A demoníaca mulher-serpente da Ermida de Nossa Senhora dos Remédios em Peniche

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A demoníaca mulher-serpente da Ermida de Nossa Senhora dos Remédios, em Peniche

José Barreto Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

2015

A demoníaca mulher-serpente da Ermida de Nossa Senhora dos Remédios, em Peniche

Na Ermida de Nossa Senhora dos Remédios, em Peniche, há uns invulgares painéis de azulejos do século XVIII representando uma cena de luta entre um homem e um demónio feminino. Não conheço nada de temática ou estilisticamente semelhante em azulejaria ou qualquer outro ramo de arte sacra portuguesa. O demónio feminino, representando a tentação maligna com enorme vigor pictórico, é uma mulher de grandes peitos nus pendentes, com cauda de serpente e braços que terminam em garras. De olhos arregalados, bocarra aberta e língua de fora, a mulher-diabo parece querer abocanhar o homem. Este, às cavalitas na mulher-serpente e apoiando um pé no seu ombro, defendese com um braço da boca ameaçadora que lhe ronda o entrepernas e, com o outro, preparase para lhe desferir um murro de punho fechado. A expressão facial da mulher é feroz, e a garra fincada na coxa do homem acrescenta a essa ferocidade, sugerindo um ataque, mais do que tentação. São dois pares de painéis idênticos, de imagens espelhadas, nos cantos traseiros da nave da ermida, de ambos os lados da porta. No total, a imagem aparece quatro vezes, o que intensifica o impacto visual da cena, embora esta se localize no espaço menos nobre da nave da capela.

1. Painel espelhado do canto à esquerda da porta da Ermida de Nossa Senhora dos Remédios.

2. Detalhe do painel do canto à direita da porta. Pode parecer que há uma perna e um braço a mais, mas trata-se de uma figura masculina semiescondida que, na pintura, suporta o capitel de uma coluna.

Em ambos os cantos da capela, junto a estes painéis, existe um banquinho preto, como que a convidar os fiéis a sentarem-se ali, de certo modo envolvidos naquela cena. Não deve ser intencional, mas sim apenas uma questão de aproveitamento do espaço.

3. Um dos homens que suportam os capitéis das colunas, ao lado da cena

Julga-se que a Ermida de Nossa Senhora dos Remédios, situada na costa Oeste de Peniche a 700 metros do Cabo Carvoeiro, terá sido construída no século XVII, mas a azulejaria, que recobre integralmente as paredes interiores e as abóbadas da nave e da capela-mor, é datável de ca. 1720. Tem a assinatura do grande pintor de azulejos António de Oliveira Bernardes (ca. 1662 -1732), cujo filho e discípulo Policarpo de Oliveira Bernardes (16951778) também foi notável azulejista.

4. Assinatura de António de Oliveira Bernardes nos painéis de azulejos da Ermida dos Remédios de Peniche: "Antonius Aboliva B. des, fecitt."

As cenas lúbricas que ladeiam a porta na parte traseira da nave contrastam fortemente com a temática dos grandes painéis de azulejos que revestem todo o espaço nobre da capela e que representam episódios da vida da Virgem: o nascimento, a apresentação no templo, o casamento, a Anunciação e a Assunção. Veja-se abaixo o painel do nascimento da Virgem, no lado do Evangelho da capela.

5. Painel do nascimento da Virgem, Ermida de Nossa Senhora dos Remédios, Peniche.

Parece claro que a representação da luta do homem com a mulher diabólica serve de contraponto à história gráfica da vida da Virgem, toda ela imbuída de pureza, castidade e santidade. A presença do mal, do inferno e do demónio na arte sacra europeia tinha um longo passado. A representação das forças do mal e do castigo dos pecadores serviam, por contraste, para destacar e enaltecer o bem e a virtude. No caso vertente, o homem sobrepuja uma diaba, resistindo-lhe e parecendo levá-la de vencida. Procurando na arte europeia de tema religioso uma figura diabólica feminina com os mesmos atributos físicos (busto feminino nu em corpo de serpente, com braços e garras afiadas), encontrar-se-ão representações bastante semelhantes, anteriores a ela de alguns séculos, embora em contextos temáticos e pictóricos muito distintos das cenas da Ermida dos Remédios de Peniche. A figura que se pode encontrar em diversas obras com atributos idênticos é identificável como Lilith, a tentadora mulher-serpente que aparece de cauda

enroscada na árvore proibida do paraíso terrestre, em algumas representações de Adão e Eva cometendo o pecado original (em muitas outras representações desse tema, a serpente é apenas uma serpente, sem traços humanos). Uma representação de Lilith com aqueles exactos atributos está no "Portal da Virgem" da Igreja de Notre Dame, em Paris, construído no primeiro quartel do século XIII. No tremó do portal, sob os pés da estátua da Virgem e servindo-lhe de contraponto, há um relevo em pedra mais escura, relatando a história de Adão e Eva, com o pecado original na parte central.

6. Imagem da Virgem com o menino, no tremó de um portal da Igreja de Notre Dame, tendo sob os seus pés um relevo com a história de Adão e Eva.

Na parte central do relevo de Adão e Eva, empoleirada na árvore proibida e com a cauda de serpente enroscada no seu tronco, está a tentadora Lilith, de peitos nus e garras fincadas nos ramos. Oportuna folhagem cobre as partes vergonhosas de Adão e Eva. Do lado esquerdo do relevo, representa-se Eva a ser criada de um costela de Adão. Do lado direito, está a sua expulsão do Éden. Observe-se, nas imagens seguintes, a expressão sorridente e sedutora da mulher-serpente fitando Eva, que come a maçã.

7. Relevo no portal da Igreja de Notre Dame, sob os pés da Virgem.

8. Pormenor (outro ângulo).

Posteriores representações de Lilith e do pecado original na arte renascentista italiana são semelhantes, mas não incluem as garras da mulher-serpente, que no relevo medieval do portal de Notre Dame sublinham o seu carácter diabólico. Vejam-se seguidamente representações do pecado original em Michelangelo, Raffaello e Giovanni della Robbia, todos do início do século XVI. No relevo cerâmico de Della Robbia, a serpente não tem sequer braços.

9. Michelangelo, 1508, Capela Sistina. Repare-se na confusa solução encontrada para a ligação da cauda de serpente ao corpo de Lilith.

10. Raffaello, ca. 1510, abóbada da Sala da Assinatura no Palácio do Vaticano.

11. Giovanni della Robbia, 1515, Walters Art Museum. As faces de Lilith e de Eva são idênticas. As folhas da árvore e as que cobrem os sexos de Adão e Eva, são de figueira. Os frutos da árvore são figos.

Lilith não é uma personagem da Bíblia canónica cristã, procedendo sim dos escritos rabínicos do Talmud babilónico. Segundo a mitologia judaica, Lilith teria sido a primeira mulher de Adão, que desobedeceu a este e por isso abandonou o Éden. Tendo posteriormente desobedecido também a Deus, que lhe ordenara o regresso a Adão, foi expulsa da face da terra e tornou-se numa diaba, a favorita de Lúcifer. Regressou ao paraíso terrestre para tentar Adão e Eva e foi bem-sucedida nos seus intentos. Por terem cedido à tentação, Adão e Eva foram expulsos do Éden.

A arte sacra católica acolheu este relato hebraico e a própria figura mitológica de Lilith, como testemunham o relevo da Igreja de Notre Dame, as pinturas murais da Capela Sistina e o fresco de Raffaelo na abóboda da Sala da Assinatura do Palácio do Vaticano. Como interpretar, pois, a cena da luta do homem com a diabólica serpente que se encontra nos painéis da Ermida de Nossa Senhora dos Remédios em Peniche? Nessa cena, o homem não só dá luta à serpente do mal, como parece até subjugá-la e vencê-la. O homem nu, que não tem atributos de anjo, também não representará propriamente Adão, mas o homem genérico, sujeito às seduções carnais e às tentações do pecado. Também a mulherserpente não será propriamente Lilith, mas sim uma forma feminina que o pintor, certamente conhecedor de anteriores representações da mulher-serpente, engendrou para figurar a tentação maligna, ancorado na tradição misógina do cristianismo, que diaboliza a mulher. Não estaremos, assim, perante uma tentativa de revisão ou recriação cristã do relato da mitologia judaica, mas perante um composição pictórica sem referências mitológicas intencionais e claras, elaborada com o plausível fim edificante de incitar à luta contra a sedução do mal. De resto, só o artista poderia revelar as suas fontes últimas de inspiração ou as instruções de quem lhe encomendou a decoração da ermida. José Barreto, Agosto 2015

12. A Ermida de Nossa Senhora dos Remédios, em Peniche (foto de 2015).

Imagens

A foto da página de rosto e as das imagens 1, 2, 3 5 e 12 são de José Barreto.

A foto da imagem 4 é de Acscosta, na Wikipédia portuguesa. URL: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_de_Oliveira_Bernardes

As fotos das imagens 6 e 8 provêm de http://ndparis.free.fr/

A foto da imagem 7 é de Jebulon, em Wikimedia Commons. URL: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Temptation_Adam_Eva.jpg

A foto da imagem 9 é de wikiart.org. URL: http://uploads0.wikiart.org/images/michelangelo/adam-and-eve-1512.jpg

A foto da imagem 10 é da Web Gallery of Art. URL: http://www.wga.hu/html_m/r/raphael/4stanze/1segnatu/5/2panel4.html

A foto da imagem 11 é do Walter Arts Museum. URL: http://art.thewalters.org/detail/35961/adam-and-eve/

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