A Democracia perante o liberalismo e os seus inimigos: história de um conceito

July 5, 2017 | Autor: L. Leite Sombra | Categoria: Teoría Política, Teoria Politica Y Filosofia
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Fukuyama, Francis. The End of History? Found in http://ps321.community.uaf.edu/files/2012/10/Fukuyama-End-of-history-article.pdf, p. 1.
Ibid, p. 1-2.
Wittgenstein, Ludwig. Da Certeza. Lisboa: Edições 70, 1969, p. 53.
Locke, John. In: Weffort, Francisco (Org). Os Clássicos da Política Vol. 1. 13ª Ed. São Paulo: Ed. Ática, 2005.
Rousseau, Jean-Jacques. In: Weffort, Francisco (Org). Os Clássicos da Política, p. 220.
Ibid.
Ibid., p. 222.
Idem, Ibid.
Ibid., p. 220.
Tocqueville, Alexis de. Democracia na América. Apud Bobbio, Norberto. Liberalismo e Democracia. 6a. Ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, p. 59. Por falta de espaço, não abordamos também as importantes ideias de John Stuart Mill, que reforço o receio da "tirania da maioria", aborda a importância do antagonismo e propõe um governo representativo, em contraposição à democracia direta de Rousseau.
Rosenberg, Arthur. Democracia e Socialismo: história política dos últimos cento e cinquenta anos. 1789-1937. São Paulo: Global Editora, p. 94.
Elley, Geoff. Forjando a Democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000.
Ibid., p. 67.
Pensadores como Saint-Simon e Fourier estavam muito mais voltados para experiências socialistas na forma de cooperativas que numa ampla transformação por mecanismos políticos. Os militantes influenciados por Proudhon já tiveram maior participação política, mas num contexto refratário à participação no Estado.
Rosenberg, Arthur, Socialismo e Democracia, p. 70.
Noção que, no século XIX, frequentemente não incluía as mulheres.
Rosenberg, Arthur. Socialismo e Democracia.
Müller, Jan-Werner. Contesting Democracy: political ideas in twentieth-century Europe. New Haven and London: Yale University Press, 2011, p. 16.
Ibid., p. 18.
Bobbio, Noberto. Liberalismo e Democracia, p. 18-19.
Müller, Jan-Werner, Contesting Democracy, p. 20.
Rosenberg, Arthur. Socialismo e democracia, p. 217.
Bernstein, Eduard. Cited by Müller, Jan-Werner. Contesting Democracy, p. 55.
Kautsky, Karl. Cited by Müller, Jan-Werner. Contesting Democracy, p. 55.
Lênin, Vladimir, Que fazer?: problemas candentes do nosso movimento. 2ª Ed. Lisboa: Editora Avante, 1978, p. 39.
Ibid., p. 126.
Luxemburgo, Rosa. Apud Silva, Ozaí. O dilema da socialdemocracia. Rosa Luxemburgo e Lênin: concepção de partido e reformismo. Maringá: Revista Espaço Acadêmico, 119. Abril de 2011.
Idem, Ibid.
Idem, Ibid.
Apud Carlo, Antonio, Ibid., p. 96.
Müller, Jan-Werner, Contesting Democracy, p. 39.
Laclau, Ernesto. Emancipação e Diferença. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011, p. 68.
Jan-Werner. Contesting Democracy, p. 128.
Apud Jan-Werner. Contesting Democracy, p. 200.
Elley, Geoff. Forjando a Democracia, p. 438-439.
Laclau, Ernesto e Mouffe, Chantal. Hegemonia y Estrategia Socialista: hacia uma radicalización de La democracia. 2ª Ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2004.
Oakeshott, Michael. Apud Müller, Jan-Werner. Contesting Democracy, p, 224.
Essa perspectiva gera um paradoxo que merece atenção. As lutas dos "novos movimentos sociais" podem, parcialmente, ser absorvidas no conjunto de direitos liberais. Elas só se tornam um problema efetivo para o Estado neoliberal quando incluem, em seu bojo, uma luta por recursos do Estado.
Ibid., p. 204.
Idem, Ibid.
Fato também ocorrido no Brasil, em 2013, quando a presidenta Dilma Roussef propôs um plebiscito para uma reforma política.
Laclau, Ernesto e Mouffe, Chantal. Hegemonia y Estrategia Socialista, p. 113;
Em muitos países, como o Brasil e os Estados Unidos, o fato do próprio jogo eleitoral funcionar a partir do financiamento legal e ilegal por grupos econômicos dá a dimensão ainda mais grave da inserção deles.
Sem considerar as abordagens psicanalíticas, que deram também a esse termo uma conotação complexa.
Muito embora, temperados pela crítica liberal. A "completa submissão" à vontade geral de Rousseau, tão criticada, deve ser acompanhada de uma necessária proteção aos direitos individuais. Essas formulações podem ser conciliadas, se considerarmos que já fazem parte da vontade geral das "democracias liberais" contemporâneas a manutenção desses direitos.
Rousseau, Jean-Jacques. In: Weffort, Francisco (Org). Os Clássicos da Política, p. 228.


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A Democracia perante o liberalismo e os seus inimigos: história de um conceito *
Laurenio Sombra
* Artigo publicado em versão em inglês com o título "Democracy in the presence of liberalism and its enemies: the history of a concept". In: GALUPPO, Marcelo, Lopes Mônica Sette et al. Human Rights, Rule of Law and the Contemporary Social Challenges in Complex Societies: Proceedings of the XXVI World Congress of Philosophy of Law and Social Philosophy of the International Vereinigunf für Rechts – und Socialphilosophie. Belo Horizonte: Initia Via Editora, 2015.
O cientista político Francis Fukuyama produziu um artigo extremamente polêmico no verão de 1989, denominado O Fim da História?, com o qual decretava, valendo-se de uma leitura hegeliana da história, que atingimos "o ponto final da evolução ideológica da humanidade, e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final do governo humano". Naquele momento, Fukuyama alimentava a empolgação do seu vaticínio com alguns fatos cruciais: a recente queda do muro de Berlim, episódio que serviu de senha para a derrubada em cadeia do bloco socialista do leste europeu, praticamente pondo fim às esperanças de implementação de governos bem sucedidos sob inspiração marxista-leninista ou maoísta, dado que também a China mudou radicalmente a sua direção; mas também o fato de que nos países ocidentais se apresentava cada vez maior esgotamento da socialdemocracia, com a ascensão de governantes conservadores como Ronald Reagan e Margaret Thatcher, e inclusive a decepção com a ascensão ao poder de governantes pretensamente socialistas, como François Mitterrand (França) e Felipe González (Espanha), condutores de medidas fortemente influenciadas por doutrinas neoliberais, fato que se repetiria posteriormente na Inglaterra de Tony Blair e até mesmo no Brasil, com Fernando Henrique Cardoso.
Depois do vaticínio de Fukuyama, muita coisa aconteceu: tivemos o 11 de setembro, a crise americana de 2008, a primavera árabe e a atual crise europeia. Esta última, aparentemente, justo por uma insistência do poder governante da União Europeia em soluções neoliberais para uma crise que parece pedir exatamente o contrário. Todos esses fatores parecem apresentar uma complexidade à história que tornariam risível aquele já clássico artigo. Mas Fukuyama não precisa se dar por vencido tão facilmente. Ele já admitia, em seu artigo seminal, que o mundo real ainda produziria crises e fatos. Segundo ele, "a vitória do liberalismo se deu primariamente no reino das ideias ou da consciência e ainda é incompleta no mundo real ou material. Mas há razões poderosas para acreditar que este é o ideal que governará o mundo material em longo prazo". Explica-se: como Fukuyama baseava-se em Hegel, a vitória apontada era sobretudo, uma vitória do "espírito", ou seja, da consciência humana mais avançada, consciência que fatalmente irá se espraiar, mais cedo ou mais tarde, por todos os povos. A implementação material dessa vitória do espírito se dará aos poucos, mas será inevitável.
Mas o que são as democracias liberais? Alguns atributos parecem ser consensuais: eleições livres, sufrágio universal, direitos individuais básicos assegurados ou pelo menos defendidos pelo Estado, liberdade de imprensa e de expressão, alternância de poder político e livre mercado – no último caso, leia-se sistema capitalista. Mas a forma como esses atributos são dispostos parece apresentar um encobrimento de natureza, talvez, ideológica: se falamos em "democracias liberais", qual a contribuição de cada um dos termos (democracia e liberalismo)? Ou eles apenas servem de reforço um ao outro, tornando-se, hoje, um mesmo e inseparável amálgama? Não haveria fontes internas de tensão entre liberalismo e democracia, que devem voltar a ser pensadas? Pensadores com matizes ideológicos diferentes, como Norberto Bobbio e Chantal Mouffe, pensam que sim, o que nos convida a refletir um pouco mais sobre isso.
Essa reflexão deve seguir um caminho mesclado. Ela busca uma investigação conceitual acerca dos conceitos de liberalismo e democracia, especialmente o segundo. Mas os fatos históricos a partir da modernidade mostraram-se importantes fatores de tensão dos conceitos desenvolvidos, que tiveram permanentemente de ser aperfeiçoados para dar conta desses novos fatos. Assim, não se trata de estabelecer conceitos ideais fixos e apenas testá-los face à realidade. Este caminho parte do pressuposto que uma discussão conceitual, principalmente no contexto da filosofia política, tem de ser escrutinada e avaliada pela tensão da vida real. Não podemos simplesmente fixar um conceito e analisarmos a realidade sob esse modelo fixo. A tendência, se assim o fizéssemos, seria a de uma análise cada vez mais anacrônica, provavelmente saudosista e, principalmente, que teria perdido os contributos que a história nos trouxe. Podemos sustentar essa perspectiva sob a aparentemente estranha assertiva do Wittgenstein de Da Certeza: "é um sistema em que as conclusões e as premissas se apoiam mutuamente".
Do outro lado, não se trata de simplesmente mudarmos os significados da palavra em plena consonância com a evolução histórica do termo. A própria evolução deste artigo deverá tornar explícito porque esta tarefa seria igualmente inadequada ao seu propósito. Argumentaremos que, no que diz respeito ao conceito de democracia, parte da transformação semântica do termo praticamente esvaziou o conceito. Incorporarmos, simplesmente, o que costumeiramente se chama, atualmente, de democracia significaria abdicarmos da possibilidade crítica que este trabalho busca ensejar.
Os primeiros pensadores modernos da democracia e do liberalismo
A nossa reflexão sobre liberalismo e democracia se dará no contexto da modernidade. É verdade que democracia é um termo com raízes profundas na teoria e na prática grega, mas este processo não será aqui considerado diretamente. O liberalismo, por outro lado, consiste num modo de pensamento que só se justifica a partir da modernidade.
Podemos pensar a modernidade como uma época histórica, diretamente associada à Europa ocidental, pela qual a noção de indivíduo ganha cada vez maior relevo, do ponto de vista político. À medida que esta noção se consolida, o sistema social é cada vez menos embasado em uma hierarquia anterior (que poderia ser pensada como estruturada a partir de Deus, do rei, dos nobres e/ou de uma Lei superior) e cada vez mais estruturado a partir dos indivíduos que compõem esta sociedade. Acrescente-se a consideração de que estes indivíduos, no esfacelamento do imaginário hierárquico, se apresentam, idealmente, como tendo igualdade de direitos em relação a todos os outros indivíduos.
Esse processo começa a ganhar uma forma associada ao liberalismo com John Locke. É razoável pensarmos em Locke como o primeiro grande pensador liberal. Algumas características muito claras do liberalismo já estavam inscritas na obra desse autor, particularmente no Segundo Tratado sobre o Governo Civil, sua obra política mais importante. O "estado de natureza" que Locke descreve, influenciado pela forma jusnaturalista de Grotius e Hobbes, aponta para certa condição universal, prévia a qualquer ordenamento político. Nele, estão indivíduos racionais que já gozam do seu direito de propriedade, termo ambíguo que abarca as posses de determinado indivíduo, mas, num sentido amplo, também inclui a sua própria vida e a sua liberdade, tudo que lhe é próprio, portanto. Qualquer Estado político deve ter a função precípua de proteger esses indivíduos, de proteger suas propriedades. O Estado que não lograr essa missão, ou que traí-la, não é digno de ser mantido, cabendo mesmo aos cidadãos que o constituíram o "direito à rebelião", derrubar o governo que não cumpriu o seu papel.
Na formulação de Locke, já constam algumas sementes fundamentais do liberalismo. De um lado, a ênfase nos direitos individuais, incluídos entre eles a liberdade de cada cidadão. De outro lado, já começam os primeiros vislumbres da ideia do Estado como "mal necessário", um Estado que deve ser contido em seu poder e cuja missão deve ser estabelecida em função do interesse dos seus cidadãos, pois já não se aceita mais uma autoridade transcendente que o legitime e justifique de uma vez por todas.
De algum modo, poderíamos ver John Locke como um pensador que já traz sementes da democracia, mas certamente Jean-Jacques Rousseau pode ser mais bem delineado como uma espécie de "pai da democracia moderna". Rousseau definiu com mais clareza noções como a ideia de soberania popular, de que o povo reunido forma um corpo conjunto (materializado na noção de vontade geral). A vontade geral é formada por um pacto social que reúna o povo em uma vontade única, já não voltada para fins egoístas, mas para o bem comum. Como Rousseau delineia: "encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes".
Essa formulação sinaliza pontos em comum com a do liberalismo. A associação sugerida visa proteger "a pessoa e os bens de cada associado", no que parece reconhecer a importância da propriedade individual. Mas devemos verificar com mais vagar isso, até porque Rousseau já havia anunciado em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens que a defesa da propriedade representou uma espécie de logro dos ricos para constituir uma lei que os favoreça. É preciso, portanto, mais atenção ao outro aspecto do pacto, ao fato do indivíduo "obedecer a si mesmo", obedecendo à vontade geral.
Segundo Rousseau, "aquele que recusar obedecer à vontade geral será a ela constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre". Em relação à propriedade afirma que "o direito que cada particular tem sobre os seus bens está sempre subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos". Há, aqui, claramente, uma diferença em relação aos direitos individuais reivindicados pelo liberalismo, diferença que fica ainda mais acentuada quando Rousseau fala em "alienação total de cada associado, com todos os seus direitos à comunidade toda". Também está associada ao risco de rompimento da soberania popular a polêmica defesa de Rousseau, que recusa essencialmente a democracia representativa, em nome de uma democracia direta, ou seja: da participação popular direta na construção das leis essenciais da sua nação.
O fundamental, contudo, da proposta de Rousseau é a noção de que o povo, como um corpo único, deve comandar o Estado. No liberalismo, essa base está assentada sobre um conjunto de indivíduos; na democracia, numa espécie de nova "personalidade" que se forma a partir da vontade única do povo, que ganha tal poder que os próprios indivíduos devem se subordinar a essa vontade geral.
Democracia e liberalismo depois das Revoluções
Assim, Locke e Rousseau marcaram, de forma indelével, o pensamento político moderno, demarcando duas formas diferentes e parcialmente conflitantes de pensar a legitimidade do Estado. Após as suas obras, dois fatos históricos significativos marcaram o mundo político. De um lado, a Guerra de Independência dos Estados Unidos, que conseguiram se libertar do jugo da Inglaterra. Os chamados "pais fundadores" americanos tinham forte influência liberal, direta e indiretamente embasada no pensamento de John Locke, e de ideias republicanas, a partir da história romana e de uma recusa ao modelo monárquico, tido como corrupto e ilegítimo.
O outro fato histórico foi, naturalmente, a Revolução Francesa, que marca o fim do Antigo Regime na França, proclama a igualdade de todos os cidadãos independente de sua origem e põe fim à monarquia. É famosa, em relação à Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que demonstra inspiração dos direitos naturais dos jusnaturalistas, especialmente de Locke, e da própria revolução americana. Mas a França é marcada por uma revolução muito mais acentuada, com forte ênfase na ideia de soberania popular.
Na França, o desafio de superar o antigo regime foi bem mais brutal e, da mesma forma que a sua luta pela igualdade fascinou muitos pensadores como Kant e Hegel, o chamado Terror revolucionário também assustou a muitos pensadores, dando oportunidade a reações conservadoras, como do pensador e político irlandês Edmund Burke, que resgatava a importância das tradições e quase iniciava uma longa série de reações anti-iluministas, vigorosas até hoje. Democracia se tornava algo perigoso e, para alguns, a ser totalmente rechaçado.
Mesmo em países bem mais moderados como os Estados Unidos, o pensador liberal Alexis de Tocqueville, viu a chegada da democracia com um misto de fascinação e medo. Tocqueville a considerava inevitável, mas via aspectos negativos que deveriam ser minorados. A democracia estava associada a um ideal de igualdade que tendia a massificar o homem, retirar-lhe a força da singularidade. E, pior que isso, Tocqueville tinha o receio dela se transformar numa espécie de tirania da maioria que sufoque as liberdades individuais, valor maior do liberalismo. Numa frase endereçada aos democratas, mas que parece ser uma resposta a Rousseau, ele afirma:
nossos contemporâneos imaginam um poder único, tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadãos; combinam centralização e soberania popular. Isso lhes dá um pouco de alívio. Consolam-se do fato de estarem sob tutela pensando que eles mesmos escolheram os tutores....
A instauração do ideário marxismo e a consolidação da esquerda
Mas um pensamento que surgiu como uma bomba no século XIX foi certamente o marxiano. Marx (e Engels, seu eterno parceiro intelectual e de militância) vem de uma tradição de pensamento socialista, que já se iniciara desde o século XVIII. A ideia central do socialismo já se opõe, de antemão, a princípios fundamentais do liberalismo, todo estruturado na propriedade individual, enquanto o socialismo prioriza a propriedade coletiva. Marx materializa de maneira consistente essa oposição e denuncia, desde a sua obra jovem, as ilusões de uma "liberdade política", que não consuma efetivamente a liberdade humana.
À medida que aprofunda a sua investigação, ele denuncia, cada vez mais, os fundamentos do pensamento e do Estado moderno, estruturados na dominação econômica e no interesse de uma classe dominante. Em contraposição a esta condição, a luta de classes é o elemento central para a transformação da história humana. Tais definições são fundamentais para a discussão democrática, pois no sistema capitalista a classe proletária deve ser pensada como a verdadeira classe universal que irá superar as contradições desse sistema. É a classe que deve inicialmente ocupar o Estado (na chamada "ditadura do proletariado") e será a condutora de um novo período, uma sociedade sem classes, na qual o Estado não será mais necessário.
A definição da classe proletária como a classe "popular" por excelência tem noções ambíguas, que merecem ser esclarecidas. O termo proletário tem origem romana, na qual os proletarii eram os mais pobres, aqueles sem propriedade que não poderiam contribuir com impostos nem prestar o serviço militar. No contexto marxiano, a preocupação específica com o modo de produção capitalista opõe o proletário industrial como a classe proletária, por excelência, aquela que detém maiores condições históricas de enfrentar as contradições do capitalismo e superá-la.
Isto não significa, contudo, que Marx e Engels formulassem uma política que desprezasse os outros componentes das classes mais populares. Segundo Rosenberg, "para Marx e Engels, o movimento democrático era também em seu conjunto uma coalização de operários, de camponeses e de pequeno-burgueses. Porém, dentro dessa coalizão, o proletariado deveria tomar, necessariamente, a direção".
Os processos de avanços democráticos na Europa surgiram, em geral, pari passu com a constituição de partidos socialistas e/ou de esquerda, bem como com a articulação de federações sindicais que lutaram por diversas pautas como sufrágio universal (em alguns casos, inclusive das mulheres), jornada de oito horas diárias, melhores condições de trabalho, entre outros. Essas pautas eram vividas frequentemente em atrito também com os anarquistas, que ainda disputavam a atenção da esquerda no final do século XIX e início do século XX.
A esquerda do final do século, relevando-se a ainda importante disputa com o anarquismo, é cada vez mais influenciada por Marx e pela consolidação do marxismo por Engels, que editou os volumes inéditos de O Capital, articulou os movimentos socialistas internacionais e, como afirma o historiador Geoff Eley, "transformou o marxismo no credo oficial do movimento socialdemocrata".
Desde a Revolução Francesa, as lutas democráticas tornaram-se onipresentes no imaginário ocidental, e estavam associadas às lutas das classes populares, em diversas direções: pelo sufrágio universal, pela redução de impostos, por uma redução da jornada de trabalho, entre outros aspectos. Considerando-se que os primeiros pensadores socialistas praticamente não empreendiam uma luta política, eram os democratas que impunham medo às elites. Como afirma Rosenberg, "nesses tempos, somente a democracia [..] cheirava a sangue e barricadas".
Se 1848 foi um ano especialmente revolucionário na Europa, Rosenberg considera os desdobramentos contrarrevolucionários desse período fundamentais para uma primeira transformação semântica da noção de democracia. A luta pelo sufrágio universal sempre havia sido uma pedra de toque da luta democrática. A experiência francesa, contudo, com seus diversos desdobramentos, mostrou que a conquista do sufrágio universal não garantia, efetivamente, conquistas democráticas. Segundo Rosenberg, depois de um longo processo de embate contra as elites, mas também de divisões internas entre partidos e setores populares, ficou claro que os setores dominantes tinham plena capacidade de controlar os reais poderes políticos, inclusive de preparar exército e polícia para repressão das revoltas populares, se necessário. No entanto, isso não representou um efetivo abandono da democracia como ideal de luta pelas classes populares, mas um primeiro sinal de desesperança, o início de uma crescente perspectiva pela qual a democracia não era mais uma meta a ser alcançada, no máximo um caminho intermediário para que se realize a efetiva libertação da classe trabalhadora.
Com essa transformação semântica, o socialismo tornou-se, cada vez mais, uma fonte de referência da luta proletária. E, cada vez mais, esta referência é associada ao marxismo, muito embora ainda no contexto de uma luta crescente contra os anarquistas, inspirados em Proudhon e, depois, em Bakunin, que enfrentou Marx diretamente. Poderíamos dizer que Marx e Bakunin propunham dois modelos de democracia. No caso de Marx, seria fundamental uma ação conjunta que participasse da luta do Estado (inclusive de eleições) e, finalmente, o ocupasse (a famosa ditadura do proletariado) para, só posteriormente, poder destruí-lo. Para Bakunin, contudo, a luta política deveria, desde o início, recusar o Estado, não participando do seu jogo eleitoral e, principalmente, destruindo-o com a revolução. Mas a concepção marxista é, progressivamente, predominante. E ela pressupõe uma ação que ainda pode ser considerada democrática. Os socialistas mantiveram-se participando do jogo democrático e lutando por conquistas para as classes populares, especialmente a operária. Esta tendência terá seu mais emblemático exemplo no Partido Socialdemocrata alemão (PSD).
No final do século XIX e início do século XX, poderíamos afirmar que democracia ainda era uma palavra perigosa, tanto é que, em boa parte dos países da Europa ocidental, só no início do século XX se obteve o sufrágio universal. Mas constituía um perigo cada vez mais atenuado. O PSD alemão representou um modelo de socialismo democrático que progressivamente se afastava das bases populares e, quando teve condições de estar no poder, no início da República de Weimar (1918), aliou-se com setores mais conservadores, em contraposição a setores mais radicais. Obteve alguns avanços sociais, como o sufrágio universal, a jornada de trabalho de oito horas e o reconhecimento dos sindicatos, mas teve uma atuação tímida na maior parte das vezes, agravada pelo contexto de uma Alemanha fragilizada pela derrota na I Guerra, que logo teve de acatar uma série de imposições humilhantes dos vencedores, por meio do Tratado de Versalhes.
Reformistas e revolucionários: a Revolução Russa e os novos partidos comunistas
O início do século XX viu cada vez mais a consolidação de grandes empresas capitalistas que, ao invés de cultivar os antigos valores liberais da burguesia em ascensão, já se imiscuíam no Estado e exigiam dele fortes ações imperialistas, em busca de novos mercados e, principalmente, de matéria-prima para seu desenvolvimento. Como percebeu Rosenberg, a partir dos anos 90 do século XIX, as grandes empresas já consolidam cartéis e trustes. O "novo liberalismo" defendia mais intervenção estatal em outros países e revoltas internas deveriam ser reprimidas, para o bom funcionamento dos negócios.
Mas as coisas mudaram muito com a primeira Guerra Mundial. "Direitos divinos e dinásticos desapareceram efetivamente como meios plausíveis de legitimidade política. E a guerra varreu quatro grandes impérios continentais: o germânico, o Habsburgo, o russo e o otomano". Toda a base da estrutura feudal perdeu ainda mais os seus fundamentos. "Não apenas as formas estatais sofreram uma tremenda perda de legitimidade. Toda uma ordem europeia de deferência e hierarquias claramente feudais ou quase feudais foram destruídas ou, ao menos, profundamente balançadas". Esta mudança exigia a construção de novos elementos que substituíssem o "elemento transcendental" das monarquias, e o caminho encontrado foi por meio da consolidação de constituições, reforçando um aspecto fundamental do "Estado de direito", conforme pensado por Bobbio:
Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país [..], mas também subordinação das leis ao limite material de reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente, e portanto em linha de princípio 'invioláveis".
Do outro lado, houve uma grande ampliação do direito de voto. Como afirma Müller, "antes da Guerra, mulheres só podiam votar na Finlândia e na Noruega; em 1918, a Inglaterra introduziu o sufrágio universal para homens e o voto para mulheres acima de 30". Diversos outros países europeus ampliaram o sufrágio entre 1918 e 1919.
Do ponto de vista das revoltas populares, a Alemanha e a Rússia encamparam importantes disputas acerca dos caminhos do socialismo. Se o PSD alemão seguia formalmente o marxismo, sua tendência, já influenciado pela militância de Engels após a morte de Marx, foi de evitar a qualquer custo a tomada violenta de poder. Arthur Rosenberg vê esse processo já iniciar-se nos anos 70 do século XIX, e o associa à luta socialista contra a violência aparentemente ineficaz dos anarquistas.
Esta perspectiva antirrevolucionária recebeu sua acepção mais moderada com Bernstein, e seu "socialismo evolucionário", que aceitava quase escandalosamente os valores liberais, e defendia que "não há pensamento liberal que não seja parte do equipamento intelectual do socialismo". Mas também se dava na prática com a consolidação intelectual na Alemanha de Karl Kautsky, que praticava uma espécie de "radicalismo passivo". Se Kautsky defendia uma aceitação ortodoxa dos princípios do marxismo, isso deveria significar a inevitabilidade da queda do capitalismo, a partir das crises decorrentes do seu próprio desenvolvimento. Isto deveria implicar certa posição passiva em relação a este momento. Numa frase famosa de Kautsky, "não é nossa tarefa organizar a revolução, mas nos organizarmos para a revolução". Fazia parte deste ideário, também, avaliar que havia países que ainda não estariam "maduros" para o socialismo, uma vez que o desenvolvimento capitalista não atingira ainda o estágio adequado para a sua própria derrocada.
Posições como a de Kautsky e de Bernstein foram profundamente enfrentadas por pensadores marxistas, tais como Rosa Luxemburgo e Vladimir Lênin. Luxemburgo já desenvolvera, no começo do século, o conhecido Reforma ou Revolução, contrapondo-se, acima de tudo, às teorias "reformistas" de Bernstein. A posição revolucionária mais radical de Rosa Luxemburgo também foi abraçada por Lênin, intelectual e líder político fundamental para pensar as revoltas populares russas, mas também para liderar e governar o processo revolucionário que culminou na revolução de 1917.
Mas Rosa Luxemburgo e Lênin divergiram energicamente num aspecto fundamental para se compreender os desdobramentos da revolução socialista e a relação desses desdobramentos, na prática e no plano teórico, com a democracia. A obra intelectual de Lênin foi extremamente ambígua, e até mesmo contraditória, no que diz respeito à relação de um partido de vanguarda com as massas. O grande desafio era, para usar uma terminologia marxiana, como garantir que uma classe "em si", no estágio concreto em que se encontrava, se transformasse efetivamente em uma classe "para si", ou seja, com consciência revolucionária.
Lênin, em sua primeira obra de grande relevância, Que Fazer?, publicada em 1902, apresenta uma solução taxativa e que causou grandes rejeições em defensores da democracia: a classe proletária não tem, em si, consciência revolucionária. Para ele, "os operários nem sequer podiam ter consciência socialdemocrata. Esta só pode ser introduzida de fora" e acrescenta que a própria fundação da teoria revolucionária se dá na "intelectualidade burguesa radical". Noutro aspecto fundamental, ele afirma que "a organização dos revolucionários deve englobar [..] pessoas cuja profissão seja a atividade revolucionária [..]. Necessariamente, esta organização não deve ser muito extensa, e é preciso que seja o mais clandestina possível".
Há diferença significativa entre essa proposta e a marxiana. Na formulação de Marx, o processo essencial de transformação revolucionária se dá no próprio contexto da luta proletária, contexto que revela, no seio da própria luta, a realidade com a qual o intelectual e líder partidário deve se defrontar. Em Lênin de Que Fazer?, a consciência vem "de fora" e deve ser a condutora do partido revolucionário. Foi esta diferenciação que provocou conhecido embate entre Lênin e Rosa Luxemburgo. Para ela, o ponto de vista de Lênin é "de um rude centralismo [..]. O comitê central aparece como o verdadeiro núcleo ativo do partido e as demais organizações como simples instrumentos executivos". Ela reivindica "o eu coletivo da classe operária, que reclama o direito de cometer ela mesma os equívocos e de aprender por si a dialética da história", posição consolidada com a ideia de que "os erros cometidos por um verdadeiro movimento revolucionário são historicamente de uma fecundidade e de um valor incomparavelmente maiores que a infalibilidade do melhor dos Comitês Centrais".
Os fatos que se seguiram às revoltas populares na Rússia parecem ter dado razão a Luxemburgo, pois a constituição dos sovietes (os conselhos populares de fábrica que se uniram em revoltas populares) não se fez de cima para baixo. Lênin parece ter admitido totalmente esta nova realidade, e produziu profundas modificações na sua formulação teórica, em contraposição ao que dissera em Que Fazer?, obra que ele mesmo já considerava datada em muitos aspectos. Se esta foi, durante algum tempo, a nova formulação teórica de Lênin, a prática do novo governo bolchevique logo ficou distante dela. Muito rapidamente, o Partido assumiu o poder e se afastou, efetivamente, da participação popular. Já em 1919, o VII Congresso do partido (sob o domínio de Lênin) assumia: "o partido comunista russo deve conquistar o exclusivo predomínio nos sovietes e o controle prático de todo o seu trabalho". Esta perspectiva, claramente antidemocrática, foi reforçada, na prática, pelo poder cada vez mais concentrado no partido, reforçada por combate intenso, prisões e assassinatos dos "contrarrevolucionários". Este enfrentamento revolucionário significou, na prática, enfrentamento a qualquer questionamento ao modelo implantado pelo partido. Como cita Müller: "quando, em 1921, trabalhadores e marinheiros em Kronstadt, perto de Petrogrado, reivindicaram 'sovietes sem bolcheviques', Lênin enviou as tropas. Mesmo o criticismo interno ao partido era agora severamente cerceado".
Depois da revolução russa, os partidos de esquerda se separaram entre aqueles de inspiração marxista-leninista (que se tornaram os chamados partidos comunistas) e partidos socialistas ou socialdemocratas, que continuaram a investir prioritariamente na disputa eleitoral. Mas os partidos comunistas, associados ao Komintern russo, perderam, de início, qualquer real veleidade democrática, e seguiam, quase fielmente as definições de Moscou, o que trazia uma concentração ainda maior que a jamais pensada por Lênin. Mais do que a partidos de vanguarda, todos se submetiam a um partido de vanguarda, o "soviético".
Não nos estenderemos, por falta de espaço, a outro momento fundamental dos anos 30/40. A ascensão de governos fascistas, capitaneados pela Itália e pela Alemanha, só derrotados ao final da II Guerra. Gostaríamos apenas de registrar o seguinte: ao final da Guerra, tínhamos uma União Soviética fortalecida pelo apoio fundamental na luta empreendida contra o nazismo, dominando todo o Leste europeu, inclusive parte da Alemanha, já sob o domínio de uma ditadura totalitária comandada por Stálin. E, somado a isso, um profundo imaginário entre o povo europeu com as feridas abertas pelo horror ao nazismo, especialmente pela mortandade calculada e sem precedentes de milhões de judeus, entre outros perseguidos (ciganos, homossexuais, entre outros).
Nos países da Europa ocidental, mantinham-se alguns direitos liberais fundamentais, consolidava-se um regime constitucional que os preservava de arroubos imediatistas e uma importante conquista das lutas democráticas, o sufrágio universal, que já incluía em quase todos os países o voto das mulheres. Para quem acompanhou o contexto das revoltas populares do século XIX, este arcabouço ainda é muito distante de qualquer "vitória da democracia", mas não se pode negar que já constituía um avanço importante.
A democracia no Pós-Guerra
Para citar Ernesto Laclau: "sabemos, a partir de Saussure, que a língua (e, por extensão, todo o sistema de significação) é um sistema de diferenças, que as identidades linguísticas – os valores – são puramente relacionais". Se pensarmos o conceito de democracia de acordo com essa perspectiva, poderemos perceber com alguma facilidade o que ocorreu no Pós-guerra. De um lado, havia um quase unânime horror ao nazismo alemão e ao fascismo italiano. E esses sistemas políticos se deram, exatamente, como um amplo sistema de opressões e de exclusões, alimentado por um nacionalismo exacerbado, facilitado pelas radicalizações comuns em períodos de guerra. De outro, um crescente horror com a repressão soviética, com os grandes expurgos stalinistas, os milhões de encarcerados, os centenas de milhares de mortos, as rotações de lideranças e o clima repressivo, muito embora ainda não houvesse tanta clareza destas informações, frequentemente tidas como contrainformação capitalista. O socialismo soviético ainda alimentava muitas esperanças. Estas esperanças foram sendo, contudo, esgotadas progressivamente, seja com a denúncia de Kruschev a Stalin em 1956, mas também as ações repressivas da URSS pós-Stalin na Hungria (1956) e, principalmente, Tchecoslováquia (1968).
Por uma relação diferencial, o conceito de democracia foi transformado, ao menos para a elite comandante da Europa ocidental, para uma noção cada vez mais distante das origens populares e ameaçadoras que o constituíram nos séculos XVIII e XIX. O termo ia cada vez mais se associando a uma noção mais procedimental de direitos liberais assegurados, e de mandatos representativos, por meio de sufrágio universal, mesmo que esses mesmos mandatos tivessem uma série de limitações para fazer valer a sua representação.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que o termo "democracia" se associava cada vez mais aos países capitalistas ocidentais, estes mesmos países empreendiam ações que reduziam o impacto da discussão política na sua governança– incluindo o fortalecimento das cortes constitucionais, da comunidade europeia e mesmo acordos sindicais entre patrões e empregados. Como afirma Müller, "estabilidade deveria tornar-se um fim maior – de fato, a estrela-guia– da imaginação política do pós-guerra da Europa ocidental".
É importante registrar que, no mundo capitalista, o liberalismo, como pauta econômica, perdeu boa parte da sua força desde os anos 30, em função das crises capitalistas provocadas por abordagens de inspiração liberal. Desde então, foram conjugadas diversas ações intervencionistas, de natureza keynesiana, com um crescente investimento social especialmente nos países mais desenvolvidos, criando uma espécie de cinturão de proteção social entre os cidadãos, a partir de uma política ativa de redistribuição ensejada por altas taxações das rendas mais altas. Assim, se de um lado, eram tomadas as medidas necessárias para refrear a ação política, grande quantidade de recursos foi injetada para se construir um novo pacto, evitando, assim, convulsões sociais. Mais uma vez, o sistema de diferenças é fundamental para entender isso, pois a ameaça socialista (não mais apenas do Leste Europeu, mas também da China e de trotskistas independentes) impulsionava os países capitalistas desenvolvidos a fortalecer a proteção social dos seus cidadãos. Em contraponto, em países da América Latina, o receio anticomunista levava, mais frequentemente, a golpes militares.
A implementação do pacto social no pós-guerra sofreu um primeiro abalo fundamental em seu imaginário a partir das revoltas dos anos 60. Nessa década, tivemos, nos Estados Unidos, o acirramento da luta pelos direitos civis, coroada com publicação da Lei dos Direitos Civis em 1964, mas com diversos desdobramentos posteriores. Nessa época, também surgiram os grandes protestos contra a guerra do Vietnã. A partir da França, foram deflagradas as manifestações conhecidas como "maio de 68". As revoltas após maio de 68 provocaram, sobretudo, mudanças culturais, mas com importantes impactos em longo prazo no processo político. Segundo Umberto Eco,
Mesmo que todos os traços de 1968 se foram, ele mudou profundamente o modo com que todos nós, ao menos na Europa, nos comportamos e nos relacionamos. Relações entre patrões e trabalhadores, estudantes e professores, mesmo crianças e pais, se abriram. Elas nunca serão as mesmas novamente.
O feminismo foi, possivelmente, a primeira grande luta consolidada a partir das revoltas dos anos 60, com importantes desdobramentos pelos anos 70. A sua ação mudava o próprio caráter e significado da luta política. Como afirma Elley,
a insistência feminista nas relações entre a política e a vida diária, na importância da sexualidade, nas interconex es entre copo e mente, nos prazeres e não nas disciplinas, no consumo e não na produção, transformou os pontos de partida do pensar a mudança política, expandindo as premissas da esquerda sobre o que contém a categoria política. 'O pessoal é político' deu novos sentidos à autonomia individual.
Entre os anos 60 e 70, nos deparávamos com um caldo de lutas contra o racismo, o colonialismo, o machismo, e também movimentos gays, movimentos pacifistas, entre outros, que transformavam a cara da política. Cada vez mais, as disputas da macropolítica não podiam desconsiderar esses elementos. A política já não se apresentava mais apenas como luta de classes ou uma questão de gestão do poder público. A necessidade de articulações populares em lutas pela hegemonia ganhou uma complexidade inédita, exigindo novas formulações teóricas para abarcá-la, como se propuseram os filósofos Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Esse conjunto de lutas políticas, batizado de "novos movimentos sociais", apresentou nova vitalidade às lutas democráticas, e pôs em questão a noção de uma democracia meramente procedimental.
Por outro lado, o início dos anos 70 também testemunhou o surgimento do neoliberalismo em uma dimensão que ameaçava de forma relevante a legitimidade das reivindicações populares. Do ponto de vista econômico, este fenômeno se deu no contexto da crise do petróleo dos anos 70, com certo esgotamento financeiro do Welfare State, mas também com um crescimento do setor de serviços, em detrimento dos operários e camponeses, base histórica das revoltas populares.
O neoliberalismo introduziu um ideário crescente de redução do Estado, especialmente em investimentos sociais, mas também de enfraquecimento dos sindicatos. Era um ideário que implementava um novo modelo econômico-financeiro, mas também acompanhado de um discurso moral. Eram resgatadas ideias, como a de Hayek, que associavam medidas sociais a uma "servidão". O filósofo conservador Michael Oakeshott falava em "indivíduos manqués – seres humanos incapazes de carregarem o ônus de produzirem suas próprias escolhas". O Welfare State, é claro, se encaixava nesse contexto criticado por Oakeshott. Para Oakeshott, o indivíduo moderno europeu, celebrado por pensadores como Montaigne, Hegel e Tocqueville, estava sob risco de morte.
Era fundamental ao ideário neoliberal um refreamento das lutas democráticas, particularmente quando elas significavam reivindicações de redistribuição de recursos do Estado. Para tanto, era importante para o ideário neoliberal constituir um corpo de políticas que refreassem essas lutas. Uma preocupação dessa natureza já foi presente na Comissão Trilateral dos Estados Unidos, formada em 1975 por três intelectuais, que receavam uma "onda democrática", num contexto com "pessoas demais querendo coisas demais do governo e, ultimamente, também participação demais no governo, tornando a governabilidade cada vez mais difícil".
Essa preocupação era atacada em modo teórico em formulações como a do sociólogo alemão Niklas Luhmann. Segundo Müller, "ele ofereceu a mais coerente e sofisticada justificação teórica pela qual a formulação de políticas deveria ser protegida da participação ampla e, essencialmente, conduzida por burocratas". Luhmann pensava a sociedade em termos de sistemas e subsistemas complexos com algum grau de autonomia, o que tornaria contraproducente a interferência de um sistema no outro, e isso incluía o subsistema econômico.
Formulações como essas, as de natureza técnica e as de natureza moral, deram fundamentação a ações reais de concentração das principais medidas econômicas numa elite governante articulada com o grande poder econômico, com baixíssimo nível de interferência popular nessas decisões. O que estava em jogo parecia complexo demais para ser debatido com a população e se subordinasse a qualquer vontade popular. Na Europa, esse processo ganhou cores ainda mais fortes com a unificação da moeda e da concentração de poder no Banco Central europeu, a ponto de proposta em 2011 de referendo por primeiro-ministro grego, para discutir as medidas de contenção do governo associadas a plano de "resgate à Grécia", ser tratada quase como um escândalo, o que exigiu a sua retirada. Em diversos países do mundo, houve processos de autonomização dos bancos centrais, flexibilização da taxa de câmbio de acordo com o "mercado", entre diversas outras medidas que esvaziavam a ação popular e mesmo a classe política. Estes aspectos pareceram ganhar ares definitivos quando partidos supostamente de esquerda assumiram o poder, mantendo essencialmente tais medidas.
Considerações Finais
Não é simples mensurarmos o nosso grau de democracia, atualmente. As lutas populares sempre foram alvo de refreamento por parte dos grandes poderes. Mas é razoável apontar o neoliberalismo e seus desdobramentos como fator de esvaziamento da política. Diversos aspectos parecem ter sustentado tal esvaziamento, mas nos parece extremamente poderoso o ideário economicista, que argumenta que os aspectos técnicos envolvidos nas políticas econômicas não podem e não devem ser deliberados por meio de decisões democráticas.
O que parece confirmar este diagnóstico ainda mais é certa sensação geral de paralisia, uma vez que as saídas não estão dadas. Não parece mais haver tão nitidamente um modelo alternativo, como se anunciou o marxismo nos séculos XIX e XX. Mas há pelo menos dois aspectos que podem apontar para caminhos possíveis, a ser mais bem investigados.
Em primeiro lugar, vale registrarmos a abordagem de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Segundo eles, "o espaço mesmo da economia se configura como espaço político e [..] nele [..] operam plenamente [..] práticas hegemônicas". Se seguirmos esta abordagem, devemos compreender que o "subsistema econômico", para usarmos uma terminologia de Niklas Luhmann, sempre é composto por um intenso jogo de relações de poder, que devem ser publicizadas. No seio dessas relações, podemos perceber os grandes grupos econômicos como verdadeiros centros de poder, não controlados politicamente. Assim, se o neoliberalismo decidiu afastar a política da economia, o desafio é justamente o contrário: politizar a economia, e para tanto é fundamental que faça parte do campo das discussões políticas as escolhas governamentais envolvidas nas principais decisões econômicas.
Em segundo lugar, e em aparente contraponto ao primeiro, não se deve desconsiderar a argumentação neoliberal de que vários aspectos da governança apresentam alto nível de complexidade, e não podem ser alvo de deliberação democrática, que poderia resultar em ações contraproducentes que afetariam a estabilidade básica do Estado. Este assunto merece uma discussão mais ampla que não caberia aqui, mas poderíamos começar com o seguinte argumento. Se a ideia de soberania popular surge modernamente a partir da vontade geral de Rouseau, é fundamental que compreendamos que a ideia de vontade não pode ser confundida, na filosofia, com simples desejo, mas implica uma condição humana fundamental que sempre dialoga com a razão e com a liberdade. É nesse sentido que Rousseau nos alertou que a vontade geral não representa meramente a soma dos interesses particulares, ou mesmo vontade da maioria. Se pensarmos a soberania popular como vontade geral nos termos postos por Rousseau, devemos também pensar mecanismos para que a opção livre da população seja uma opção ponderada das possibilidades envolvidas, fator que exige um profundo diálogo com os agentes técnicos. Não nos esqueçamos que o próprio Rousseau já falava em "quando o povo suficientemente informado delibera...". Se nos é possível fazermos uma analogia: só um médico está habilitado para nos fazer uma cirurgia e somente ele pode ter a capacidade técnica para nos apresentar os riscos e os benefícios envolvidos nela. Tomar uma decisão dessas sem uma ponderada avaliação médica seria absolutamente contraproducente. Mas esses fatores de ordem técnica não devem afastar o ponto fundamental de que, em condições gerais, a decisão da cirurgia deve ser do paciente. O crescente refreamento da democracia como ideal, chegando ao ápice com o neoliberalismo, parece advogar que é o médico quem deve decidir...
Finalmente, se há pontos a serem aprofundados, não devemos nos perder em relação a conquistas que já parecem consolidadas. A história nos mostrou o significado e a importância dos direitos individuais, que em última análise podem ser considerados como fundamentados no antigo liberalismo político. Não aparecem no horizonte propostas políticas razoáveis que não respeitem estes direitos, muito embora eles ainda estejam longe de ser alcançados por muitos países do mundo. E a luta por tais direitos foi ainda mais ampliada pela revolução cultural que atravessou o mundo ocidental, depois das revoltas da década de 60 e do que se seguiu a elas. Com elas, se materializou cada vez mais uma nova pauta de pleitos (e direitos) políticos, que incluem a mulher, o negro, o homossexual, as minorias étnicas, etc. É fundamental que todo avanço que se busque não perca o significado dessas conquistas. Nesse sentido, diante da eterna confrontação da democracia perante o liberalismo, podemos perceber que a democracia não pode rejeitar o liberalismo, mas sempre o coloca em tensão para que este amplie ainda mais a sua pauta de direitos. E, para além disso, que este admita a sempre temida soberania popular, base de qualquer democracia que queira ser chamada como tal.

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