A democratização do madarinato ou o futuro da dinastia estatal democrática Nicolas Berggruen & Nathan Gardels. Governança inteligente para o século XXI. Uma via intermediária entre Ocidente e Oriente. Tradução de Erica Cunha e Alaves e Bernardo de Sá Nogueira. Porto: Editora Objectiva, 2013, 271 pp.. Acácio Augusto Pesquisador no Nu-Sol e no Projeto Temático FAPESP Ecopolítica. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professor de Ciência Política no curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina, São Paulo-SP, Brasil. Publicou, em co-autoria com Edson Passetti, Anarquismos e Educação, pela editora Autêntica, e é autor de Política e Polícia. Cuidados, controles e penalização de jovens, pela editora Lamparina. Contato:
[email protected].
Em
um
planeta
a
ou combinar de maneira eficiente um
racionalidade neoliberal orienta as
conjunto heterogêneo de informações
escolhas e as tecnologias computo-
e conhecimentos que a capacidade
informacionais comandam as ações,
de
as
ou combate que a experiência de
palavras-chave
no
e
qual
as
pergunta
geradoras governam o exercício do de
soluções.
Aponta-se
como
imperativo
dessas
que corações e mentes atuem de
palavras-chave, quando combinadas,
maneira a não interferir, conter ou
formam os comandos que guiam
compassar
governos, pesquisadores, formadores
produção inteligente. Esta é uma
de opinião, cidadãos. Essa forma
forma bastante sucinta de descrever
de
o atual imperativo da participação
circuito
do
Algumas
enfrentamento
pensamento produz.
pensamento, a produção de verdades e
questionamento,
pensamento
é
os
dos
velozes
fluxos
retroalimentada por uma vertiginosa
e
produção de informação que há muito
ultrapassam seus contornos políticos,
não a distingue e a produção de
econômicos
conhecimento. Vale mais a capacidade
produção ou gestão de um comum,
de cada pessoa ou grupo de capitalizar
seja
ele
compartilhamentos,
de
um
e
tecnológicos bem
de
que na
produção,
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consumo ou convivência. Em um
como
combinar,
mundo tão conectado, a ideia de que
institucional
uma democracia de consumidores
qualidades meritocráticas de gestão
produz isolamento é não apenas
com a garantia da soberania popular
imprecisa, como equivocada. Hoje,
dos Estados em bases democráticas
o difícil é estar só, a sós ou longe
e representativas. As referências para
do alcance de diversos acionamentos
produção de uma resposta são as
e monitoramentos, sejam eletrônicos
duas maiores e mais bem sucedidas
ou de conduta. Difícil é não ser
burocracias estatais de nossos dias:
ou estar, já que tudo é solicitação
China e Estados Unidos.
e
na
composição
constitucional,
as
e convocação para modulações que
Escrito pelo presidente e pelo
produzem subjetividades governadas
assessor sênior do Nicolas Berggruen
e dispostas a governar.
Institute,
respectivamente
Nicolas
Nessa profusão de uma produção
Berggruen e Nathan Gardels, o livro
intelectual cada vez mais comum,
é dividido em três partes. A primeira,
as palavras gestão e governança
“Globalização e governança”, trata
ganham destaque, não invariavelmente
das implicações históricas e teóricas
acompanhadas da palavra choque.
para formação do que chamam de
Esta seria uma ação determinante,
um “Constitucionalismo democrático
necessária para a mudança, variação
liberal
e até mesmo transgressão do que
privilegiando os impasses políticos
está posto, para a produção de um
e econômicos atuais dos governos
bem comum. A gestão responsável,
de China e EUA, e termina com
para a atual racionalidade neoliberal,
uma proposta híbrida, como o nome
é a forma de produzir confiança e
sugere, definindo um papel decisivo
eficiência nas instituições públicas
à
e privadas. Governação inteligente
sociais digitais, do que chamam
para o século XXI é um livro que
de uma “democracia vigilante” (p.
pretende
e
128). Na segunda parte, “Governação
apresentar experiências institucionais
inteligente. Teoria e prática”, os
para produção dessa forma de gestão
autores buscam comprovar as teses
em direção a um futuro melhor.
expostas anteriormente fundamentadas
O
na experiência vivida pelo Instituto
faz
problema
lançar
bases
retomando do
um
teóricas
recorrente
pensamento
liberal:
e
meritocrático”
participação
cidadã,
(p.
via
91),
redes
no processo de consultoria, avaliação
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e participação de três organismos de
Henrique Cardoso (ex-presidente do
governança, em escalas diferentes:
Brasil), Michael Spence (Nobel de
o governo da Califórnia, o G-20 e
economia e ex-presidente da Comissão
a União Europeia. Finalizam com
de Crescimento e Desenvolvimento
uma breve constatação que sinaliza
da ONU), Eric Schmidt (presidente
para uma nova modulação do antigo
executivo da Google), Felipe Gonzales
darwinismo social, não mais pela
(ex-presidente da Espanha), Ernesto
sobrevivência do mais forte, mas
Zedillo Ponce de León (diretor do
dos mais sábios (pp. 255-259), o
Centro de Estudos da Globalização
que ocorreria ao se substituir a
da
competição
na
presidente do México), dentre outros
gestão do comum, uma combinação
que constam na abertura da edição
também muito conhecida da teoria
portuguesa e em posts de comentários
liberal e de sua economia política.
e resenhas na internet. Trata-se de
A realização dessa empreitada leva o
um manual ou guia, dentre tantos
nome de “evolução da evolução” (p.
outros, para os que se ocupam de
258). Os cuidados políticos com o
governar as híbridas instituições do
corpo-espécie, do qual a vida de cada
mundo globalizado. Pelas temáticas
vivente passou a depender na era da
e pela forma de expô-las, o livro
biopolítica moderna, é acrescido, nas
evidencia outro traço da produção
exposições do livro, da atenção e
de verdade na atual constituição de
gestão eficiente na cooperação entre
uma governamentalidade planetária:
mentes inteligentes, da qual passam a
se há muito, no campo editorial, os
depender não apenas a sobrevivência
livros de auto-ajuda e as biografias
de cada um e do comum, como
de celebridades fazem sucesso entre
também a continuidade sustentável
os chamados homens comuns, entre
do
invariante
os que se lançam como condutores
nessa racionalidade específica o papel
(estatais e privados) há uma profusão
decisivo das elites/vanguardas e/ou
de livros que contam as histórias
líderes/empreendedores na gestão do
de
comum.
(Chefes Executivos de Ofício), como
planeta.
pela
cooperação
Permanece
Universidade
sucesso
de
de
Yale
grandes
e
ex-
CEOs
O livro é apresentado e elogiado
Mark Zuckerberg e Steve Jobs, e
por presidentes de empresas e Estados
de experiências bem-sucedidas em
de todo planeta, como Fernando
gestão e governança, como o próprio
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livro em questão, conformando o top
Se não há muita novidade no
do mercado editorial. Celebridades,
campo de formulação das questões
CEOs e governantes são as vidas
em
exemplares de nossa era. Exemplos
e envolver cidadãos, na tarefa de
para que cada um governe sua vida
divisão das tomadas de decisão, é
de forma responsável e em direção
na forma e no plano de aplicação
ao sucesso.
de suas teorias que se mostram as
busca
de
poder
desenvolver
Logo na introdução, expõe-se a
maneiras atuais de produzir governo
solução a ser provada e demonstrada
sobre condutas. Os três “casos” —
por todo livro: “Centramo-nos na China
Califórnia, G-20 e União Europeia
e nos Estados Unidos da América, não
— não apenas são tomados como
como alternativas literais, mas como
campos distintos de implicação das
metáfora das ponderações que precisam
atividades de governo, mas também
ser feitas ao construirmos um sistema
como meios pelos quais se colocam
constitucional misto que integre os
questões que dizem respeito a toda
elementos mais importantes de ambos
e
os modelos — respectivamente, a
de decisão. Segundo o alerta dos
orientação fornecida pela perspectiva
autores, mesmo com as mudanças
de longo prazo das elites meritocráticas
provocadas pelo que eles chamam
e a popular soberania da democracia”
de globalização 2.0 na configuração
(p. 33). Em poucas palavras, como
dos Estados-Nação, o Estado segue
combinar inovação e planejamento
como a esfera primeira e última das
com controle eficiente de maneira
tomadas de decisão.
que seja possível antecipar riscos e proporcionar
novas
oportunidades.
qualquer
processo
de
tomada
O fracasso da participação direta na
experiência
californiana
(via
Nesse sentido, o hibridismo não se
elaboração do orçamento do estado e
aplica apenas ao modelo de gestão
ações civis públicas) é utilizado para
e
mas
defender a necessidade de reiniciar
Para
(uma
formatação
também
ao
constitucional, campo
teórico.
das
inúmeras
metáforas
formular suas propostas, os autores
computacionais do livro) a “democracia
vão de Montesquieu a Shumpeter,
disfuncional da Califórnia” (p. 187).
de Antonio Gramsci a Jonh Rawls e
Esta disfuncionalidade é demonstrada
Francis Fukuyama, de Karl Marx a
pelo efeito da crise dos subprimes
Mark Zuckerberg.
em 2008 e pelo fato do orçamento
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do estado prever mais dinheiro para
Yahoo!, mas também por possuir e
as prisões que para universidades. Da
desenvolver modos de participação
mesma maneira, o G-20 é utilizado
direta de cidadãos e representantes
como
necessidade
da sociedade civil organizada desde
de ampliação da participação nas
o final dos anos 1970, durante o
Cimeiras globais e maior necessidade
governo de Jerry Brown. Segundo a
de capacidade decisória legitimada
avaliação dos autores, os fatores que
para esses enclaves supranacionais e
mostraram a disfunção do modelo
criação de fóruns análogos em âmbito
institucional californiano foram: a
sub-regional (p. 215). O processo
crescente demanda por construção
de integração da União Europeia e
de prisões (que demonstra o perigo
os atuais impasses decorrentes da
de uma democracia plebiscitária e
crise econômica são utilizados para
não regulada por contrapesos), que
expor uma tese que, indiretamente,
atingiu o ápice, em 2010, no governo
os autores compartilham com a atual
de Arnoldo Schwarzenegger (famoso
esquerda
déficit
pelos filmes “O exterminador do
democrático na formação e produção
futuro” e “O vingador do futuro”),
constitucional
e
exemplo
da
democrática: e
um
institucional
da
política hoje.
quebra
financeira,
na
esteira da crise de 2008, devido à
O fracasso institucional exposto ao longo do livro é o mote para argumentar
pela
A solução para o impasse financeiro,
reforma. Dos casos expostos, o mais
institucional e de representação do
bem sucedido é o do estado da
estado está, para os autores do
Califórnia, por uma confluência de
livro, numa reforma da governança
fatores. A Califórnia tornou-se, na
para uma nova forma de gestão do
década de 1990, um modelo para
comum. Essa reforma, argumentam,
o novo desenvolvimento globalizado,
passa pela criação de uma agenda
assentado na produção de riqueza
apolítica e apartidária na gestão do
atrelada
comum. O caso exposto inicia-se
ao
necessidade
de créditos imobiliários.
de
tecnológico
a
“irresponsabilidade fiscal” na oferta
desenvolvimento
computacional.
Isso
pela destituição, por meio de um
se deve ao fato do estado abrigar
referendo popular, do governador do
as maiores empresas de tecnologia
estado em 2003: “desde 2007 que
do mundo, como a Google e a
os californianos votam em primárias
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abertas, com redefinição de distritos
política de curto prazo alimentada
por uma comissão de cidadãos, e
pelos grupos de interesse que veio a
por maioria simples em questões
dominar a vida política californiana”
orçamentárias — tudo com o objetivo
(p. 189).
de por fim à paralisia induzida pelo
O caso californiano resume a
partidarismo no parlamento. E, com
proposta do livro: “a instalação de
uma margem enorme, votaram a favor
um novo software cívico que segue
de um futuro de energia limpa menos
a abordagem essencial da governação
dependente do petróleo estrangeiro,
inteligente
protegendo sua legislação pioneira
devolução, envolvimento e divisão
sobre as alterações climáticas de ser
na tomada de decisões. Por um lado,
deitada por terra” (pp. 188-1189).
propomos uma descentralização de
delineada
neste
livro:
Como já indicado, a crise de 2008
poder para o nível local e, pelo
trouxe problemas para o modelo
outro, a criação de maior capacidade
de
compartilhada
de deliberação despolitizada a nível
definição
de
estatal que incorpore a perspectiva
prioridades orçamentárias. É nesse
de longo prazo na governação” (p.
ponto que entra o Nicolas Beggruen
190). Assim se resume a proposta,
Institute, com a criação do Think Long
não mais de um sistema político,
Committee for California. Um comitê
mas de uma interface de sistemas
de notáveis, formado por eminentes
de governo capazes de upgrades
cidadãos com larga experiência em
em favor de uma gestão eficiente
gestão pública. Sua composição vai
e voltada para as futuras gerações.
de antigos secretários de Estado,
Camufla-se a disputa política em
como George Shultz e Condoleezza
favor de uma gestão despolitizada e
Rice, a presidentes de empresas
harmoniosa do comum, que inclui os
como Warner Bros e Yahoo!, além
recursos naturais e as inteligências
de políticos, juízes, promotores e
dos cidadãos.
e
gestão
pública
participativa
na
religiosos. O objetivo do comitê,
Não é fortuito que os autores
entendido como um software capaz de
recorram,
em
sua
conclusão,
à
reiniciar a democracia na Califórnia,
relação de governo da alma sobre
foi “introduzir uma agenda apolítica,
corpo, retirada de Bergson. É preciso
apartidária e a longo prazo para
investir na alma para otimizar o
corrigir o rancor partidário e a cultura
governo do corpo político, social
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e individual. Concluem em favor
harmonizando diferenças, hibridizando
de uma “mundivisão evoluída” (p.
posicionamentos
258) guiada por uma “esperança
interesses na constituição de uma
moderada” (p. 259). Pois “nenhuma
nova
solução
resolver
porque se pretende atualizável e
todos os problemas. Tudo aquilo
eterna, como o mais popular sistema
que temos é o que já foi testado e
operacional
comprovado pela história — tanto
pessoais do planeta e como o milenar
a notável e milenar resiliência da
e autoritário mandarinato imperial
‘civilização institucional’ da China
chinês,
como o momento breve e brilhante
atualizou, como forma institucional
da democracia liberal” (p. 257).
mesmo após uma revolução popular
milagrosa
vai
e
compondo
institucionalidade
que
para
se
inacabada,
computadores
manteve,
ou
se
o
e os impactos da globalização 2.0. O
século XXI. Uma visão intermediária
Estado desloca-se de mal necessário
Governança
inteligente
para é
um
como campo organizado de disputas
manual do governo no presente e
políticas para a categoria virtuosa da
pode ser visto como um importante
inteligência humana, que deve ser
registro da forma que se dá à
conduzida pelos mais sábios, uma
governamentalidade planetária hoje.
nova-velha dinastia estatal.
entre Ocidente e Oriente
Não apenas por despertar o interesse
Por fim, este livro pode servir
de lideranças políticas e empresariais,
como um alerta para os que depositam
mas, sobretudo por mostrar de que
suas esperanças em uma nova política
maneira se combinam, hoje, a busca
pautada pela cooperação, o cuidado
por harmonia comum, segundo a
com o comum e a gestão apartidária.
tradição
mandarinato
Se pretende-se ver nisso uma forma
responsividade
de resistência, este livro mostra que
participativa, segundo as tradições da
se trata da nova cara da política que
democracia liberal estadunidense. Os
anima líderes e empresários de todo
comandos de cliques que governam
mundo. A política despolitizada da
os softwares dos inúmeros aparelhos
governança inteligente é a otimização
computo-informacionais
nossa
do governo de todos por todos, uma
era são espelhados para produzir
espécie de comunismo harmonioso,
comandos despolitizados que operam
sustentável e liderado pelos bons. O
governos projetados para o futuro
Estado como monopólio da violência
chinês,
milenar e
a
do
de
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e categoria do entendimento segue
Diante disso, resta aos resistentes uma
intocado, a política como tecnologia
antipolítica que destrua a máquina e
moderna de governo e dominação
desfigure os sistemas, sem esperanças
também. Este é seu fim e sua moral.
e sem harmonia.
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