A DEMONIZAÇÃO DA MULHER: DAS REPRESENTAÇÕES EM DISCURSOS CATÓLICOS À ANÁLISE DAS BRUXAS NAS OBRAS DE HANS BALDÜNG

May 22, 2017 | Autor: Jean Campos | Categoria: Demonologia, Igreja Católica, Feminino, Inquisição, História da Bruxaria
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JEAN LUCAS DE CAMPOS SILVA

A DEMONIZAÇÃO DA MULHER: DAS REPRESENTAÇÕES EM DISCURSOS CATÓLICOS À ANÁLISE DAS BRUXAS NAS OBRAS DE HANS BALDÜNG GRIEN

Taubaté – SP 2015

JEAN LUCAS DE CAMPOS SILVA

A DEMONIZAÇÃO DA MULHER: DAS REPRESENTAÇÕES EM DISCÜRSOS CATÓLICOS À ANÁLISE DAS BRUXAS NAS OBRAS DE HANS BALDUNG GRIEN

Monografia apresentada ao Departamento de Ciências Sociais e Letras da Universidade de Taubaté, como trabalho de conclusão do curso de História, sob orientação da Profa. Dra. Suzana Lopes Salgado Ribeiro.

Taubaté – SP 2015

Jean Lucas de Campos Silva

A DEMONIZAÇÃO DA MULHER: DO PROCESSO DE REPRESENTAÇÕES E DISCURSOS CATÓLICOS À ANÁLISE PCTÓRICA DAS BRUXAS DE HANS BALDUNG GRIEN

UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ, TAUBATÉ, SP Data: ________________________________________ Resultado: _____________________________________ BANCA EXAMINADORA

Prof: __________________________________________ Assinatura: _____________________________________

Prof: __________________________________________ Assinatura: _____________________________________

Prof: __________________________________________ Assinatura: _____________________________________

Para Pedro, Divina e Manu, alicerces da minha vida.

AGRADECIMENTOS Agradeço em primeiro lugar a Deus. Agradeço à minha família, base de todo meu caminho até aqui: meus pais Pedro e Divina e minha irmã Emanoelli. Também, agradeço à aqueles que considero parte da minha família e que tanto me auxiliaram: Neide, Sidney, Rafael e Guilherme. Dentro da caminhada que me aventurei na Universidade conheci quem muito me ajudou para a construção deste trabalho, minha namorada e parceira de todas as horas Carla Nienkoetter e seus pais: Eliziani e José Henrique. Também dentro desta academia, tive a oportunidade de conhecer colegas e fazer amizades como os preciosos Bruno, Carlos, Daniel, e Stéfan, bem como fora da Universidade meus queridos amigos Eriseu, Lucas, Nislene, Larissa e Ismail. Na carreira que estou me iniciando, certos Professores que além de me orientarem, foram exemplo para mim e que inspiraram de certa forma na minha escolha, não apenas de profissão, mas de caminho de vida. Professora e Orientadora Suzana Ribeiro, sua paciência e dedicação foram essenciais a este trabalho. Professora Tânia de Cássia, por ter me ensinado os valores que vão além da profissão Docente; Professor Daniel Messias dos Santos, por ter me mostrado o fascínio da disciplina de História desde o Ensino Médio; Professor Marcelo Martins, por me ensinar exemplarmente o que é ser um ótimo Professor; Professora Fátima Toledo, por ter me inspirado com sua erudição ímpar; Professora Rachel Abdala por ter me dado apoio em toda a construção desta etapa acadêmica de minha vida; Professora Silvia Liebel por ter dedicado seu tempo com orientações à distância; Professor Pedro Moura da Silva, que me ensinou a buscar estar sempre entre os melhores. Por fim, agradeço aos integrantes do GELP encabeçados pelo Professor Luzimar Gouvêa pela correção ortográfica desta monografia, a dedicação de vocês foi muito importante nos momentos finais e decisivos da entrega deste trabalho. .

O que sabemos das Mulheres? [...] Sabia bem que não veria nada de seu rosto, de seus gestos, de sua maneira de dançar, de rir, mas esperava perceber alguns aspectos de sua conduta, o que pensavam de si próprias, do mundo e dos homens. Não entrevi mais que sombras, vacilantes, inapreensíveis. Nenhuma de suas palavras me chegou diretamente. Todos os discursos que, em seu tempo, lhes foram atribuídos, são masculinos. (GEORGES DUBY)

RESUMO Neste trabalho analisa-se o tema do Feminino sob o olhar da Igreja Católica em um largo período que precede o Cristianismo e alcança o século XVI. Trata-se de um exame processual, de cunho bibliográfico e análise de Imagens, que refletiu sobre como a mulher foi abstraída à submissão masculina, depois pensada como mais propícia a interagir com o diabo e, por fim, transformada em bruxa. Foram estudados os argumentos discursados pelos clérigos desde as raízes da Cristandade até o fenômeno Inquisitorial da caça às Bruxas. Temáticas como a da sexualidade, religião e imaginário coletivo foram imprescindíveis para tal reflexão. Por fim, abordamos como recorte temático, obras que ilustraram bruxas em Sabás do artista alemão Hans Baldüng Grien no século XVI, contextualizando com os símbolos na pintura e que ajudaram a estereotipar o perfil destas mulheres condenadas. Os resultados obtidos demonstraram o quanto a hostilidade à mulher estava impregnada nos discursos e representações da Igreja, mesmo naqueles que são considerados Santos atualmente, como Santo Agostinho, São Tomás de Aquino ou Santo Ambrósio. Percebeu-se também que a crença em uma religião cada vez mais una na Europa, com a expansão da Instituição Cristã, desencadeou alterações no imaginário social e, consequentemente, nos seus medos e angústias. A conclusão na verdade sugere uma nova questão: visto que a representação da mulher mudou ao passar dos séculos, devido os mais variados discursos, em especial aqui, os misóginos, podemos questionar o que, atualmente, temos de resquícios desta herança de hostilidade à mulher. Palavras chave: Bruxa; Demonização; Hans Baldüng Grien; Igreja Católica; Mulher;

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................. 11 1. A DEMONIZAÇÃO DO FEMININO EM BRUXA COMO UM PROCESSO HISTÓRICO: DA VISÃO CATÓLICA MEDIEVAL AO SURTO DE BRUXARIA NA MODERNIDADE ........................................15 1.1 O Bem e o Mal e a questão da Culpabilidade na Idade Média: da concepção Católica sobre tais princípios ao ápice de uma batalha contra o Maligno 15 1.2 O feminino inferiorizado: uma mentalidade de pessimismo à mulher .....23 1.2.1 Raízes Cristãs ........................................................................................ 23 1.2.2 O discurso clérigo e a Literatura ........................................................... 25 1.2.3 A domesticidade .................................................................................... 28 1.3 Mundo demonizado: um difícil panorama para mulheres ........................ 30 1.4 O sexo pecaminoso: o erotismo discriminado ao feminino ...................... 35

2. HOLOCAUSTO MISÓGINO: A CAÇA ÀS BRUXAS (SÉCULOS XIVXVI) E OS DISCURSOS NO MALLEUS MALEFICARUM ..................... 43 2.1 Para um estudo da caça às bruxas ............................................................. 43 2.2 Um panorama da caça às bruxas ............................................................... 44 2.3 O contexto social........................................................................................ 48 2.4 Espírito de angústia num mundo de perseguição às bruxas: Crença e précondições...................................................................................................................... 54 2.5 A misoginia no discurso do Malleus Maleficarum ....................................56

3. ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS BRUXAS NAS OBRAS DE HANS BALDUNG GRIEN...........................................................................59 3.1 Prelúdio.....................................................................................................59 3.2 A representação da mulher nas imagens do século XVI .......................... 61 3.3 Análises das bruxas e sabás a partir das obras de Baldung ...................... 63 3.3.1 Die Hexen (1510) .................................................................................. 63

3.3.2 Three Witches e Departing for the Sabbat (1514) ..................................79

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................88

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 89

LISTA DE FIGURAS

1. FIGURA 1: Die Hexen por Hans Baldung Grien, 1510 ...........................................64 2. FIGURA 2: Martinho Lutero por Hans Baldüng Grien, 1520 .................................66 3. FIGURA 3: The Temptation of Saint Antony por Martin Schongauer, 1490 ...........74 4. FIGURA 4: Three Witches por Hans Baldüng Grien ............................................... 79 5. FIGURA 5: Departing for the Sabbat por Hans Baldüng Grien, 1514 .................... 80 6. FIGURA 6: Lebre Jovem por Albrecht Dürer, 1502 ................................................ 81

LISTA DE TABELAS

1. TABELA 1: Sexo dos acusados de bruxaria .................................................... 52-53 2. TABELA 2 Idade dos acusados de bruxaria .......................................................... 86

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INTRODUÇÃO Todos os discursos que, em seu tempo, lhes foram atribuídos, são masculinos. (DUBY, G. 2001, p.167) A afirmação de Duby na conclusão de sua obra Eva e os padres: Damas do século XII em referência às mulheres e, que fora reiterada na epígrafe deste trabalho, sustenta esta análise. A leitura que se fez para esta monografia é aquela que foi representada pelo homem em relação ao feminino em uma larga escala periódica. Pierre Bordieu refletiu que a dominação masculina é firmada sob o paradigma (e frequentemente o modelo e o parâmetro) de toda dominação. (BOURDIEU, 2002, p.176) Decorre desta ideia o estudo deste trabalho, o olhar crítico que se pode traçar nas relações interligadas de quem oprime e de quem é oprimido, marginalizado e, neste caso, a mulher. O trabalho aborda, em suma, o ideário da transformação da representação da mulher e uma agente propícia ao diabo, daí a demonização. Para tanto, isso envolve um estudo que busca as raízes do pessimismo sexual e feminino por parte da Igreja Católica, remontando os primeiros influentes desta religião e suas concepções sobre o tema. Seguindo esta linha de raciocínio que culminou na caça às bruxas, adentramos na análise de imagens e representação dos símbolos da bruxa procurando desconstruir seus estereótipos. O primeiro capítulo tem um caráter introdutório. São expostas, em uma análise processual, as concepções pessimistas à mulher por parte da Igreja Católica. È destacada a potencialização deste pessimismo, conforme as novas influências dos clérigos ao passar dos séculos, aliada ao avanço do Poder da Igreja sobre a Europa e logo, suas difusões sobre as outras culturas. Neste contexto, a ideia central da demonização da mulher, ou seja, uma aproximação do feminino ao mal tem seus precedentes fixados numa hostilidade enraizada desde o início da cristandade. Portanto, antes de adentrarmos no mundo da demonização, acreditou-se importante refletir sobre algumas premissas da Igreja Católica – detentora da única verdade da maior parte do período analisado – para só então, decifrarmos os discursos hostis que fixavam a mulher num plano de submissão ao homem. Para esta pesquisa a leitura de Stuart Clark sobre os discursos eruditos em relação à mulher são imprescindíveis.

15 Destarte, num primeiro subcapítulo analisam-se os polos opostos entre o bem e o mal. Tal base é refletida para que fiquem claras os elementos subsidiaram a ideia da batalha contra o diabo e seus agentes, que serão enfatizadas na primeira metade do segundo milênio, com a caçada aos hereges. Neste mesmo contexto, é visto a questão da construção da culpabilidade do ser e logo, a punição Divina de Agostinho. Foi realizada uma leitura de Duby em relação ao Ano mil para embasar a citada intensificação do poder de difusão católico na virada do milênio. Por fim a reflexão que Robert Muchembled propõe em Uma História do Diabo acerca das tênues fronteiras entre o natural e o sobrenatural, sobretudo a partir do século XIII foram aqui destacadas. No segundo subcapítulo são mostrados os discursos sobre as mulheres que foram construídos pelos pensadores mais influentes do início do cristianismo (séculos II- V), citando Tertuliano, Cipriano, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho com base nas leituras de Joyce E. Salisbury. Também cabe neste momento destaque aos discursos literários que compuseram o cenário da misoginia entre os doutos escritores, incluindo o clero. Após a análise da religião nos discursos subversivos, é exposta uma breve conexão à domesticidade da mulher. No terceiro subcapítulo a demonização é o foco. Tendo perpassado pela inferiorização, a mulher, será creditada uma cúmplice propícia dos planos do maligno, num contexto em que emergia a figura do diabo pelos discursos inflamados das ordens mendicantes do século XIII, enquanto a Inquisição propagava uma onda de perseguições. Para tanto, fora utilizado as percepções de Jean Delumeau para entender a ideia de processo na construção da malignidade feminina. No quarto e último subcapítulo da primeira parte desta monografia, tratamos do tema do sexo em relação a demonização da mulher. Neste contexto, a presença de Eva e do pecado original nos discursos eclesiásticos se faz marcante. Tido como o maior pecado, a relação sexual é explicada aqui como um fenômeno que recai sobre a natureza própria da mulher. As reflexões de Uta Ranke-Heinemann sobre o pessimismo sexual cristão, inculcado na discriminação à mulher são aqui expostos, bem como o ideário de Jeffrey Richards que em sua obra Sexo, desvio e danação proporcionou um entendimento amplo do assunto. No segundo Capítulo adentramos no ―universo‖ Inquisitorial da caça às bruxas. Nos dois primeiros momentos desta divisão foi levantado um plano introdutório às

16 discussões sobre a perseguição à estes hereges, para tanto, a leitura de Brian p. Levack norteou este capítulo, ao passo que demonstra alguns conceitos primordiais do fenômeno da histeria das bruxas na Europa. O período que da caça às Bruxas é discutido por Historiadores como sendo um fenômeno dos séculos XIV-XVII, contudo, neste trabalho não analisaremos o século XVII. Pensou-se que o foco era tratar dos processos estabelecidos até o século do recorte temático – as obras de Hans Baldüng Grien no século XVI. Nos dois subcapítulos seguintes o destaque é para o espaço social em que a caça incidiu, ou ainda, quais condições que foram necessária para que esta perseguição conseguisse germinar e causar um surto de angústia a partir do século XIV. Neste momento utilizo das leituras de Silvia Liebel e novamente de Levack, no qual constam as pré-condições da histeria. Dentro deste panorama da caça ás bruxas, uma obra destacou-se por sua impregnada misoginia e que repercutiu em muitas regiões na Europa: o Malleus Maleficarum. Este manual inseriu diversas questões com respostas sobre as atitudes inquisitoriais e até sociais na lida contra as bruxas, desde como reconhecê-las à como julgá-las. Neste último subcapítulo da segunda parte desta pesquisa reflete-se, portanto, o teor hostil à mulher embutido neste manual. No terceiro capítulo analisa-se o recorte deste trabalho: as obras de sabás e bruxas do artista alemão Hans Baldüng Grien (1480-1545). O destaque desta análise está inserido nos símbolos que as obras carregam, aspectos bestiais e morais são evidenciados. Para contextualização do impacto das imagens na História utilizo das concepções de Peter Burke e, seguidamente de Delumeau, para interpretar como a mulher se insere nesta arte do século XVI. Para a análise dos sabás expostos por Baldüng foi refletido sobre as descrições de Carlo Ginzburg que detalha as características estereotipadas sobre as representações das bruxas. Dentro deste veio representacional, tentou-se dialogar tal historicidade embasada pelos citados autores, com os símbolos contidos nas obras analisadas. Por fim, uma observação deve ser feita. Sabe-se que por outro lado, a imagem do feminino também recebeu uma conotação longe dos olhares misóginos, sobretudo com o culto Mariano do século XII, a promoção do amor cortês entre outras manifestações que deram atenção à mulher. Todavia, o viés abordado aqui é especificamente sobre os discursos hostis à esta personagem. É uma análise que demonstra as atitudes da Igreja

17 para tornar natural a submissão da mulher ao homem, inferiorizando-a e seguidamente demonizando a sua figura ao relacioná-la, por exemplo, com Eva, a primeira a pecadora.

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1. A DEMONIZAÇÃO DO FEMININO EM BRUXA COMO UM PROCESSO HISTÓRICO: DA VISÃO CATÓLICA MEDIEVAL AO SURTO DE BRUXARIA MODERNO Deus viu que a luz era boa, Deus separou a luz da treva. (Gênesis 1, 4)

1.1 O Bem e o Mal e a questão da culpabilidade na Idade Média: da concepção católica sobre tais princípios ao ápice de uma batalha contra o Maligno

Aa análises que serão feitas neste trabalho são referentes à repressão ao maligno promovida pela Igreja Católica. Um forte sentimento da presença do Diabo e uma batalha contra as forças das trevas preencheram bom período do Ocidente, sobretudo o Medieval e início da Modernidade. Destacam-se os empenhos do alto clero, que detinha os saberes dos escritos dos doutores Católicos que impulsionarem tal sentimento. Portanto, como uma forma de introduzir o leitor ao tema, esta primeira parte tenta buscar nas raízes Cristãs a ideia da culpabilização e logo, a legitimação da punição, inserindo tudo isso no contexto da polarização entre o bem e o mal. Partiremos da seguinte questão: De que ponto, ou ainda, de qual momento podese começar a falar de um princípio de bem e mal, de uma separação ou não das duas formas contrárias, e de uma batalha entre elas, pela Igreja Católica? Bem, esta é uma pergunta complexa de se responder, porém vamos analisar tais conceitos iniciando pela Idade Média justamente devido à ascensão da Instituição Católica. Como escreve o historiador inglês Patrick Collinson em Puritan Character (COLLINSON, 1988 apud CLARK, 2006, p.102,) deve-se levar em consideração que a população Europeia da Medievalidade acreditava, sobretudo nas escrituras Bíblicas, portanto, o seu imaginário era povoado por tais escrituras que eram lidas em missas e discursadas nos sermões dos clérigos. A Bíblia, portanto, parte de um ponto inicial do qual se pode tratar os opostos, pois foi ela a base para os pensadores eruditos neste longo período. Desde o início dos tempos, segundo a Bíblia, pode-se facilmente observar a separação dos contrários pela mão de Deus, como a epígrafe colocada no início deste capítulo: [...] a Luz da treva (A Bíblia. 1 Gênesis – 4). Giacomo Affinati D‘acuto, um prior Dominicano, em 1602 afirmava que Desde a Queda [...] tudo no mundo teve de

19 ser mantido em contrapeso com seu contrário. Todas as coisas têm agora qualidades tanto negativas quanto positivas [...] (D‘ACUTO, 1602 apud CLARK, 2006, p.109). A questão dos opostos na Bíblia é recorrente e aparece também em suas personagens masculinas tais como, Caim e Abel, o Faraó e Abraão, os Filisteus e Isaac, Esaú e Jacó, o Anticristo e o próprio Jesus Cristo (RAEMOND, 1597 apud CLARK, 2006, p.97). Mais tarde, já no novo testamento, Jesus irá contar a parábola do trigo e do Joio, outra separação dos contrários. Estas observações servem-nos como base para observar como a cultura do bem e mal em oposição está enraizada no cerne da mentalidade católica, já que é narrada no seu maior documento, a Bíblia. Não estamos aqui descartando as heranças Judaicas que influenciaram a formulação católica sobre estes dois polos, contudo, vamos nos ater a construção processual a partir da ascensão Cristã. Porém, a análise persiste em questionar, agora não mais num caráter observatório, mas sim investigativo: como foi levada e pensada a existência destes princípios de contrariedade Cristã? Stuart Clark em sua extensa obra Pensando com Demônios traz em dois de seus capítulos – Contrariedade e Inversão - uma discussão sobre este tema. Segundo Clark, os estudos da religião contemporânea à Medievalidade esboçavam uma Necessidade de apresentar uma razão dualista das imperfeições que degradavam o mundo [...] (2006, P.77). Esta necessidade encarna os males terrenos ao Diabo e as perfeições naturais em Deus, bem como aos espaços polarizados: Inferno e céu, Babilônia e Jerusalém Celeste. Ao se tratar dos estudos de polos opostos dentro da religião, as ideias de Santo Agostinho (354-430) se fazem necessárias, pois em parte considerável de sua vida articulou-se aos estudos do maniqueísmo1. Suas influencias legaram aos séculos seguintes vários ideários principalmente para Teólogos e Filósofos da Igreja, que impulsionaram alguns dispositivos nas sociedades e na realeza como será explanado nos capítulos seguintes. Na obra de Clark, é ressaltada uma das principais ideias de Santo Agostinho, em que é evidenciada a distinção, que ele fez boa parte de sua vida entre o bem e o mal como elementos conflitantes no interior de cada homem que busca a salvação. O excerto assim segue sob um argumento de certa necessidade do mal, e está inculcada na intelectualidade tradicional Cristã. Para Agostinho, sem a perversidade, não haveria 1

O maniqueísmo é uma linha religiosa de origem Persa, no qual seus adeptos acreditavam existir uma batalha universal entre o bem e o mal: O homem, preso por Satã, luta continuamente para se libertar das trevas e readquirir a luz; [...] (RIBEIRO JÚNIOR, João. Pequena História das Heresias Medievais. São Paulo: Papirus, 1989. p.30).

20 vindicação de justiça, nem a resignação paciente para ser louvada. Segundo a lógica da contrariedade, elas nem mesmo existiriam. (AGOSTINHO, 1947 apud 2006, p.78).

Este excerto requer certa atenção, pois apesar de Agostinho reforçar tal lógica, não supõe que ele acreditava que, por qualquer questão que seja Deus tenha criado o mal, na verdade é justamente ao contrário. Para o Teólogo, [...] o mal seria, em realidade, uma transgressão da lei Divina, um pecado cuja responsabilidade recai exclusivamente sobre o livre-arbítrio humano [...]. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 29) Sendo assim o douto conclui: O homem nasceu perdido, pois o pecado original destruiu nossa liberdade, impedindo-nos de deixar de pecar ainda que o pecado não seja necessário.

(INÁCIO; LUCA, 1994, p. 28) Robert Muchembled, Historiador Francês acredita que estes fundamentos Agostinianos consistiram em um forte embasamento para os pensadores de toda a Idade Média, modelando-os às percepções de mundo do Santo, tais como o pessimismo ao feminino e a presença do mal na terra. Agostinho no século V, movido pela Pregação sobre livre-arbítrio - a liberdade de cada criatura em agir conforme sua vontade - falava sobre a culpabilidade de cada um sobre seu pecado. A definição sobre a relação culpa e livre-arbítrio está exposto logo no início da obra: O livre Arbítrio, representado num diálogo com seu companheiro Evódio, Bispo de Upsala: Pois bem, se sabes ou acreditas que Deus é bom — e não nos é permitido pensar de outro modo —, Deus não pode praticar o mal. Por outro lado, se proclamamos ser ele justo — e negá-lo seria blasfémia —, Deus deve distribuir recompensas aos bons, assim como castigos aos maus. E por certo, tais castigos parecem males àqueles que os padecem. (AGOSTINHO, 1995 p.26)

No entanto, mais de cinco séculos após Agostinho, parecia que tal conceito de culpabilização se mantinha vivo e se ―agravara‖, pois a crença apocalíptica da virada do milênio colocava nos homens um conflito interno: uma batalha do bem contra o mal, cada pecado desapontava a Deus que logo viria para julgá-lo. O ano Mil é uma obra de Georges Duby que reflete justamente esse período de tensão da sociedade para com o fim do mundo. A ansiedade latente (DUBY, 2002, p.35) na população entre os anos de 980 e 1040 é estudada por Duby por meio de imagens e escritos literários da época e, que apresentam resultados sobre os tremores

21 que abalaram a terra ou cometas vistos no céu, tudo isso sendo alarmado por pregadores apocalípticos cristãos. Duby apresenta um testemunho de um abade chamado de Saint-benoît-sur-Loire chamado Abbon, que por volta de 975 irá deflagrar as pregações a respeito deste pensamento escatológico: A propósito do fim do mundo, ouvi pregar ao povo numa Igreja de Paris que o Anticristo viria no fim do ano mil e que o Juízo final se seguiria pouco depois. (2002, p.36) A proximidade do povo para com a Igreja era cada vez mais nítida nestes tempos, além do já citado temor apocalíptico, as curas e milagres pareciam efervescer na Europa, de forma que demonstrava ser um ―bom negócio‖ seguir as doutrinas do Catolicismo para salvar suas almas. Duby reflete que, neste tempo Entre a natureza e o sobrenatural, nenhuma barreira, mas pelo contrário, comunicações permanentes, correspondências íntimas e infinitas. (2002, p.63) Desta forma, entende-se, e esta é uma reflexão de Duby, que tal momento expõe a batalha do bem contra o mal e da punição Divina aos pecadores, afinal o Juízo logo chegaria. Nestas circunstâncias, dificilmente o poder de satã sobre a terra poderia ser negado, nas palavras do nosso historiador: O milênio é, primeiro que tudo, esta derrota do exército divino, e o retorno ao caos que se segue. (2002, p.128) Enfim, temos neste período um marco no processo da potencialização dos poderes da Igreja Católica e logo o recrudescimento de suas doutrinas, tais como o combate ao mal na terra. Tendo em vista o que foi analisado até aqui, a visão de um dos precursores da Teologia Cristã, Santo Agostinho sobre os opostos bem e mal, e adiante como esses contrários foram sendo abordados nas proximidades do ano mil, chega-se a um momento divisor de águas: os séculos XII e XIII. Foram entre os séculos XII e XIII que a tal ―batalha‖ do homem contra as forças malignas ganhara novos aparelhos de ação. No século XII são firmadas as bases da Santa Inquisição no concílio de Verona (1183), no qual passa a ser do campo Eclesiástico a tomada de julgamentos contra os crimes que desvirtuavam os dogmas da Igreja, estes criminosos seriam chamados de Hereges. Quanto ao século XIII sua importância advém da criação das ordens mendicantes, que seriam difusoras da presença constante de demônios na terra e da punição Divina aos pecadores, com seus discursos inflamados baseados na evangelização e encenações extremamente chamativas.

22 Estas ordens foram criadas por São Domingos (1170 – 1221) e São Francisco de Assis (1182 – 1226). Como escrevem Inês C. Ignácio e Tânia Regina de Luca em sua obra: O pensamento Medieval, tais ordens eram compostas por frades que, ao contrário dos monges que raramente ultrapassavam os muros do mosteiro, dedicavam-se a uma missão evangelizadora junto ao povo das cidades, pregando a renovação da cristandade. (INÁCIO; LUCA, 1994, p. 56) Percebe-se, portanto, nestes três primeiros séculos do novo milênio (incluindo a virada do ano mil), mudanças na relação Igreja e Sociedade: A primeira: a mutação de culturas heterogêneas existentes antes do ano mil na Europa para uma sociedade cada vez mais una, Católica, no que tange a crença, símbolos e linguagem. A segunda: caracteriza-se de como a Igreja (e em alguns momentos aliada ao Rei), visando tal unidade religiosa, usou de seus dispositivos (tal como o medo) para o controle da sociedade. Para discorrer sobre o que acreditamos ser o primeiro momento desta relação no novo milênio, citarei ideias de Robert Muchembled, já que este também trabalha com a interpretação do sobrenatural e a religião num caráter processual que se transforma com o passar dos séculos. Para a segunda, além de Muchembled, se faz necessária a obra de Jean Delumeau História do Medo no ocidente. Um sistema de relações (MUCHELMBELD, 2001, p17), é desta forma que Muchembled caracteriza uma civilização. E ainda, seu ideário de sociedade apresenta estas relações a símbolos e práticas ativas que une o homem ao coletivo, ao grupo, do começo ao fim de sua vida. É necessário o entendimento disso, para compreender o quão mutáveis são tais símbolos e práticas envolvidas na sociedade que serão discorridas a seguir. O divisor de águas, isto é, as promoções religiosas decorridas do século XII e XIII como já analisado, afetaram na aproximação entre cultura religiosa dos eruditos da Igreja e a massa da sociedade, a minoria e a maioria respectivamente. Para exemplificar este estreitamento - Igreja e Povo -, basta refletir sobre a maior figura do mal, o Diabo. Tal figura, até o ano mil não era tão ―popular‖ entre a sociedade Europeia, apenas Teólogos e moralistas interessavam-se por ele [...], mas a arte quase não lhe dava espaço (2001, p.18), porquanto depois destas promoções citadas, a presença do Diabo no imaginário cristão se fez mais presente. Enquanto os doutos da Igreja tinham até sua ciência para tal campo: a demonologia, a sociedade do primeiro milênio tinha apenas em sua mentalidade uma

23 figura não esclarecida do demônio, na verdade, bem diversa de região para região, de cultura para cultura. Um primeiro Milênio cristão não fora suficiente para erradicar crenças e práticas múltiplas, que serão chamadas de „populares‟ [...]. (2001, p.23) O que explica tal caso, era a falta de uma cultura/religião centralizada neste primeiro milênio, derivada de uma fragmentação do Império Romano, com muitas expressões religiosas (que viriam mais tarde ser heréticas e até fundidas a imagem do Lúcifer da modernidade) circulando na Europa. Contudo, [...] As figuras do Mal não deixavam de existir, com características bastantes diversas correspondentes ao politeísmo fundamental das populações. (2001, p.18) A Igreja Católica aos poucos e com dificuldade monopolizou uma crença una. Povos mediterrâneos, celtas, germânicos, eslavos e escandinavos sofrem, em graus variáveis, uma penetração das ideias Cristãs (2001, p.24) que reformulou, em parte, suas antigas tradições. O ano mil auxiliou para certa reaproximação dos povos para a Igreja que buscaram a salvação de um apocalipse que supostamente logo chegaria. Contudo, a própria Instituição Católica não apenas observou esses acontecimentos, mas agiu para potencializar o que mais tarde viria a ser uma monopolização da cultura e da crença. Quais dispositivos a Igreja usou para potencializar seus poderes enquanto carro chefe da batalha contra o mal e quais suas consequências na mentalidade dos indivíduos contemporâneos a ela? Bem, o segundo momento adquire elementos para responder a esta questão. Segundo Robert Muchembled, a Escolástica com seus estudos, em específico os demonológicos e a pedagogia do medo empenhada pela Igreja Católica tinha papel fundamental no avanço Católico deste nosso quadro a partir do século XIII. Tanto o Diabo quanto o Inferno passam por narrativas mais vigorosas no sentido da coesão, no que tangem a suas ilustrações por exemplo. Antes de falarmos de tais ilustrações, um destaque à Escolástica não deve passar despercebido. A escolástica foi uma Linha de pensamento Filosófica Cristã no qual alicerçava respostas para questões que justificassem a fervorosidade da doutrina propagada pela Igreja, a única detentora da verdade. Desta maneira, a formação dos núcleos de estudo, – que hoje são chamadas de Universidades – foi baseada primariamente em Filosofia, Teologia e Leis Canônicas e integrada por alguns componentes em sua Instituição, uma delas foi à inserção das Ordens Mendicantes ao ensino destes centros.

24 Retomando, o reforço nas ilustrações do inferno e do Diabo. Estas ilustrações Maléficas começavam a permear imaginário dos homens, pois eram produzidos sempre algo estreitamente ligado aos valores mais atuantes nesta mesma sociedade (2001, p.32) e estamos falando de uma sociedade progressivamente mais Cristã. A arte gótica do século XIII dá ao Diabo espaços maiores e mais chamativos em porta de catedrais por exemplo. [O diabo] deixa a abstração teológica para tornar-se devorador de homens, vassalo traído ou a besta do „Apocalypse‟ de Saint-sever. (2001, p.33) Por outro lado, Deus também tinha sua imagem como uma entidade implacável, sem apelo, em oposição a uma prática terrestre muitas vezes ineficaz. (2001, p.36) As forças Malignas em oposição às benignas estavam sendo abordadas cada vez mais, pois essa mentalidade havia transcendido o campo eclesial erudito para enraizarse nas cidades [em especial o norte da Itália] contaminando as Monarquias (2001, p.32) alastrando-se pela Literatura e pela arte:

Reis, príncipes ou grão-senhores, clérigos educados em escolas e universidades, sábios e médicos, burgueses e empreendedores das cidades, artistas e artesãos a quem uns e outros encomendam obras para manifestar a fé ou embelezar a vida, formaram o alicerce heterogêneo de um ‗meio‘ aberto às idéias que jorravam dos lugares de erudição e de santidade para iluminar o mundo profano. (2001,

p.40)

A evolução das cidades juntamente com a ambição Papal e Realeza tiveram tais consequências e, inclusive, a procura pelo saber religioso no sentido da doutrinação também aumentara. Este contrato implícito entre os doutos e os dominantes [clero e Nobreza] induzia a um dinamismo [...] (2001, p.23) um tanto quanto diferenciado formulando novas percepções do sobrenatural no século seguinte. O outono da Idade média (séculos XIV e XV), como chamou Johan Huizinga, célebre historiador holandês, explicita uma transição para a modernidade e um fim para este subcapítulo. As percepções de uma sociedade já mais centralizada culturalmente em símbolos e religião no que tangem os princípios de bem e mal chegam ao seu ápice, formulando um ideário de batalha contra a malignidade, e logo, as tão estudadas perseguições Heréticas. Nos séculos XIV e XV o imaginário do sobrenatural no que tange ao inferno, por exemplo, é transmitido fortemente a partir da Arte. O discurso inserido na Arte e em

25 tantos outros meios era o de detalhar os castigos que sofreria aquele que pratica o mal ou pecador se preferir -, de forma monstruosa. Aqui se faz necessária uma observação que Muchembled busca em suas leituras: ‗Meter medo nele [no homem] produz um choque emotivo que leva a fazer agir a fazer confessar. ‘ Em outros termos, a encenação satânica a pastoral que a ele se reporta desenvolvem a obediência religiosa, mas igualmente o reconhecimento do poder da Igreja e do Estado, cimentando a ordem social com o recurso a uma moral rigorosa. (BASCHET, 1993 apud 2001, P.35)

Enquanto o Diabo ganha destaque, por outro lado, Deus vai assumindo sua posição de única forma de salvação dos Pecadores: A Europa vai [...] distanciando-se dos Deuses em nome de um Deus único Cristão (2001, p.37). Neste momento não devemos nos esquecer do quão importante foi a força da inculpação de cada homem de seus pecados, pois, movido por algo que Delumeau chamou de o medo de si mesmo (DELUMEAU, 1989, p.32) faria com que a batalha cotidiana contra o mal se potencializasse. E para esta potencialização acontecer, ocorreram mudanças em outras áreas que não só a religiosa aqui narrada, mas também nos na ordem política. Um exemplo claro deste aspecto é evidenciado na criação da Santa Inquisição, O palco estava montado, era a mentalidade do homem Medieval que havia mudado, o sobrenatural passava a ser algo monstruoso e não tão variado em detrimento da campanha centralizadora da Igreja. Tal expansão Católica condenou e absorveu a cultura de outras regiões da Europa. No meio de toda esta mudança de mentalidades, e de inculpação a todos os males que pareciam estar mais evidentes nestes tempos, existia na sociedade um personagem que também teria sua representação mutada e subjugada: a Mulher. Por fim, existia um Deus uno que vigiava e punia o homem. Existia também uma sociedade que se aproximou tanto do assunto do mal, que pragas e desastres eram justificáveis como consequência da punição Divina. Certos perfis de pessoas deveriam ser os culpados da punição, sendo estes mais propícios a serem agentes do demônio do que os demais - as mulheres foram uma das discriminadas a este posto. Porém antes de ser efetivamente demonizada, sua inferiorização nos discursos católicos merece um detalhamento especial.

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1.2 O feminino inferiorizado: uma mentalidade de pessimismo à mulher

1.2.1 Raízes Cristãs O agravamento que se sugere da situação feminina neste subcapítulo passará pela concepção dos primeiros séculos da Igreja Católica, pelo patriarcalismo nos feudos, ideário da Igreja Católica e suas ordens na baixa Idade média e central, Imaginário popular da sociedade na passagem para a modernidade e por fim, no que alguns Historiadores acreditam ser o ápice da Misoginia na História da humanidade: a caça as Bruxas como extensão da Santa Inquisição. No fim da Idade Média, período denominado como Baixa Idade Média, séculos XIV e XV a Igreja Católica com seus discursos, obras e crença impulsionaram mais fortemente a inferioridade feminina, ocasionando ódio e medo de determinados perfis de mulheres. Por conta da recorrência desse tema e pelo fato da igreja ser grande influenciadora do pensamento popular, provocou-se um surto de perseguições e execuções. Porém, para compreendermos este momento histórico precisamos analisar a misoginia, isto é, o ódio discriminado ao feminino também dentro das particularidades de períodos anteriores no contexto da Religião Católica. Neste sentido, analisamos que a misoginia dentro deste campo religioso se torna uma contradição com seu propósito central. Ora, a Igreja Católica abrigava muitos diferentes discursos, porém todos sob as bases de sua fé registradas na Bíblia, e é neste documento que encontraremos a citada contradição. Jean Delumeau analisa este contexto sob a mensagem de igualdade da figura central do Cristianismo – Jesus. Na Bíblia, são mostradas algumas ações inovadoras do Nazareno para com as mulheres. Dentre muitas ações como a da pecadora pública e da resposta aos fariseus do homem e mulher como uma só carne: Jesus de bom grado cerca-se de mulheres, conversa com elas, considera-as como pessoas inteiras [...], sendo que as mulheres Judias não tinham nenhuma participação nas atividades dos rabinos. (1989, p.314) Contudo, tal mensagem de Jesus: a igualdade preconizada pelo Evangelho cedeu diante dos obstáculos (1989, p.314), encontrou resistências no patriarcado Judaico e Greco-Romano, além de outras dificuldades contribuintes, como o lugar, a cultura da disseminação e que o Cristianismo foi difundido. Então, percebe-se que a contradição aqui, refere-se a não assimilação, por parte de muito dos homens que

27 constituíram a Igreja Católica mais tarde, para com a mensagem de não submissão da mulher que o sujeito principal de sua religião teria legado. Os pensamentos que permearam os primeiros séculos do Cristianismo, referente ao feminino, foram legados para a Idade Média. Segundo a análise da historiadora Estadunidense Joyce E. Salisbury, escritores do século II ao V: Tertuliano, Cipriano, Ambrósio, Jerônimo e Agostinho criaram um corpo teórico que estabeleceu uma compreensão cristã de muitas das questões que deram forma a sociedade cristã, entre elas a sexualidade [...]. (SALISBURY, 1991, p.27) Apesar das divergências de ideias entre estes pensadores, havia muitas concordâncias, principalmente ao tratar da mulher em relação à sexualidade. Num período em que se tentava responder as questões sobre sexo, isto é, se sua prática era uma coisa boa ou má, a opinião destes Pais da Igreja2 convergia: viam uma linha divisória muito nítida entre o que era carnal (sexual) e o que não era (espiritual). (SALISBURY, 1991, p.27) Com esta divisão, a mulher entra nos discursos dos pensadores com o seu posto no lado carnal e o homem como um ser racional, logo espiritual – segundo os pensamentos destes homens. Jerônimo (347-420) escrevera um conselho a um homem, que era de suma importância evitar olhar uma mulher, pois os rostos delas podem passar a habitar vossos pensamentos, e assim uma ferida secreta pode infectar vosso peito. (JERÔNIMO apud 1991, p.34) Tal percepção insinua o estímulo visual que a mulher poderia causar no homem levando-o à perdição. O mesmo Jerônimo também escreveu que todas as mulheres eram tão tentadoras quanto Eva foi para Adão, alertando: Não é da prostituta nem da adúltera que falamos, mas o amor da mulher em geral é condenável por ser insaciável; uma vez extinto, explode em chamas; dado em grande quantidade, é novamente necessário; isso irrita a mente de um homem, e perturba todo pensamento, com exceção da paixão que alimenta. (JERÔNIMO apud 1991, p.43-44)

As mulheres, para Jerônimo, interferem na racionalidade (pensamento) do homem, pois elas são movidas por paixões. Esta concepção é compartilhada pelos outros pais da Igreja, para eles, a ideia geral era de que o sexo feminino tendia a 2

Pais da Igreja foi o nome que Joyce E. Salisbury atribuiu à sua obra, fazendo referências aos principais pensadores Cristãos dos cinco primeiros séculos.

28 fornecer apenas seus sentimentos descontrolados – suas paixões - que, tentavam persuadir o homem com seus insaciáveis desejos, perturbando e irritando o homem. Portanto, havia no início do Cristianismo, uma reflexão de como o feminino deveria ser concebido. Os porta-vozes que disseminaram a influência deste pensamento eram todos homens, submersos num contexto em que submetia a mulher aos adjetivos de inferioridade entre os sexos. Todos eles, influenciaram a base dos dogmas eclesiais em relação a mulher dos séculos posteriores. Quanto aos discursos da Alta Idade Média que foram influenciados, sobretudo por Agostinho, devemos salientar que não é este o período que focaremos neste trabalho. Acreditou-se que os discursos de pessimismo à mulher se fazem mais eloquentes a partir do século XII pela maior alcance da Igreja na sociedade e por questões já expostas no subcapítulo anterior. Portanto vamos refletir a partir deste momento algumas questões sobre a representação da mulher discursada pelos clérigos católicos, bem como o lugar social que a mesma foi relegada.

1.2.2 O discurso clérigo e a Literatura

O estudo da literatura produzida a partir dos séculos XII, no que tange à hostilidade à mulher deve ser visto, em muitos dos textos, como parte de um discurso, também ele, religioso. Isto se deve as bases que partiram os eruditos literatos que escreveram tais textos sob a argumentação Teológica. (1989, p.339) As poesias, contos e crônicas eram escritas quase majoritariamente por homens. Como se acreditava que a mulher carregava o estigma de Eva de traiçoeira e inconfiável, não era confiado a elas o uso da escrita - qualidade de poucos neste período. O uso da pena - uma ferramenta de forte vigor comunicativo – seria perigoso se colocado à disposição de uma mulher. Contudo, como escreve Kátia Rosane S. Pereira exceções existiam. O Lais de france (1160 – 1178), coletânea de doze contos Franceses, foram supostamente escritos por uma poetiza chamada Marie que nascera na França, mas viveu entra a nobreza dos reis ingleses Platagenetas. (PEREIRA, K. R. S, 2006, p.2) O que nos interessa nesta coleção, é o caráter misógino daquela sociedade em que são expostos nestes textos. Mesmo que a temática destes contos – os lais abordasse o amor, o pano de fundo são ideias de supressão da liberdade (2006, p.4)

29 feminina e da mulher como propriedade do homem. Exemplo são os contos Lais de Guigemar [e] Lai de Equitan (2006, p.5) integrados neste conjunto. No primeiro, a dama é presa numa torre, sob ordens de seu senhor, um homem muito mais velho que ela, que a submete à reclusão por quase dois anos. No segundo, o tema é o romance em sigilo, do amor fora do casamento, em que a culpa de tal relação recai sobre a mulher que, revelando a sua feição diabólica (2006, p.5) planeja matar o marido traído. Como citado, nestes contos são inseridas questões da mulher reclusa em um espaço designado a ela, dependente de seu senhor e incumbida de limitadas funções. Mesmo escrito por uma mulher, os contos demonstram o quanto estas damas estavam submersas neste contexto, fazendo a poetiza expressar suas ideias, ou as ideias em que ela foi sujeitada a transmitir. Alicerçado pelas bases Agostinianas e pelas ideias da Teologia Escolástica principalmente de Alberto Magno (1193-1280) Tomás de Aquino refletia sobre a questão feminina no século XIII. A Teóloga Alemã Uta Hanke Heinemann escreve parafraseando uma passagem da Suma Teológica de Aquino : As mulheres não correspondem à „primeira intenção da natureza‟, a qual visa à perfeição (os homens), mas a uma „segunda intenção da natureza‟ [...] é ela um homem com retardo de desenvolvimento. (AQUINO apud Ranke-Heinemann, 1999, p.202) A misoginia de Aquino nesta citação, evoca a mulher como defeituosa, pensada como uma espécie de equívoco existencial desde seu nascimento. Para Aquino as mulheres não correspondem à „primeira intenção da natureza‟, a qual visa à perfeição (os homens), mas a uma „segunda intenção da natureza‟ (as coisas tais como) „decaimento, deformidade e a fraqueza da velhice‟. (AQUINO apud Ranke-Heinemann, 1999, p.202) Também Delumeau analisa algumas outras obras literárias hostis à mulher nos século XIII e XIV. Na obra Lamentations de Mahieu (1290) cujo autor, um clérigo que havia no seu passado se casado, descreve que no geral, a mulher é briguenta, curiosa, desobediente, invejosa, ávida, luxuriosa, cúpida, hipócrita, supersticiosa, indiscreta e cruel. (GREVY-PONS, 1975 apud DELUMEAU, 1989 p.341) Em Miroir du Mariage (1392) o autor Eustache Deschamp, um diplomata e interessado em assuntos de guerra, inclusive contemporâneo à guerra dos cem anos

30 assegura que beleza de mulher é começo de raiva e perversão do homem [além de que] por mulher se perde todo senso e entendimento [...]. (DESCHAMPS apud 1989, p.341) A esse respeito, Delumeau analisa em um de seus capítulos a influência destas ordens mendicantes no processo misógino do medievo. Segundo Delumeau, São Bernardino de Siena, Franciscano que viveu entre o século XIV e XV escreveu em relação à mulher que: Se tu não a habituas a fazer tudo, ela se tornará um bom pedacinho de carne. Não lhe deixes comodidades, eu te digo. Enquanto a mantiveres atenta, ela não permanecerá à janela, e não lhe passará pela cabeça ora uma coisa, ora outra. (MONIER, 1924 apud 1989, p.320) Neste trecho, quase manual de tratamento das mulheres, São Bernardino de Siena enuncia o perigo da mente feminina estar vagando entre as ideias (passando pela cabeça uma ou outra coisa), ou atenta ao mundo externo a sua casa (na janela). A relação com a religião é outra importante ligação que pode ser estabelecida a partir da leitura do excerto. Seu autor é um religioso Franciscano bastante popular que viveu entre os anos de 1380 e 1444. No início do século XVI Eneas Silvio Piccolomini - mais tarde Papa Pio II – escrevia o Remédio de amor. Os adjetivos que este usa contra as mulheres nesta obra são inúmeros, fazendo referência a outro religioso, Battista Mantovano:

Mantovano diz que o gênero feminino É servil, desprezível, cheio de veneno: Cruel e orgulhoso, releto de traição, Sem fé, sem lei, sem moderação, sem razão Desprezando direito, justiça d eqüidade... [Mulher é] inconstante, móvel, vagabunda, Inapta, vã, avarenta, indigna, Suspeitosa, fingida, ameaçadora. Briguenta, faladora, cúpida, Impaciente, invejosa, mentirosa, Leviana em crer, bebedora, onerosa, Temerária, mordaz, enganadora, Caftina, devoradora, feiticeira, Ambiciosa e supersticiosa, Petulante, inculta, perniciosa, Frágil, litigiosa, ativa. Despeitada e muito vingativa, Cheia de adulação e de mau humor,

31 Entregue a cólera e a ódio, Cheia de fingimento e simulação, Para se vingar exigindo dilação, Impetuosa, Ingrata, muito Cruel, Audaciosa e maligna, rebelde [...]. (GUILLERM-CURUTCHED, 1977 apud 1989, P.341).

Portanto, aqui foi apresentada uma amostragem de literaturas do século XII-XVI que apresentavam um antifeminismo afirmado. Tais textos refletem concepções cotidianas dos homens para com as mulheres e, inclusive esposas como no caso do Lamentations de Mahieu. Todos esses pensamentos pareciam visíveis nos textos sobre a vida doméstica que alguns escritores tentaram articular, como veremos adiante.

1.2.3 A Domesticidade Duby em sua obra Idade Média, Idade dos Homens salienta que no bojo da vida doméstica havia uma divisão nas funções do homem e da mulher: aos homens competia a vida exterior e pública; as mulheres se encontravam normalmente acantonadas no interior [...]. (DUBY, 2011, p.111) A propósito da vida privada, no interior da família as crianças já eram ensinadas, seguindo a doutrina de Tomás de Aquino, que ‗O pai deve ser amado mais do que a mãe, por ser ele o princípio ativo da geração, enquanto que ela é o passivo‟ (AQUINO apud Ranke-Heinemann, 1999, p.203) além de que na educação dos filhos: O treinamento intelectual das crianças só pode advir do pai, já que ele é o líder intelectual. (AQUINO apud Ranke-Heinemann, 1999, p.203) Contribuindo com a ideia exclusiva do cuidado do lar, Maffeo Veggio (escritor Italiano), escreveria já num período de transição para a modernidade, em De educatione liberorum (1440), sobre a educação contemporânea de seu tempo. E fica claro com sua leitura que a educação da mulher deveria ser balizada pela ideia de Casamento, cuidado do lar e claro, pela religião:

Futura mãe, futura educadora doméstica da moral e da fé, futuro modelo para suas filhas, a adolescente [...] deve „ser educada, por santos ensinamentos, para levar uma vida regular, casta, religiosa, e para dedicar-se constantemente a trabalhos femininos‟, intercalados por orações. (VEGGIO, 1440, apud DUBY, G; ARIÉS, P, 2009, p.288)

32 Esse viés da educação é muito importante para a interpretação dos papéis do feminino, nesta sociedade. O trecho destacado acima representa uma ideia do século XV, não deixa de dialogar com a concepção de uma longa Idade Média, pois mostra a ideologia que foi traçada para a disciplina da mulher daqueles tempos, e mais, qual era o posto da mulher desde sua maturidade até sua morte.3 Ao se pensar em qual era o posto ocupado pela mulher, podemos ligá-lo diretamente ao sexo oposto, o homem. Segundo Duby, a concepção era de que a mulher não pode viver sem o homem, deve estar no poder do homem. (2009, p.543) O homem por sua vez, deve ter precaução, devido à periculosidade do corpo da mulher, que pode fazê-lo perder sua honra [...] e ainda por ele corre o risco de ser desencaminhado [...]. (2009, p.543) Por isso, a medida correta de conter essa sujeita seria de afastar-lhe do contato exterior, seria preciso erguer diante de seu corpo um muro, o muro, precisamente, da vida privada. (2009, p.543) Segundo Duby e Ariès, além das mulheres domésticas, havia as miseráveis, que de casa em casa iam esmolando. Esse comportamento gerava um consciente de culpa àqueles que não ajudavam as pedintes, ferindo um dos pilares da doutrina católica: a caridade: [...] as mulheres pobres provocavam uma crescente hostilidade com seus persistentes pedidos de ajuda, e, ao mesmo tempo, despertavam sentimentos de culpa naqueles que já não desejavam responder com a caridade. . (2009, p.157) Este duplo mostra a fragilidade do feminino que teoricamente deveria ser cuidado pelo masculino, mas que quando abandonado pela sorte não recebia o devido amparo nem mesmo pela caridade, difundida como valor da Igreja. Tendo como base, o papel do feminino analisado até aqui, e, guardadas as exceções, a mulher, segundo os textos analisados, eram destinadas a limitadas funções. Assim, no contexto desta mescla hostil à mulher, seja na Literatura dos clérigos ou de leigos, outro elemento é inserido nestes discursos: o Diabo. A mulher que foi inferiorizada com os mais diversos adjetivos como o analisado neste subcapítulo, passou então por uma espécie de demonização, que a torna propícia ao conluio com o mal.

3

Sobre os períodos de maturidade da mulher eram entendidos entre seus doze anos e quatorze anos, idade em que se prepara para o casamento.

33 1.3 Mundo demonizado: uma difícil representação para as mulheres

Em meio ao século XIV, a peste, fome, cismas, guerras, pensamento escatológico eram medos iminentes e o diabo estava oculto em cada um deles. Como ressalta Delumeau, neste clímax cheio dos perigos pregadores, teólogos e inquisidores desejavam mobilizar todas as energias contra a ofensiva demoníaca. (1989, p.319) Para a concepção Católica do período, existiam agentes responsáveis por todos esses males que estavam assolando seu tempo. Além do responsável maior – o Diabo – dado seu distanciamento da vida cotidiana do mundo deveria existir também quem agisse em prol dele na terra. A mulher, dentro de um processo em que o seu corpo passa a ser visto como um objeto de pecado passa a estar mais propícia ao mal. Figurada já com inferioridade social e religiosa em diversos pontos como já foi abordado, teve sua imagem enfim, refletida como que interligada a serviço de Satã. Este processo foi reforçado ao extremo com a inquisição, investido principalmente pela Igreja e patrocinado por ela. O discurso para o combate ao pecado era bastante explícito ao elencar os seguintes elementos: os lobos, o mar e as estrelas, as pestes, as penúrias e as guerras são menos temíveis do que o demônio e o pecado, e a morte do corpo menos do que a da alma. (1989. p. 44) Nestes discursos ainda se fazia presente o dever de: Desmascarar Satã e seus agentes e lutar contra o pecado [e com isso] diminuir sobre a terra a dose de infortúnios de que são a verdadeira causa. (1989. p. 32) Desta forma, denunciar esses agentes era uma maneira de expiar os males da época. A Santa Inquisição se apresenta como um meio de salvação. Não seria demais ressaltar que se sabe sobre a importância do estudo da perseguição aos mouros sobretudo na Espanha, dos hereges em geral em toda a Europa, porém, especificamente neste artigo, os agentes que tratamos são as mulheres. A Santa Inquisição foi criada por volta do século XII, e segundo a historiadora Anita Novinsky, foi produto de uma longa evolução durante a qual a Igreja e o Papado sentiam-se ameaçados em seu poder. (NOVINSKY, 1992, p. 15) Realizada em conjunto com a nobreza o que exprime também seu caráter político, sintetizou e unificou as forças presentes naquele momento histórico. A instituição Inquisitorial buscou ferozmente por heréticos, levando o conceito de pecado a uma dimensão nunca antes tão punitiva. Consideravam-se hereges

34 basicamente aqueles que criticavam e duvidavam da verdade absoluta da mensagem da Igreja. (NOVINSKY, 1992, p. 10) Outras heresias entraram no quadro punitivo da Inquisição, tal como a prática da magia e quem as praticava, feiticeiras ou mais tarde, bruxas. Hilário Franco Junior discute sobre a distinção que a Antropologia faz destes dois elementos – Feiticeiras e Bruxas – e conclui que havia uma espécie de fronteira entre ambas numa visão clerical, contudo ela não era de conteúdo, e sim ideológica: à magia natural opunha-se uma magia maléfica. (FRANCO JUNIOR, 2001, p 194) Boa parte das acusações às mulheres era relacionada à feitiçaria, o que era imaginado por cultuar deuses pagãos e podiam criar feitiços e outros poderes popularmente acreditados [...] (CLARK, 2006, p.160). Os camponeses que eram acometidos de infortúnios, como doença em gado, pouca produção agrária, culpavam certas mulheres de malefício lançados em suas criações e as denunciavam. Porém, a Inquisição Medieval ainda não via as ―feiticeiras‖ como hereges, a historiadora Laura de Mello e Souza escreve:

O combate da Igreja ao malefício não se fazia de forma sangrenta, pois aquela não via a feiticeira como fonte do mal. Seus atos eram supersticiosos e, nesta qualidade, condenáveis, mas não sua pessoa.

[Contudo] Na baixa Idade Média,

entretanto, a associação começou a ser feita: a feitiçaria se tornou herética, ganhando as cores soturnas e simultâneas de crime e pecado, lesando a majestade humana e a Divina. (SOUZA, 1995, p.26) A nova abordagem do fim da Idade Média – a repressão à heresia - foi potencializada a partir do século XV os malefícios se tornaram crimes feitos não por feiticeiras, mas por bruxas que por meio de pacto com o demônio disseminavam o mal na terra, e por isso deveriam ser exterminadas. Para alguns autores, o pacto demoníaco insere uma questão de extrema importância, pois é ele que vai ser o divisor de águas entre a feitiçaria e a bruxaria. Em suma o pacto diaboliza a feiticeira e a transforma em bruxa. A partir desta concepção, o crime é passível de punição, como explica Jeffrey B. Russell em sua obra História da Bruxaria em que faz uma distinção com a possessão demoníaca: O diabo pode possuir

35 uma pessoa contra a vontade dela, mas o pacto, pelo contrário, é sempre voluntário. A bruxa, portanto, serve ao Diabo por sua livre e espontânea iniciativa. (RUSSEL; ALEXANDER, 2008, p.62) As acusações continuavam a acontecer, até que em certo ponto, quando as autoridades passaram a procurar ativamente culpados em vez de aguardar passivamente as acusações, estava iniciada a caça às bruxas. (2008, p.75) A Igreja desde 1252, com a bula papal de Inocêncio IV Ad extirpanda já permitia a tortura e a execução de hereges, e foi sob esta base que a perseguição foi sendo instituída até estar firmada sob outra bula, desta vez mais específica à bruxaria, como mostra Jeffrey Richards: Entre 1317 e 1319, o papa João XXII, obcecado pelo medo da bruxaria, [...] promulgou a bula Super Illius Specula, autorizando especificamente a Inquisição a processar todos os feiticeiros, porquanto adoravam demônios e tinham feito um “pacto com o inferno”. (2008, p.82) Com a ideia de pacto de determinadas mulheres com o Diabo, aliada pela autorização papal por meio da bula, uma série de tratados de alerta à bruxaria começou a tomar a Europa. E tal feito foi condicionado pela invenção da imprensa em 1450. A divulgação de folhetos que tratavam especificamente da bruxaria diabólica fez com que propagasse ainda mais rapidamente a perseguição (2008, p.81) e com isso, uma avassaladora onda de medo se instalava. Neste ponto começamos a nos desprender da era medieval e nos direcionar ao início da modernidade. Trevor Roper, autor de A obsessão das bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII, tem uma frase que talvez melhor defina o começo dessa modernidade: Nesses anos de aparente iluminação, as trevas estavam a ganhar terreno em pelo menos um quarto do céu. (TREVOR-ROPER, 1972 apud SOUZA, 1995, p.46) Era o período das grandes navegações, do Renascimento, da Reforma na Igreja. Esse último, base para a insegurança católica e logo seu posicionamento ofensivo na Contra-Reforma, seja com a arte barroca endossando a fervorosidade pelo caráter visual, seja por um sistema mais radical ainda, a asseveração na perseguição aos hereges. Quando se trata de analisar o sentido e as características de – perseguição aos hereges, um leque é aberto: Mouros, protestantes, incrédulos e bruxas. Claro que não era mecânica a ligação entre ser mulher significava e ser herege. Nem toda mulher era herege, porém, se analisadas as perseguições contra a bruxaria, a chamada caça às

36 bruxas, dentre os séculos XIV e XVIII [...] A perseguição incidiu basicamente sobre as mulheres. (1995, P.30) Existem historiadores que discutem tais números nas execuções de mulheres acusadas de bruxaria. Stuart Clark, na obra já citada neste artigo, argumenta que: Em Toledo, por exemplo, 75% dos casos de feitiçaria investigados pelo tribunal local da Inquisição entre os séculos XVI e XVII foram contra mulheres. (2006, P.160) Dentre as obras católicas que evidenciam a questão do gênero inferiorizado, o Malleus Maleficarum publicado em 1484 merece destaque. Escrito pelos Inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger foi um dos mais lidos em seu tempo e demonstrava quanto estava enraizada esta questão no imaginário misógino dos escritores e provavelmente, de todo seu círculo religioso:

[...] houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária a retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente. (KRAMER; SPRENGER, 2014, apud 116)

Nesta fala dos autores, além de seu argumento espiritual em que segundo eles, o diabo teria uma influência mais suscetível, o fator corpóreo da criação da primeira mulher tem total influência na infeliz herança que a descendência de Eva iria carregar. A costela da primeira mulher torta é efetivamente contrária à retidão do homem. Pode-se, atualmente, questionar-se e até espantar-se de como tal imagem misógina fora com tanto efeito assimilada no imaginário do homem contemporâneo à este tempo. Ainda mais: como o demônio, o sobrenatural povoou este imaginário confundindo-se com o mundo terreno. Quanto a essa interessante relação a historiadora Laura de Mello e Souza analisa que a fome e suas decorrentes crises, a falta de explicações científicas para as consequentes doenças diluíam as fronteiras entre o mundo natural e o sobrenatural. (1995, p.8) Importa refletir que a fragilidade da mulher era comprovada em questões cotidianas, relacionadas ao meio no qual vivia. Segundo o medievalista Hilário Franco Júnior:

Como mostrou o estudo de Bullough e Campbell (22: 1980, 317325), até o século X ou XI a mulher ingeria pequena quantidade de ferro, que seu

37 organismo necessita em proporção maior do que o do homem, devido à menstruação, à gravidez e à lactação. Portanto, a anemia feminina era generalizada na Alta Idade Média, daí a maior propensão das mulheres a certas doenças. Com a introdução de leguminosas na dieta e uma presença mais assídua de carne, peixe, ovos e queijo, a mortalidade feminina diminuiu. Tal fato teve ampla repercussão, contribuindo até mesmo para a valorização social da mulher. (FRANCO JÚNIOR, 2001, p.35)

Assim, pode-se perceber que elementos concretos da vida cotidiana, como a qualidade da alimentação associada a condição física feminina, ampararam a certeza de que as mulheres eram seres frágeis e menos preparadas para a vida. O mesmo argumento reforçava a fragilidade de uma alma que mais facilmente poderia ser convencida a compactuar com o Diabo. Por isso, era naturalizada a perseguição ás mulheres que de alguma forma eram desviantes do papel social a elas definido. Estas perseguições às mulheres, que nos séculos XVI e XVII geraram a caça as bruxas, alimentaram os preconceitos já existentes às solteiras, viúvas e solitárias. Ao olhar dos outros, tais mulheres poderiam ser taxadas de bruxas por simples motivos, como afirma Jeffrey B. Russell: Um semblante zangado poderia ser interpretado como um olhar maléfico; uma imprecação furiosa, como uma praga; um resmungo como uma invocação de poderes diabólicos. (2008, p.120) As execuções, perseguições se pensadas longe do caráter das cortes, e sim em meio social, foram uma espécie de extensão de um pensamento popular de desnível de gênero. Como assegura Clark até entre os intelectuais do século XVI seria impossível pensar em gênero senão em termos das categorias de superioridade e inferioridade [...]. (2006, p.181) Neste meio popular em sua maioria, a concepção desse desnível transparecia ao feminino o extremo, tal como Maria e Eva, umas eram muito boas outras maléficas, qualquer discussão sobre mulheres deveria dividi-las em virtuosas e viciosas – assim como dia e noite, luz e escuridão, alma e corpo, céu e inferno. (2006, p.178) Portanto, o homem foi movido pelas crenças de seu tempo, incluído em uma sociedade contemporânea às perseguições e condenações a morte em praça pública nas fogueiras e forcas, e este homem tornava aquilo tudo que assistia como processo correto de acontecer. Como espectadores, compactuaram das perseguições e as legitimaram, numa complexa fruição do espetáculo visual, exacerbada e barroca ela também [...] (1995, p.10) é o que conclui a historiadora Laura de Mello e Souza.

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1.4 O sexo pecaminoso: o erotismo discriminado ao feminino [...] o corpo feminino, mais permeável à corrupção porque menos fechado, requer uma guarda mais atenta, e é ao homem que cabe a sua vigilância. (ARIÉS; DUBY, 2009, p.543)

Anteriormente buscou-se um panorama da inferiorização da mulher em diversos campos, porém neste momento a atenção será dada a um elemento que concerne um dos maiores dos pecados acreditados nas sociedades Medievais e até inclusive, início da Modernidade: O Sexo. Para discorrer sobre o apogeu da difamação misógina pelo viés sexual ocorrido nas delimitações dos séculos XIII – XVII têm-se, contudo, que dedicar um espaço para o conhecimento dos primórdios das discussões Cristãs sobre este pessimismo sexual (1999, p.21) e sua relação com o feminino. Segundo Ranke Heinemann, não foi o catolicismo que criou este controle sobre o sexo na sociedade, mas este advém muito antes de Cristo. Na Antiguidade o Médico Hipócrates julgava que o homem proporcionava ao corpo a máxima energia retendo sêmen, porque a perda excessiva de sêmen levava à „tabes dorsalis‟ e à morte. (1999, p.21) E ainda, a virgindade era dita recomendada por médicos como Sorano de Eféso (século II d.C.) como melhor forma de se manter saudável Em contrapartida, Filósofos gregos na antiguidade concordavam que se fazia necessário o sexo por prazer entre os cônjuges. Contudo, já nos primeiros dois séculos de Catolicismo na Europa, os Estoicos4 mudaram tudo isso. Rejeitaram a procura do prazer (1999, p.23) e defenderam o sexo apenas para a procriação. A título de curiosidade, Sêneca foi um popular Estoico. Uma espécie de Pessimismo do corpo chegou provavelmente da Pérsia para a Europa, era o Gnosticismo que de certa forma demonizava o corpo como uma prisão da alma. Segundo este movimento, a alma era divina, mas o corpo era suscetível às coisas terrenas. O movimento Gnóstico acreditava que o mundo não vem das mãos de um Deus bom, mas de demônios. (1999, p.27) Essas concepções da Gnose influenciaram a filosofia Neoplatônica (1999, p.28) e, por conseguinte a Santo Agostinho.

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Maior Escola de Filosofia Antiga (300 a.C – 250 d.C)

39 Para se falar da mentalidade religiosa Católica em relação ao feminino se faz interessante buscar em seu personagem principal – Jesus – sua concepção sobre este gênero. Assim Uta Hanke-Heinemann escreve: Jesus foi um amigo das mulheres, o primeiro e praticamente o último amigo que as mulheres tiveram na Igreja. (1999, p.138) Jesus demonstrava uma proximidade incomum naquele tempo para com as mulheres. Como no caso da samaritana no poço (Jo 4, 27) ou no caso da anunciação de sua ressureição feita por mulheres também. Porém os seguidores do Cristo, os oficiais da Igreja nos tempos seguintes não adotaram esse ―apreço‖ ao feminino, Hanke-Heinemann descreve que esta postura de Jesus para com as mulheres foi substituída por uma mistura peculiar de medo reprimido, desconfiança e arrogância. (1999, p.133) Tamanha era essa desconfiança e a supressão que, por uma ordem do Papa Gregório I, o Magno as mães e irmãs de celibatários foram proibidas de morar com eles (epístola 60) (1999, p.136). O sínodo de Nantes (658) fala sobre as relações perversas entre padres e as respectivas mães e outros parentes [...] (1999, p.136), relações de incesto também foram relatadas neste mesmo sínodo. Sobre o poder de persuasão e sensualidade da mulher, o Sínodo de Paris (846) proibia a qualquer mulher entrar no lugar onde estivesse um padre. Na mesma linha seguia o Sínodo de Coyaca em 1050, do rei Fernando I que não permitia que mulheres vivessem nas vizinhanças da Igreja (1999, p.136) e que ainda as que vivessem próximas às casas de clérigos se vestissem de preto. (1999, p.136) Santo Agostinho acreditado por muitos teólogos da Igreja até hoje como o maior padre da Igreja Católica, contribuiu muito para o assunto da sexualidade com seus discursos e obras de caráter misóginas. Seus pensamentos baseados em estudos bíblicos relacionaram a transmissão do pecado original [...] com o prazer da relação sexual. (1999, p.136) Essa relação de pecado original e sexo viriam a se tornar parte da

mentalidade popular mais tarde. Como já citado anteriormente, existiu uma discussão anterior ao cristianismo se era saudável a relação sexual apenas por prazer e que não visava à procriação, porém com o advento do cristianismo tal questão foi resolvida, o sexo tinha uma única função: gerar a prole. Agostinho enxergava o prazer sexual como algo passível de punição divina, pois segundo ele o castigo pela queda foi primeiro lançado sobre o reino da sexualidade. (AGOSTINHO apud 1999, p.103)

40 Contudo, como se pode estabelecer que a mulher tivesse papel fundamental na sua inferiorização perante o ―universo‖ Católico predominantemente masculino? Para iniciar esta questão, Ranke-Heinemann reflete sob o argumento de Santo Agostino: todos os problemas da humanidade começaram, por assim dizer, com a mulher, ou seja, com Eva; que a expulsão do paraíso foi por culpa dela. (1999, p.198) Agostinho continua sua argumentação afirmando que quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, Adão decidiu não se separar de Eva mesmo que esta fosse a culpada. Em suma, deste caso o Santo concluí que O amor da mulher conduz o homem à ruína. (1999, p.199) Como será explanado posteriormente, o pessimismo de Agostinho deixará uma herança aos próximos séculos. Toda essa hostilidade do clero para com as mulheres resultava num controle da sociedade e se tratando de sexo havia algumas regras cotidianas que o Historiador Hilário Franco Junior nos deixa claro:

Determinados dias da semana (em especial o sagrado domingo) e certos períodos do ano (festas religiosas, sobretudo a Quaresma) estavam interditados ao sexo. Jean-Louis Flandrin calculou que na Alta Idade Média cerca de 180 dias por ano eram liturgicamente proibidos para relações sexuais, sem contar os dias de menstruação, gravidez e amamentação, igualmente de abstinência. A transgressão era punida de forma variável conforme os locais e as épocas, mas a média girava em torno de 20 a 40 dias de penitência, jejum alimentar e/ou continência sexual. Ademais, o sexo deveria ser apenas vaginal, visando à procriação, a mulher colocada debaixo do homem e no escuro, para se evitar a visão da nudez. O sexo oral e sodomita, a magia para atrair o desejo de alguém, as práticas anticonceptivas e abortivas, as relações incestuosas e adúlteras eram pecados duramente castigados: de seis a 15 anos de jejum e de excomunhão*, geralmente acompanhados de interdição perpétua de qualquer relação sexual e de casamento. (2001, P.177-8)

Passando da Alta Idade Média para começarmos a tratar dos primeiros séculos do segundo milênio, podemos expressar que o auge desta misoginia desenvolvida no clero pelos eruditos, sendo disseminada pela sociedade em forma de controle e tabus será efetuado em potência nos séculos XII e XIII. Jeffrey Richards escreve em sua obra Sexo, desvio e danação que a sociedade da Idade Média era capaz de explosões súbitas e violentas de histeria e paranoia, de

41 violência e entusiasmo, muitas vezes tendo como pano de fundo a crise demográfica ou a mudança social [...] (RICHARDS, 1993, p.13-14). Sob estes aspectos o mesmo autor escreve que o século XII, portanto foi coberto de uma busca incessável por um Deus e maior controle de seus corpos. (1993, p.13) Esta busca por um Deus protetor que vigia a sociedade havia sido primariamente potencializada na vinda, do já estudado ano mil. O medo do fim do mundo tomou conta e a partir deste tempo, a ideia de um Anticristo foi disseminada do ―universo‖ Teológico para encontrar terreno fértil na cultura popular, figurando em sermões, poemas, histórias e peças. (1993, p.14) Pode-se estabelecer, a partir destes primeiros séculos do novo milênio, que um maior controle da Igreja em uma escala que ultrapassava os conventos e alcançava às cidadelas, as casas, as pessoas. Tal busca da luz divina também se refletiu em seu extremo oposto: a escuridão das trevas devia ser apartada para longe. A fome, terremotos e as doenças eram provas de que o mal estava por perto e os pecados da sociedade tinham sua parcela de culpa destes eventos. A sociedade, estreita cada vez mais à Igreja tentava se defender do mal que poderia influenciar a qualquer um, um medo havia sido instalado. O medo de si mesmo, como nomeia Delumeau, pode ser explicado pela razão de que qualquer um pode ser um agente de satã se não tomar o devido cuidado – levando a um combate incessante contra o inimigo do gênero humano. (1989, p.33) Esse combate ligado ao leque de medos que a Igreja pregava, traduz a reflexão de Delumeau sobre a intrusão maciça da Teologia na vida cotidiana da civilização ocidental (1989, p.33) na literatura inclusive. Tratando-se do ato sexual, se não fosse com o objetivo da procriação, era pecaminoso e logo passível de punição pela igreja. O ideal, portanto, era manter a castidade e, segundo os estudos de Jean Delumeau, manter a integridade física, purificação da alma e consagração a Deus [...].(METRAL, 1963 apud 1989, p. 316) Porém, existia nos discursos, sermões e mentalidade Católica do século XIII (especialmente por ser o período em potencial das ordens mendicantes) uma personagem que segundo argumentos da época, era mais suscetível ao desejo carnal, pecaminoso e consequentemente, este personagem estava mais próxima ao Diabo - a Mulher. Delumeau ressalta que o sermão foi um meio eficaz de cristianização a partir do século XIII, difundiu sem descanso e tentou fazer penetrar nas mentalidades o medo da

42 mulher (1989, p.322). E ainda: O que na idade média era discurso monástico tornou-se em seguida, pela ampliação progressiva das audiências, advertência inquieta para uso de toda a Igreja discente que foi convidada a confundir vida dos clérigos e vida dos leigos, sexualidade e pecado, Eva e Satã. (1989, p.322) Veículos que estereotipavam um perfil de uma mulher má estavam sendo criadas. Por meio de tratados Teológicos, Médicos e Científicos (1993, p.36) foram divulgadas tais ideias de sua inferiorização sem qualquer questionamento. A base central deste desnível de gênero expresso seguia as influências agostinianas e até anteriores a ela: a mulher, como escreve o Historiador Jeffrey Richards, era inferior ao homem por ser criada a partir da costela de Adão, mas também diabólica por ter se deixado seduzir pela serpente além de ter descoberto o deleite carnal e o ter mostrado a Adão. (1993, p.36) Tais campanhas que antes eram explicitas em tratados já citados serão severamente potencializados com a chegada da imprensa. Outro fator que serviu para aguçar o debate do sexo e por seguinte, discriminá-lo como algo mais propício do feminino foi às confissões dos crentes para com os padres. A partir de 1215 a confissão tornou-se obrigatória ao menos uma vez ao ano, decisão emitida pelo concílio Lateranense. (1993, p.39) Jeffrey em seu estudo escreve que nas confissões, a categoria sexual era isoladamente a mais mencionada. Dentre as diversas confissões, foram assinalados alguns pecados no que tange ao desnível de gênero, como no próprio ato sexual: o [...] coito dorsal, com a mulher por cima; isto era considerado como contrário à natureza, a qual determinava que o homem deveria ocupar a posição dominante. (1993, p.40) Sobre sexo fora do casamento Jeffrey evoca Johannes Teutonicus para escrever que o adultério era mais detestável quando cometido por uma mulher do que no caso do homem. (1993, p.47) Ainda neste contexto, traz a luz Santo Tomás de Aquino que completa o discurso misógino: [...] as mulheres deveriam ser mais severamente punidas pelo adultério do que os homens. (1993, p.47) Nos casos de confissão de estupros às mulheres, a penitência gerava uma espécie de multa ou prisão por pouco tempo. E neste caso destaca-se a consequência na vida das vítimas estupradas que, devido à mentalidade de que a mulher ―boa‖ deveria se manter virgem, uma vez que fossem estupradas perdiam status e possibilidade de casamento (1993, p.51) e eram até relegadas à prostituição. A Igreja interligava o sexo ilícito ao Diabo e sua legião de demônios. (1993, p.51) Juntamente a isso outros fatores colaboraram para uma histeria contra a má

43 mulher, como a consolidação da figura do Diabo como um ser monstruoso e medonho que poderia possuir o corpo de pessoas, e com mais probabilidade a mulher por todos os fatores já descritos e especificamente ao pacto diabólico que será descrito adiante. Sendo assim, agregar-se-á três adjetivos da misoginia aqui estudada que nortearam e nosso trabalho até o momento: A inferioridade social da mulher (dentro da família patriarcal inclusive), a prática pecaminosa do sexo discriminado a ela, e logo o seu poder em seduzir os homens a esse pecado, e por último, a mulher enquanto sujeito diabólico, a qual terá contato explícito em forma de pacto com o demônio, promovendo a perseguição da Igreja com a Inquisição às chamadas Bruxas. Este último processo, Jean Delumeau foi feliz em nomear de Diabolização da Mulher. (1989, p.319) O auge da misoginia na História do Ocidente talvez seja a caça as Bruxas dos séculos XVI e XVII, mas para discorrer sobre este momento, que será estudado no segundo capítulo desta monografia, faz-se necessário anteriormente compreender as concepções diabólicas no que tange ao sexo e à mulher no século XV. Tal período concerne à ruptura entre a Idade Média e a Modernidade. Neste momento é que se aguçam os debates sobre pacto diabólico, explicitando aí o sexo com os demônios que a imprensa, recém-criada, irá disseminar tão ferozmente. A força com que foram crescendo as ordens mendicantes (desde o século XIII) e logo a influência de seus sermões que, ao analisar o discurso de Teólogos, aliou-se com uma sociedade cheia de temores. Como escreve Richards sobre este período, a sociedade vivia um período do medo de impostos, doença, guerra, fome, da morte e do inferno. (1993, p.82) Era uma sociedade crente no sobrenatural e que enxergava tais penas a eles infringidas como uma punição divina de seus pecados e que existiam agentes mais responsáveis que os outros pelas penas – um deles, a Bruxa. O sexo (extraconjugal) era um dos maiores pecados, a mulher, era mais suscetível aos deleites da carne, pois pertencia a linhagem de Eva que sucumbiu à serpente. Com efeito, a mulher que a priori já fora inferiorizada e relacionada ao sexo por ser mais suscetível ao pecado da carne será por fim, relacionada ao Diabo, fazendo pacto e copulando com ele. Segundo Richards, acreditava-se que as Bruxas:

Reuniam-se em sabás regulares, os quais envolviam canibalismo, orgias sexuais paródias blasfemas dos cultos cristãos. [...] possuíam ―familiares‖ animais, desfrutavam do poder de voar e às vezes da capacidade de mudar de

44 forma. Recebiam o poder de realizar o mal. Faziam parte de uma conspiração satânica de âmbito mundial, visando a minar o cristianismo. (1993, p.82)

O sexo tinha o papel central no pacto com o diabo, pois era por meio dele, da copulação que se selava o ―trato‖. Além disso, as orgias nos sabbat eram o ponto culminante dos rituais de Bruxaria. Richards novamente conclui que isso refletia o medo milenar do sexo no cristianismo, e também destaca a desconfiança e o desagrado em relação às mulheres como parte integrante da cultura Medieval. (1993, p.83) Alguns autores como Jeffrey B. Russel e Norman Cohn tentam traçar as origens da Bruxaria Europeia e, delimitar o que seria uma fronteira entre a feitiçaria e a bruxaria. Os autores têm concepções divergentes em vários aspectos que não cabem ser discutidos nesta monografia, mas sobre estes dois elementos em fronteira os autores concordam que, em suma, a diferença é que a bruxaria conta com a contribuição do demônio por meio do pacto, promovendo assim à bruxa poder realizar seus malefícios. A invenção da Imprensa potencializou o avanço misógino, dos tratados Teológicos manuais para os folhetos ilustrados de possessões demoníacas e, principalmente, a disseminação de manuais inquisitoriais que guiavam os perseguidores e argumentavam os motivos pelos quais se devia crer nas bruxas e logo na sua relação ao feminino e ao sexo. O Malleus Maleficarum ou O martelo das feiticeiras foi um deles. No Malleus estão descritos, além de muitas outras questões sobre a crença na bruxaria, como Íncubos e Súcubos (2014, p.89) (demônios que copulam por sonhos), pactos, mas principalmente, no que tange ao tema abordado, sobre bruxaria e sexo. Na questão VI do Malleus a descrição do título é clara: Sobre as Bruxas que copulam com Demônios. Por que principalmente as Mulheres se entregam às Superstições Diabólicas. (2014, p.112) Esta questão é dividida em três no manual, a primeira parte são os argumentos que comprovam a maior suscetibilidade da mulher ao Diabo, a segunda quais tipos de mulheres são mais propícias, e a terceira especificamente sobre as parteiras que superam todas as demais em perversidade. (2014, p.112) Em suma, o Malleus argumenta que as mulheres são indisciplinas, perversas, viciadas, sem moderação, e mais influentes a receberem a influência do espírito descorporificado; (2014, p.115) Portanto, se o objetivo do diabo é corromper a fé, prefere então atacá-las. (2014, p.115) E atacá-las de forma a manter o coito com elas e

45 sob este aspecto se encontra o pior pecado – Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres. (2014, p.121) A caça às bruxas havia adentrado no moderno e conflituoso século XVI e atingiria seu auge no século seguinte, moldando uma repressão ao sexo e ao feminino potencializado pelo Malleus, que ditava as formas de torturas e de reconhecimento das Bruxas. Mas não apenas o manual julgava e discriminava o feminino, livros sobre Teologia popular (2008, p.89), folhetins que ilustravam os agentes satânicos já haviam sido disseminados na cultura popular fazendo com que a massa incentivasse a caça, é o que conclui Russel. Além da imprensa, as artes também fomentaram uma silhueta pecaminosa da mulher e seu incessável desejo carnal. Robert Muchembled em sua ilustre obra Uma história do Diabo escreve a monstruosidade oculta da mulher em forma de esculturas, pinturas, etc. Uma delas uma Muchembled descreve: Uma gravura ilustrando a tradução alemã do livro de Geoffroy de La Tour Landry, aparecido em Basiléia em 1493, mostrava a coquete com o demônio da vaidade. Este, composto de um corpo humano e uma cabeça animal, mostra seu ânus, que se reflete em um espelho, a imagem tomando o lugar do rostinho da dama que se olha penteando-se. O que nos leva a deduzir, incessantemente, desse jogo sobre as fisionomias, que a da mulher é a máscara da horrível face do demônio, ou, em outros termos, que sua beleza enganosa esconde uma boca infernal, por causa de sua lubricidade original. (LEHNER, 1971 apud 2001, p.65)

Outras obras retratavam a nudez, calcada na sensualidade e erotização persuasiva da Mulher e, sobre isso, no terceiro capítulo desta monografia, serão realizadas análises sobre algumas das obras de Hans Baldüng Grien (1485-1545), artista alemão que produziu entre outros temas, ilustrações macabras das bruxas. Os processos e as execuções das acreditadas bruxas incentivavam o povo na crença de poderes diabólicos. Neste sentido, a luta contra a bruxaria - contra o mal estava no consciente de cada um como um sinal de alerta contra o pecado sexual reforçando a vigília do corpo. Contudo, estes temores aumentariam ao fim do século XVI, junto com a multiplicação dos tratados contra bruxas depois de 1580. Nas palavras de Muchembled: O final do século XVI deu, assim, a impressão de um desencadear satânico sem

46 precedentes, pois as fogueiras de feitiçaria eram acesas por toda parte na Europa. (2001, p.79)

47 2. HOLOCAUSTO MISÓGINO: A CAÇA ÀS BRUXAS (SÉCULOS XIVXVI) E OS DISCURSOS NO MALLEUS MALEFICARUM

2.1 – Para um estudo da Caça às Bruxas

A caça às Bruxas é um fenômeno moderno, que teve início no século XV e seu declínio no século XVIII. A histeria causada pelas supostas bruxas apenas aconteceu devido o terreno fértil que encontrou na Europa, e é por isso que o primeiro capítulo inteiro foi feito para mostrar o processo em que tal fenômeno conseguiu germinar. Ciente do processo de construção da malignidade da mulher pode-se neste momento, tentar compreender como sua imagem foi representada nos discursos de um período que se acredita ser o apogeu da misoginia no ocidente. Influenciada por tratados e manuais diabólicos e patrocinados pela Igreja Católica e Nobreza, a Inquisição revela, como uma de suas vítimas, a herdeira de Eva, e é a sua caça que norteia esse capítulo. O Malleus Maleficarum, ou Martelo das feiticeiras, foi publicado em 1487 na Alemanha e alcançou leitores em toda a Europa. Escrito pelos inquisidores Henry Kramer (?1430 - ?1505) e James Sprenger (1436 – 1496), foi considerado mais que um tratado diabólico de sua época, pois atingiu uma notoriedade de destaque por sua especialização de lida contra a bruxaria narrada de forma metodológica – por isso o termo ―manual‖ ter sido designado a ele. Impulsionado pela revolução da imprensa, o Malleus alcançou uma difusão de ideias impressionantes. Segundo Robert Muchembled a obra teve no mínimo quinze edições até as duas primeiras décadas do século XVI em maioria difusa em Nuremberg e Reno; aproximadamente 20.000 modelos foram emitidos até antes da Reforma. O tratado passou abruptamente de moda entre 1520 e 1574, depois experimentou uma segunda vida [...] (2001, p.61) no último quarto do século XVI. Contudo, o objetivo deste capítulo não é mostrar minunciosamente como os ideais desta obra alcançaram em termos espaciais e temporais a Europa, mas, contextualizar os discursos misóginos nestes três séculos de caça às bruxas com o Martelo das Feiticeiras de forma que demonstrem que em essência, o pessimismo relacionado ao feminino encontrado nesta obra pode ser enxergado tanto um século antes de sua produção, afinal os autores tiveram suas influências a priori, quanto nos dois séculos posteriores.

48 Para tanto se faz necessário que se situe panoramicamente a chamada caça às bruxas, no que tange à suas recepções sociais e às suas políticas judiciais, pois, sem essas duas visões seria impossível compreender a dimensão que os dispositivos misóginos alcançaram neste período. . 2.2 – Um panorama da Caça às Bruxas Como já foi visto no capítulo anterior, do século XII ao XV algumas Bulas Papais 5foram direcionadas à Inquisição, no sentido que potencializaram a perseguição aos hereges. As ordens mendicantes também reforçaram as pregações Católicas desde o século XIII, com a característica de inflamar o público com seus sermões apocalípticos e de exposição de temores naturais e sociais canalizados em alguns bodes expiatórios. O expiador máximo era o Diabo, que havia ganhado uma forma pavorosa no imaginário popular e, cada vez mais presente, da baixa Idade Média e início da Modernidade, de forma que deixou de ser um sujeito do imaginário erudito para se tornar um temor popular. A disseminação da imagem e poderes do Diabo deveu-se muito a emergência da ciência demonológica. Todos esses elementos ligados à religião foram somados à união da Igreja com o corpo jurídico proporcionando legalmente uma conduta de reprimir comportamentos que iam contra suas regras legais. Neste ponto, o corpo da perseguição aos hereges ganha um braço executor, ou seja, além da repressão religiosa, havia leis que promoviam perseguições com metodologias legais aos hereges. A bruxaria, neste quadro, é considerada a maior heresia para a Igreja, pois esta tem o contato explícito com o diabo, adorando-o e tendo relações sexuais com ele. Por outro lado, também apresenta um perigo à sociedade, pois ameaça a ordem social. A partir destas reflexões, alguns historiadores tentam explicar, quais foram os elementos que proporcionaram o sucesso da caça, como Brian P. Levack, que norteou os estudos desse capítulo, por sua especificidade em analisar este tipo de perseguição inquisitorial. Levack em: A caça às Bruxas na Europa Moderna reflete sobre quais elementos os historiadores do século XX têm atribuído para que a perseguição às bruxas se efetivasse com tamanho sucesso:

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Bula Papal ou Pontifícia é o nome atribuído ao documento oficial emitido pela autorização do Papa.

49 [...] à Reforma, à Contra-Reforma, à Inquisição, ao uso da tortura judicial, às guerras religiosas, ao fanatismo religioso do clero, à ascensão do estado moderno, ao desenvolvimento do capitalismo, ao uso generalizado de narcóticos, a mudança do pensamento médico, a conflitos sociais e culturais, à tentativa de erradicar o paganismo, à necessidade das classes dominantes de distraírem as massas, ao ódio às mulheres. (LEVACK, 1988, p.3)

O ódio à mulher – a misoginia – é a que procuramos enfatizar neste trabalho como um todo. Contudo, além das causas mencionadas acima, as tensões sociais destacadas no primeiro capítulo (peste, cismas, e guerras, por exemplo) também tiveram sua contribuição. No que tange à nomenclatura - Caça às Bruxas - esta foi, por vezes, muito discutida entre Historiadores, porém passou a ser adotada, pois realmente existia uma espécie de procura dos acusados. Outro nome tentou ser usado: a Loucura antibruxas. (LEVACK, P. 1988, p.2) Porém, viu-se que essa denominação remetia muito mais a crendice em bruxas como algo relacionado a transtorno mental e passou a ser menos usada. Esta caça envolvia um processo maior do que a própria perseguição: o de ter criado meios de investigar quem eram as supostas bruxas. Os manuais de combate à Bruxaria, em especial o Malleus Maleficarum ou Martelo das feiticeiras, por exemplo, tem um capítulo especialmente para alertar o seu leitor contemporâneo de como identificar uma bruxa. O manual será abrangido em outro momento deste mesmo capítulo. No contexto da caça, existiam sumariamente duas formas que evidenciavam os crimes de bruxaria, são elas as confissões – realizadas pelas próprias acusadas de bruxaria – e, os depoimentos. Os depoimentos eram advindos de denúncias de terceiros que acusavam determinadas pessoas de tê-las prejudicado de alguma forma. Ligada a essas duas formas de delações, estão as duas principais formas de crimes de Bruxaria, que segundo Levack são: o Maleficium e o Diabolismo. (1988, p.11) O Diabolismo, entendido como a interação da Bruxa com o Demônio, tem um papel familiar em relação aos flagelos como veremos a seguir. Ambos os elementos já se encontram explicados no capítulo 1.3 deste trabalho. Contudo, o que se quer destacar neste momento é sobre qual forma eram obtidas tais confissões de crimes – a tortura. A tortura era, talvez, o método mais eficiente para extrair das acusadas supostas confissões de seus crimes, além da denúncia de supostos cumplices. Levack escreve

50 que a tortura, num certo sentido, “criava” a bruxaria, ou ao menos criava a bruxaria diabólica. (1988, p.14) Esta reflexão do autor é justificada: ele demonstra que nos processos de bruxaria as confissões de crimes diabólicos aconteciam apenas durante ou após os flagelos, o que revela que as delações, como conclui o autor, indicavam muito mais o que o carrasco quisera ouvir do que a realidade feita pelo acusado. Como conclui Levack, muitos acusados preferiam ―confessar‖ e serem executados a se calarem e ter de resistir as mais terríveis seções de tortura. Ainda sobre a tortura, o Jesuíta alemão Friedrich Spee (1591-1635), um dos poucos que iam contra o uso da tortura nos processos, bem como outras críticas severas à Inquisição, escreveu em Cautio criminalis (1631): a tortura enche nossa terra da Alemanha de feiticeiros e ali faz surgir uma maldade inaudita, e não apenas na Alemanha, mas em toda nação que a use. Se nem todos nós confessamos ser feiticeiros, é que não fomos torturados. (1989, p.381).Delumeau, por sua vez, reflete sobre o momento de inquérito em que se encontram a acusada e o questionador:

O ajuste preciso das respostas às perguntas, a adesão quase automática da indiciada às acusações lançadas contra ela pelos juízes e, por outro lado, sua ausência de memória quando se trata de dar uma resposta mais pessoal, permitem apreender muito concretamente uma das fases capitas da elaboração do mito demonológico e sabático. Por certo os aldeões ouviam falar do diabo pela cura, na igreja. A feiticeira declara espontaneamente que o diabo vem visitá-la quando deixa de persignar-se. Seu demônio tem um nome erudito: Belzebu. Mas, de resto, o essencial de suas respostas lhe é sugerido pelos juízes. (1989, p.383)

Sobre o número de processos ou execuções de bruxas é impossível sua determinação. Porém, Levack em sua obra, traz alguns dados de aproximação que vale a análise. Segundo sua reflexão, o total de pessoas processadas por Bruxaria na Europa deve passar da casa dos 100.000. Só na Alemanha essa cifra pode ter alcançado os 50.000, seguido da Polônia com seus 15.000 processos, França e estados próximos com 10.000 processos, Suíça com 9.000 processos. Estas eram as regiões em que a caça às bruxas foi mais vigorosa e intensa. Outras regiões com menor número de processos em que a perseguição agiu foram as Ilhas Britânicas com 5.000 processos (apenas na Escócia mais de 2.000) e 5.000 na Escandinávia. A Hungria, Moldávia, Transilvânia, Rússia e Valáquia não

51 chegaram a 4.000 processos, nos reinos Espanhóis e estados Italianos o número chegara a 10.000. Contudo estes são números de processos e julgamentos. Em relação às execuções, o autor escreve que de aproximadamente 110.000 julgamentos, 60.000 terminaram em mortes. Uma observação interessante é com relação à forma de execução: no continente Europeu, o uso da fogueira era o mais comum, pois geralmente seguiram uma vertente de responsabilidade religiosa, apesar da presença dos tribunais leigos seculares. A lógica para utilizar o fogo vinha da Bíblia: Se alguém não permanece em mim, é jogado fora, como o ramo e seca; depois são ajuntados, jogados ao fogo, e queimam. (João 15, 6) Logo, a bruxaria era associada à heresia e a fogueira à absolvição da alma deste pecado. A exceção ocorria na Inglaterra, onde as execuções comumente eram realizadas na forca, pois a bruxaria era mais associada à delinquência de âmbito civil. Em suma, sobre esta diferenciação, Jeffrey B. Russel conclui: Na Inglaterra, a bruxaria era um crime civil; no continente, um crime de religião. (2008, p.75) Os números da execução dos acusados não revelam o efeito real da caça às bruxas daquele período, pois, ao se tratar de 60.000 mortes em pouco mais de trezentos anos pode não parecer impactante, porém, ao analisar alguns momentos específicos, podemos tentar compreender o grau de histeria da modernidade. Desses momentos particulares Levack comenta: 274 pessoas foram executadas por bruxaria no bispado de Eichstätt em apenas um ano, e de que 133 bruxas foram executadas nas terras do convento de Quedlinburg em um único dia, em 1589 [...]. (1988, p.23) Em resumo, os números quando tratados em uma escala longa de tempo, podem não parecer tão surpreendentes quanto o olhar mais localizado de alguns registros. Os princípios base da perseguição às bruxas enquanto mentalidade social, ou seja, seus medos, suas agonias e suas crenças formaram uma primeira parte para que a caça se efetivasse. Contudo, o elemento judicial da Inquisição, e logo os tribunais, foram aqueles que forneceram os princípios legais para formar a segunda parte. Portanto, deve-se salientar que, desde as acusações, passando pelo julgamento, tortura e atribuição da pena, seja ela prisão ou execução, tudo era perpassado por procedimentos legais. Logo, faz-se necessário que se volte em alguns momentos a falar tanto das evoluções dentro dos processos dos tribunais inquisitoriais, quanto das Bulas papais que permitiram tal evolução.

52 Sobre as evoluções nos procedimentos são necessários alguns apontamentos. Uma das grandes mudanças, a partir do século XIII, nos procedimentos foi de permitir o uso da tortura sobre pessoas acusadas de bruxaria em prol das confissões já mencionadas. Tal bula é a já mencionada Ad extirpanda promulgada pelo Papa Inocêncio IV em 1252. Outra grande mutação foi a substituição do poder dos tribunais eclesiásticos em guiar a jurisdição da caça, para ser encabeçada a partir de então pelos tribunais seculares – os laicos. Por fim foram confiadas aos tribunais regionais as frentes de condenação e execução das bruxas. Uma breve observação sobre os tribunais seculares deve ser feita. Enquanto a maior preocupação dos tribunais eclesiásticos era de condenar os crimes de bruxaria pela sua explícita heresia, os tribunais seculares viam os crimes como delinquências civis. Porém, a diferenciação nas visões de ambas as partes não impediu a união das mesmas em diversas situações e julgamentos. Um exemplo desta união era a impossibilidade de os eclesiásticos praticarem dano corporal aos acusados, fazendo com que estes articulassem esta parte do castigo com o tribunal secular. Portanto, existe certa mesclagem cooperativa entre os tribunais para que juntos avançassem na caça às Bruxas.

2.3 O CONTEXTO SOCIAL

Ao se tratar da caça às bruxas e, ainda mais especificamente, do contexto social em que se inseriu, deve-se saber dos principais problemas a serem enfrentados na pesquisa. Duas são principais implicações, a documentação escassa e a diversidade temporal e geográfica. Estas últimas, sobre a dificuldade em tratar do longo período em que se desenvolveu efetivamente a caça (XV-XVIII) e a heterogeneidade específica de cada período desta linha temporal. Além disso, geograficamente analisando, a caça e as acusações de Bruxaria também diferiam de região para região. Portanto, o que se quer neste momento do trabalho não é analisar todas as regiões da caça, menos ainda um período ou cidade específica em que a perseguição agiu, pois o recorte do trabalho não se encontra aqui. Apenas se quer analisar por enquanto, o que podemos abstrair de uma suposta influência social para a perseguição às bruxas, depois como se podem identificar as especificidades do campo e da cidade dentro do contexto do início de modernidade e, enfim, como todos estes aspectos

53 tendem a ter alguma ligação com a perseguição quase que essencialmente ao feminino que o Malleus propagandeou. Existem estudos que tentam explicar o que teria originado o surto da caça. Um desses estudos se refere às mudanças sociais do início da modernidade. As mudanças sociais referidas são: o aumento da população europeia e também de suas cidades, o aumento dos preços das mercadorias, a ascensão do capitalismo mercantil em algumas regiões, os surtos de doenças epidêmicas, o fracasso nas colheitas e, consequentemente, a fome. Tais mudanças indicam que as caças a bruxas foram, até certo ponto, subprodutos da ansiedade gerada pela rápida mudança social. (1988, p.123) Em contraponto, pode-se deduzir também que muitos desses requisitos de mudança não são características do início da modernidade, mas que já estavam em processo de desenvolvimento na Idade Média. Portanto, o que mais interessa, talvez, seja o quão foi reforçada com o tempo a crença nas Bruxas devido à ansiosidade acumulada das sociedades que, culminou, enfim, na histeria moderna. Tendo relacionado o contexto de ânsia social e suas possíveis mutações, pode-se observar em quais ambientes o fenômeno da bruxaria alcançou maior ou menor fôlego. O campo e a cidade são dois espaços que, como veremos, não apresentou iguais características no contexto da perseguição à bruxaria. A característica mais atribuída ao campo, no que tange o contexto temático deste trabalho, é a da resistência nas crendices supersticiosas que, muitas vezes, continham resquícios pagãos. Para exemplificar a afirmação, pode-se conferir que, é no campo onde irão emergir mais casos de Malefícium, ou seja, de acusações a terceiros de domínio sobre pragas, mau-olhado etc. Levack leva em consideração que existia outro elemento inerente ao campo: a proximidade de convivência com vizinhos e sua implicância na perseguição: [...] acusações de feitiçaria tendem a surgir quando as pessoas vivem face a face em comunidades fechadas, onde todos se conhecem e as pessoas indesejáveis não conseguem permanecer ignoradas. (1988, p.124) Neste meio em que as pessoas convivem no mesmo espaço, a chance de um ódio ser canalizado, inculpando uma determinada pessoa, era grande. Era frequente, apesar da existência dos tribunais, quem tentasse fazer justiça com as próprias mãos, violentando indivíduos, que na maioria das vezes, eram mulheres. A historiadora Silvia Liebel em seu trabalho Demonização da Mulher: A construção do discurso misógino no Malleus Maleficarum reflete sobre a existência de uma crendice popular de que, ao

54 arranhar uma bruxa, fazendo-a sangrar, seus malefícios seriam anulados. (LIEBEL, 2004, p.59) Por outro lado, as cidades também tinham suas particularidades e não podem ser reduzidas a coadjuvantes das perseguições. Além de casos que aconteceram em totalidade na cidade existiram eventos também em que o processo foi apenas parcialmente na zona urbana, eram os casos de bruxas ―encontradas‖ no campo e trazidas para os grandes centros para serem julgadas. Neste contexto, os casos de Genebra nos séculos XVI e XVII, nos quais boa parte das acusadas era do meio rural, porém foram levadas às cidades para serem processadas. Como já citado, além das perseguições no campo e, parcialmente nas cidades, houveram grandes surtos de caça às bruxas essencialmente urbanas, principalmente na Alemanha. (1988, p. 124-125) Muitas das cidades que incidiram às perseguições também

apresentaram

características

campesinas

da

convivência

próxima

e

impossibilidade de ignorar o vizinho, afinal, no fim do século XV e início do XVI, com exceção das capitais, as cidadelas, por vezes, não atingiam 2.000 habitantes. Entretanto, as ―grandes capitais‖ não ficaram imunes e são elas que compõem os elementos distintos dos outros casos já mencionados. Uma das distinções era que, nestes casos, podemos ignorar o caso da impossibilidade de evitar o vizinho, já que as capitais eram dispostas em maiores proporções. Também se considera a menor suscetibilidade às expressões supersticiosas mais próprias do camponês. O que considerar então para que houvesse um ambiente fértil nas capitais para que a Histeria das Bruxas germinasse? 1) Maior contingente populacional, as notícias de surtos demoníacos, eram facilmente espalhadas de forma oral. 2) aliado ao número populacional, era mais fácil a disseminação de doenças e pestes, visto que, eram considerados bruxos aqueles que portavam tal doença.

Com maior incidência de

enfermidades, mais bruxos apareciam e logo, o pânico geral – ondas histéricas deste seguimento ocorreram em Milão (1988, p.126) em 1630 e Genebra um século antes. 3) Casos de possessões coletivas: apesar de não terem acontecido apenas em cidades, foram nelas que alcançaram maior público – em hospitais, conventos e praças – gerando uma onda de medo e logo, fortalecendo a crença em bruxas, que poderiam ter algo a ver com as possessões, já que esta pactua com o demônio. Por fim, deste exposto todo, podemos observar que existiu certa interação nas camadas elitistas com o popular, de campo e cidade. Pensando que o camponês iletrado e processado por bruxaria viria a ser levado a julgamento num grande centro, este se

55 depararia com um clérigo ou magistrado urbano e letrado como seu inquisidor. (1988, p.127) Aqui então há uma interação não apenas de camadas iguais: dois vizinhos do campo que se acusam, mas, um camponês e um jurista ambos envolvidos no problema. O Historiador Keith Thomas, atribui a uma das causas da crença na bruxaria o elemento da pobreza e da fragilidade à que a mulher fora exposta, afirmando que, as confissões inquisitoriais que expunham a vida das mulheres acusadas, revelavam terem elas sido tentadas pelo diabo. Na ambição de uma vida melhor, com joias, dinheiro e sexo, as mulheres deixavam-se seduzir pelas propostas do demônio: Para as pessoas em tal estado de desespero, a ligação ao Diabo simbolizava a alienação de uma sociedade à qual tinham poucos motivos para estarem gratas. Nesse sentido, a ideia da demonolatria não era uma total fantasia. (THOMAS, Keith 1991 apud LIEBEL, 2004, p.55) Parecido com o argumento de Thomas, Julies Michelet lia a bruxaria como uma revolta da ordem estabelecida, no sentido de que também a pobreza e o sofrimento do povo foram um dos elementos fundamentais deste fenômeno. Assim, a Historiadora Silvia Liebel, reflete sobre Michelet em sua obra A feiticeira (1862):

A entrega ao mal não vem de uma natureza maligna do indivíduo, mas resulta do sofrimento para Michelet que, dentro do espírito romântico, tomava o Sabbat como uma realidade. Quando as privações materiais, as doenças, a exploração dos servos pelos senhores, fazem-se mais agudas, o povo reclama aos céus um alívio para suas dores. E, na ausência de um milagre, da piedade divina alimentar um povo entregue ao Deus único e todo- poderoso, é a Satã e seus acólitos que se vai recorrer. Os servos viam no Diabo o espírito salvador que os livraria da opressão [...] (LIEBEL, 2004, p.60)

Após ter citado as relações entre camadas durante as perseguições, surge a questão: que perfil de Bruxas está sendo estudando? É correto afirmar que houve mais acusações às mulheres do que aos homens, justificando o termo generalizante bruxas e não bruxos? A tabela a seguir tenta colocar em uma espécie de numeral a incidência das acusações de ambos os sexos e a porcentagem feminina de incidência à bruxaria: Tabela 1 – Sexo dos acusados de bruxaria (BOUCHAT, 1978 apud LEVACK, 1988, p. 128)

56 REGIÃO

ANOS

Sudoeste

MASCULINO

FEMININO

FEMININO %

1562-1684

238

1.050

82

1571-1670

9

181

95

1559-1667

49

153

76

1537-1662

74

240

76

de

1539-1670

45

62

58

Condado de

1509-1646

29

337

92

Luxemburg

1519-1685

130

417

76

Cidade

de

1584-1623

14

53

79

Dpto.º

do

1542-1679

54

232

81

Castela

1540-1685

132

324

71

Aragão

1600-1650

69

90

57

Veneza

1552-1722

119

430

78

Ostrobósni

1665-1684

33

119

78

Rússia

1622-1700

59

40

40

Condado de

1560-1675

23

290

92

1630-1700

60

193

79

1560-1727

242

1.491

86

Alemão Bispado da Basiléia FrancoCondado Genebra Pays Vaud

Namur

o

Toul

Norte, França

a, Finlândia

Essex, Inglaterra Nova Inglaterra Escócia

Tal tabela não nos serve aqui para mergulharmos numa profunda análise das regiões citadas, mas como um fundamento de apoio de que a caça incidiu sobre as

57 mulheres, em um número exorbitantemente maior, que sobre os homens, em regiões e em períodos diferentes. Salvo as exceções de período ou espaço, como no caso da Rússia, a caça às Bruxas foi um fenômeno contra determinadas mulheres. Com o cuidado de não limitar as mulheres de tal época apenas à funções específicas, mas, as cozinheiras, as curandeiras e as parteiras eram as mais comumente denunciadas por práticas de bruxaria. As cozinheiras, por terem contato direto com o alimento, eram vistas como propícias a preparar malefícios por meio de poções ou unguentos. As representações na arte moderna das bruxas em seus caldeirões fazem a ligação a essa mentalidade. As curandeiras, também conhecidas em sua contemporaneidade por Mulheres do saber (1988, p.131), produziam e recomendavam medicamentos. A questão chave aqui, é que muitos moradores das comunidades dos vilarejos ou até mesmo nas cidades, por vezes, procuravam as curandeiras quando os medicamentos do fármaco não surtiam efeito. Contudo, quando alguém morria por alguma doença nas vilas, facilmente a culpa era canalizada sobre as mulheres que poderiam ter receitado suas ervas medicinais cheias de alguma espécie de magia maligna. Por fim, contudo não menos importante, as parteiras, cuja função até o século XVIII era confiada estritamente às mulheres, foram processadas, e executadas por bruxaria. Talvez a parteira tenha sido o perfil dos suspeitos, que mais fosse relacionado com a bruxaria devido à sua função de trazer ao mundo os recém-nascidos em uma época, que segundo Levack, um quinto das crianças morria no parto ou pouco depois. As acusações mais cruéis a estas mulheres eram a de terem oferecido os recém-nascidos ao Diabo após tê-los assassinados, como no caso de Walpurga Hausmännin [...] acusada em 1587 de ter causado a morte de 40 crianças [...]. (1988, p.132)

2.4 - Espírito de angústia num mundo de perseguição às Bruxas: crença e pré-condições

É muito comum estudiosos atribuírem à caça às bruxas como uma campanha única de seu início ao fim, visto que se tratou de vítimas com parecidas características, métodos inquisitoriais semelhantes e razões que legitimaram as perseguições muito convergentes. No entanto, esse caminho mostra-se perigoso ao analisar que são três séculos (XV, XVI, XVII) de caça que mudam de intensidade e que são muitas regiões

58 incididas, cada uma com suas particularidades. Mesmo com as diversidades, podemos tentar discernir quais foram as precondições que propiciaram o fenômeno persecutório. A análise e a tentativa de explicitar as possíveis precondições tem como base a crença nas bruxas, não apenas pela população em geral, mas também, por parte das autoridades; as reformulações nas leis e jurisdição para legitimar a perseguição; e, por fim, no estado de espírito da comunidade como um todo. (1988, p.161) O estado de espírito desta população de início da modernidade pode ser entendido por sua mentalidade angustiante. Acreditava-se que a ação do diabo e da bruxa na terra era algo permitido por Deus, uma reminiscência da permissão Divina que pregava Santo Agostino no século IV e V. Sendo assim, a crença na prática da bruxaria [deveria] ser igualmente um elemento essencial a fé (LIEBEL, 2004, p.56) sendo considerado herege aquele que não acreditasse. Além das doutrinas católicas, a crença nas bruxas também ganhou força com a invenção da imprensa no século XV. A literatura diabólica, os tratados e folhetins sobre bruxaria e poder do diabo quando disseminados, impulsionaram ainda mais as perseguições, aumentando o medo da população, não só entre as camadas inferiores, mas também na elite. Isso significava que as teorias demonológicas (1988, p.161) que já haviam sido elaboradas por alguns estudiosos em seus tratados, principalmente sobre pacto com o Diabo, estavam bem disseminadas entre as autoridades. Desses tratados destaca-se além do Malleus, o Formicarius, escrito por volta de 1445 por Johannes Nider, um Prior Dominicano da Basiléia. Era o primeiro tratado a apresentar a mulher como uma feiticeira cruel que mata crianças e oferecem-nas ao Diabo. Liebel explica que existia, na obra de Nider, certa padronização sobre os depoimentos que envolviam as vítimas perseguidas, como a relação selada por pacto com o demônio, orgias, morte de crianças e pragas lançadas. Por outro lado, nas camadas populares, a transmissão das ―notícias‖ sobre os malefícios lançados por bruxas era feita de forma oral, junto aos alardes feitos pelos padres pregadores que, justificavam que providências contra essa malignidade deviam ser tomadas. Afinal eram filhos prematuros morrendo, plantações degradadas, doenças ligidas sem explicação natural, tudo isso canalizado na culpa da bruxa em conluio com o Diabo. Com a elite e a população crente no perigo da bruxa solta, isso leva-nos à segunda precondição: a legitimação da caça pela lei e apoio judicial, e logo dos tribunais. Fica clara a influência da criação de leis, quando analisamos exemplos, como

59 no caso da Inglaterra, em que os processos apenas começaram a acontecer depois da promulgação do estatuto de Bruxaria em 1542. (1988, p.162) Era a lei dando forma a angústia, e tentando extinguir o temor da sociedade e da elite ameaçada. Ao voltar algumas décadas do caso inglês, encontra-se outro exemplo de legitimação da caça: a Bula Papal do Papa Inocêncio VIII - Summus desiderantes. (1988, p.163) Tal bula, emitida em 1484, permitiu aos Inquisidores Kramer e Sprenger, criadores do Malleus Maleficarum, a autorização para perseguir as Bruxas na Alemanha no fim do século XV. Para prosseguir na efetivação legítima da caça, também se acreditou ser necessária a mutação de alguns procedimentos, como a extinção da lei Lex Talionis (1988, p.163), o qual prescrevia a punição do acusador caso o acusado se provasse inocente. Afinal, se o objetivo era aumentar o número de denúncias para que ocorresse uma caça de grande porte, punir os denunciadores apenas dificultaria a progressão da caça. Por fim, no que tange às precondições, a ansiedade generalizada e gerada pelo clima do medo das bruxas, ou seja, o estado de espírito coletivo foi uma grande impulsão à caça. As discussões públicas das manifestações de bruxaria, seja ela por meio dos fracassos nas colheitas, pelas iminências de guerras, pelas rupturas religiosas ou mesmo pelos relatos de contatos demoníacos, alicerçaram o clima indigesto do início da modernidade. Neste contexto, os discursos eclesiásticos foram de tal forma tão influentes na propagação da histeria, que alguns autores sugeriram no século XVII a culpa do surto aos próprios pregadores, como veremos o comentário do Inquisidor Salazar, criticando a perseguição Basca em 1610: O fato começou depois que frei Domingo de Sardo lá chegou para pregar tais coisas. [...] não existiam bruxas nem pessoas enfeitiçadas antes que se falasse e escrevesse a respeito. (1988, p.164) A influência dos doutores e escritores da igreja realmente fez a diferença para as angústias do povo e da elite, de forma que se faz necessária neste capítulo um momento particular, àquele que foi talvez, o maior pronunciamento de pessimismo ao feminino jamais escrito anteriormente, o Malleus Maleficarum. Não apenas porque conta com as ideias dos dois inquisidores, mas principalmente, por estes serem influenciados pelas ideias de outros doutores, e é este o foco do próximo subcapítulo.

60 2. 5 - A misoginia no discurso do Malleus Maleficarum

Quase meio século antes da publicação do Malleus, algumas literaturas misóginas que tratavam a bruxaria já haviam sido disseminadas nos centros laicos. Além do já citado Formicarius, o poema: Defensor da causa das mulheres (MUCHEMBLED, 2001, p. 54) cujo título exala sua falácia, de Martin Le Franc (secretário do ducado de Savóia) escrito entre 1440 e 1442 inaugurava a entrada deste tema na língua francesa. Introduzia também, as primeiras ilustrações francesas de bruxas voando em suas vassouras, representando os Sabá 6, como cita Muchembled:

Sobre um bastonete vão Para a sinagoga puta Duas mil velhas e uma fouch [bando]. (2001, p.55)

O texto não exalta a mulher como o título falacioso parece supor, mas se refere a um único personagem que defende a causa das mulheres. Enfim, tal texto, assim como outros do tipo, apenas coloca no papel a repressão que circulava na mentalidade dos autores misóginos, tornando-se um tipo de patrocínio à proliferação das crenças nas bruxas e em sua ameaça iminente, quando soltas no mundo. Na mesma linha de transportar um pensamento misógino para o papel, seguiram Henry Kramer e James Sprenger ao escreverem o Malleus Maleficarum. Diante de algumas regiões da Alemanha, que eram descrentes na força ativa do demônio sobre a terra, os inquisidores conseguiram permissão do Papa Inocêncio VIII por meio da Bula Summis desiderantes affectibus (1484) para agirem em suas perseguições em tais regiões, levando consigo, a obrigatoriedade prescrita em seu manual, de crer na existência do demônio e nas bruxas, tal como se acreditava em Deus. Kramer e Sprenger eram dominicanos e professores de Teologia, o primeiro era prior de Selestat e se concentrou, principalmente, na área norte alemã. O segundo estudou e lecionou em Colônia, também na Alemanha, agindo como inquisidor nas proximidades do rio Reno. Ambos tinham suas bases montadas na linha tradicional de

6

A análise dos sabás e dos seus respectivos símbolos geralmente representados nas pinturas modernas será feita no 3º capítulo deste trabalho.

61 pessimismo feminino, que confirma ser a mulher, por herança de Eva, mais propícia às tentações do demônio. A obra também conhecida como O martelo das feiticeiras é dividida em três partes e, em todas elas, explicita-se propositalmente a sensibilidade da mulher ao mal. Das três condições necessárias para a bruxaria: o Diabo, a bruxa e a permissão de Deus todo-poderoso (2014, p.47) é o título da primeira parte, cuja proposta é mostrar ao leitor o quão poderoso pode ser o Diabo, se assim Deus permitir, e como o maligno é vinculado à bruxaria. Na segunda parte: Dos Métodos pelos quais se Infligem os Malefícios e de que Modo Podem ser Curados, (2014, p.195) explicitam-se as maneiras com as quais são feitas as ―maldades‖, tais como o pacto e as artimanhas dos malefícios. A terceira e última parte da obra é intitulada: Que trata das Medidas Judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a Serem Tomadas Contra as Bruxas e Também Contra Todos os Hereges, (2014, p.375) que demonstra de quais formas é correto purgar às bruxas, tal como a especificidade de cada castigo. A primeira questão debatida no Malleus já sugeria a quem principalmente se direcionava sua leitura: às resistências locais na crença das bruxas. O título desta questão assim segue: Se crer em bruxas é tão essencial à fé católica que sustentar obstinadamente opinião contrária há de ter vivo sabor de heresia. (2014, p.49) Num contexto inquisitorial, duvidar desta crença era um tanto quanto arriscado, por isso a abertura da obra logo com esta questão. Os autores se apoiam na Bíblia para argumentar sobre a condenação das chamadas megeras. Assim prescreve o Livro do Levítico: Aquele que se prostituir praticando a adivinhação, eu me voltarei contra ele e o cortarei do meio do seu povo, e quando um homem ou uma mulher se prestarem à adivinhação, serão mortos; serão apedrejados, o sangue deles recai sobre eles. (Levítico 20, 6-27) É importante atentarse, que as práticas mágicas, como a adivinhação descrita no excerto, também foram demonizadas a partir do século XII, quando os doutores da Igreja se propuseram a verificar a fundo o tema, embasando-se sobre o que escreveu Santo Agostinho em relação às práticas mágicas e sua relação com o maligno. Fica claro que um dos objetivos do Malleus, é definir os poderes do Diabo em relação às bruxas e, alertar a quem tente duvidar da existência de ambos. Em uma de suas passagens, ainda na primeira parte da obra, os autores escrevem que os demônios têm poderes sobre o corpo e sobre a mente dos homens, quando Deus lhes permite exercê-lo [...]. (2014, p.51) Para fundamentar tal afirmação, o Malleus cita como suas

62 fontes de apoio: a Bíblia, as obras Summa contra Gentiles e Secunda Secundae de São Tomás de Aquino e De ciuitate Dei e De Doctrina Christiana de Santo Agostinho. A afirmação da imagem da mulher como um ser aterrador foi calcada nas influências clássicas, típicas da mentalidade renascentista fluída na Europa Moderna, e disseminada no coletivo. A tradição aristotélica de hierarquia entre os sexos, muito impregnada nas universidades modernas, juntamente com as ideias de Agostinho e Aquino construíram estereótipos que justificavam os males recaídos nos homens da época, sendo então justificada também, a perseguição a mulher herética. O Martelo das feiticeiras elenca os motivos pelos quais as mulheres tendiam a ter maior associação com o obscuro, dentre eles à tendência a supersticiosidade, e a facilidade em se impressionar devido sua credulidade. Segundo os autores, por meio dessas características é que o Diabo encontrava mais facilidade para tentá-las. Ao buscar a Bíblia, os misóginos citam o Livro do Eclesiástico 19, 4: Aquele que é crédulo demais tem um coração leviano e sofrerá prejuízo. (2014, p.115) E ainda na mesma passagem: É melhor viver com um leão ou um dragão que morar com uma mulher maldosa. (2014, p.115) São poucos os momentos, em que a obra exalta modelos da mulher contrária a essa maldade, quando o faz, os adjetivos de virgem e Santa, são os mais reverenciados. A relação da primeira mulher, Eva, com o primeiro pecado é recorrente na obra, pois procura demonstrar que o mal é natural a mulher, tornando-a propícia à bruxaria: Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. (2014, p.115) A mulher é representada no Malleus como uma ameaça específica aos homens, e é pelo deleite da carne que os tenta. Novamente retomando Eva para amparar o feitio de tentadora, os autores assim escrevem que embora o Diabo haja tentado a Eva com o pecado, foi Eva quem seduziu Adão [com efeito,] a mulher, embora seja bela aos nossos olhos, deprava ao nosso tato e é fatal ao nosso convívio. (2014, p.115) Silvia Liebel, em sua análise sobre o Malleus Maleficarum escreve sobre as referências que o Malleus faz às mulheres que atingiram um ápice de autoridade sobre o marido ou sobre um cargo político e provocaram tragédias: como nos casos de Cleópatra, Helena, Jezebel e Atália. Concluindo, o pensamento pessimista e estereotipado relacionados à figura da mulher nesta obra, não se limitou aos manuais, mas expandiu-se em diversos campos, como, por exemplo, as pinturas, talvez não com o mesmo teor de crueldade que o

63 Malleus as expõe, mas em um grau diferente. A representação que foi construída sobre estas mulheres nas pinceladas renascentistas mostram alguns símbolos da bruxaria enquanto processo histórico. Na Alemanha Moderna do início do século XVI, o Artista Hans Baldüng Grien, destacou-se pela temática macabra de suas obras, que dentre outras tantas, revela as bruxas, os sabás e seus respectivos símbolos, numa conjuntura que reflete os dois capítulos anteriores deste trabalho.

64 3. ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DAS BRUXAS NAS OBRAS DE HANS BALDUNG GRIEN

3.1 Prelúdio O renascimento ―adentrou‖ tardiamente na Alemanha: final do século XV e início do XVI. A vida burguesa florescia na Alemanha e junto dela, como escreve Nicolau Sevcenko, as bases para o desabrochar de uma nova cultura. (SEVCENKO, 1988, p. 68) Uma cultura que não mais limitada aos centros cortesãos, mas capaz de desenvolver inúmeras escolas e tendências artísticas (1988, p.68) locais. No que tange à arte, a particularidade alemã fica por conta da utilização de metais e madeiras para a inserção de gravuras, neste meio, revelou-se artistas como Martin Schongauer (1445-1491) e mais tarde Albrecht Dürer (1471-1528). Este último, segundo Sevcenko, transmitiu pelas suas obras uma extraordinária sensação ambivalente de realismo e fantasia, de naturalismo e magia. (1988, p.69) Como veremos em seguida, um de seus pupilos herdara tais características do mestre. Dos artistas ao contexto histórico: a Alemanha estava envolvida na reforma religiosa no século XVI. Tais foram as tensões deste campo que a repressão à bruxaria sofreu uma forte intensificação, ora, como vimos na tabela 1 do segundo capítulo, o sudoeste alemão foi a região que mais obteve vítimas das fogueiras da caça às bruxas. Portanto, Existia uma propícia situação de conflitos religiosos que fizeram emergir, ao mesmo tempo, a arte humanística do renascimento relacionada às ideias religiosas de perseguição às bruxas:

Satã parecia estar solto. Mas, na verdade, eram os homens que tentavam impor sua lei ou seu tipo de fé neste corredor asperamente disputado, onde a imprensa havia nascido, acentuando os antagonismos intelectuais, à espera de Lutero. Pois esta era igualmente a rota de circulação das ideias humanistas vindas da Itália, das novidades artísticas e culturais. O confronto entre as formas de expressão e os tipos de pensamento, entre o antigo e o novo, aí se exacerbava. (2004, p.62)

Neste contexto e, no que tange ao tema proposto a este trabalho, vários foram os artistas que pintaram em seus quadros bruxas, sabás ou algo do gênero. A análise a

65 seguir retrata as obras de um destes artistas: Hans Baldung Grien (1485-1545), pupilo de Dürer. Baldüng Grien7 foi um artista alemão, discípulo de Dürer enquanto residia em Nuremberg. Provavelmente nascido em Schwäbisch sudoeste alemão, vindo de uma família de intelectuais, começou sua carreira supostamente entre 1499-1500 no alto Reno. ficou popularmente conhecido por suas expressões impactantes retratando temas religiosos como Virgin and Child (1539-40) ou The Birth of Jesus (1520) e macabros, como as ilustrações sabáticas que analisaremos a adiante. Em 1503, ao se mudar para Nuremberg tornou-se membro da oficina de Dürer. Possivelmente recebera influências de seu mestre despontando o uso dos mesmos manejos e, ao que se percebe, herdou também o gosto pelos temas ligados ao sagrado e profano. O artista, contudo, não se limitou a uma técnica, utilizou a xilogravura, a pintura em guache e óleo sobre madeira. Decidiu-se analisar este artista por uma característica que adotou em algumas de suas pinturas sobre as bruxas: a macabridade em que ele às expõe. Em resumo, as bruxas eram ligadas principalmente ao pecado do ato carnal, portanto, a forma que Baldung utilizou para fazer transcender este pecado aos seus quadros foram as cenas de orgias e relações com o Diabo nos sabás. Esta análise visa alcançar os seguintes objetivos: pesquisar sobre a representação da mulher nas ilustrações renascentistas contemporâneas a Baldung; analisar o conceito de contrariedade e inversão ilustradas nestas obras; entender a relevância da exposição da nudez e do sexo nas pinturas das Bruxas de Baldung; meditar sobre tema dos sabás e os símbolos deste, inseridos nas imagens. Portanto, diferenciando do restante da monografia, este momento reflete um diálogo entre imagem e História por meio de seus símbolos pintados pelo artista. Destarte, deve-se ter salientado que o documento deve ser visto como uma representação e, para tanto, é preciso refletir sobre as intencionalidades de um autor sobre a imagem. Sobre isso Napolitano escreve que imagens são:

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As informações sobre o artista Hans Baldung Grien são escassas, as que se seguiram no texto foram

obtidas pela seguinte referência: PIOCH, Nicolas. Hans baldung Grien. Publicado em: 14 Outubro de 2002. Disponível em: https://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/baldung/. Acesso: 30/11/12 às 05h45min.

66 [...] portadoras de uma tensão entre a evidência e a representação. Em outras palavras, sem deixar de ser representação construída socialmente por um ator, por um grupo social ou por uma instituição qualquer, a fonte é uma evidência de um processo ou de um evento ocorrido, cujo estabelecimento do dado bruto é apenas o começo de um processo de interpretação com muitas variáveis. (NAPOLITANO, 2005, P. 240)

3.2 A representação da mulher nas imagens do século XVI

Ilustrações como as bruxas decrépitas de Baldung realizando algum malefício ou praticando orgias num Sabá foi talvez o ápice da representação grotesca da mulher, porém para além da representação da bruxaria, o feminino já havia sido retratado em obras que ora valorizavam-no ora faziam o contrário. Delumeau escreve sobre as ilustrações do século XVI na França, que de certa forma favorecem e também desfavorecem a mulher. Tal caso de valorização, algumas das vezes, ao tratar da mulher dona-de-casa que era ao mesmo tempo como companheira afetuosa do marido e como mãe dos herdeiros deste. (1989, p.344) Imagens como de Eva amamentando e Adão cuidando da terra podem parecer certa equivalência de posições e destacam a ajuda que as mulheres podem proporcionar aos homens nas tarefas agrícolas. (1989, p.344-345) Porém ainda assim, mesmo em ilustrações em que mulher aparece colhendo, cozinhando, fiando, tecendo, ela está sendo representada em um papel menor e na sombra do homem. (1989, p.345) O século das imagens, século XVI, de Hans Baldung Grien, passava por uma mutação artística: as imagens medievais estavam sendo substituídas por ilustrações calcadas numa volta às influências antigas (característica do Renascentismo). O feminino enquanto forma era mais plástica que a silhueta masculina, [foi] utilizada preferencialmente para personificar abstrações: a Castidade, a Verdade, a Caridade, a Natureza, a Majestade, a Religião, a Sabedoria, a Força. (1989, p.345) Deve-se enxergar essa iconografia feminina voltada às suas qualidades positivas como apenas parciais. Como exemplifica Delumeau, as representações de uma mulher polarizada (boa ou má) e, agora influenciada pela arte antiga clássica: a mulher boa, como Maria e Minerva, simbolizava uma anti-Eva (1989, p.345). Ou seja, até a bondade de uma mulher se interligava com o mal, pois esta era exemplo oposto da malignidade comum às mulheres.

67 No tocante às inspirações clássicas, Pandora e Eva são os principais exemplos, ora, com suas curiosidades promoveram uma cadeia de infelicidades sobre o mundo: a primeira com a caixa que continha os males do mundo e a segunda por desafiar a ordem divina ao comer maçã do pecado. Em suma, Delumeau afirma que, portanto, a mulher ilustrada era uma armadilha, ao mesmo tempo em que ilustrava a paz poderia desviar o homem de seu caminho. Delumeau analisa que no século XVI, quando os artistas tinham a intenção de representar algumas, anteriormente já ditas, nobres abstrações (1989, p.345), as mulheres eram ilustradas despidas ou então vestidas apenas de um véu flutuante, portanto existe um elemento do fantasioso, fora da realidade do período. Porém, ao se tratar de uma ilustração maléfica dessas mulheres, estas eram representadas com traje da época e estão inseridas no cenário cotidiano. (1989, p.345) Desta forma a mulher com virtudes é representada num plano irreal, em oposto à mulher nefasta que está no cotidiano diretamente. Uma observação deve ser feita neste momento. Em relação à imagem 2, pode-se encontrar esta análise de Delumeau sobre a representação da mulher nefasta com o cotidiano do século XVI: A bruxa a direita da representação, segura em uma de suas mãos uma colher enquanto abre um jarro. A interligação dos elementos da reflexão então assim segue: a colher remete à vida doméstica, e consequentemente, à cozinha espaço que era ocupado predominantemente pela mulher. As ilustrações do século XVI destacam frequentemente também o erotismo como um furor feminino. (1989, p.346) Delumeau menciona uma gravura de 1557 em que um grupo de mulheres zomba de seus maridos por suas insuficiências viris. Essa ilustração é interessante para destacar o receio que os homens sentiam diante do tema virilidade e de qual forma eles acreditavam que as mulheres em conjunto poderiam ser perigosas para sua integridade moral. Se no século XIII as ordens mendicantes eram veículo do alerta apocalíptico e da presença do mal na terra e, no século XV, a imprensa divulgou ainda mais tais tensões, o desenvolvimento da arte renascentista pareceu colocar tais mensagens a um olhar mais intenso, como veremos noutro subcapítulo. A mulher é insistentemente acusada a ser ―agente de satã‖ e, para a maioria dos homens da Renascença, a mulher é no mínimo suspeita e no mais das vezes perigosa. (1989, p.349) Em uma sociedade cujos pensamentos se mostravam cada vez mais certos de que o fim do mundo estava próximo, somado à disseminação de imagens de bruxas e

68 demônios, fez-se com que a fantasia e a realidade viessem a ser confundidas no imaginário popular.

3.3 Análises dos símbolos das Bruxas e sabás a partir das Obras de Baldung 3.3.1 Die Hexen8 (1510)

Figura1: Die Hexen (1510). Por Hans Baldung Grien. Chiaroscuro woodcut, Britsh Museum, London.

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Imagem disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/11/Hans_Baldung_Grien_-_Die_Hexen.jpg Acesso em: 15/10/2015 – 14:02

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Baldüng utilizou técnicas diferentes em suas obras, duas delas, são aqui analisadas: A Xilogravura e o Guache. Em 1510, o Artista utiliza a Xilogravura para ilustrar Die Hexen, – figura 1 - sua primeira obra com a temática dos sabás das Bruxas e, num segundo momento, em 1514, compõe uma sequência de obras sobre as bruxas utilizando o Guache. Para contextualizarmos o uso de tais métodos, num período marcante para a História da Arte, recorremos aqui à análise de Peter Burke e Asa Briggs na obra: Uma História social da Mídia: de Gutemberg à internet. Burke e Briggs examinam o uso das Xilogravuras no período correspondente ao movimento Renascentista e demonstram que, apesar do primeiro exemplar desta técnica ter aparecido no Japão (764 a.C) ela se desenvolveu com maior influência para o Ocidente no Renascentismo do final do século XIV: O meio utilizado era um bloco de madeira ou uma placa de cobre ou aço, com a imagem cinzelada na placa (gravada) ou feita por corrosão com ácido (no caso de água-forte). (BURKE, 2006, p.44) A técnica reaparece inspirada na confecção de tecidos, e tinha como principal temática a religião, visto que no século abordado a Igreja Católica era extremamente influente. A forma com que se gravavam as imagens em madeira eram um meio econômico na substituição do desenho manual. Deve-se atentar ao fato que, o período analisado concerne nos antecedentes muito próximos à revolução da imprensa (1455) de Johannes Gutenberg. Neste contexto, a mudança na comunicação visual, que a partir de então possibilitava a disseminação de imagens em maiores proporções, alcançou diversos outros artistas do Renascimento, como pode ser visto nas Xilogravuras de Sandro Boticceli em suas ilustrações da Divina Comédia, além de Leonardo Da Vinci, Michelangelo e Rafael. As imagens revolucionadas pela imprensa se tornam um divisor de águas no alcance ao público, de forma que, a maioria da população europeia deste período era analfabeta e os tratados e obras escritas eram acessíveis, quase que estritamente aos nobres e aos clérigos. Portanto, a difusão das imagens pela imprensa fez alcançar até esse público da camada social inferior, que não tinham condições de ler, mas podiam muito bem sentir o impacto das imagens. A Reforma Protestante também se aproveitou da revolução na Imprensa e, notam-se muitas obras de Xilogravura que patrocinavam seus ideais. O próprio Hans Baldung Grien em 1520 produziu uma imagem Xilogravada de Martinho Lutero.

70 Destaque para o caráter divino na obra: o halo reluzente na cabeça do sujeito, demonstrando sua propaganda ao reformismo.

Figura 2 - Hans Baldung Grien, xilogravura de Martinho Lutero, 1520. 9

Contudo, Baldüng, dez anos antes da ilustração de Lutero havia produzido seu primeiro Sabá em Xilogravura (figura 1). Esta produção – Sabá - demonstra o mito que permeava sua contemporaneidade: os encontros noturnos que as bruxas promoviam para realizar seus rituais em cerimônias contrastantes com as missas Católicas. A cena ilustrada assim segue: duas mulheres de fisionomia grotesca sentadas e uma outra no centro de braços erguidos parecendo segurar um prato. Uma quarta mulher voa montada ao contrário10 em um bode. O ambiente é uma floresta, pelo que demonstra o fundo com árvores e com o céu aberto. No chão, em frente às mulheres pode se ver ossadas e um gato de costas. As mulheres parecem estar fazendo algum tipo de magia que sai do centro do grupo das três e sobe ao céu. Mulheres decrépitas sem roupas produzindo algo misterioso no meio da floresta era uma representação frequentemente feita pelos pintores da época para ilustrar os Sabás das bruxas. Mas como Baldung recebeu essas influências, ou melhor, de onde ele tirou esses elementos aqui já descritos para produzir suas obras? Para responder a essa pergunta é necessário adentrar no universo dos sabás.

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Imagem disponível em: http://pt.wahooart.com/Art.nsf/O/8BWR8V/$File/Hans-Baldung-Portrait-ofMartin-Luther-S.JPG. Acesso em: 30/11/2015 – 07:58. 10 O elemento de contrariedade é muito importante e será refletido no capítulo 3.4 deste trabalho.

71 Para tentar articular a obra de Hans Baldung Grien com o que elas representaram no seu tempo, é necessário que uma análise antecedente a sua produção seja feita. Isso significa que a tentativa é de novamente trabalharmos com a conexão do recorte ao processo, ou seja, das ilustrações à historicidade – simbólica até - carregada nelas. Portanto, achou-se necessário ter por obra norteadora a História Noturna: decifrando o Sabá de Carlo Ginzburg. A escolha tem uma explicação simples: Ginzburg consegue construir as representações do Sabá entendidas como um processo, ou seja, desde quando supostamente seja seu início até as repercussões e mutações que envolveram seu auge na perseguição inquisitorial. Destarte, outras obras destacadas pelo historiador serão citadas, além

de

bibliografias que se conectam com a representação

estética da bruxaria. O tema do Sabá, ganha mais força, segundo Ginzburg, a partir do século XIV. Ginzburg tenta traçar o início dos encontros diabólicos das bruxas, ou ainda, a partir de qual momento acreditava-se que as bruxas teriam deixado de agir individualmente e começado a se encontrar nos sabás. Analisando sobre os processos que o Juiz de Berna Peter von Greyerz (GINZBURG, 1991 p.76) teria prescrito, Ginzburg percebe uma atenção mais séria à estas seitas aproximadamente em 1375. Junto a isso, o Historiador analisou que no século XVI um inquisidor chamado Bernardo Rategno teria concluído em seu Tractatus de strigibus que a seita teria começado 150 anos antes de sua contemporaneidade – o que remete a meados do século XIV. Cruzando tais fontes Ginzburg conclui: o início das seitas denominadas mais tarde de Sabás, teria início pouco depois de meados do século XIV. (1991, p.77) Para além das datas, Ginzburg também tenta traçar a geografia dos Sabás. Para descobrir a região da possível origem, o Historiador reflete que Greyerz relatou das bruxas na região de Berna. Em seguida, ao analisar sua segunda fonte, Bernardo Rategno, viu-se que este teria analisado processos inquisitoriais na cidade de Como. Sendo assim, cruzando novamente suas fontes, a conclusão seria de que, foi na região dos Alpes Ocidentais que as denúncias de seitas das Bruxas começaram a surgir. Na entrada do século XV, o estereótipo do Sabá já tinha se alastrado por toda a região dos Alpes e cada vez a ameaça se potencializara. Como escreve Ginzburg a imagem da seita tornara-se mais específica: a apostasia da fé [...] fora sendo enriquecida com novos e macabros detalhes; (1991, p.80) a ameaça de que algumas pessoas compactuavam com o diabo tinha ganhado força, além do temor ao Diabo, que havia ganhado uma forma cada vez mais apavorante.

72 Se formos fazer um breve resumo do imaginário daquele início de século em relação às seitas, podemos dizer, com embasamento em Giznburg, que as palavraschave do que acontecia nestes sabás poderiam ser: orgia, profanação, infanticídio e adoração ao Diabo. Carlo Ginzburg nesta obra nos lembra de que por volta de 1435 e 1437 o Teólogo Dominicano e também alemão Johannes Nider escreveu o tratado demonológico Formicarus que seria muito influente para as demais descrições de sabás. Ginzburg resume o ideário da obra de Nider: É uma obra em forma de diálogo [uma discussão que trata das] virtudes e os vícios dos homens e os costumes das formigas [...] (1991, p.75) sendo que uma de suas partes da obra é dedicada à feitiçaria e à magia.

A devoradora Nider, sobre as seitas dos feiticeiros e bruxas escreve com mediação do Juiz Greyerz que, na região de Berna, existiam pessoas que se encontravam para devorar crianças e que na Região de Lausanne alguns desses feiticeiros haviam cozinhado e devorado seus próprios filhos. (1991, p.76) O mesmo Peter Von Greyerz teria mandado para a fogueira pessoas acusadas de devorar treze crianças. Segundo o juiz, estes que foram acusados e executados, teriam pegado as crianças colocando-as para cozinhar numa panela, até que a carne [fosse dissolvida], destacando-se dos ossos. (1991, p.76)

Detalhe da figura 1 - a Bruxa e o Prato

73 O prato que a bruxa segura na imagem 1, o qual segue recortada acima, expõe o que supostamente seja pedaços de animais, contudo, também nos serve como referência justamente à esses supostos relatos da mutilação da carne humana e por seguinte, servindo de alimento às bruxas. Essa relação, da representação do cozimento de membros de corpo tem uma implicação com dois vieses: o primeiro da mulher relacionada à sua tarefa de cozer, e o segundo a influência das representações dos grupos antropofágicos do novo mundo Americano, recém-descoberto. Este último viés, requer uma atenção neste momento, pois a influência desta antropofagia ameríndia esteve exposta em quase todo imaginário de representação às bruxas a partir do século XVI. . Sobre este estudo em que relaciona as representações das índias antropofágicas e as Bruxas europeias, utilizo da leitura de IMAGENS DA COLONIZAÇÃO: A representação do Índio de Caminha a Vieira de Ronald Raminelli. Jean de Lery, um missionário e escritor Francês que viera para a França Antártica (colônia Francesa no Rio de Janeiro) na metade do século XVI, perpetuou em suas escrituras algumas visões antropofágicas que teria testemunhado. O que parece ter chamado a atenção do francês foram as mulheres e, mais especificamente as velhas. Tal percepção advém de sua narração detalhista sobre estas ―senhoras‖, dizendo que, o furor de sua gula, ao comer a carne servida, mostra-se diferenciada aos demais índios, parecendo insaciável. Outra testemunha do Antropofagismo Ameríndio foi o Padre João de Azpilcueta que também tinha chegado à colônia nas proximidades do ano de 1550. Raminelli escreveu que o Padre havia constatado os desvios “demoníacos” das índias idosas (RAMINELLI, 1996, p. 100), após ver o cozimento de membros humanos. Segundo Raminelli, Azpilcueta Vê atônito seis ou sete velhas dançando ao redor da panela, apesar de não suportarem o peso de seus corpos. (1996, p. 100) Estes Europeus que testemunharam tal visão ligavam tais práticas ao demoníaco. Visto que estamos falando de meados do século XVI, podemos refletir sobre a mentalidade destes homens que foram para o novo mundo, levando consigo a bagagem influente da caça às bruxas que ocorria rigorosamente na Europa. A Influência do Malleus é um exemplo desta bagagem, ora, se foi escrito proximamente ao descobrimento da América. O discurso antifeminista desta obra perpetuaria todo este século XVI, século que foram produzidas tais representações das bruxas de Baldüng e também das índias antropofágicas de Jean de Lery e Theodor de Bry – outro ilustrador e escritor influente.

74 As bruxas de Hans Baldüng Grien revelam muito semelhanças com as índias antropófagas pintadas mais tarde pelos artistas como Thedor de Bry: os detalhes característicos do corpo das velhas, as ossadas e a floresta além de expor um pessimismo à mulher. Baldüng Grien figura por intermédio de bruacas a misoginia do seu tempo, concebendo a humanidade, e particularmente, as mulheres, como seres guiados por vícios e fraquezas. (1996, p. 100) Neste contexto, fica bem claro, o filtro misógino com que passavam as representações destes índios e sua relação com as imagens de sabás e seus símbolos em comum. Tal conivência é explicita por Raminelli neste excerto de sua obra:

[...] a semelhança entre as bruxas de Baldung Grien e as índias antropófagas de Theodor de Bry, por intermédio das formas visuais das bruxas e do estereótipo das feiticeiras buscaram traduzir a estranheza contida nos relatos de viajantes e cronistas. Ainda que o artista não tivesse concebido as índias canibais como bruxas, recorreu à sua forma física, amplamente difusa na Europa, para figurar as ameríndias. (1996, p. 104)

Portanto, nas representações estereotipadas dos Sabás das bruxas de Baldüng (que de certa maneira teve um diálogo com o novo mundo), e antes dele nas discrições de Nider, existiram alguns elementos em comum neste imaginário sabático, são eles segundo Ginzburg: a reverência ao demônio, à abjuração de Cristo e da fé, a profanação da cruz, o unguento mágico, as crianças devoradas. (1991, p.77) Como já dito, essas descrições de Nider eram o começo de uma série de representações desses Sabás que se fortaleceria ainda mais. Unguentos mágicos Destes elementos citados, os Unguentos (poções que se misturavam várias espécies de ervas) tem uma caracterização importante na representação das bruxas, inclusive na Xilogravura de Baldüng, que pelo menos em três cenas aparecem às sujeitas segurando alguma espécie de jarro, o que pode ser sugerido como algum reservatório de magia. Tais poções, que eram vistos pela Igreja como algo de teor da magia diabólica foram julgadas, a partir de confissões inquisitoriais, de conter

75 componentes alucinógenos. Com isso, podemos juntar as temáticas dos unguentos mágicos com os voos e a vassoura (ou o cabo).

Detalhes da figura 1: recipientes

Alguns doutos da época, como os próprios juízes, acreditava que as bruxas se drogavam com estes unguentos, oque favorecia uma alucinação de que elas estivessem voando, confissões a este respeito supostamente teriam sido realizadas. As ervas usadas pelas sujeitas, geralmente eram a Beladona (Atropa belladonna) e a Mandrágora (Mandragora officinarum), ambas as plantas que possuem substâncias alucinógenas se ingeridas em demasiadas quantidades. Quanto às vassouras, além de ser uma referência ao mundo privado da vida doméstica, regulada ao feminino, foi também aparelho para o uso das plantas alucinógenas. As substâncias se tomadas por via oral poderiam causar efeitos colaterais, por isso se fossem absorvidas pela pele o efeito seria mais eficaz, com isso, tendo ciência de que, as mucosas da genitália feminina absorviam melhor as substâncias, o cabo da vassoura foi utilizado como ferramenta junto aos unguentos pelas ditas bruxas.

O voo da bruxa Neste contexto, um questionador da magia natural, Giovanni Battista Della Porta (1535-1515) provava por meio de experiências os efeitos dos alucinógenos. Destarte, Della Porta rejeitava a crença de que as bruxas induziam o vôo lambuzando-se com um ungüento, tendo testado isto num notório experimento relatado na primeira edição de seu “Magia naturalis”. (CLARK, 2006, p.316)

76

Detalhe da figura 1: o voo da bruxa

Num tempo em que a cura para enfermidades era feita pelo uso de poções, algumas curandeiras de vilas, por exemplo, muitas vezes foram taxadas de feiticeiras. Um exemplo explicativo assim segue: uma criança fica doente num vilarejo, a mãe levaa para a curandeira que passa alguma espécie de pasta de erva no corpo da criança a fim de curá-la, contudo esta criança morre em poucos dias. Como consequência esta vila, isola a curandeira, acreditando ser ela a responsável pela morte da criança. Era a cultura e mentalidade folclórica do vilarejo fazendo prevalecer preconceitos que alienavam certos sujeitos da sociedade. Um parêntese sobre a feitiçaria folclórica: O Historiador Jeffrey Burton Russel define em sua obra História da bruxaria que, a feitiçaria no que tange ao uso de magias por partes de certos grupos para o mal ou para o bem, é característica da antiguidade e da alta Idade Média. Essa feitiçaria fora difundida por vários cantos da Europa e, mais especificamente na setentrional e no segundo milênio nos Alpes Italianos. Mas oque importa-nos aqui é deixar sucinto que antes do pensamento popular das feiticeiras se mesclarem com a mentalidade de perseguição herética promovida pela inquisição, existiam algumas representações que podem ter alguma influência, no sentido de herança até, as representações das bruxas da baixa Idade Média e Modernidade – inclusive nas obras de Baldung. Ginzburg analisa que no Formicarus não houve registros de bruxas voadoras, contudo, noutra fonte - as crônicas de Jüstinger Von Königshofen (1991, p.79) (1348) encontram-se informações interessantes. Sob esta fonte, foram analisados processos na

77 região de Valais, (1991, p.80) passando por Henniviers, Hérens e Sion, em que se obtiveram informações de que alguns bruxos iam à suas reuniões voando sobre bastões e vassouras. (1991, p.79) Tais registros foram obtidos por meio de supostas confissões dos acusados por meio de torturas inquisitoriais. Segundo as crônicas, as fogueiras de Valais arderam mais de cem vidas neste processo.

Bestialidade É comum, até no imaginário atual do Ocidente, lembrarmo-nos de figuras animalescas como o gato e o bode quando nos referimos à representação da Bruxaria. As raízes destes elementos que parecem se conectar foi por muitas vezes alvo de questionamentos. Robert Muchembled dedica um espaço de sua obra Uma História do Diabo para refletir sobre os aspectos dessa bestialidade animalesca em relação ao universo do homem. Muchembled ressalta que no início do novo milênio, a Igreja Católica ainda buscava sua solidificação perante as outras crenças e culturas pré-cristãs que estavam distribuídas pela Europa e que, mesmo após séculos de cargas ideológicas desta instituição Religiosa, guardavam resquícios de herança pagã. Desta forma, a Igreja teve de levar em conta estas formas populares. Contudo, aos poucos, com o progresso econômico, surgimento das cidades e maior penetração do Catolicismo nos meios sociais essa divisa entre os católicos eruditos e a cultura popular foi se estreitando. No século XII uma reflexão que se tornaria um divisor de águas para a ideia da personificação do mal e sua influência terrena começa a ser refletida: os eruditos começam a pensar sobre as fronteiras entre o homem e o animal [...]. (2001, p.41) Até este momento, a divisa entre as forças malignas ―sobrenaturais‖ e o mundo concreto era bem clara, o imaterialismo dos agentes do demônio e até dele próprio consistia a base para não se pensar em um contato entre o homem e o tinhoso. Tal reflexão da tomada material destes agentes malignos define-os como bestiais. (2001, p.41) Nesta linha de pensamento, duas possibilidades se inserem. A primeira sobre a possibilidade de a partir de então, serem possíveis as relações sexuais entre demônios e seres humanos; a segunda, e que mais nos interessa neste momento, de que a fronteira nítida entre homens e animais rompia-se a partir do século XII. (2001, p.41) Muchembled lembra de que a cultura popular antiga forçava certo estreitamento nas fronteiras entre o homem e o animal, como no Poema Metamorfoses de Ovídio (8 d. C) em que homens e Deuses teriam a capacidade de transmutar-se em animais, árvores

78 ou pedras. A princípio, neste século XII tal ideia fora refutada pelos Doutos da Igreja, alegando ser ilusória tal transmutação, contudo, não demoraria muito para a ideia ser discutida e difusa entre os outros doutores, causando inclusive um novo sucesso da obra de Ovídio nos séculos que se seguiram. Com a barreira do animalesco e do homem se diluindo, podem-se perceber quase três séculos depois a consequência: a crença da influência das ações do Diabo no mundo, como sujeitos que se materializam para tentar o homem e ainda, estes seres com fisionomias híbridas, ou seja, percebem-se características humanas e também bestiais nos demônios. Apenas com o teor de exemplificação, segue a imagem ilustrada pelo gravador alemão Martin Schongauer que revela estes traços da personificação da tentação, juntamente com a hibridez dos demônios.11

Figura 3: Martin Schongauer (1450-1491) The Temptation of Saint Antony, 1490. Gravura. Museu Britânico,

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Imagem disponível em: https://s3.amazonaws.com/classconnection/84/flashcards/6355084/png/screen_shot_2015-0228_at_21921_pm-14BD1A11FF332E8105E.png Acesso em: 27/11/2015 – 12:45

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Um parêntese aqui deve ser feito para aproveitarmos a reflexão desta imagem. Além dos simbólicos bestiais, As tentações de santo Antônio traz à tona a ideia do mal que tenta o homem, e quando este último cede, passa a sentir-se culpado. Sobre isso, Delumeau, em sua obra A civilização do renascimento demonstra que o individualismo religioso (DELUMEAU, 1984, p.142) se faz essencial para entender esta passagem do século XIV para o XV. Tal individualização propagava um sentimento de culpabilização individual (1984, p.143) no homem e, que foi intensificada nestes tempos por um clima de desastres naturais e adversidades sociais como a fome e a peste. O homem contemporâneo à este tempo acreditou que tais incidentes fosse um castigo divino de suas falhas terrenas. Assim, Delumeau insere a histeria das bruxas neste contexto:

Tantos flagelos não podiam deixar de ser um castigo de Deus e, como a consciência individual – um facto da civilização – estava a emergir da escuridão, todos se sentiram horrorosamente culpados. Vendo o mal em toda parte e sentindo-se moral e fisicamente ameaçados pelo diabo [...], os cristãos acreditaram mais que nunca nos ‗sabbas‘ de feiticeiras [...] Recearam mais que nunca a punição divina: a morte conduziria a uma eternidade de suplícios. (1984, p.143)

Para finalizarmos esta etapa do processo da animalidade inserida no contexto terreno, acreditou-se ser interessante aqui refletir sobre uma colocação da Historiadora Estadunidense Joyce E. Salisbury. A Historiadora acredita que esta promoção no olhar aos animais na baixa Idade Média, revela ao ser humano um medo da fera interior [...] capaz de apagar suas qualidades de racionalidade e de espiritualidade para só deixar subsistirem os apetites bestiais de concupiscência, de fome e de raiva. (SALISBURY, 1994 apud 2001 p.47) Em suma, tal ideia é a de que o homem de tal época devia precaver-se e controlar-se, sobretudo no que tange às suas paixões, pois as tentações demoníacas poderiam alimentar a ―besta‖ que existe dentro dele. Com a apresentação do processo que culminou na relevância do olhar sobre o animal, e também sobre a transformação da besta, podemos analisar em específico a forma do gato, que aparece não apenas na Xilogravura de 1510, mas em outras coleções de Baldüng em 1514.

80

Gatos e bodes O Cronista alemão Jüstinger de Königshofen registrou em 1348, as passagens sobre as seitas de bruxaria definindo que as sujeitas podiam transformar-se temporariamente em lobos, (GINZBURG, 1991, p.80) essa característica animalesca se enquadra no gato virado de costas ao lado de um das bruxas.

Detalhe da figura 1: o Gato

Com relação aos felinos, Giznburg cita a aparição destes seres em alguns processos persecutórios no século XIV. Martino de Presbitero (1991, p.80) que liderava a seita herética no Val di Lanzo, região norte da Itália, dizia criar um gato preto cujo tamanho assemelhava-se a um carneiro. Outro caso popular de ligação do gato às seitas heréticas – porém não particular à bruxaria – é a da adoração dos Cátaros ao Diabo em forma de um gato em suas celebrações.De fato, a leitura sobre a perseguição aos cátaros e suas seitas (como esta citada de 1022) é muito importante, porém vamos nos conter as datas a partir do século XIV para ainda manter relações com a nossas obras analisadas. O gato da seita de Val di Lanzo no século XIV, e também, descritos nas confissões dos Valdenses no Vale de Piemonte (1991, p.86) são um dos momentos de fusão entre os estereótipos inquisitoriais e cultura folclórica. (1991, p.86) Esta interação, como nomeia Ginzburg, resultará não apenas na imagem de um gato diabólico, sempre presente nos sabás da bruxaria, mas também em vários outros

81 elementos animalescos no que se refere às caracterizações de entidades malignas. Os bodes, que aparecem também na cena de Baldüng, são outro símbolo da reminiscência de culturas pagãs anteriores ao Cristianismo. Vamos buscar entender a construção de sua importância nesta imagem.

Detalhes da figura 1: os bodes

A expansão católica na Europa no primeiro milênio mostrava a aculturação que as outras crenças de alternadas regiões sofriam. Jeffrey B. Russel explica que esse processo, que demonstrou o triunfo Católico, alcançara no século VII a Inglaterra, IX à Alemanha e XII a Escandinávia. Culturas, cultos e crenças dessas regiões eram tidas como pagãs e personificados, a moda Católica, a alguma relação ao mal, ou até mesmo encarnados a personificação do Diabo. Cultos foram vistos como invocações diabólicas, de caráter mágico. Fica clara aqui, a influência da repulsão de santo Agostinho no século V à repulsa a toda e qualquer expressão de magia, sendo consideradas artimanhas do Diabo. Mesma demonização ocorrera com os Deuses do panteão Romano, como Diana – transformada em Hécate, um ser de três cabeças que fora associada à noite e à magia malévola. (2008, p.56) O mesmo ocorreu com os Deuses Celtas e Teutões quando a Igreja expandira sua ideologia ao norte no século XII, como já citado. A figura do bode faz parte de todo esse quadro, pois sua antiga representação associada à libido e a fertilidade – símbolos dos festivais Dionisíacos (Grécia) ou de Baco (Roma) foram ambos demonizados pela Instituição Católica. Inclusive a imagem dos demônios com cifres, cascos e rabos de bode seriam frequentes a partir de então. O Historiador Americano Luther Link em sua obra O Diabo: a Máscara sem Rosto escreve sobre uma passagem de São Jerônimo, Padre contemporâneo a Agostinho de Hipona, revelando um possível primeiro momento da relação entre o bode e o

82 maligno: Jerônimo chamou os sátiros e faunos de símbolos do Diabo, demônios lascivos, e quando Isaías descreveu a Babilônia em ruínas como um lugar onde dançavam “peludos” (sair, em hebraico), Jerônimo interpretou isso como uma referência aos sátiros. (LINK, L. 1998 apud MONTEIRO FILHO, 2012, p.60) Outra interpretação, desta vez do Historiador Carlos Roberto Nogueira completa a anterior: o bode, assim como os demônios, era conhecido por sua devassidão e mau cheiro, e na consciência popular, sua belicosidade e os prejuízos que causava a campos e colheitas aumentavam as suas possibilidades de ligação com o furioso e destrutivo Inimigo. (NOGUEIRA, C. R. F. 2000 apud MONTEIRO FILHO, 2012, p.60) Por fim, podemos concluir, sobre esta bestialidade nas imagens das Bruxas de Baldüng, que tais animais estão propositalmente ligados a toda carga demonizada que carregaram neste processo aqui dissertado.

83 3.3.2 - Three Witches12 e Departing for the Sabbat (1514)

FIGURA 4: Three Witches, 1514 por Hans Baldung Grien. De Graphische Sammlung Albertina, Viena.

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Imagem disponível em : http://tinyways.com/media/img/grien/grien_02.jpg Acesso em 14/11/2015 – 07:17.

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Imagem disponível em : http://uploads8.wikiart.org/images/hans-baldung/departing-for-the-sabbath.jpg Acesso em 14/11/2015 – 09:44

85 Figura 5: Departing for the Sabbat, 1514.

Quatro anos após a produção de sua Xilogravura, que aqui fora analisada, Baldüng cria uma coleção de pinturas novamente sobre a temática da bruxaria e, desta vez, utiliza o Guache, em seu desempenho. Neste trabalho, analisaremos duas destas pinturas do ano de 1514. O Guache foi comumente utilizado no início da modernidade nas pinturas renascentistas, o destaque por sua tinta a base de água destaca a perspicácia do artista em sua espontaneidade nas pinceladas, visto que é mais difícil a correção de algum erro no momento da produção. Albrecht Dürer, mestre de Baldüng, foi possivelmente o primeiro a ficar popular com a técnica Aquarela – que utiliza o guache – na Europa. É bem provável, que a influência de Baldüng em utilizar guaches tenha advindo de seu mestre já que este produzia assim muitas de suas obras, como a Lebre jovem (1502):

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Figura 6 - Lebre Jovem, aquarela e guache em papel de Albrecht Dürer, 1502.

Em suma, nas obras de Baldüng que analisaremos à frente, podemos ter em mente já disposto as influências dessas técnicas artísticas descritas e, além disso,

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Imagem disponível em: www.historiadaartecomvoce.blogspot.com Acesso em 21/11/2015 – 13:21

86 desenvolver, a partir de agora, a análise contextual, do universo que abrigava a mentalidade representacional sobre os sujeitos nas imagens abordadas: a mulher. No entanto, alguns símbolos contidos nestas duas imagens, já foram analisados no capítulo 3.3.2 (voo das bruxas, poções mágicas e os animais em cena) revelando uma continuidade destes símbolos que se identificam às imagens de sabás. .

Inversão Existe na performance de algumas das bruxas ilustradas nestas imagens de Baldung uma mensagem central: a inversão, e ela pode ser vista pelo corpo das sujeitas. Na imagem recortada abaixo, que corresponde à figura 4 deste trabalho, uma das bruxas se prostra de joelhos ao chão com a sua cabeça tornada para o vão de suas pernas, tendo sua visão invertida, de cabeça para baixo. Da mesma forma, a Xilogravura de 1510 Die Hexen já vista, exibe uma das bruxas voando montada inversamente nas costas de um bode.

Recorte da figura 4: A bruxa virada ao contrário

Para o Historiador Stuart Clark, autor de Pensando com Demônios, existe nestas inversões ilustradas, mais do que elementos corporais, mas sugere também uma quebra de conduta, uma contrariedade na conformidade com o processo civilizatório (2006, p.39) e, que em conluio á isso, a desordem na posição dos sujeitos ilustrados retrata a

87 maneira com que as bruxas enxergam o mundo. Em suma, a malignidade no caráter das Bruxas é contrária à ordem social firmada pela Igreja, elas fazem tudo ao inverso, se existe o bem, elas querem o mal. Para ainda mais citar o elemento da desordem, vemos que na Figura 4 a bruxa de joelhos ao olhar por entre suas pernas, lança seu olhar para fora da imagem e atinge, como que num diálogo, o mundo ―de cá‖, seu olhar é inverso, enxerga o caos. Clark nos lembra de um provérbio alemão que dizia que os que adotassem essa pose com certeza avistariam o Diabo. (2006, p.39) Ainda neste contexto continua o autor: Baldung está nos lembrando. As bruxas moldam seu comportamento em nosso mundo, como nós fazemos. Mas como sua inspiração é demoníaca, sua percepção é invertida; elas vêem e fazem tudo de maneira errada. (2006, p.40) Tal noção do olhar que atinge o ―outro lado‖ nos ajuda a entender que a mensagem de Baldung sobre esta bruxa é a de que esta enxerga o mundo de ―cá‖ todo invertido e ainda, o comportamento desta é moldado ao mundo, porém fazendo-o sempre o contrário devido sua inspiração satânica. As noções de inversão que estamos aqui descrevendo, ficam mais claras com os exemplos, e para isso, Clark cita o Italiano Giovanni Lorenzo D‘anania que teria testemunhado um Sabá. D‘anania dizia que ao invés de as bruxas venerarem ao diabo virando seus rostos para ele, viravam-se às costas e curvando sua cabeça não sobre o peito mas para trás, sobre os ombros. (2006, p.42) Pierre de Lancre, um dos Juízes que promoveram a caça às bruxas em Bordeaux no século XVI dissera que uma testemunha havia lhe contado que teria visto pessoas em sabás levantando Hóstias pretas, em oposto às Hóstias brancas das missas católicas. O Teólogo católico francês Jean Boucher em 1624, também se posicionará sobre os atos de inversão das Bruxas escrevendo que:

[elas] fazem o sinal-da-cruz com a mão esquerda e não com a direita, dizem a missa de trás para a frente e freqüentemente nuas, e não vestidas, às vezes no ar com a cabeça para baixo e os pés para cima, e não com os pés no chão; e nesta posição elas erguem a hóstia preta, e não branca, e às vezes triangular, e não redonda; elas beijam o traseiro, e não a boca, fazem banquetes sem pão ou vinho, em desprezo pelas formas sacramentais, e adoram ao diabo , e não Deus; elas dão sermões para exortar os homens a se vingarem, caluniarem, a serem lascivos, a roubarem e assassinarem, a corromperem e arruinarem outros. (BOUCHER, J. 1624 apud 2006, P.42)

88

Devem-se entender os motivos pelos quais se fazia necessário o olhar dos contrários sobre as imagens de Bruxaria. Stuart nos diz que a bruxaria certamente se tornou alvo de um ódio especial, precisamente porque os cristãos poderiam reconhecer muito de si próprios neste tipo particular de alteridade. (BOSSY, 1985 apud 2006, p.59) Assim sendo, a lógica dos contrários se encontra como certa extensão da necessidade dualística no catolicismo de ordem e desordem, bem e mal que foi discorrido no primeiro capítulo deste trabalho.

Velhas Para finalizarmos o Capítulo, a característica última a se refletir aqui é a que concerne não apenas as pinturas em guache de 1514, mas também a maioria das pinturas de Baldüng em relação às bruxas: a representação nua das sujeitas e a presença da velha e da jovem no mesmo espaço. As ideias embutidas nesta análise perpassam pelos polos do Erotismo e da decrepitude, do fascínio a repulsa. Na imagem 4 estão figuradas três mulheres, duas delas jovens e sedutoras julgados os padrões de beleza neoplatônicos da renascença – e uma velha com os peitos e pele flácidas, típicas das ilustrações deste campo. Na Imagem 5, outras três jovens são acompanhadas de uma velha. O Historiador Jean Delumeau traz à luz, a ideia de feiura que pode ser destacada à esta ilustração: freqüentemente a mulher velha e feia é apresentada como a encarnação do vício e a aliada privilegiada de satã. Na época da Renascença ela desperta verdadeiro medo. (1989, p.347) A personalidade do sujeito estava tão interligada com sua aparência, que: Em um tempo em que neoplatonismo em moda ensinava que beleza é igual à bondade, acreditou-se logicamente [...] que decadência física significava malignidade. (1989, p.348) Era o tempo da tomada de alguns valores clássicos e logo, tal pensamento de Platão fazia-se vivo nas representações ilustradas e também, por seguinte, no imaginário social. Jean Bodin em sua obra Demonomania escreve sobre a relação entre a feiura e a bruxaria: Sua feiura é a causa de elas serem bruxas e se entregarem aos diabos, pois se elas pudessem encontrar algo melhor, não aceitariam tais namorados. (BODIN apud 2001, p.104) Esta menção, não é mais que uma síntese sobre a imagem da bruxa que se

89 envolve por meio de relações sexuais com os demônios para firmar seus pactos diabólicos. Seguindo esta linha, Poetas Renascentistas como Pierre de Ronsard, Joachim du Bellay, Agrippa d'Aubigné narraram em suas poesias as características grotescas que Hans Baldung Grien e também seu mestre Dürer ilustraram em suas pinturas. O citado Joachim du Bellay escrevia sobre a inerência do corpo ao espírito, no sentido de que as belezas destas duas esferas seriam proporcionais à suas respectivas qualidades: Um corpo lento, pesado, grosseiro ou mal proporcionado dificulta em muito a sutileza do espírito, e constitui um obstáculo a várias virtudes. (RIVAULT, 1596 apud JOUANNA, A. 2010, p.26) Além da figura estética dos traços da velhice que encarna tais adjetivos diabólicos, a mulher feia e velha também representa a morte, ou a proximidade a ela.

Recortes das Figuras 4 e 5: As velhas

Estas representações de bruxas Modernas, assim como as de Baldüng, expõem as sujeitas com as características que revelam a tal citada velhice, isso nos leva a dois exames: o primeiro explicado pelo viés Inquisitorial e outro pela conexão que a velhice tinha com o Demônio e a morte.

90 Primeiramente, sobre o sentido Inquisitorial vamos buscar nas análises de Brian P. Levack as referências que demonstram que este estereótipo – a Bruxa velha – foi reforçado pelo número de mulheres com mais de 50 anos processadas na Inquisição sob acusações de bruxaria. Vejamos a seguinte tabela:

Tabela 2 - Idade dos acusados de bruxaria (1988, p.133)

REGIÃO

ANOS

BRUXAS

DE

IDADE

N.º ACIMA

%

ACIMA

DE 50

DE 50

CONHECIDA Genebra

1537-1662

95

71

75

1542-1679

47

24

51

1645

15

13

87

Wüttemberg

1560-1701

29

16

55

Salém, Mass.

1692-1693

118

49

42

Dpto.º

do

Norte, França Condado de Essex, Inglaterra

Considerando os dados que o autor nos traz, é seguro analisar que a maioria das bruxas de tais lugares era realmente mais velha, visto que ter 50 anos naquele período era considerada uma idade ―avançada‖. Levack ainda traz algumas tentativas de explicação sobre a ―velhice‖ das bruxas. Uma primeira explicação decorre do tempo que demorava para uma bruxa ser processada, devido a longa duração de suspeita de vizinhos, ou qualquer outro membro da sociedade. Em segundo lugar, as curandeiras, que por muito fora acusadas, detinham um saber grande sobre seus medicamentos, fator que geralmente apenas pessoas de mais idade dominavam. Uma terceira explicação vem da própria condição na natureza da velhice, como escreve escritor Cyrano de Bergerac no século XVII:

Ela era idosa: a idade enfraquecera sua razão. A idade torna a pessoa tagarela: ela inventou a história para divertir seus vizinhos. A idade enfraquece a visão: ela confundiu um Gato com uma Lebre. A idade torna a pessoa nervosa: ela pensou estar vendo 50, em vez de uma. (1988, p.134)

91 Com efeito, a pessoa velha tende a criar tais ilusões e acabava por incomodar seus vizinhos que viviam suspeitando ora das tagarelices da velha, ora, da antissociabilidade destas. Sobre a conexão da velhice com o Diabo, deve-se incluir o elemento do sexo. A mulher velha era vista por alguns, principalmente pelo clero, como uma insaciável movida por desejos carnais, ainda mais se viúva. Na Inglaterra, o escritor Robert Burton escrevera em sua obra: Anatomy of Melancholy (1621) (1988, p.135), que as velhas eram insanamente luxuriosas. Talvez, este pensamento não era particular de Burton, mas ilustrava o de muitos que compartilhavam de sua ideia. Destarte, como vimos no primeiro capítulo, o sexo era uma espécie de ―porta de entrada‖ do maligno, que principalmente pelo ato carnal e logo seu desejo, os maiores pecados eram cometidos. Podemos então, tentar ilustrar certa ligação da representação das bruxas de Baldüng para com o que foi aqui analisado: a velha é ilustrada decrépita numa tentativa de causar o horror em quem vê – gerando o alerta de que este sujeito é perigoso. Nua, pois carrega a lascívia da carne, a fim de atrair parceiros, pois seu desejo por sexo é indomável.

A velha era a bruxa por excelência na mentalidade da época, influenciada pelo neoplatonismo renascentista que colocou a beleza física como representação da bondade e, sendo assim, as mulheres idosas tinham a malignidade marcada em sua aparência decadente. (LIEBEL, p.59)

No Renascimento, as anciãs provocam uma onda de medo, incentivada pela literatura e iconografia. (RAMINELLI, 1996, p. 102) As obras de Boccaccio e sua tamanha difusão, e mais tarde com Agrippa d‘Aubigné entre outros, ilustra esse tal sentimento com as velhas, no qual as pensavam com carcaças esqueléticas, dentes ulcerados, seios flácidos, olhos remelentos e odor infecto. (1996, p. 102) Portanto, é numa conjuntura que concerne em seu bojo: um contexto Inquisitorial e imaginário sabático; uma herança misógina - reforçada pelos apelos Platônicos característicos do Renascimento; adicionados aos discursos Religiosos e sua potencialização com os veículos de imagem a partir do século XV, que serão apresentadas tais produções de Baldung. Cada símbolo que integra o cenário e personagens destas obras são reflexos que se interpretam de uma sociedade com suas angústias e que lida com o sobrenatural,

92 como uma fronteira não definida com a realidade. As bruxas de Baldung são os demônios criados pelos discursos de uma longa época e, incorporados ainda de outros tempos.

93 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A História das Mulheres, como citado no início desta monografia, foi nos transmitido por muito tempo por interlocutores masculinos, de forma que a maior documentação que existe sobre as mulheres do período analisado são visões do opressor para com o oprimido. O esforço em demonstrar a ligação que a Igreja concebeu entre a mulher e o demônio partiu de da premissa de uma submissão pré-cristã e culminou na caça às Bruxas. Das condenações e execuções inquisitoriais sobre bruxaria, as mulheres foram predominantes. Eram acusadas se jovens: por ser, segundo o clero, um forte apelo sexual, que instigava a lascívia da carne nos homens de boa fé e logo ao pecado; ou se velhas, por estarem envolvidas de um isolamento social, mais próximas da morte e do diabo. A arte de Baldüng, como o analisado, refletiu para estereotipar um perfil de mulheres e bruxas, ilustrando no imaginário de quem via tais imagens uma impactante sensação de horror. Tendo em vista que o medo foi um forte apelo utilizado pela religião vigente na Europa, podemos refletir sobre o uso destas imagens macabras. Neste todo, a nudez, os elementos bestiais, a exposição dos polos contrários e de outros diversos símbolos compostos na configuração do Sabá inserido nas obras são veículos que se achou imprescindível de reflexão para entender, por um viés artístico, a histeria das bruxas na Europa. Enfim, pra cada sujeito, um argumento foi utilizado na repressão. A caça às bruxas, e seu contexto de demonização tiveram, assim como todo processo Histórico, suas rupturas e permanências ao longo dos tempos. Ao mesmo tempo em que a Igreja católica não condena sujeitos a morte hoje em dia e, tem mudado seu discurso ao longo dos séculos, podemos perceber quão vivos ainda estão os resquícios de uma misoginia herdada dos campos religiosos, sociais e culturais.

94 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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