A democratização do madarinato ou o futuro da dinastia estatal democrática.

June 30, 2017 | Autor: Acácio Augusto | Categoria: Democracia, Relações Internacionais, Autoritarismo, Governo
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A democratização do madarinato ou o futuro da dinastia estatal democrática Nicolas Berggruen & Nathan Gardels. Governança inteligente para o século XXI. Uma via intermediária entre Ocidente e Oriente. Tradução de Erica Cunha e Alaves e Bernardo de Sá Nogueira. Porto: Editora Objectiva, 2013, 271 pp.. Acácio Augusto Pesquisador no Nu-Sol e no Projeto Temático FAPESP Ecopolítica. Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professor de Ciência Política no curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina, São Paulo-SP, Brasil. Publicou, em co-autoria com Edson Passetti, Anarquismos e Educação, pela editora Autêntica, e é autor de Política e Polícia. Cuidados, controles e penalização de jovens, pela editora Lamparina. Contato: [email protected].

Em

um

planeta

a

ou combinar de maneira eficiente um

racionalidade neoliberal orienta as

conjunto heterogêneo de informações

escolhas e as tecnologias computo-

e conhecimentos que a capacidade

informacionais comandam as ações,

de

as

ou combate que a experiência de

palavras-chave

no

e

qual

as

pergunta

geradoras governam o exercício do de

soluções.

Aponta-se

como

imperativo

dessas

que corações e mentes atuem de

palavras-chave, quando combinadas,

maneira a não interferir, conter ou

formam os comandos que guiam

compassar

governos, pesquisadores, formadores

produção inteligente. Esta é uma

de opinião, cidadãos. Essa forma

forma bastante sucinta de descrever

de

o atual imperativo da participação

circuito

do

Algumas

enfrentamento

pensamento produz.

pensamento, a produção de verdades e

questionamento,

pensamento

é

os

dos

velozes

fluxos

retroalimentada por uma vertiginosa

e

produção de informação que há muito

ultrapassam seus contornos políticos,

não a distingue e a produção de

econômicos

conhecimento. Vale mais a capacidade

produção ou gestão de um comum,

de cada pessoa ou grupo de capitalizar

seja

ele

compartilhamentos,

de

um

e

tecnológicos bem

de

que na

produção,

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consumo ou convivência. Em um

como

combinar,

mundo tão conectado, a ideia de que

institucional

uma democracia de consumidores

qualidades meritocráticas de gestão

produz isolamento é não apenas

com a garantia da soberania popular

imprecisa, como equivocada. Hoje,

dos Estados em bases democráticas

o difícil é estar só, a sós ou longe

e representativas. As referências para

do alcance de diversos acionamentos

produção de uma resposta são as

e monitoramentos, sejam eletrônicos

duas maiores e mais bem sucedidas

ou de conduta. Difícil é não ser

burocracias estatais de nossos dias:

ou estar, já que tudo é solicitação

China e Estados Unidos.

e

na

composição

constitucional,

as

e convocação para modulações que

Escrito pelo presidente e pelo

produzem subjetividades governadas

assessor sênior do Nicolas Berggruen

e dispostas a governar.

Institute,

respectivamente

Nicolas

Nessa profusão de uma produção

Berggruen e Nathan Gardels, o livro

intelectual cada vez mais comum,

é dividido em três partes. A primeira,

as palavras gestão e governança

“Globalização e governança”, trata

ganham destaque, não invariavelmente

das implicações históricas e teóricas

acompanhadas da palavra choque.

para formação do que chamam de

Esta seria uma ação determinante,

um “Constitucionalismo democrático

necessária para a mudança, variação

liberal

e até mesmo transgressão do que

privilegiando os impasses políticos

está posto, para a produção de um

e econômicos atuais dos governos

bem comum. A gestão responsável,

de China e EUA, e termina com

para a atual racionalidade neoliberal,

uma proposta híbrida, como o nome

é a forma de produzir confiança e

sugere, definindo um papel decisivo

eficiência nas instituições públicas

à

e privadas. Governação inteligente

sociais digitais, do que chamam

para o século XXI é um livro que

de uma “democracia vigilante” (p.

pretende

e

128). Na segunda parte, “Governação

apresentar experiências institucionais

inteligente. Teoria e prática”, os

para produção dessa forma de gestão

autores buscam comprovar as teses

em direção a um futuro melhor.

expostas anteriormente fundamentadas

O

na experiência vivida pelo Instituto

faz

problema

lançar

bases

retomando do

um

teóricas

recorrente

pensamento

liberal:

e

meritocrático”

participação

cidadã,

(p.

via

91),

redes

no processo de consultoria, avaliação

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e participação de três organismos de

Henrique Cardoso (ex-presidente do

governança, em escalas diferentes:

Brasil), Michael Spence (Nobel de

o governo da Califórnia, o G-20 e

economia e ex-presidente da Comissão

a União Europeia. Finalizam com

de Crescimento e Desenvolvimento

uma breve constatação que sinaliza

da ONU), Eric Schmidt (presidente

para uma nova modulação do antigo

executivo da Google), Felipe Gonzales

darwinismo social, não mais pela

(ex-presidente da Espanha), Ernesto

sobrevivência do mais forte, mas

Zedillo Ponce de León (diretor do

dos mais sábios (pp. 255-259), o

Centro de Estudos da Globalização

que ocorreria ao se substituir a

da

competição

na

presidente do México), dentre outros

gestão do comum, uma combinação

que constam na abertura da edição

também muito conhecida da teoria

portuguesa e em posts de comentários

liberal e de sua economia política.

e resenhas na internet. Trata-se de

A realização dessa empreitada leva o

um manual ou guia, dentre tantos

nome de “evolução da evolução” (p.

outros, para os que se ocupam de

258). Os cuidados políticos com o

governar as híbridas instituições do

corpo-espécie, do qual a vida de cada

mundo globalizado. Pelas temáticas

vivente passou a depender na era da

e pela forma de expô-las, o livro

biopolítica moderna, é acrescido, nas

evidencia outro traço da produção

exposições do livro, da atenção e

de verdade na atual constituição de

gestão eficiente na cooperação entre

uma governamentalidade planetária:

mentes inteligentes, da qual passam a

se há muito, no campo editorial, os

depender não apenas a sobrevivência

livros de auto-ajuda e as biografias

de cada um e do comum, como

de celebridades fazem sucesso entre

também a continuidade sustentável

os chamados homens comuns, entre

do

invariante

os que se lançam como condutores

nessa racionalidade específica o papel

(estatais e privados) há uma profusão

decisivo das elites/vanguardas e/ou

de livros que contam as histórias

líderes/empreendedores na gestão do

de

comum.

(Chefes Executivos de Ofício), como

planeta.

pela

cooperação

Permanece

Universidade

sucesso

de

de

Yale

grandes

e

ex-

CEOs

O livro é apresentado e elogiado

Mark Zuckerberg e Steve Jobs, e

por presidentes de empresas e Estados

de experiências bem-sucedidas em

de todo planeta, como Fernando

gestão e governança, como o próprio

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livro em questão, conformando o top

Se não há muita novidade no

do mercado editorial. Celebridades,

campo de formulação das questões

CEOs e governantes são as vidas

em

exemplares de nossa era. Exemplos

e envolver cidadãos, na tarefa de

para que cada um governe sua vida

divisão das tomadas de decisão, é

de forma responsável e em direção

na forma e no plano de aplicação

ao sucesso.

de suas teorias que se mostram as

busca

de

poder

desenvolver

Logo na introdução, expõe-se a

maneiras atuais de produzir governo

solução a ser provada e demonstrada

sobre condutas. Os três “casos” —

por todo livro: “Centramo-nos na China

Califórnia, G-20 e União Europeia

e nos Estados Unidos da América, não

— não apenas são tomados como

como alternativas literais, mas como

campos distintos de implicação das

metáfora das ponderações que precisam

atividades de governo, mas também

ser feitas ao construirmos um sistema

como meios pelos quais se colocam

constitucional misto que integre os

questões que dizem respeito a toda

elementos mais importantes de ambos

e

os modelos — respectivamente, a

de decisão. Segundo o alerta dos

orientação fornecida pela perspectiva

autores, mesmo com as mudanças

de longo prazo das elites meritocráticas

provocadas pelo que eles chamam

e a popular soberania da democracia”

de globalização 2.0 na configuração

(p. 33). Em poucas palavras, como

dos Estados-Nação, o Estado segue

combinar inovação e planejamento

como a esfera primeira e última das

com controle eficiente de maneira

tomadas de decisão.

que seja possível antecipar riscos e proporcionar

novas

oportunidades.

qualquer

processo

de

tomada

O fracasso da participação direta na

experiência

californiana

(via

Nesse sentido, o hibridismo não se

elaboração do orçamento do estado e

aplica apenas ao modelo de gestão

ações civis públicas) é utilizado para

e

mas

defender a necessidade de reiniciar

Para

(uma

formatação

também

ao

constitucional, campo

teórico.

das

inúmeras

metáforas

formular suas propostas, os autores

computacionais do livro) a “democracia

vão de Montesquieu a Shumpeter,

disfuncional da Califórnia” (p. 187).

de Antonio Gramsci a Jonh Rawls e

Esta disfuncionalidade é demonstrada

Francis Fukuyama, de Karl Marx a

pelo efeito da crise dos subprimes

Mark Zuckerberg.

em 2008 e pelo fato do orçamento

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do estado prever mais dinheiro para

Yahoo!, mas também por possuir e

as prisões que para universidades. Da

desenvolver modos de participação

mesma maneira, o G-20 é utilizado

direta de cidadãos e representantes

como

necessidade

da sociedade civil organizada desde

de ampliação da participação nas

o final dos anos 1970, durante o

Cimeiras globais e maior necessidade

governo de Jerry Brown. Segundo a

de capacidade decisória legitimada

avaliação dos autores, os fatores que

para esses enclaves supranacionais e

mostraram a disfunção do modelo

criação de fóruns análogos em âmbito

institucional californiano foram: a

sub-regional (p. 215). O processo

crescente demanda por construção

de integração da União Europeia e

de prisões (que demonstra o perigo

os atuais impasses decorrentes da

de uma democracia plebiscitária e

crise econômica são utilizados para

não regulada por contrapesos), que

expor uma tese que, indiretamente,

atingiu o ápice, em 2010, no governo

os autores compartilham com a atual

de Arnoldo Schwarzenegger (famoso

esquerda

déficit

pelos filmes “O exterminador do

democrático na formação e produção

futuro” e “O vingador do futuro”),

constitucional

e

exemplo

da

democrática: e

um

institucional

da

política hoje.

quebra

financeira,

na

esteira da crise de 2008, devido à

O fracasso institucional exposto ao longo do livro é o mote para argumentar

pela

A solução para o impasse financeiro,

reforma. Dos casos expostos, o mais

institucional e de representação do

bem sucedido é o do estado da

estado está, para os autores do

Califórnia, por uma confluência de

livro, numa reforma da governança

fatores. A Califórnia tornou-se, na

para uma nova forma de gestão do

década de 1990, um modelo para

comum. Essa reforma, argumentam,

o novo desenvolvimento globalizado,

passa pela criação de uma agenda

assentado na produção de riqueza

apolítica e apartidária na gestão do

atrelada

comum. O caso exposto inicia-se

ao

necessidade

de créditos imobiliários.

de

tecnológico

a

“irresponsabilidade fiscal” na oferta

desenvolvimento

computacional.

Isso

pela destituição, por meio de um

se deve ao fato do estado abrigar

referendo popular, do governador do

as maiores empresas de tecnologia

estado em 2003: “desde 2007 que

do mundo, como a Google e a

os californianos votam em primárias

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abertas, com redefinição de distritos

política de curto prazo alimentada

por uma comissão de cidadãos, e

pelos grupos de interesse que veio a

por maioria simples em questões

dominar a vida política californiana”

orçamentárias — tudo com o objetivo

(p. 189).

de por fim à paralisia induzida pelo

O caso californiano resume a

partidarismo no parlamento. E, com

proposta do livro: “a instalação de

uma margem enorme, votaram a favor

um novo software cívico que segue

de um futuro de energia limpa menos

a abordagem essencial da governação

dependente do petróleo estrangeiro,

inteligente

protegendo sua legislação pioneira

devolução, envolvimento e divisão

sobre as alterações climáticas de ser

na tomada de decisões. Por um lado,

deitada por terra” (pp. 188-1189).

propomos uma descentralização de

delineada

neste

livro:

Como já indicado, a crise de 2008

poder para o nível local e, pelo

trouxe problemas para o modelo

outro, a criação de maior capacidade

de

compartilhada

de deliberação despolitizada a nível

definição

de

estatal que incorpore a perspectiva

prioridades orçamentárias. É nesse

de longo prazo na governação” (p.

ponto que entra o Nicolas Beggruen

190). Assim se resume a proposta,

Institute, com a criação do Think Long

não mais de um sistema político,

Committee for California. Um comitê

mas de uma interface de sistemas

de notáveis, formado por eminentes

de governo capazes de upgrades

cidadãos com larga experiência em

em favor de uma gestão eficiente

gestão pública. Sua composição vai

e voltada para as futuras gerações.

de antigos secretários de Estado,

Camufla-se a disputa política em

como George Shultz e Condoleezza

favor de uma gestão despolitizada e

Rice, a presidentes de empresas

harmoniosa do comum, que inclui os

como Warner Bros e Yahoo!, além

recursos naturais e as inteligências

de políticos, juízes, promotores e

dos cidadãos.

e

gestão

pública

participativa

na

religiosos. O objetivo do comitê,

Não é fortuito que os autores

entendido como um software capaz de

recorram,

em

sua

conclusão,

à

reiniciar a democracia na Califórnia,

relação de governo da alma sobre

foi “introduzir uma agenda apolítica,

corpo, retirada de Bergson. É preciso

apartidária e a longo prazo para

investir na alma para otimizar o

corrigir o rancor partidário e a cultura

governo do corpo político, social

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e individual. Concluem em favor

harmonizando diferenças, hibridizando

de uma “mundivisão evoluída” (p.

posicionamentos

258) guiada por uma “esperança

interesses na constituição de uma

moderada” (p. 259). Pois “nenhuma

nova

solução

resolver

porque se pretende atualizável e

todos os problemas. Tudo aquilo

eterna, como o mais popular sistema

que temos é o que já foi testado e

operacional

comprovado pela história — tanto

pessoais do planeta e como o milenar

a notável e milenar resiliência da

e autoritário mandarinato imperial

‘civilização institucional’ da China

chinês,

como o momento breve e brilhante

atualizou, como forma institucional

da democracia liberal” (p. 257).

mesmo após uma revolução popular

milagrosa

vai

e

compondo

institucionalidade

que

para

se

inacabada,

computadores

manteve,

ou

se

o

e os impactos da globalização 2.0. O

século XXI. Uma visão intermediária

Estado desloca-se de mal necessário

Governança

inteligente

para é

um

como campo organizado de disputas

manual do governo no presente e

políticas para a categoria virtuosa da

pode ser visto como um importante

inteligência humana, que deve ser

registro da forma que se dá à

conduzida pelos mais sábios, uma

governamentalidade planetária hoje.

nova-velha dinastia estatal.

entre Ocidente e Oriente

Não apenas por despertar o interesse

Por fim, este livro pode servir

de lideranças políticas e empresariais,

como um alerta para os que depositam

mas, sobretudo por mostrar de que

suas esperanças em uma nova política

maneira se combinam, hoje, a busca

pautada pela cooperação, o cuidado

por harmonia comum, segundo a

com o comum e a gestão apartidária.

tradição

mandarinato

Se pretende-se ver nisso uma forma

responsividade

de resistência, este livro mostra que

participativa, segundo as tradições da

se trata da nova cara da política que

democracia liberal estadunidense. Os

anima líderes e empresários de todo

comandos de cliques que governam

mundo. A política despolitizada da

os softwares dos inúmeros aparelhos

governança inteligente é a otimização

computo-informacionais

nossa

do governo de todos por todos, uma

era são espelhados para produzir

espécie de comunismo harmonioso,

comandos despolitizados que operam

sustentável e liderado pelos bons. O

governos projetados para o futuro

Estado como monopólio da violência

chinês,

milenar e

a

do

de

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e categoria do entendimento segue

Diante disso, resta aos resistentes uma

intocado, a política como tecnologia

antipolítica que destrua a máquina e

moderna de governo e dominação

desfigure os sistemas, sem esperanças

também. Este é seu fim e sua moral.

e sem harmonia.

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