em abril de 2009216 cinco micropartidos sem assento no Parlamento Europeu queixaram-se de terem sido excluídos do debate organizado pela RTP1 entre os cabeças de lista às eleições europeias. Para estes partidos, tal representou por parte da RTP1 um comportamento discriminatório. Com este fundamento, um dos queixosos apresentou uma queixa à Comissão Nacional de Eleições (CNE), acusando o órgão de comunicação de tratamento jornalístico discriminatório por desrespeitar as obrigações de isenção, imparcialidade e garantia de igualdade de oportunidades e exigindo a condenação pública e inequívoca da atuação da RTP1. O governo eleito em setembro de 2009 não durou sequer dois anos, vítima dos constrangimentos políticos e económicos decorrentes da crise das dívidas soberanas que assolou os países periféricos da União Europeia no final da década passada. Eleições antecipadas foram, assim, convocadas para junho de 2011. A ERC publicou um relatório sobre a presença dos partidos/candidaturas na televisão, na imprensa diária e nos semanários durante a campanha (2011a), relatando, sem surpresas, uma predominância clara, em todos os órgãos de comunicação, dos partidos com representação parlamentar. Uma vez mais, existem diferenças interessantes entre canais e jornais (Figura 3). No que diz respeito à televisão, é curioso constatar que os padrões observados 216 “Europeias: partidos queixam-se de falta de pluralismo”, disponível em http://www.tvi24.iol.pt/ politica/rtp/europeias-partidos-queixam-se-de-falta-de-pluralismo.

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nos dois canais do serviço público de televisão são bastante distintos - de facto, enquanto a RTP1 dá muito espaço a partidos sem representação parlamentar e é o canal que menos privilegia os dois principais partidos políticos (PSD e PS), a RTP2 caracteriza-se por ser o canal em que o partido no governo (PS) assegura uma maior fatia da informação veiculada nos noticiários. Em comparação com 2009, a proporção de espaço dedicado aos dois principais partidos é menor na maioria dos canais televisivos e jornais, com exceção do diário popular Correio da Manhã e do semanário Sol, que dedicam mais de metade das suas peças jornalísticas ao partido no governo e ao seu principal concorrente. Em perspectiva comparativa, é de salientar também o espaço dedicado ao CDS-PP, que consegue neste contexto uma maior proporção de peças jornalísticas, fator não dissociável das sondagens que o estimavam como terceiro partido mais votado nas eleições de junho. As conclusões que extraímos do relatório da ERC são, grosso modo, corroboradas por um estudo científico recentemente publicado por Antunes e Lisi (2015). Figura 3: Presenças dos partidos nos media durante o período oficial de campanha para as eleições legislativas de 2011

Fonte: ERC (2011a) Nota: Percentagens relativas à informação veiculada no período de campanha nos programas informativos noturnos de cada canal e na imprensa.

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O relatório final relativo à avaliação da cobertura jornalística das eleições legislativas de 2015 não foi ainda publicado pela ERC. Contudo, a nova lei sobre a cobertura eleitoral, aprovada a 23 de julho de 2015, veio colocar em causa o carácter do princípio do pluralismo político partidário. A Lei nº72-A/2015 veio colocar em primeiro plano a liberdade editorial dos órgãos de comunicação social em detrimento da igualdade de representação das candidaturas nos debates eleitorais. A referida lei consagrou que a representatividade das candidaturas nos debates eleitorais obedece ao princípio de liberdade editorial dos órgãos de comunicação social, tendo em conta a representatividade política e social das candidaturas aferida de acordo com os resultados que a mesma obteve em eleições anteriores. Neste sentido, cabe aos media a decisão de incluir, ou não incluir, candidaturas que tenham obtido um resultado pouco expressivo em eleições anteriores, significando a exclusão dos partidos não representados na anterior assembleia de qualquer debate eleitoral. O papel da RTP nesta matéria tem suscitado controversa: por um lado tentou, sem sucesso, impor um debate entre partidos do parlamento cessante, excluindo o PEV, mas incluindo, além da coligação eleitoral Portugal à Frente-PaF (PSD-CDS), o CDS-PP que não concorreu enquanto tal às eleições; por outro, promoveu entrevistas em horário nobre apenas com dirigentes daqueles partidos, incluindo o CDS/PP, mas não com qualquer dos partidos concorrentes não representados no parlamento. Centremos agora a nossa atenção nas duas últimas eleições presidenciais, destinadas a eleger o chefe de Estado. Em janeiro de 2006, apresentaram-se como candidatos Cavaco Silva, ex-primeiro ministro e apoiado pela direita, Mário Soares e Manuel Alegre (ambos provenientes do PS, o primeiro fora presidente da República entre 1986 e 1996 e conseguira o apoio oficial do partido para estas eleições), Francisco Louçã (BE), Jerónimo de Sousa (CDU) e Garcia Pereira, do micropartido maoista PCTP-MRPP. Através da análise da cobertura das eleições presidenciais na imprensa escrita, verifica-se que Cavaco Silva foi o candidato sobre o qual foram feitas mais referências, sendo seguido por Mário Soares; Garcia Pereira foi o candidato menos referido nos jornais (SALGADO, 2009). Cavaco Silva era o candidato mais bem posicionado nas sondagens e, sem surpresas, aquele que recebe também mais cobertura por parte dos media; viria a ser o primeiro presidente da República proveniente de um partido de direita. Em 2011, findo o seu primeiro mandato, novas eleições são convocadas. O relatório que a ERC preparou na sequência da análise da cobertura jornalística da campanha aponta, mais uma vez, para uma predominância da presença de 242

A Democracia nos Media Portugueses: Pluralismo Político-Partidário na Televisão e na Imprensa

Cavaco Silva, presidente em funções e candidato com maiores probabilidades de vencer a eleição, na cobertura televisiva das eleições presidenciais, seguido por Manuel Alegre, o candidato apoiado pelo PS. O mesmo cenário repete-se na cobertura jornalística pela imprensa (ERC, 2011b). Em suma, mais uma vez os media parecem dar particular atenção ao vencedor anunciado da eleição e ao seu principal concorrente.

7. Notas Conclusivas O sistema de media português é, em linhas gerais, caracterizado por um nível considerável de pluralismo, quer ao nível sistémico, quer ao nível interno dos principais jornais e canais de televisão generalistas. No entanto, em períodos de rotina, há três tendências potencialmente deletérias que é necessário sublinhar. Em primeiro lugar, a tendência para um enviesamento antigovernamental por parte de todos os media televisivos (eventualmente menos forte em 2009/2010 do que em 2013 no caso dos canais do serviço público de televisão). Não temos dados que nos permitam aferir se este enviesamento é compensado pelo subsector da imprensa escrita, mas, ainda que seja esse o caso, é preciso relembrar que as audiências televisivas são incomparavelmente superiores aos leitorados de jornais em Portugal. Este enviesamento anti governo pode, contudo, não ter fortes raízes ideológicas e decorrer de outros fatores, tais como o entendimento do papel do jornalista enquanto cão de vigia das ações dos governos (em relação às quais expressará, preferencialmente, uma visão crítica), ou o entendimento por parte das cúpulas editoriais que um posicionamento desse tipo garante ao jornal/telejornal maior credibilidade e ganhos em termos de audiências. O facto de os canais privados apresentarem, em 2009/2010, níveis moderados de enviesamento pró-partidos de direita na oposição e, em 2013 (quando esses mesmos partidos estavam no poder), serem favoráveis aos partidos na esquerda, pode constituir evidência empírica que suporta esta possibilidade. A segunda tendência nociva é a invisibilidade dos partidos sem representação parlamentar, um grupo que inclui micropartidos históricos e novas formações partidárias. A sua escassa presença mediática contribui, talvez, de forma indireta, para uma manutenção do status quo político-partidário, sem entrada de novas forças políticas no parlamento, visto que para largos segmentos do eleitorado, a televisão e os jornais são os principais (se não os únicos) meios de 243

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contacto com a esfera política e mecanismos de apreensão sobre o que é oferecido no mercado das ideias políticas. Em último lugar, identifica-se como tendência perniciosa a situação do comentário político nos jornais e, acima de tudo, na televisão, em particular a inexistente representatividade de um leque alargado de pontos de vista nalguns painéis de comentadores e, acima de tudo, em programas de comentário da atualidade política por parte de um expoente partidário. Por sua vez, em período de campanha, apesar de um notório esforço por parte de jornais e canais televisivos no sentido de fomentar a pluralidade de pontos de vista político e a presença de todas as forças políticas que concorrem à eleição (decorrente, mais do que outra coisa, da legislação que regula as campanhas), há em alguns canais e jornais uma evidente tendência para uma bipolarização tanto nas campanhas para eleições presidenciais como para eleições legislativas. Nas eleições presidenciais, parece haver uma particular concentração do enfoque mediático em torno do presidente em funções e/ou candidato visto a priori como vencedor da eleição e do seu principal concorrente, frequentemente apoiados por um dos dois principais partidos do espectro político português. No caso das legislativas, os canais privados (em 2009) e o jornal mais popular Correio da Manhã (2009 e 2011) tendem a concentrar o foco da análise nos dois principais partidos em maior medida que outros canais ou jornais. Esta tendência para focalizar as eleições numa competição mano-a-mano tem consequências muito pouco interessantes para o debate de ideias e para o processo político. Não é fácil determinar o que pode ser feito com o propósito de colmatar estas situações. Na realidade, a legislação – que, aliás, incorpora os ideais de pluralismo de maneira inequívoca – tem de, ao mesmo tempo que fomenta o pluralismo, permitir que jornais e redações televisivas usufruam de alguma liberdade e margem de manobra na maneira como desenvolvem o seu trabalho. Cabe, talvez, ao público, enquanto consumidor de informação política, premiar a qualidade e exigir a diversidade.

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Tem Alguém Ai? Entre o Eco Digital e um Novo Diálogo dos Comuns: Comunicação Política, Internet e Democracia, um Estado de Coisas217 Jorge Resina218

1. Introdução Não há como voltar atrás. A Internet mudou o mundo, a sua concepção e, portanto, a maneira de fazer e viver a política. Blogs, mídia online ou redes sociais digitais, através de distintos suportes, são hoje elementos de análises indissociáveis de qualquer evento político. Um protagonismo que, com toda probabilidade, irá além, na medida em que se ampliam gerações de nativos digitais e a tecnopolitica se dissolva no campo geral da política, abandonando o prefixo tecno. Tal como sucedeu com o advento da impressão, os avanços tecnológicos devem ser lidos no contexto geral, dentro das sociedades e do momento histórico em que eles apareceram. Assim como as primeiras impressões não podem ser entendidas sem a necessária conjuntura que as acompanham – a irrupção de um capitalismo incipiente, o cisma da Igreja Católica e a formação de Estados-Nação na aurora da Idade Moderna –, a Internet se instaura num tempo de mudanças, crises e emergências. A quebra da segurança econômica, explicitada em 2008, com o surgimento de hipotecas-lixo nos EUA, pôs fim ao predomínio de valores pós-materiais nas sociedades (INGLEHART, 1991) nas quais, sem deixar de estar vigentes, têm de conviver com renovados riscos, em um continuo princípio de incerteza (BECK, 2006). Uma situação que tem corroído os pilares do sistema, terminan-

217 Tradução do espanhol por Bernardo Xavier dos S. Santiago: Mestrando pelo Programa de Pósgraduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Bolsista pela CAPES. 218 Doutor em Ciência Política pela Universidad Complutense de Madrid.

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do por catalizar-se em uma profunda crise do status quo, que afeta o conjunto das instituições. De acordo com a tese de Hallin e Mancini (2009), se uma relação de influência mútua entre os sistemas político e midiático é estabelecida, as mudanças no primeiro interferem no segundo e vice-versa, de modo que a crise de legitimidade do sistema político também é do midiático e as respostas dadas por um acabam afetando o outro. A introdução de novas tecnologias provoca, além do mais, uma aproximação entre as duas esferas, a ponto de se tornarem conjuntos em intersecção. Nesta intersecção se encontra uma nova geração de especialistas em gestão de tecnologia, chamada de Millennials. Nascidos a partir da década de oitenta, eles cresceram familiarizados com o mundo digital e hoje vivem inseridos nele. Estima-se que em nível global, atualmente, 76% dos jovens possuem um smartphone (TELEFÓNICA, 2014). Esta “Geração Y”, como também são conhecidos, conta com uma idiossincrasia própria, que os distingue não só no uso da tecnologia, mas também na sua concepção da política e na forma de “consumo” dos meios de comunicação. Deles tem-se elaborado uma leitura ambígua. Enquanto, por um lado, têm sido considerados como de uma geração egoísta, imatura e politicamente adormecida, por outro lado, eles são apresentados como jovens ativos, solidários e com um renovado interesse na política. Um perfil heterogêneo que, essencialmente, mostra um desinteresse acentuado pelas formas tradicionais da política, bem como uma notável desconfiança no funcionamento das instituições. Em contrapartida, eles introduziram novas práticas e tipos de ação coletiva, que foram acompanhadas tanto de novos meios de expressão como de uma retórica sobre os assuntos públicos. É assim que nos últimos anos surgiram, em diferentes partes da geografia mundial, manifestações encabeçadas, quando não protagonizadas, por jovens que, para além dos panfletos, contavam com um smartphone nas mãos. As diferentes manifestações da Primavera Árabe, a ocupação das praças pelos movimentos Occupy e os indignados espanhóis, o #yosoy132 mexicano, os protestos contra a corrupção na Guatemala, em Honduras, no Paraguai e no Brasil, ou as performances dos estudantes chilenos e colombianos são apenas alguns dos exemplos que ocorreram. A partir deste contexto, surge a questão sobre qual é o alcance dos meios digitais na noção de cidadania, se realmente favorecem um processo de de250

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mocratização e quais são as principais fortalezas e debilidades nas formas de participação que emergiram. Este texto, longe de dar uma resposta fechada, pretende ser uma reflexão aberta à luz das discussões levantadas pela literatura especializada no tema. Para isso, se propõe uma aproximação entre as diferentes interpretações, desde as mais otimistas até as mais receosas, com o objetivo de traçar um panorama complexo, ainda em transição, de um sistema midiático em que convivem distintas modalidades de comunicação.

2. Ativismo de chat ou ação coletiva digital? São vários tipos de ações políticas que, cada vez mais, têm sua origem na Internet ou que, pelo menos, se servem dela. Entre elas, podem ser destacadas: a) Aquelas que surgem e/ou utilizam a rede como um meio para promover campanhas e fazer chamadas para a ação. Mecanismos como change.org ou plataformas de crowdfunding tornaram-se ferramentas indispensáveis, que ​​ têm permitido tecer e fortalecer, como nunca antes, o que Kerk e Sikkink denominaram de “redes transnacionais de defesa” (1998). b) As de caráter deliberativo, que possibilitaram o surgimento de uma nova esfera pública de caráter digital, que convive com a esfera mais institucionalizada de meios de comunicação e atores políticos convencionais (PAPACHARISI, 2002; DAHLGREN, 2005; RESINA, 2010; DAHLBERG, 2011). Essa esfera, que tem se caracterizado como tudo aquilo que se discutide e debate nas redes sociais e outros sites da Internet (CHADWICK; HOWARD, 2009), tem um impacto crescente na opinião pública. c) As relacionadas com a modalidade de ação colectiva que tem seu correlato em manifestações de rua e que são próprias tanto de cidadãos independentes unidos por um interesse comum, como por movimentos sociais com o objetivo de promover uma política determinada ou realizar seu protesto. Estas ações são, sobretudo, úteis como meio de difusão de informação, assim como mecanismo de organização (CASTROMIL; RESINA, 2013). Um dos aspectos em que se tem colocado maior ênfase é o caráter do vínculo social que se estabelece com a Internet. Neste sentido, é pertinente recorrer à tese de Granovetter (1973) sobre o tipo de relações estabelecidas em redes digitais. Este autor destaca a força dos vínculos frágeis e as suas virtudes para 251

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gerar oportunidades individuais e alcançar a integração da comunidade, frente aos vínculos fortes que, em última instância, levariam à fragmentação total. Se se leva em conta que as relações estabelecidas em redes como o Twitter ou o Facebook são mais frágeis do que fortes (que, para além da família e amigos, são estabelecidas relações com pessoas que não se conhecem pessoalmente ou se conhecem de forma superficial) poderia-se, então, considerar os benefícios de um tipo de vínculo que faz dessa dita fragilidade uma fortaleza ao favorecer a organização. No entanto, esse otimismo não é compartilhado por todos os autores. Mario Diani (2000), especialista em movimentos sociais, limita as potencialidades e adverte sobre como nas redes digitais os cidadãos podem ocultar a sua verdadeira identidade, participar apenas de forma intermitente ou esporádica e não adquirir nenhum compromisso real. Quanto ao primeiro aspecto, Zizek (2011) explica como as redes criam (e recriam) “personagens virtuais” que não correspondem à realidade, uma vez que os cidadãos poderiam “jogar” com falsas imagens de si ou desencadear certos comportamentos que seriam impensáveis fora desse espaço. Sobre os outros traços, Gladwell (2010) critica como, ao contrário do ativismo clássico, as novas redes não permitem gerar verdadeiros vínculos de solidariedade, questionando o alcance dos protestos digitais, devido à ausência de riscos que estes acarretam. Segundo aponta, “o êxito do ativismo de Facebook não está em motivar as pessoas a fazer um sacrifício real, mas sim em motivá-los a fazer coisas que as pessoas fazem quando não estão motivadas o suficiente para fazer um verdadeiro sacrifício”. Junto com isso, ele aponta para outro problema, de natureza estratégica, de que as redes digitais, ao carecerem de uma estrutura hierárquica ou centro decisório, não seriam boas para a tomada de decisões, “como tomar decisões difíceis sobre táticas, estratégias ou direção filosófica quando todo o mundo tem o mesmo peso?”, ele pergunta. Para mais além, leva sua crítica Morozov (2009), que qualifica como slacktivism o ativismo próprio de uma geração preguiçosa, satisfeita com a participação online de escasso impacto político ou social, mas que gera a ilusão de lograr um alcance significativo sem maiores exigências que a de “unir-se a um grupo de Facebook”. Para o autor, esse sentimento terminaria por provocar um efeito adverso, já que muitos desses ativistas – satisfeitos por sua ação digital – prefereriam não 252

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continuar a sua ação fora da rede por medo de se verem envolvidos em atividades mais problemáticas que supusessem algum conflito com autoridades. Assim, o apoio simbólico impediria a passagem para um apoio mais significativo, o que poderia prejudicar os objetivos estratégicos de uma causa. Contrário a esta “hipótese de substituição”, Jones (2015) refuta através de uma pesquisa empírica a abordagem de Morozov e, como resultado dela, propõe uma “hipótese de reforço”, pela qual o ativismo online mais do que substituir as formas clássicas, serviria como um complemento. Nesse sentido, é provável que quem compartilha um vídeo sobre uma causa concreta queira obter mais informação e que, inclusive, termine atuando para além da rede, contribuindo para o êxito da causa. Em linha similar, Van Laer e Van Aelst (2009) propõem uma tipologia de novos repertórios de ação digital. Por um lado, estabelecem uma distinção entre as ações que são propriamente digitais e aquelas de repertórios clássicos que, apoiando-se na Internet, se vêem modificadas e/ou atualizadas. Por outro lado, eles diferenciam as táticas que implicam baixos índices de participação e aquelas que envolvem níveis elevados. Como resultado, eles projetam uma matriz com diferentes tipos ideais de ação que, de forma contínua, refletiria a natureza complementar da Internet em relação ao ativismo tradicional (veja-se a Figura 1). Figura 1: novo repertório Ação Digital Acción apoyada en Internet Umbral Alto

Acción Violenta/ Destructión de la propiedad

Acción basada en Internet Hacktivism

Ocupación/Sentada

Sabotaje Cultural

Manifestación/Encuentro Transnacional Umbral Bajo

Manifestación legal Comportamientro consumidor

Protesta website/ medios alternativos Bombardeo por e-mail/ sentada virtual

Donación de dinero Petición on-line

Fonte: Van Laer e Van Aelst (2009).

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No mesmo sentido, Zuckerman (2014) categoriza diversas formas de “civismo participativo” a partir de dois eixos (veja-se a Figura 2). Na horizontal, mede a intensidade do seu compromisso (fraco-forte), enquanto na vertical diferencia entre se se sua finalidade é instrumental (ou seja, busca alcançar um objetivo concreto, por exemplo, a aprovação de uma lei) ou tem caráter de “voz”, no sentido descrito por Hirschmann (1970). Uma matriz que, aplicada ao ativismo digital, oferece “algumas esperanças de que não estamos experimentando uma saída do civismo, mas uma mudança na forma de participação” (p. 15). Figura 2: Formas de “Participatory Cidadania” Voz

Débil

Fuerte

Instrumenal

Fonte: Zuckerman (2014)

A esse respeito, Zuckerman pontua a importância das ações de compromisso frágil como mudar a foto do perfil ou assinar uma petição, bem como aquelas cujo propósito é ser voz, permitindo chegar a outros públicos, para além dos ativistas mais comprometidos. No caso da voz, descreve como contribui para (a) que os cidadãos se identifiquem com uma causa e se preparem para dar outros passos; (b) engendrar novas vozes; (c) fixar uma agenda; e (d) se construam movimentos através da sincronização, “reunindo participantes de diferentes áreas em torno de uma narrativa comum”.

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3. Ligando emoções: rumo a uma política de afetos online? O debate sobre o tipo de vínculo e ação coletiva que é gerado com ativismo digital reabre um tema de fundo, o papel das emoções na participação cidadã. Nesse sentido, Castells (2012) descreve movimentos sociais como movimentos emocionais e situa a gênese da ação coletiva na transformação da emoção em ação. Dentre as emoções e a partir das teorias da inteligência emocional, diferencia dois catalisadores principais: medo (com valência negativa) e entusiasmo (com valência positiva). Para que o segundo se realize é necessário superar o primeira, relacionado com a ansiedade. A chave para isso consiste em gerar outra emoção negativa, a raiva, o que ajuda a moldar a percepção de injustiça ante uma situação e a identificar os agentes responsáveis por ​​ ela. O próximo passo é projetar um futuro diferente, uma capacidade humana relacionada com a esperança e ligada diretamente ao entusiasmo. Neste processo, a comunicação é o elemento fundamental, já que para que a “ativação emocional” seja possível é imprescindível que os indivíduos entrem em contato e compartilhem suas experiências para tomarem consciência de que não estão sozinhos. Segundo o autor, “para que um processo de comunicação funcione, existem dois requisitos: consonância cognitiva entre emissores e receptores de mensagens e um canal de comunicação eficaz” (p. 31). Castells parte desta abordagem para explicar o êxito do que tem sido denominado de “revoltas em rede”, mobilizações como as que têm acontecido nos últimos anos em vários países árabes, no sul da Europa ou mesmo em Wall Street, que se caracterizaram por constituirem redes “de indignação e esperança”, nas quais a Internet desempenhou um papel protagonista. Por um lado, as redes digitais constituíram um espaço de encontro de experiências similares, um recurso que tornou possível suscitar um sentimento de empatia. Por outro lado, possibilitaram a propagação tanto dos acontecimentos como das emoções que despertaram. Em sentido semelhante, Papacharissi (2015) analisa o papel proeminente que as emoções e afetos ocupam na mídia: “Existem inúmeras histórias sobre como os meios de comunicação servem como canais para a expressão afetiva em momentos históricos”. Uma característica que, no caso dos novos meios de comunicação, adquire especial importância, como “continuam, ampliam e corrigem a tradição de storytelling. Permitem a construção de significados desconhecidos, evocando reações afetivas” (p. 4). 255

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A autora destaca como as redes digitais têm a capacidade de “converter eventos em histórias” (p. 39), em boa parte graças à oportunidade de públicos antes marginalizados terem voz. Esta inclusão e a possibilidade de narração e reconstrução de eventos em tempo real permitem que muitas das pessoas que não se encontram no lugar do fato vivam como se estivessem ali. Além do mais, esta narrativa, ao não ser mediada por terceiros, permite a transmissão não só dos eventos como tal, mas também das emoções que se desdobram de sua vivência. Este processo promove, assim, o sentimento de empatia e a geração de experiências compartilhadas, incidindo na conformação de novos marcos discursivos e de um storytelling baseado no pluralismo subjetivo de uma variada gama de atores. A este respeito, Papacharissi (2015) destaca como mobilizações surgidas nos últimos anos tiveram como ponto comum a “demonstração pública de afeto” de todos os que participaram. Desta forma, as redes digitais permitiram a formação de verdadeiras redes públicas que foram mobilizadas e conectadas através de expressões de sentimento. Bennett e Segerberg (2012) vão mais longe e consideram que este tipo de comunicação supõe a substituição da ação coletiva por uma nova modalidade, que denominam ação conectiva. Uma ação que se caracteriza pela coprodução e codistribuição de informação, a partir de um processo de intercâmbio baseado na motivação de pessoas que compartilham conteúdos com outras pessoas, das quais se esperam um reconhecimento e que, por sua vez, compartilhem novos conteúdos. “O eixo da ação conectiva é elemento formador de “compartilhar”: a personalização que conduz ações e conteúdos que se distribuem amplamente através das redes sociais” (p. 760), afirmam. A ação conectiva resolveria, ademais, os problemas descritos por Olson para a ação coletiva, ao reduzir os custos de participação e evitar o surgimento do que este autor caracterizou como free-rider. Muito pelo contrário, essa ação teria um fundo bondoso, na linha da abordagem de Benkler (2006), pela qual a Internet favoreceria a cooperação e o trabalho colaborativo em favor do bem comum.

4. Deliberação em rede, uma miragem no ciberespaço? A relevância que adquirem as emoções nas redes digitais abre uma interrogação sobre o tipo de informação política que se produz e a qualidade do debate público gerado. A este respeito, algumas pessoas podem argumentar que um excessivo peso do componente emocional complicaria o acesso a uma informa256

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ção que conte com um grau mínimo de objetividade, circunstância que também dificultaria um debate que, de alguma forma, privilegie o componente racional que a deliberação exige. Por outro lado, poderia defender-se – na linha descrita por Papacharissi – que os novos processos de comunicação favorecem uma construção mais plural dos distintos framing com os quais se enquadram os fatos. Em sentido semelhante, Castells (2010) destaca a autonomia que têm redes digitais, permitindo processos de “autocomunicação de massa” que tornam possíveis a comunicação de muitos para muitos sem necessidade de mediação. Este último aspecto põe no centro do debate o papel do jornalista e dos meios de comunicação como mediadores de informação. Conforme se expôs no início do presente artigo, sistemas políticos e midiáticos estão intimamente relacionados – o que acontece com um repercute no outro e vice-versa. Nesse sentido, a crise política que se vive na atualidade terminou por tornar-se também uma crise dos meios de comunicação, que passaram a ser vistos como parte responsável pela falta de legitimidade institucional. Neste contexto, Blumler e Coleman (2009) acreditam que as novas formas de comunicação são uma resposta a esta crise, já que as redes digitais constituem um novo fórum para discutir assuntos públicos. A crise política – garantem – é, sobretudo, uma crise de representação, uma espécie de ato de ventriloquia na qual os cidadãos são relegados a agentes passivos, produto de um modelo de comunicação unidirecional que os impede falar com sua própria voz. Com o advento da Internet, os políticos se veem obrigados a escutar os cidadãos, bem como os meios de comunicação não podem ignorar o que acontece nas redes. Para os autores, a emergência da esfera pública digital favorece um interesse renovado pela noção de cidadania, na medida em que fomenta “a sensação de ser levado em conta” dos próprios cidadãos (p. 25). Com um argumento semelhante, Dalton (2008) argumenta que o ciberespaço tem favorecido a inclusão dos jovens no debate político, ao prover novas formas de participação e expressão próprias. No entanto, esse otimismo pela ausência de mediação não é compartilhado por todos os autores. Bimber (1998) esclarece o alcance da Intenet e previne uma possível confusão do meio com a mensagem. Na sua opinião, as redes digitais favorecem a distribuição de poder midiático (antes concentrado em grandes corporações), mas nada impede que a nova distribuição continue a ser desigual. A priori, a Internet favorece o pluralismo, mas não necessariamente conduz a uma maior democratização. 257

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Enquanto isso, Sunstein (2016) alerta para os riscos de desinformação que podem originar-se em um mundo digital sem mediação, em que um mero boato pode desembocar, através de um efeito cascata, em uma verdade inexorável. Um resultado produto da tendência das pessoas a buscar informações que confirmem suas próprias crenças, ignorando aquelas outras que as contradigam. De acordo com esta lógica, Sunstein (2002, 2007) considera que a Internet pode conduzir a uma esfera pública fragmentada que, como salas separadas que ressoam o próprio eco, termine por constituir “grupos de polarização”. Com isso, o autor enfatiza que as redes digitais podem ter um efeito contrário ao ideal deliberativo, já que, igual ao que sucede com a busca de informação, as pessoas também tendem a deslocar-se para posições mais radicais, reforçando os preconceitos prévios. Outra das questões mais controversas sobre a qualidade do debate é o tipo de informação política que circula pela rede. Conforme apresentado em outro trabalho (GUEMES; RESINA, 2015), na corrida para captar a atenção dos Millennials, corre-se o risco de acabar caindo na banalização de questões complexas. Processos como o infotaiment e politaiment, que têm sua origem na espetacularização da linguagem televisiva, encontram um novo espaço Internet. A este respeito, surge a pergunta se ele não marcará uma tendência sem caminho de volta, em que se termine por perder uma boa oportunidade para enriquecer a discussão pública em detrimento das conversas triviais. Contrária a esta hipótese, pode-se apontar a “cute cat theory of digital activism” (a teoria do gato docinho sobre ativismo digital) de Zuckerman (2013), que enfatiza as virtudes políticas de sites, como blogs e redes sociais, destinados a fins mundanos. O argumento de fundo reside em que as pessoas comuns, mesmo sem estarem cientes disso, são um elemento fundamental para o protesto, ao funcionarem tanto como escudo para os ativistas como fator de pressão para governos e autoridades. Para o autor, o melhor que podem fazer os ativistas não é, portanto, criarem ferramentas específicas de ação, mas sim utilizarem essas plataformas para terem maior alcance e diluirem o controle.

5. Conclusões A Internet tem sido um terremoto na forma de se fazer política. Sem dúvidas, constitui um novo modelo de comunicação, mais autonômo e bidirecional, 258

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que emerge justamente num momento em que tanto o sistema político como o midiático atravessam uma situação de notória perda de legitimidade. Uma quebra que também pode ser interpretada como consequência do uso geral da Internet ou, pelo menos, como um efeito derivado de diversos fatores de transformações – econômicas, sociais, institucionais e culturais – potencializados pelas redes, aprofundando assim o fosso do descontentamento. É provável que as novas mobilizações que ocorreram nos últimos anos não possam ser consideradas exclusivamente como um produto digital. O desconforto estava latente e as redes exerceram um papel catalisador, tanto na difusão como na organização de atividades. Como Ingram (2011) aponta, o Twitter não faz por si só uma revolução, mas pode contribui para que esta seja feita. Talvez “híbrido” seja a noção que melhor descreva a situação atual. Os meios de comunicação persistem, mas têm de conviver e se adaptar aos tempos digitais. O mesmo ocorre com o político, pois já não se concebe um exercício da política sem contar com o digital. Isso acontece com as fontes de produção de notícias – não apenas os jornalistas, mas também os cidadãos que de forma direta o são – com os novos mecanismos de filtragem e transparência – claro exemplo é o Wikileaks, cuja informação foi publicada em vários cabeçalhos da mídia convencial –, com o casamento entre o “sério” e o ocioso – na linha das tendências apontadas no infotaiment e politaiment, pelo qual práticas como a gamification, os memes, as hashtags ou até o botão like (“curtir”) do Facebook tornaram-se instrumentos com potencial político –, ou com a tênue linha divisória que vai do racional ao emocional – a notícia como história com a qual empatizar. Embora, mesmo com as mudanças introduzidas com a Internet e a emergência de uma nova política, há um risco de se superestimar seus efeitos em termos de democratização. É verdade que em referência à democracia representativa foram conquistados importantes avanços que levaram os políticos a não poderem mais ignorar as demandas dos cidadãos ou, ao menos, terem que aparentar não fazê-lo. No âmbito da democracia direta foram gerados novos mecanismos de participação e no da democracia deliberativa foram criadas novas esferas onde mais pessoas opinam e compartilham suas opiniões. Mas essas mudanças não garantem que existam, por si só, uma maior democracia se não vão acompanhadas por uma reflexão de fundo sobre o que a própria democracia é em suas diversas vertentes (representantiva, direta, deliberativa). Nesse sentido, tampouco pode-se perder de vista outros fenômenos, surgidos dentro do proprio mundo digital, relativos à distribuição de recursos cognitivos 259

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e às assimetrias de poder, como o surgimento de novos líderes, os processos de personalização da política, a proliferação de bots em redes sociais ou, como assinala Morozov (2009), o rastro que deixa o uso de tais redes, o que poderia facilitar novas formas de controle e autoritarismo. Trata-se, portanto, de uma reflexão necessária sobre até onde vamos e que democracia queremos. Caso contrário, corremos o risco de que as mudanças acabem sendo uma nova forma de legitimação de um poder que não por ser digital será menos controlador.

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